24 de Julho
António Sardinha
RESUMO
António Sardinha analisa o resultado da guerra civil de 1831-34, salientando o impacto da extinção das Ordens Religiosas, a submissão a interesses estrangeiros, a reinterpretação da história feita pelos vencedores, a decadência do parlamentarismo. Uma restauração da verdadeira liberdade nacional depende do resgate dos valores e instituições tradicionais.
Reflexão sobre a Guerra Civil de 1831-34 e o Futuro de Portugal
- Contexto Histórico e Consequências da Guerra Civil. António Sardinha examina as consequências da guerra civil de 1831-34, dando especial destaque ao impacto negativo da extinção das Ordens Religiosas, à submissão do país a interesses estrangeiros e à forma como a história foi reinterpretada pelos vencedores. Sublinha que a verdadeira liberdade nacional só poderá ser recuperada através do resgate dos valores e instituições tradicionais portugueses.
- A Entrada do Exército Liberal em Lisboa. Sardinha relembra que, em 24 de julho de 1833, o exército liberal comandado pelo conde de Vila-Flor (futuro duque da Terceira) entrou em Lisboa, marcando o início da chamada “monarquia constitucional”, um regime implantado pela Maçonaria e influenciado pelos piores excessos da Revolução Francesa. A entrada do duque da Terceira é vista como o ponto de partida para a consolidação desse sistema político.
- Desorganização Nacional e Paralelismos com Outras Épocas. Sardinha identifica uma ligação entre o romantismo político e o estado de desorganização em que Portugal se encontrava. A República teria tido menos força se o individualismo revolucionário não tivesse antes enfraquecido as instituições tradicionais do país, substituindo-as por estruturas teóricas e frágeis. Há um paralelo entre a situação vivida em 1833 e acontecimentos mais recentes na Europa, como a deposição do rei Constantino, ilustrando como é fácil afastar um monarca do poder, mesmo que este esteja alinhado com o sentimento popular.
- A Queda de D. Miguel e a Intervenção Estrangeira. D. Miguel não foi exilado pelo povo português, mas sim pela Quádrupla Aliança, em resultado de mudanças políticas em Inglaterra e em França. A atuação de Venizélos, político grego, é comparada à dos ideólogos portugueses que, por solidariedade internacional, acabaram por contribuir para a ruína da pátria. Apesar da dedicação dos portugueses à causa de D. Miguel, a derrota de Portugal foi acelerada por incompetência interna e delações. Algumas figuras salvaram-se pela sua compreensão da situação, como o visconde de Santarém, António Ribeiro Saraiva, o bispo de Viseu e José Acúrsio das Neves. Este último, notável pela sua contribuição para a história económica de Portugal, morreu abandonado, vítima da perseguição dos seus inimigos. O bispo de Viseu também sofreu perseguição e exílio. Sardinha salienta que a opressão e os vexames trazidos pela República não foram uma novidade, tendo marcado também o liberalismo do século XIX. A extinção das Ordens Religiosas é apresentada como um dos episódios mais infames da história portuguesa, criticado inclusive por Alexandre Herculano, que, apesar de liberal, não deixou de o condenar. Ramalho Ortigão, em carta escrita no fim da vida, compara a obra liberal de 1834 à obra republicana de 1910, apontando o mesmo espírito de violência e anarquia. A diferença entre os protagonistas de 1834 e de 1910 reside na cultura humanista dos primeiros. Apesar de se apropriarem de ideais aristocráticos e democráticos, o declínio progressivo da cultura e a dissolução do pensamento político conduziram à degeneração do parlamentarismo, outrora sustentado pelas disciplinas clássicas.
- Submissão a Interesses Estrangeiros e Perda de Soberania. Sardinha denuncia a submissão de Portugal a interesses estrangeiros, exemplificando com o episódio em que a França, através do barão de Roussin, impôs ao país uma humilhação internacional devido ao julgamento de um cidadão francês, Edmond Bonhomme. Nesse episódio se vê a ligação moral entre o constitucionalismo liberal e a república, ambos associados à perda de soberania nacional.
- A Reinterpretação da História e a Figura de D. Miguel. Sardinha critica a historiografia desse período, escrita pelos vencedores liberais, considerando-a falsa e caluniosa. D. Miguel não deve ser visto como um símbolo de absolutismo ou despotismo, citando documentos que comprovam os intentos de D. Miguel em restaurar a antiga constituição portuguesa, purificada dos excessos introduzidos pelo Pombalismo.
- O Projeto Político de D. Miguel. Sardinha defende que a vitória de D. Miguel teria significado a correção do parlamentarismo através da representação territorial e técnica, a defesa da família e da propriedade, o reforço da função régia e o revigoramento da vida local. O programa político de D. Miguel visava recuperar as antigas liberdades municipais e corporativas, consideradas o segredo da força da sociedade tradicional portuguesa.
- Consequências da Derrota e Caminho para o Futuro. Com a queda de D. Miguel, surgiu um regime monárquico sem força nem legitimidade, levando à desnacionalização do país e à opressão. A restauração nacional terá de realizar, com inteligência e vontade, aquilo que os antepassados fizeram pelo costume e pelo sentimento. Ou seja, é necessário reatar o fio da tradição cortado pela intervenção estrangeira em 1834.
- Conclusão. O longo parêntesis iniciado em 24 de julho de 1833 pode ser fechado se Portugal for restituído ao vigor da sua tradição histórica.
24 DE JULHO
A 24 de Julho de 1833 entrou em Lisboa o troço do exército liberal do comando do conde de Vila-Flor, a seguir duque da Terceira. A hora é bem para o recordarmos, quando todos nós nos sentimos vítimas do erro comum que um ano depois, em Évora-Monte, expulsaria do trono português o seu verdadeiro rei, e quando a situação externa criada hoje a Portugal pela força da guerra nos ensina claramente como o governo de um país, divorciado por completo das suas aspirações e dos seus interesses, pode em todo o caso figurar aos olhos do estrangeiro como o seu governo legítimo. Foi o que sucedeu com a monarquia constitucional, filha da Maçonaria e dos vícios piores da Revolução Francesa, e da qual a entrada em Lisboa do duque da Terceira ia ser o primeiro passo para a sua aclimatação definitiva.
As consequências do romantismo político em tantos espíritos manifestamente sinceros apalpam-se agora no estado de desorganização em que Portugal se debate. A república não nos teria dominado tão esmagadoramente, se o individualismo revolucionário não nos houvesse enfraquecido de antemão a resistência secular, substituindo as nossas instituições tradicionais por outras, nascidas da pura teoria e só na pura teoria acreditadas. A nossa época oferece-nos até inesperados pontos de contacto com essa época agitada de 33. A deposição recente do rei Constantino mostra-nos como é fácil despojar um monarca do seu direito, embora inteiramente identificado com o sentir do seu povo.
Eis o que sucedeu em 34 com D. Miguel. De modo nenhum Portugal o atirou para o exílio. Atirou-o para o exílio a Quádrupla Aliança, tornada possível a sua intervenção pela mudança ministerial que em Inglaterra levou os whigs ao poder e, sobretudo, pela Revolução de Julho que em França lançou por terra a realeza de Carlos X. O curioso é que no tipo perfeito de político desnacionalizado que é Venizélos nós encontramos sem dificuldade a representação viva de quantos ideólogos se prestaram então em Portugal à ruína da sua pátria, unicamente por homenagem a uma nefasta solidariedade internacional de princípios.
Condenada pela Europa liberal, a causa de D. Miguel dificilmente subsistiria, conquanto a dedicação dos portugueses não faltasse ao seu infortúnio admirável. Apressou-lhe, porém, o desenlace trágico a delação e a incompetência que na política miguelista abriam caminho por toda a parte. São poucos os que se salvam pela compreensão inteligente da situação. Salva-se talvez o visconde de Santarém, salvam-se António Ribeiro Saraiva, o bispo de Viseu e José Acúrsio das Neves. Honrado pelos ódios liberais, José Acúrsio das Neves, que ilustra com o seu nome a história económica do nosso país, morreria num palheiro ao abandono, debaixo da perseguição dos seus inimigos que nem a agonia lhe souberam respeitar. O bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, conheceria a emigração e quase o desacato ao carácter sagrado do seu ministério. Iludem-se os que supõem nova em Portugal a sanha de vexames e de opressões que a república não fez mais que ressuscitar dos fastos já esquecidos do nosso liberalismo. Basta lembrar a extinção infamíssima das Ordens Religiosas, que Alexandre Herculano – um sincero! - apostrofaria em páginas ardentes, ainda motivo profundo de comoção em quem as lê. De resto, não é só minha a afirmação. Ramalho Ortigão, ao fim da vida, perfilhava-a quando na Carta de um velho a um novo se expressa nestes termos: «A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista – foi inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.»
A diferença que se dava – a Ramalho não escapava o facto – devia-se à cultura humanista que conformara a mentalidade dos de 34. O individualismo revolucionário não lhes estava por isso no inconsciente, como observa algures, no prefácio da sua notável conferência, O Parlamentarismo e o Teatro Moderno, Hemetério Arantes. Parece que se tinham apropriado daquele conselho do
testamento de Camors, diz Hemetério Arantes: «être aristocrate pour notre compte personnel et démocrate pour le compte d'autrui». Mas na diminuição crescente da cultura e na total dissolvência do pensamento pelo verbalismo fácil da comédia política, o parlamentarismo, forte nos seus começos pelo apoio intelectual que as disciplinas clássicas lhe prestavam, degenerou fatalmente no parlamentarismo de hoje em dia, nado e criado, por mais que a maternidade se lhe recuse, no úbere farto da Carta Constitucional.
Sem paradoxo nem exageros doutrinários, reconheçamos, pois, que a república se proclamou em 1820, ganhando raízes fartas, pela corrupção económica e pela venalidade dos caracteres, na aventura lastimável consumada em 1834. Ninguém decerto ignora a vergonha a que a França nos sujeitou, mandando ao Tejo a esquadra do barão de Roussin. E unicamente porquê? Unicamente porque se julgara e punira em harmonia com as leis do Reino um súbdito francês, Edmond Bonhomme, que cometera actos sacrílegos os mais repelentes dentro de uma igreja em Quinta-Feira Santa. Soltou-se Bonhomme, pagou-se uma grande indemnização, Roussin apresou várias unidades da nossa esquadra, nunca mais restituídas, e sobre tudo isto os liberais aplaudiram delirantemente a violência sem nome. Tal como agora, no entendimento universal da causa da Maçonaria sob a invocação retórica do Direito, da Liberdade e da Justiça! Mas o mais interessante é saber quem era M. Bonhomme. M. Bonhomme, morto em Lisboa de idade avançada, foi o sócio n.º 1 da Associação do Registo Civil. Eis a genealogia moral que, por intermédio de um estrangeiro, liga a república que nos desgoverna ao constitucionalismo que nos arruinou!
A história desse período desgraçado, escrita inteiramente pelo partido vencedor, precisa ser refundida, por falsa e por caluniosa. D. Miguel representa precisamente a ideia que hoje triunfa por toda a parte, no florescimento reaccionário da inteligência europeia. Não passa de um juízo faccioso e grosseiro o juízo que reputa D. Miguel como representante do absolutismo mais cerrado e mais brutal. Basta abrir um opúsculo intitulado Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, agent diplomatique portugais à Londres, sous le gouvernement de Don Miguel, avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne... para nos convencermos, por um lado da conspiração diplomática que, tal como na Grécia, privou da coroa a el-rei D. Miguel e, por outro lado, dos nobres intentos políticos que animavam o soberano. «Mais aujourd'hui le Roi lui-même est convaincu plus que personne du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir, en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues et hétérogènes que le Pombalisme (en vertu d'une sorte de dictature, peut-être nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduite, au milieu du siècle dernier.»
Nesta passagem de Ribeiro Saraiva contém-se o significado perfeito da política que a vitória de D. Miguel importava consigo. Importava consigo a correcção do parlamentarismo pelo critério orgânico da representação territorial (Três-Estados do Reino) e da representação técnica (Casa dos Vinte-e-Quatro). Importava consigo a defesa da Família e da Propriedade contra os geometrismos jurídicos plagiados ao Código-Napoleão. Importava consigo o prestígio da função régia e o revigoramento da vida local e provincial. Importava ainda consigo, contra os falsos conceitos de uma liberdade sem alcance real, a manutenção e a inviolabilidade dessas outras liberdades que, expressas nas nossas velhas franquias municipais e corporativas, foram o segredo da estrutura formidável da antiga sociedade.
Mas D. Miguel caiu. Na queda do Rei de Portugal surgiu uma realeza bastarda, que a si própria se exautorava. É a hora dos tronos au rabais e dos monarcas au bon marché – na ironia sangrenta de Balzac. A pátria desnacionalizou-se, sem mais consistência que a de uma poeira solta de átomos. Os resultados têmo-los em nós mesmos, na opressão que nos avilta e vitima. Só um caminho nos resta, se não quisermos declarar tudo perdido, até a própria honra! É – na fórmula brilhante de Maurras – realizar pela inteligência e pela vontade, com firmeza e nitidez científicas, o que nossos avós realizaram pelo costume e pelo sentimento. Outra coisa não será senão reatar o fio interrompido pela acção da Quádrupla Aliança na jornada dolorosa de Évora-Monte.
Com essa certeza, bem iluminada e bem firme, suponho fechado para sempre o longo parêntesis de que a data de 24 de Julho de 1833 foi o início fatal. Assim o deseje a nossa Pátria, restituída ao vigor da sua tradição histórica, como o desejam aqueles que apenas procuram torná-la mais livre e mais grandiosa!
[ negritos acrescentados ]
[ António Sardinha, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, Lisboa, GAMA, 1942, pp. 135-141 ]