A Crise do Estado
António Sardinha
RESUMO
António Sardinha analisa a crise do Estado moderno, argumentando que as estruturas políticas herdadas do liberalismo e da Revolução Francesa estão em declínio porque ignoram as forças sociais coletivas e dão prioridade excessiva ao individualismo. Pensadores como Adolfo Posada e Gaston Morin, são objecto de critica mostrando que, apesar de reconhecerem a crise do Estado, ainda estão presos a doutrinas relativistas que não conseguem oferecer soluções verdadeiramente orgânicas ou tradicionais.
SOLUÇÕES PROPOSTAS
- Sobre a incorporação das forças sociais coletivas: “...anterior ao Estado, há uma soberania social que resulta do homem, como sujeito de direitos, mas que se exerce através dos institutos de formação natural e espontânea em que o homem se engasta, para nascer, desenvolver-se e prosperar: a Família, o Município, a Corporação. Diversa da soberania política, que pertence em exclusivo ao Estado, só a restauração da soberania social conseguirá restituir a este a posse das suas perdidas virtudes.”
- Sobre a solidariedade como fundamento do direito: “Tal conceito de ‘solidariedade’ pressupõe, anterior ao direito do Estado, um direito social como fundamento da soberania. Isso envolve consigo o repúdio terminante do erro revolucionário, que tem o indivíduo puro e simples como alicerce e fim exclusivo da sociedade.”
- Sobre o sindicalismo como meio de reconstrução social: “O sindicalismo é, deste modo, o eixo da reconstrução futura, para todos os pensadores e publicistas a quem o problema da transformação do Estado preocupa agudamente. E com justeza Duguit repara que ‘o movimento sindicalista não é, na realidade, a guerra empreendida pelo proletariado, para destruir a burguesia e conquistar os instrumentos da produção. ... É um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, diria até, muito mais humano. ... creio que é, pelo contrário, um meio poderoso de pacificação e união. ... tende a coordená-las num feixe harmónico’.”
- Sobre a restauração da ordem tradicional e do direito natural:“Se despirmos do seu limitado e grosseiro positivismo as fórmulas doutrinárias de um Duguit, logo observaremos como coincidem com as teorias de São Tomás sobre a sociedade e o Estado. O conceito de ‘pessoa’, tão querido do Tomismo e tão essencial à justa posse da objectividade no campo do Direito, ei-lo de regresso, sepultadas como se acham já no limbo das larvas sem glória as torpes ideologias de um falso e depressivo racionalismo.”
António Sardinha defende que a superação da crise do Estado passa pelo fortalecimento dos laços sociais e coletivos (como a família, município e corporação), pela restauração da ordem natural e tradicional, e pelo reconhecimento da solidariedade como fundamento do direito e da soberania social.
As soluções propostas apontam para uma transformação do Estado em direção a uma estrutura mais orgânica, coletiva e enraizada na tradição, capaz de responder às exigências reais da sociedade contemporânea:
As soluções propostas podem ser aplicadas à sociedade atual de várias formas, especialmente onde há insatisfação com o individualismo, a fragmentação social e a crise de representatividade política:
Essas ideias podem ser vistas em práticas e debates contemporâneos sobre democracia participativa, descentralização do poder, políticas de bem-estar social e busca por modelos de desenvolvimento mais humanos e sustentáveis.
1. Fortalecimento das instituições naturais
2. Promoção da solidariedade como princípio jurídico e social
3. Restauração de princípios permanentes e tradicionais
4. Superação do individualismo jurídico
Essas medidas podem ser implementadas por meio de reformas legislativas, políticas públicas, incentivos económicos e campanhas educativas, sempre respeitando a diversidade e os direitos individuais. Conforme sugerido por António Sardinha, o objetivo é o de criar uma sociedade mais coesa, colaborativa e enraizada em valores duradouros.
- Superação do individualismo: Sardinha defende que o Estado deve incorporar e valorizar as forças sociais coletivas, como a família, o município e a corporação, em vez de se basear apenas no indivíduo isolado. Isso significa restaurar a soberania social anterior ao Estado, reconhecendo os grupos naturais como fundamentos da vida social e política.
- Restauração da ordem natural e tradicional: Propõe um retorno a uma ordem política baseada em princípios naturais, inspirados pelo pensamento tradicionalista e cristão (especialmente o tomismo), em oposição ao racionalismo e ao relativismo das doutrinas modernas. A autoridade e a liberdade devem coexistir em harmonia, e o direito deve estar em conformidade com a natureza humana e a justiça.
- A Solidariedade como fundamento do direito: Sardinha sugere que o conceito de solidariedade deve substituir o individualismo, tornando-se o eixo da reconstrução do Estado. O sindicalismo, entendido como a coordenação e união de todas as classes sociais, é visto como um meio de pacificação e equilíbrio social, promovendo a colaboração e o progresso coletivo.
As soluções propostas apontam para uma transformação do Estado em direção a uma estrutura mais orgânica, coletiva e enraizada na tradição, capaz de responder às exigências reais da sociedade contemporânea:
- Incorporação das forças sociais coletivas no Estado: Sardinha defende que o Estado deve reconhecer as instituições naturais como a família, o município e as corporações profissionais, em vez de se basear apenas no indivíduo isolado. Cita a Constituição alemã de 1919 como exemplo, pois garante direitos sociais, familiares e profissionais, reconhecendo a importância das associações religiosas, profissionais e familiares como elementos fundamentais da vida social e jurídica.
- Reconhecimento da solidariedade como princípio jurídico: Sardinha propõe que o sindicalismo, entendido não como luta de classes, mas como coordenação e união de todas as classes sociais, seja o eixo da reconstrução do Estado. Defende que o movimento sindicalista deve ser visto como um meio de pacificação e união social, promovendo a colaboração entre diferentes grupos e superando o individualismo herdado da Revolução Francesa.
- Restauração da ordem tradicional e do direito natural: Sardinha sugere que o Direito e o Estado devem basear-se em princípios permanentes e naturais, inspirados pelo pensamento tradicionalista e cristão (especialmente o tomismo). Critica o positivismo e o moderno relativismo jurídico, defendendo que a autoridade e a liberdade devem coexistir de forma harmónica, e que o direito deve estar em conformidade com a natureza humana e a justiça, não apenas com a vontade arbitrária do legislador.
- Crítica ao individualismo jurídico e defesa do grupo: Sardinha mostra que o Código Civil francês, reflexo do individualismo revolucionário, está sendo superado pelo surgimento de novas formas de organização social, como cooperativas e federações, que substituem o indivíduo isolado como fator central da vida económica e política.
As soluções propostas podem ser aplicadas à sociedade atual de várias formas, especialmente onde há insatisfação com o individualismo, a fragmentação social e a crise de representatividade política:
- Valorização dos laços sociais e coletivos: Numa sociedade marcada pelo individualismo e pelo isolamento, a proposta de fortalecer instituições naturais como a família, as comunidades locais (municípios) e as corporações profissionais pode inspirar políticas públicas que promovam a coesão social, o apoio mútuo e a participação comunitária. Exemplos atuais incluem incentivos a associações de bairro, cooperativas, conselhos comunitários e políticas de fortalecimento da família.
- Restauração de princípios permanentes e tradicionais: Em tempos de mudanças rápidas e incertezas, a busca por fundamentos éticos e jurídicos mais estáveis pode ser vista em movimentos que defendem valores tradicionais, direitos humanos universais ou princípios éticos inspirados em tradições religiosas ou filosóficas. Isso pode refletir-se em debates sobre o papel da moralidade, da justiça natural e da dignidade humana nas leis e políticas públicas.
- Solidariedade como eixo das políticas sociais e económicas: A ideia de substituir o individualismo pelo princípio da solidariedade está presente em propostas de economia solidária, sindicalismo moderno (voltado para a colaboração entre classes e não para o conflito), políticas de inclusão social, sistemas de segurança social e iniciativas de responsabilidade social corporativa. O foco é o de promover a colaboração, a justiça social e o bem comum, em vez da competição desenfreada.
- Superação do individualismo jurídico: A crítica ao individualismo jurídico pode ser aplicada na valorização de formas coletivas de organização, como cooperativas, associações, federações e movimentos sociais, que hoje têm um papel crescente na defesa de direitos, na economia e na política.
Essas ideias podem ser vistas em práticas e debates contemporâneos sobre democracia participativa, descentralização do poder, políticas de bem-estar social e busca por modelos de desenvolvimento mais humanos e sustentáveis.
1. Fortalecimento das instituições naturais
- Políticas públicas de apoio à família: Incentivos fiscais, programas de educação familiar, proteção jurídica especial para as famílias e promoção de ambientes saudáveis para o desenvolvimento dos seus membros.
- Valorização dos municípios e das comunidades locais: Descentralização administrativa, maior autonomia para os governos locais, estímulo à participação cidadã em conselhos comunitários e em associações de bairro.
- Reconhecimento das corporações profissionais: Criação ou fortalecimento de conselhos profissionais, sindicatos e associações que representem diferentes setores da sociedade, promovendo o diálogo e a colaboração entre eles.
2. Promoção da solidariedade como princípio jurídico e social
- Sindicalismo colaborativo: Incentivar sindicatos e associações de trabalhadores a funcionar como mediadores e promotores de colaboração entre classes, em vez de se focarem no conflito. Isso pode incluir fóruns de negociação coletiva, acordos de cooperação e projetos conjuntos entre diferentes setores.
- Economia solidária: Apoio a cooperativas, associações de produtores, bancos comunitários e iniciativas de comércio justo, dando prioridade ao bem comum e à colaboração em vez da competição desenfreada.
3. Restauração de princípios permanentes e tradicionais
- Educação baseada em valores éticos e tradicionais: Inserção de conteúdos sobre ética, justiça natural e valores comunitários nos currículos escolares e universitários.
- Legislação inspirada no direito natural: Revisão de leis para garantir que estejam em conformidade com princípios de justiça, dignidade humana e respeito à natureza social do indivíduo, evitando arbitrariedades legislativas.
4. Superação do individualismo jurídico
- Apoio a formas coletivas de organização: Facilitar a criação e funcionamento de cooperativas, federações, associações e movimentos sociais que defendam interesses coletivos e promovam a participação democrática.
- Revisão de códigos legais: Atualizar códigos civis e comerciais para reconhecer e proteger direitos coletivos, como o direito à associação, à participação comunitária e à solidariedade social.
Essas medidas podem ser implementadas por meio de reformas legislativas, políticas públicas, incentivos económicos e campanhas educativas, sempre respeitando a diversidade e os direitos individuais. Conforme sugerido por António Sardinha, o objetivo é o de criar uma sociedade mais coesa, colaborativa e enraizada em valores duradouros.
A CRISE DO ESTADO
Ninguém de mediana reflexão pode já duvidar do completo desacordo que existe hoje entre o ritmo geral dos acontecimentos e a noção ou conceito de Estado que, por virtude das leis da inércia, persiste ainda em subsistir na Europa. Interessante como testemunho insuspeito, vale a pena ouvir a esse propósito o tratadista e catedrático espanhol Adolfo Posada. Dotado de qualidades que seria injustiça negarem-se-lhe, Adolfo Posada é uma vítima intelectual da superstição democrática, espelhando na enunciação, tantas vezes difusa, do seu pensamento a nefasta influência que o Krausismo exerceu na mentalidade espanhola. Pois no seu recente volume Teoría social y jurídica del Estado,[1] em que se compendiam seis conferências pronunciadas por Posada na Universidade de Buenos Aires, o sábio professor de Direito Político e de Direito Municipal Comparado na Universidade de Madrid começa logo por nos declarar com desassombrada sinceridade: «Si quisiéramos definir y caracterizar sintéticamente la situación de las cosas, en el orden político ideal y real, y en el ser y vivir del Estado, diríamos que éste y aquél atraviesan momentos de verdadera crisis. Nos hallamos, señores, ante una crisis del Estado, crisis honda y grave de ideales, de esencias y de principios, y de formas y de estructuras; todo parece estar en pleito: desde la justificación racional e histórica del Estado, hasta los detalles de su organización institucional.»
»Impónese así una revisión – acrescenta o catedrático Posada –, y en ella, o para intentarla, es indispensable una clara interpretación de los movimientos determinantes de la crisis, único camino seguro, además, para fijar su naturaleza y su alcance, y señalar la solución posible de la misma, si es que nos hallamos en condiciones de vislumbrarla. La solución implicará la nueva labor constructiva de una teoría del Estado, labor que deberá basarse en el conocimiento objetivo del momento crítico, merced a la definición y apreciación de las preocupaciones determinantes del mismo, y que, a mi juicio y según las indicaciones expuestas, pueden resumirse en los siguientes términos:
1.° La que supone, o se suscita por la intensificación del aspecto social de la vida humana, y que para el Estado se traduce en un grave y delicado problema de incorporación o asimilación constitucional de los elementos o fuerzas en que lo social intensificado, se condensa y estrutura: movimiento sindical, federalismos, etc.;
2.º La que se produce como consecuencia lógica de una aspiración creciente por construir, para cada necesidad humana, esencial, una institución adecuada que desempeñe como función propia la dirección de las actividades que exige la plena y adecuada satisfacción de la respectiva necesidad: democracia funcional orgánica;
3.º La que resulta de la aspiración complementaria e inicial a la vez, por recoger todos los movimientos sociales y las actividades que las producen y las funciones en que se especifican, en un orden jurídico adecuado: creación de los Estados de derecho.»
Atirando fora certa terminologia eivada, arcaicamente, de pseudo-racionalismo, o professor Adolfo Posada diagnostica com acerto o mal profundo de que padece o Estado atual na sua íntima composição – nas mais insignificantes das suas rodagens. Saído de uma conceção simplista da Sociedade, o Estado atual, agora em declínio agudo e indebelável, conta apenas com o indivíduo, e considerado unicamente debaixo do ponto de vista político imediato. Tudo o que se afirme como soma de energias colectivas o ignora ou despreza, por alheio ao seu mecanismo e finalidade. Observa, pois, sensatamente Adolfo Posada quando escreve que a parte dominante e melindrosa do problema consiste em incorporar no Estado os novos elementos ou novas forças, que, de hora para hora, se estão suscitando com o desenvolver intensíssimo da vida local, regional e sindical. Daí o exigirem as circunstâncias uma outra visão ou teoria do Estado que, nas palavras do citado tratadista, «representa la más radical rectificación de la concepción individualista y gregaria del mismo, a que en definitivo ha respondido el régimen político constitucional y el liberalismo inspirador: el liberalismo abstracto y formalista.» Ilude-se, porém, Adolfo Posada ao supor que se trata de uma «nueva estructuración de fuerzas sociales», equivocando-se totalmente, e isso por obra dos mitos krausistas que lhe povoam o cérebro, na denominação de «democracia funcional orgânica» que confere à possantíssima reacção da sociedade europeia contra o perpétuo atomismo, a que pareciam havê-la condenado os erros criminosos da Revolução Francesa.
Evidentemente que, no desfazer já inevitável das construções ideológicas e jurídicas do Liberalismo, de modo nenhum se devem reputar como factores imprevistos e inteiramente contemporâneos aqueles que Posada enumera como impondo-se a uma urgente incorporação nas fórmulas superiores do Estado. Desde o regionalismo ao sindicalismo, é a ideia individualista da sociedade que cede às razões naturais e históricas da mesma, é a errata que finalmente surge a despojar do seu inexplicável prestígio os convencionalismos insensatos do Contrato Social. De maneira que não nos achamos em frente de uma «nueva estructuración de fuerzas sociales», mas sim de uma revolta dessas forças, permanentes e inalienáveis, contra o sofisma, já secular, que teimava em as dispersar e anular atrabiliariamente.
Nada mais falso, portanto, do que entender como «democracia», ainda que «orgânica» e «funcional» – oh, o pedantocratismo dos universitários! –, aquilo que é pura e simplesmente a negação dos princípios democráticos – gregaristas e individualistas, por condição irremediável. De resto, é o que o próprio Posada, apesar dos seus preconceitos, não deixa de reconhecer, até com uma saborosa ingenuidade, ao confessar que «las gentes quieren algo que no las ha procurado la Declaración de derechos y sienten la vida y las palpitaciones que la llenan de modo distinto a como las sentían los que asaltaron y tomaron la Bastilla».
«Y así no tiene nada de extraño – assevera em outra página o autor da Teoría social y jurídica del Estado, num manifesto conflito entre as indicações da realidade e as preferências doutrinárias do seu espírito – que al contemplar la actual situación de las cosas, de las ideas y de las instituciones, se hable, como hace M. Duguit en La transformación del Estado, de la forma romana, regalista, jacobina, napoleónica, colectivista del Estado, al caracterizar el Estado mismo que conceptuamos en crisis, y que parece deberá ser instituido por otra forma de Estado más amplia, más flexible, más protectora, más humana, esto es, para mí, más liberal, es decir, más intensamente inspirado en el «liberalismo» y en cuanto esto significa, no una simples política de partido, la representada por los partidos llamados liberales, sino cierta fecunda y noble actitud del espíritu individual y colectivo, reveladora de una fe razonada en el perfeccionamento moral del hombre, fe inspiradora de la confianza en la naturaleza humana, y la cual fe anima a realizar los esfuerzos más heróicos para levantar y llevar el hombre hacia una vida cada vez más digna, más noble, más desinteresada. Leía yo – insiste Adolfo Posada – en cierta ocasión un artículo de The New Statesman sobre el liberalismo y encontraba en él expuesto de modo admirable éste punto de vista que acabo de señalar, más una sugestiva indicación cuyos términos recuerdo; decía: “El liberalismo... en el mejor sentido, es sencillamente otra palabra para expresar la generosidad en política”.»
Elucida-nos a transcrição suficientemente sobre as directrizes filosóficas do tratadista Adolfo Posada. Achamo-nos em frente de um caso de romantismo jurídico – desse romantismo que o eminente jurisconsulto tradicionalista francês Marie de Roux soberbamente define, ao falar-nos de um como que «chimerisme technique», que, na própria frase, «se marie à merveille à l’irréalité de la mythologie révolutionnaire».
Assim o professor Posada que, com dedo de mestre, descobre o cancro irreparável do Estado contemporâneo, para logo se perder, no seu entusiasmo anacrónico pelos dogmas da Revolução, em divagações com tanto de absurdas como de abstractas, onde um protestantismo nato de krausista se liga à sociologia primária dos ideólogos do século XVIII. Não nos surpreende, por isso, que ele repute o Liberalismo como a «generosidade em política» e queira entender como sendo uma maior e mais pura aplicação dos princípios liberalistas as transformações por que estão passando as cariátides vazias do ignóbil embuste, que é o Estado democrático-parlamentar.
De acordo, portanto, com o catedrático da Universidade de Madrid em quanto à verificação do fenómeno, crise ou dissolução das instituições políticas que o século passado nos legou, afastamo-nos inteiramente do professor Adolfo Posada no que respeita às interpretações que ele nos oferece. Voltamos, porém, a coincidir com as suas considerações quando ele nos pondera que não basta incorporar na nova teoria do Estado os elementos de vida colectiva que tomam de dia para dia expansão e consciência vigorosas, mas harmonizá-los «en un orden jurídico adecuado», que Posada designa por «creación de los Estados de derecho», submetido à evidente tutela de Kant. Equivale isto a dizer que a determinação das formas precisa de ser acompanhada da determinação do conteúdo.
No natural desenvolvimento das suas afirmações, sugere-nos Adolfo Posada um testemunho expressivo na Constituição alemã de 11 de Agosto de 1919. Examinado com a atenção devida, semelhante documento ensina-nos, realmente, que o tempo das declarações simplistas, género Direitos-do-Homem, se vai distanciando cada vez mais, e que à noção exclusivamente política do indivíduo se começa a sobrepor a sua compreensão social. Efectivamente, na segunda parte da referida Constituição – do artigo 109.º ao artigo 165.º –, a a pessoa individual aparece-nos assegurada e garantida na sua tríplice existência moral, intelectual e económica. Assim, ainda que não haja religião do Estado, este reconhece como fundamental o direito de associação religiosa, concedendo às agremiações, que nesses termos se constituam, liberdade, autonomia e, consequentemente, a capacidade jurídica derivada das prescrições gerais da lei. Estabelece-se mais que as associações religiosas conservam o carácter de corporações de direito público, desde que o tenham; e, por último, que se identificam às associações religiosas as associações que se proponham a realização em comum de uma qualquer concepção moral do universo.
Mas o carácter social do «indivíduo, proclamado e mantido pela Constituição do Reich, não se traduz apenas no direito de agremiação para fins religiosos ou contemplativos. Com toda a solenidade se inscreve nela que o casamento, como fundamento da vida de família, da conservação e do crescimento da nação, fica debaixo da protecção especial da Constituição» – «expresión esta indicadora – comenta Posada – que se debe completar con otras, de verdadera sustancia moral, jurídica y económica». E o tratadista aduz, resumindo e aprovando: «Descansa el matrimonio sobre la igualdad de los sexos, y corresponde al Estado y a los municipios velar por la pureza, la salud y el mejoramiento social de la familia». É certo que numa disposição ou outra aparecem laivos de humanitarismo exagerado. Consequências do vento igualitário que ia desfazendo em menos de nada a obra formidável de Bismarck, não conseguem, contudo, turvar o que há de benemérito e arrojadamente inovador na Constituição do Reich. A ânsia de refundição global do Estado que os factos reclamam e a inteligência aconselha, reflecte-se já ali de uma maneira sensível. O cidadão dos Imortais-Princípios, desenraizado e esquematizado arbitrariamente, possui enfim ambiente e calor que o vitalizem. Reatam-se os vínculos humanos que nas suas generalizações insensatas o Liberalismo rompera quase por completo. E o respeito à integridade moral e social do indivíduo acentua-se de tal sorte na aludida Constituição, que, acerca dos funcionários públicos, se estatui que, salvo disposição contrária da lei, serão nomeados por toda a vida, declarando-se conjuntamente que «os funcionários são servidores da colectividade», e não de um partido, e garantindo-se-lhes liberdade de associação e de opinião política. Que se mire nesta lição a nossa república de maçons, judeus e mulatos!
Em matéria de direitos profissionais não é menos explícita a Constituição alemã, que assegura a cada uma, e a todas as profissões, a liberdade de se unirem para a defesa e melhoria das condições do trabalho, assentando-se simultaneamente que são ilegais todas as convenções e disposições que tendam a limitar ou impedir semelhante liberdade. Só por si, esta disposição derruba, e com forte machadada, todo o regime de individualismo económico, herdado da Revolução Francesa. E reabilitando a dignidade social do trabalho, determina o mencionado documento no seu artigo 160. ° que todo o empregado ou operário tem direito a que se lhe dispense o necessário tempo livre para o desempenho dos seus deveres cívicos; e, desde que não resulte daí prejuízo grave para os serviços em que se ocupa, ainda o tempo de que careça para exercer qualquer função honorífica, em que esteja investido, sem que com isso se afecte sensivelmente a remuneração que haja de cobrar.
A este conceito do Trabalho, tão perto do conceito cristão e tradicionalista, alia-se na Constituição do Reich o conceito de Propriedade. «A propriedade tem deveres – dispõe no seu último parágrafo o artigo 153.º – O seu desfruto deve constituir ao mesmo tempo um serviço prestado ao bem público». Pena é que tal doutrina seja diminuída pelo critério materialista do Estado alemão, inteiramente sujeito ao prestígio ideológico do marxismo. Porque se à elaboração da Constituição de 1919 correspondesse um outro espírito, uma concepção social inspirada pelos mandamentos do Cristianismo, não admite dúvidas que o estabelecido por ela, de uma maneira geral, tanto em relação ao Trabalho, como em relação à Propriedade, representava o reconhecimento de princípios e processos, preconizados desde há muito por todos os homens apaixonados pelo bem público, em quem os ensinamentos da Igreja se casem com um racional amor às experiências da história. A diferença está, pois, em que a Constituição do Reich, acentuando a linha marxista dos seus elaboradores, inclina-se fortemente para a socialização da propriedade (artigo 155.º), enquanto que as teorias de formação católica, com fonte nas lições inolvidáveis de Leão XIII, aspiram, pelo contrário, a uma criação cada vez maior de proprietários.
Da posse e utilização da riqueza, diz Santo Tomás que o homem não deve considerar as coisas exteriores como próprias, mas sim como comuns, de modo que haja nelas uma parte para acudir aos outros nas suas necessidades». Na sua famosa encíclica Rerum novarum, depois de nos recordar esta passagem do admirável Doutor Angélico, Leão XIII acrescenta: «Quem recebeu da divina bondade uma grande abundância, seja de bens externos e corporais, ou seja, de bens de espírito, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento e, simultaneamente, como ministro da Providência, para promover o alívio do próximo». Pelo referido percebe-se já o que na Constituição do Reich fere de esterilidade certas disposições suas, impregnadas de evidente justiça, mas que o seu carácter revolucionário, talvez ocasional, condenam a ser uma aplicação violenta de máximas subversivas, ao serviço de uma tendência económica absurda. Se não nos cabe, portanto, copiá-las ou aplaudi-las sem restrição, é-nos lícito, contudo, encará-las como um sinal bem manifesto do crepúsculo mortal em que entrou o individualismo democrático, cedendo, ainda que vagarosa e defeituosamente, o seu lugar a uma ideia mais humana do Estado.
Essa ideia é a que se desprende com dificuldade do tumulto de catástrofe em que o Liberalismo se some por toda a Europa – ideia que por ora se esboça na urgência do poder em se robustecer pela Ditadura, contra a legalidade estabelecida e acatada dos Parlamentos e do direito escrito. Assistimos ao afirmar de um instinto de vital conservação para as pátrias europeias, roídas durante mais de cem anos pela gafa cancerosa da democracia. Em presença do apelo unânime, tanto da inteligência como da produção, para a coordenação comum de um chefe (e na verificação de semelhante fenómeno Lenine e Mussolini equivalem-se), a unidade do Estado aparece-nos como custódia e fiel dos diversos pluralismos em que a sociedade volta a exprimir-se, depois de refeita da desorganização mortífera para onde o romantismo político a atirara. Se a Ditadura traduz assim a directriz dominante na transformação visível dos sistemas e métodos governativos, não é menos certo que a intensificação das funções concentradoras do Estado é acompanhada pelo crescimento vigoroso do sentido colectivo da vida individual, que o século passado desconheceu, ou, pelo menos, não quis conhecer, mas a cuja onda impetuosa já não é possível resistir-se. É debaixo desse aspecto que a Constituição alemã de 1919 significa o primeiro passo legal para a refundição completa da estrutura da dinâmica do Estado actual.
Marcámos já a sua origem marxista, procurando submeter o indivíduo inteiramente à comunidade. Se não houvesse outro caminho, cairíamos, como na Rússia, no exagero oposto ao dos dogmas de 89: na eliminação, não do individualismo, mas da individualidade humana. Porque a individualidade humana é a base da sociedade e porque, sem sociedade que a envolva e prolongue, a nossa individualidade se perde num atomismo irreparável, eis porque, anterior ao Estado, há uma soberania social que resulta do homem, como sujeito de direitos, mas que se exerce atravez dos institutos de formação natural e espontânea em que o homem se engasta, para nascer, desenvolver-se e prosperar: a Família, o Município, a Corporação. Diversa da soberania política, que pertence em exclusivo ao Estado, só a restauração da soberania social conseguirá restituir a este a posse das suas perdidas virtudes. Nem Estadismo – consequentemente –, nem individualismo!
Mas o medido e recíproco entendimento de duas forças, sem o jogo harmónico das quais, ou se morre de congestão, ou de absoluta paralisia. Dê-se à sociedade o que é da sociedade e ao Estado o que é do Estado. Distinga-se entre uma e outro, e não padeceremos mais, nem da fraqueza da autoridade central, nem da asfixiante opressão burocrática, em que as livres iniciativas criadoras morrem estranguladas à nascença.
Sublinhada se acha de sobejo a discordância profunda entre o Estado moderno, como concepção de direito, e as exigências da realidade, tão truncada e aprisionada pela rigidez do formalismo doutrinário dos reformadores e juristas. Desde sempre – e com uma pertinácia que nos mostra a certeza dos seus ensinamentos – o proclamaram os escritores tradicionalistas, ou mesmo aqueles, como Taine, a quem o objectivismo histórico bastou para esclarecer. Mas, tocado da mais palpitante actualidade, um trabalho há que não permite hesitações aos espíritos de boa-fé. Refiro-me ao estudo magistral de Louis Bourgès – Le romantisme juridique.[2] Chave de todas as questões contraditórias que agitam e perturbam os próprios fundamentos do Direito, o livro de Louis Bourgès defende-nos contra a falsa claridade («la fausse clarté», como ele nos diz) dos tratadistas em voga, alguns dos quais, com Duguit por cabeça, chegam por vezes, no excesso do seu negativismo crítico, a atingir posições simpáticas de ataque à grosseira mitologia do direito revolucionário. No entanto, se se lhes pede um sentido orgânico da sociedade ou do Estado, incorrem no linearismo mais execrável, a ponto de haver quem, como o professor de Direito Joseph Barthélemy, assevere que a noção da ordem é uma «noção negativa, geradora de inércia». Por isso Louis Bourgès nos pondera com agudeza e afiada lógica: «En resumé, le mouvement juridique révolutionnaire parti du príncipe de la liberté erigée en droit, en dehors de tout ordre, aboutit à ruiner, comme nous avons vu, tous les droits positifs privés et publics: il n’admet que la liberté naturelle commune à tout le monde, sans privilège ni garantie pour personne, jetant par conséquent toutes les libertés les unes contre les autres dans des conflits de droits irréductibles, sans autre solution que le triomphe de la force brutale. La ruine du droit souverain de l’Etat – insiste o autor de Le romantisme juridique – est le terme logique de ce mouvement contre les droits: l’anarchie est la dernière liberté publique à conquérir...»
Coincide Louis Bourgès, como espírito aberto à lição eterna das coisas, com o grande Bossuet, que já no século XVII escrevia que «le gouvernement est établi pour affranchir tous les hommes de toute oppression et de toute violence...» E acrescenta: «Et c’est ce qui fait l’état de parfaite liberté; n’ayant – dans le fond – rien de moins libre que l’anarchie qui ôte d’entre les hommes toute prétention légitime et ne connaît d’autre droit que celui de la force.» Eis porque, em contraste bem ressaltante, Louis Bourgès nos faz notar noutra parte com o seu comentário tão incisivo como adequado: «Tandis que la doctrine de l’Ancien Régime laissait les autorités individuelles, familiales, professionnelles, locales, s’épanouir en libertés concrètes et reservait au roi le domaine de la souveraineté, dans lequel la nation est généralement incompétente, au contraire la doctrine moderne entrave ou étouffe le pouvoir de chacun dans la sphère où il posséde une autorité réelle et, en compensation, elle lui reconnaît insolemment une fiction de liberté politique dans le domaine souverain, où il n’a pas d’autorité réelle et où il est fatalement le jouet des politiciens». E porquê?
Responda-nos ainda Louis Bourgès. Porque «c’est une des erreurs les plus grossières du XIX.e siècle que d’avoir imaginé une contradiction entre l’idée d’autorité et l’idée de liberté. Cette erreur – detalha o autor de Le romantisme juridique – vient de la Révolution qui avait opposé l’individu à l’État royal, en ne voyant dans le pouvoir du premier que sa liberté, et dans celui du second son autorité. En réalité elle opposait deux pouvoirs distincts, deux autorités, deux libertés. C’est un non-sens d’en conclure que la notion de liberté s’oppose à celle d’autorité. Il n’y a pas d’opposition d’une idée à l’autre, mais d’une personne à une autre. Lorsque deux personnes s’opposent, il est clair que leurs pouvoirs s’opposent. Et si l’une invoque sa liberté et l’autre son autorité, cela ne signifie pas que la première est sans autorité ni la seconde sans liberté, cela précise simplement l’aspect du pouvoir par lequel les deux personnes se heurtent».
Depreende-se daqui com vigoroso realce, primeiro, que a autoridade não exclui a liberdade e que a toda a «liberdade» corresponde autoridade. Ponto capital para a compreensão exacta das funções do Direito na sociedade, não é difícil já de se perceber que sem «liberdade», não se exerce um «direito», o qual, sendo uma força «justa», como define Louis Bourgès, desde que se exerce, é um «poder» e, portanto, uma autoridade. Donde o concluir-se justamente que é «liberdade» toda a afirmação de um «direito», sendo, portanto, «autoridade», sinónimo de «liberdade». A diferença entre a doutrina tradicional, superiormente renovada por Louis Bourgès, e a doutrina revolucionária, ou contemporânea, do Direito consiste, pois, num equívoco de fácil demonstração, o antagonismo da «liberdade» com o «poder». Sintetiza, melhor do que nós, Louis Bourgès: «En concrétisant d’une façon absolue ces notions abstraites et rélatives, l’esprit moderne a imaginé un antagonisme entre l’Autorité et la Liberté, considerées comme deux êtres en lutte éternelle l’un contre l’autre, la Liberté encarnant le Bien, et l’Autorité le Mal». E o ilustre publicista certamente reputado em conta mínima pelos burocratas da ciência oficial, não se contém sem exclamar: «On aperçoit ainsi la duperie de la doctrine qui appelle liberté politique le régime où le peuple dit souverain a si peu l’esprit et la condition d’un maître, que selon M. Esmein il est et se reconnaît incapable de se gouverner lui-même.»
Efectivamente, Esmein, perfeito tipo representativo de teólogo laico da Democracia, não hesita em estampar nos seus Eléments de Droit constitutionnel que a base dos governos parlamentares reside «sur cette idée que la nation souveraine est et se reconnaît incapable de formuler elle-même sa volonté en forme de loi». Repara a propósito o autor de Le romantisme juridique: «Et cette incapacité de gouverner ne résulte pas d’une disposition légale ni d’une infirmité accidentelle du souverain; elle résulte d’une inaptitude naturelle, incorrigible, perpétuelle. M. Esmein déclare que, si la Constitution autorisait le vote direct des lois par la nation, celle-ci n’aurait que l’illusion d’une décision propre. Quoi qu’on veuille, quoi qu’on fasse, la nation est incapable de se gouverner elle-même.»
Não carecemos de teimar mais, para que, reflectido nas teorias e sistemas com que se pretende explicar e justificar, o pecado original do Estado moderno avulte bem, e de uma vez para sempre, a nossos olhos. Esquivam-se os doutores de tamanha monstruosidade política e social a admitir que, sendo o direito uma «força justa», a sua legitimidade advem-lhe da sua completa concordância com as próprias razões da existência humana. Em pleno carnaval ideológico do século XVIII, sensatamente Montesquieu o anunciava naquela sua passagem, tão célebre como repetida: «Les lois, dans la signification la plus étendue, sont les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses...» Há, portanto, uma «substância permanente» – na frase de Louis Bourgès – que é o fundamento das leis, como tal, anterior ao arbítrio do homem, que precisa de se lhes submeter, para fugir a submissões mais duras e tirânicas. Como designar, porém, essa substância permanente – raiz, apoio e alma do Direito? Pelo seu nome, que é curto e singelo: a «Ordem». Não a «ordem» convencional e contingente dos legistas e reformadores. Mas a Ordem que é, como a Beleza, uma realidade moral inerente aos seres e às coisas». Esmein não se furta a constatar-lhe a influência dominadora, para logo, num desvio de sofista obcecado, a entender como um peso a que é de interesse vital fugir. «Les societés humaines et politiques – confessa ele – sont des formations naturelles et des organismes nécessaires qui évoluent en vertu de lois partiellement fatales. Dans la mesure où existe cette fatalité et où l’intelligence peut en reconnaître le processus et la direction, la liberté et la volonté des hommes doivent s’y plier, y conformer même leurs actes; c’est rendre plus complet et plus harmonique un résultat au fond inévitables.» Fale por nós Louis Bourgès: «Il y a lá une idée vraie, que M. Esmein exagère même... Mais ce qu’il y a de vrai dans cette citation, ce qui fonde la réalité objective du droit, est contredit du tout au tout par le même auteur, dès qu’it s’agit de nier la légitimité du droit royal et de justifier les inventions du droit moderne.»
E o autor persuasivo de Le romantisme juridique recorda, para documentar as suas asserções, um outro passo de Esmein, em que o conhecido tratadista pretende refutar a base jurídica do princípio monárquico. É como segue: «Les lois de l’histoire ne créent pas le droit, pas plus que les lois de la pesanteur ou de l’attraction des corps. Le droit est le fils de la liberté, non de la fatalité».
Escusado é assinalar-se a enormidade contida na asseveração de Esmein. Para ele o «permanente da vida social, em lugar de ordem», designa-se por fatalidade, verificando-se na oposição estabelecida tão firmemente entre conceito de ordem, e o conceito de liberdade, como Louis Bourgès aponta, o vício estrutural do subjectivismo moderno que faz do ensino do Direito uma doutrina com tanto de anárquica, como de anticientífica. De semelhante caos intelectual se nutre o falso antagonismo da liberdade com a autoridade, ao ponto de se escrever, com o civilista Planiol, que «la véritable obligation n’existe que pour l’homme qui agit sans la contrainte d’une volonté supérieure à la sienne». Olvidam os que tal sustentam e vulgarizam, tornando lógica e legítima, pela sobreposição crescente da pulverização individualista, aquele «insolidarismo total», de que nos fala o catedrático espanhol Fernández de los Ríos a propósito da sua viagem à Rússia sovietista – olvidam, repito, os que tal sustentam e vulgarizam, com ares de profunda revelação, que o homem é obrigado a respeitar a lei, não porque o legislador lh’a impõe, mas porque a lei, para ser obedecida e respeitada, deve derivar das leis naturais da justiça, «qui constituent un ordre aussi absolu que celui observé par la matiére». «Et lorsque la liberté – remata Louis Bourgès –, échappant à toute contrainte, lui désobéit, le désordre, la ruine du droit, qu’elle produit inévitablemente, sont la preuve que le droit résulte bien d’un rapport nécessaire que la volonté humaine ne peut modifier, en un mot, que le droit ne peut être autre que ce qu’il doit être.»
Porque o Direito não pode ser diferente daquilo que tem de ser, é que nós vemos negadores como Duguit, partindo de um critério absolutamente objectivo e até por vezes grosseiramente realista, aproximarem-se da ideia ou noção de «direito», em que se inspiram as teorias tradicionalistas. O que sucede nos âmbitos restritos das Universidades ou dos tratados, sucede igualmente no campo imediato dos acontecimentos. Vale como um símbolo o título de um livro curiosíssimo do professor de Montpellier, Gaston Morin – La révolte des faits contre le Code.[3] Encontra-se Gaston Morin bem longe de ser um tradicionalista, mas incorporado na grande corrente de reacção instintiva do tempo presente, é verdadeiramente um «renovador, ainda que em campo restricto e dominado embora por preconceitos sociológicos insubsistentes. Eis como ele se nos confessa: «Si le législateur néglige d’intervenir, il se produit dans l’évolution un moment critique où l’incohérence est compléte entre les formules juridiques et la réalité, où la vie, pour ainsi dire, se rebelle contre les formules qui prétendent l’enfermer. La société entre en contradiction avec elle-même.» E acrescentando que outra não é a crise da hora presente, Gaston Morin desenvolve o seu pensamento, imbuído, sem dúvida, de um falso relativismo, mas com cuja essência nos achamos perfeitamente de acordo. Como no Estado actual o indivíduo é a sua base, também no Código Civil, reflexo da arquitectura do Estado, a lei só atende ao indivíduo. «La révolution avait, au nom de la liberté humaine, dissout tous les corps constitués, interdit pour l’avenir tous les groupements – insculpe Gaston Morin no seu notável estudo. – Elle ne voulait respecter dans la société, en face de l’État, que les individus isolés, qui tous étaient regardés comme autant de souverainetés égalles entre elles.» E adita: «Le Code Civil tire le corrollaire logique de la doctrine en décidant que nul ne peut être obligé par la volonté d’autrui, mais seulement par sa volonté personnelle s’exprimant dans un contrat. Il est le code de l’individu.»
Justifica depois Gaston Morin: «Or, par une contradiction brutale des idées et des prévisions des hommes de la Révolution, malgré toutes les interdictions légales, l’histoire sociale, à l’epoque contemporaine, révèle un mouvement aux multiples aspects qui a l’impressionante puissance d’un phénomène naturel. Je veux dire la substitution progressive des groupements aux individus isolés comme facteurs de la vie économique... L’on peut dire que, chaque jour, nous entrons plus avant dans l’ère de la coopération et du fédéralisme. C’est, indépendament de toute réglementation juridique, dans le développement spontané des faits, la fin de l’ordre social issu de la Révolution et la formation d’un ordre nouveau... Dés lors, appliqué à la construction juridique des groupements, l’individualisme de la Révolution et du Code civil devient un contre-sens. Le code de l’individu ne peut pas être le code des groupements.»
Comparado o depoimento de Gaston Morin com o de Adolfo Posada, avalia-se bem o som que se desprende das duas mentalidades. Enquanto Adolfo Posada, vítima do anquilosamento intelectual, tão próprio das «esquerdas» espanholas, não atinge nitidamente as razões da transformação que está sofrendo o Estado moderno e resolve chamar-lhe, algo comicamente, «nuevo liberalismo», Gaston Morin, com um donaire de inteligência que o honra, não recua diante da evidência e, sem que o conduzam determinadas predilecções reaccionárias, denuncia o bolbo do mal, proclamando a não conformidade do individualismo da Revolução com o florir viçoso das novas formas corporativas da economia e da política. Vai mais além o professor de Montpellier, numa atitude simpática de sinceridade intelectual. E assim, sem vacilação de espécie alguma, filia no kantismo a principal causa da retracção que sofreu, depois do século XVIII, a noção do Direito. Para ele, o filósofo de Koenigsberg, nos seus Elementos metafísicos da doutrina do Direito, é «le théoricien par excellence de l’individualisme juridique». E condensa: «Le príncipe du Droit, selon Kant, c’est que l’homme existe comme un fin en soi et non pas comme un moyen... Il s’ensuit que l’homme ne peut être soumis à aucune autorité extérieure... Si grande qu’on la suppose, ses prescriptions, du moment qu’elles viennent uniquement du dehors, doivent être considerées comme arbitraires.» Calculando a falha que de semelhante sanção resulta para a regra comum do Direito, Gaston Morin procura defender, mas colocado num terreno falso, o individualismo kantiano contra as suas evidentes tendências anárquicas. «Nul, on le sait, n’a en plus que Kant une conception sévère de la morale: l’homme, bien loin de pouvoir suivre les impulsions de ses désirs ou les caprices de sa sensibilité, doit obéir à la loi intérieure de sa conscience. De même, dans l’ordre politique et social, si l’homme n’est jamais obligé par la volonté des autres, il est obligé par la sienne. Il va être soumis aux lois qu’il se donne à lui-même, il est tout à fois auteur et serviteur de la loi.»
E Gaston Morin, não satisfeito, aduz ainda: «Kant ne supprime donc ni la régle morale, ni la régle sociale. Il en déplace seulement le fondement. Aux contraintes extérieures il substitue la contrainte intérieure. Le lien moral aura sa source dans la consciencie individuelle, le lien social dans la volonté humaine librement engagée elle-même». Não é necessário refutar o que há de funestamente dispersivo no kantismo e nas suas derivantes. O processo do kantismo é o processo da moral protestante agravada, é o processo do grande envenenamento intelectual que a Europa do século passado sofreu, correndo quase riscos de morte. O próprio Gaston Morin, que assim se empenha em desculpar o kantismo das suas taras incuráveis, não lhe aceita nem lhe aplaude as direcções, pelo menos, no campo do Direito. Por isso mais significativo se torna o seu parecer, ao intentarmos o como que exame genealógico das causas múltiplas da crise que o Estado, como conceito e como instituição, está padecendo. Mas se Morin escapa à acção do kantismo, este, através de uma manifestação bastarda sua, que é o krausismo, influi poderosamente na inteligência e na visão do professor Adolfo Posada. Aludimos à supremacia mental que a filosofia de Krause assumiu em Espanha entre os supostos grandes homens da ala racionalista e republicana.
Discorrendo dos antecedentes ideológicos e críticos em que entronca a transformação que o Estado iniludivelmente padece, o próprio Adolfo Posada no-lo diz com natural simplicidade. Oiçamo-lo: «La segunda corriente naturalista descúbrese en el espléndido proceso del pensamiento filosófico alemán, con su proyección o matiz original en la derivación de lo que se ha llamado el Krausismo en España. De esta gran corriente, en cierto modo aparte de la sociologia y en determinados momentos paralela com ella, provienen conceptos essenciales de la ciencia política renovada, y generadores de la teoría jurídica del Estado... Expresión típica de esta gran corriente filosófica en el mundo de las ideas políticas y jurídicas y éticas, es la llamada doctrina o teoría orgánica del Estado, orgánica y jurídica al proprio tiempo, en la que se recogen y componen la tradición kantiana del Estado de derecho, y la concepción orgánica schellinguiana de la naturaleza, mediante la construción del Estado como organismo ético, o bien, como un orden de armonía natural condicionado por la acción del esfuerzo jurídico.» E Posada remata, afectando firmeza no meio das fantasmagorias germânicas em que se debate: «La doctrina orgánica del Estado culmina en la escuela de Krause, en Akrens de modo especial... teniendo una excepcional representación en España com Giner y su escuela.»
Acha-se patente, não só a contradição, mas também a confusão em que bracejam os tratadistas contemporâneos, para conciliarem as suas preferências doutrinárias com a lição cada vez mais incisiva da realidade, pelo que toca à estrutura e funções do Estado. Dominado inteiramente pela força expansiva de um fenómeno que a ninguém é dado sofismar, ou escurecer, Posada, figura-símbolo do universalismo do século findo, de le stupide, como Léon Daudet inolvidavelmente alcunhou o século XIX, esgota-se a desfiar raciocínios de mero discursador, para ajustar à ideologia que lhe enevoa o cérebro a interpretação de um acontecimento, que é o desmentido acabado de quanto constitui, para o verbalismo apático do perplexo catedrático madrileno, o seu indispensável pão espiritual. Kant e Krause são para ele os remotos inspiradores da revolução que principia a mudar as directrizes, até agora tidas como ortodoxas, dentro das teorias políticas do Estado! E o professor da Universidade de Madrid desorienta-se e perde-se numa selva escura de preconceitos de toda a espécie, deixando-nos avaliar quão funda não foi a intoxicação do germanismo no ocidente europeu! Um pequeno excerto em que se comprova lamentavelmente o que escrevemos: «La acción eficaz, en su función de hacer efectiva la ley de la solidaridad social, tiene que descansar en las reacciones de la conciencia colectiva, reacciones psíquicas de inspiración moral, sin cuyo apoyo no tendrá jamás virtualidad suficiente que el Estado elabore. Esas reacciones, en su incesante proceso expansivo de conciencia individual a conciencia individual, hasta constituir una atmósfera social, y condensarse en empujes sociales, forman lo que, algunas veces, hemos llamado fluido ético indispensable en la química psicológica de los Estados.» O «fluido ético»! A química psicológica dos Estados! Não merece a pena continuar, porque fica em demasia assinalada a depressão de pensamento a que a prática do kantismo conduz!
Não se lhe abandona à perversão debilitadora o professor Gaston Morin, conquanto não se decida a romper totalmente com Kant. Contenta-se apenas em verificar que a base do direito até agora foi o indivíduo, começando a ser daqui em diante o agrupamento. Gaston Morin é um relativista, impregnado de longe por outra barbaria não menos condenável, a da aplicação do transformismo à sociologia, em que Spencer pontificou, como sacerdote-máximo, e a que a soi-disant filosofia de Henri Bergson, como última moda exportada de Paris para intelectuais de pouca consistência, concedeu privilégio de ciência definitiva. Tanto a Posada, como a Morin – ambos representativos de falsas tendências ainda dominantes, mas já ambos eco da renovação que intensamente se opera no campo do Direito –, é fácil de ver que lhes falta por completo a noção de «absoluto», em que o Direito, como, de resto, tudo o mais, carece de se firmar. Um, abandonado ao devenir hegeliano, o outro entregue à miragem proteiforme e não menos anárquica do relativismo, são conjuntamente abrangidos por aquele reparo de Georges Valois, falando da subjectivação, no campo da economia, da noção de valor, igual, sem dúvida, nas suas consequências desastrosas, à subjectivação, no campo jurídico, da noção de direito: «Il est radicalement impossible d’asseoir une institution sociale ou nationale quelconque sur une science dont le fondement est une notion aussi fuyante.»
Ressalta de quanto se expõe o erro manifesto, o manifesto desnorteamento, que o individualismo político e moral lançou na própria percepção das ideias fundamentais. Mas como sinal de que a restauração da verdadeira ordem se evidencia já em toda a sua plenitude, o desacordo dos tratadistas, com exemplo típico nos dois casos aqui observados, o de Adolfo Posada e de Gaston Morin, é para nós suficientemente elucidativo. Sejam kantistas ou pragmatistas, por muito que se aferrem a qualquer superstição filosófica, não podem, contudo, resistir à penetração cada vez mais forte dos acontecimentos, em suma, à «revolta dos factos» (aproveitando de Morin uma expressão feliz) contra a desnaturação sistemática a que a Democracia violentamente sujeitou a sociedade e o Estado. Chame-se-lhe «novo liberalismo», queira explicar-se tamanha modificação no que até agora se tomava como matéria dogmática por um maior desenvolvimento das relações sociais e económicas, o que é certo é que não se trata senão do fundo inalterável das coisas que, cedo ou tarde, consegue prevalecer sempre, sob pena de se derrogarem as leis primordiais da vida. Eis o que sucede na alardeada e já tão denunciada «crise do Estado». Por contraditórios e desalentadores que sejam os aspectos através dos quais ela se nos denuncia, os espíritos reflectidos e cultos não duvidam nem um instante do sentido em que terminará por se resolver. Esse sentido está à vista na excitação que reina entre os especialistas das mais variadas ascendências e que são como que um pequeno mundo de rãs coaxando, incessantes, na ilusão de que o Universo é o seu charco e que nada mais existe para além do horizonte que enfaticamente se delimitam. Quando de elementos mais persuasivos não dispuséssemos para demonstrar a linha que leva a restituição progressiva do Estado aos seus moldes naturais e tradicionais, reputava suficientes as que nos oferece, ou a perplexidade, com tanto de aflitiva como de cómica, de um Adolfo Posada na sua Teoría social y jurídica del Estado, ou a serenidade aparente de um Gaston Morin no seu livro La révolte des faits contre le Code. Resigna-se Posada a declarar: «La teoría del Estado sólo podrá rehacerse, en la medida en que se dé cuenta del valor y fuerza de ese más que soplo huracán de la calle, que de tal modo ha decompuesto la vieja ideología liberal: y la transformación real de los Estados ha de producirse, de hecho se produce, bajo la pujante acción del fermento sindical. Ningún gobierno, digno de tal nombre, podrá dar un paso eficaz hacia la reconstrucción de las instituciones políticas vitales, si ignora o aparenta ignorar este hecho positivo, a veces brutalmente positivo, del movimiento sindicalista.»
Por seu lado Gaston Morin, inclinado pelo relativismo, a uma supressão gradual das funções do Estado e à sua substituição pelos diversos federalismos profissionais e económicos, e não hesitando em proclamar que «l’évangile de Rousseau ne répond donc pas aux exigences de la vie sociale», sustenta, como conclusão insofismável, que «l’étude du mouvement sociale... atteste que, dés à present, une époque historique est close: celle de l’individualisme, de l’isolement des individus qui cède de plus en plus la place aux groupements et à la solidarité». Achamo-nos, pois, dentro da ideia de «solidariedade», com que Duguit foi corrigindo a secura objectivista das suas teorias. O sindicalismo é, deste modo, o eixo da reconstrução futura, para todos os pensadores e publicistas a quem o problema da transformação do Estado preocupa agudamente. E com justeza Duguit repara que «o movimento sindicalista não é, na realidade, a guerra empreendida pelo proletariado, para destruir a burguesia e conquistar os instrumentos da produção. Não é, como pretendem os teóricos do sindicalismo revolucionário, a classe operária que adquire consciência de si mesma, para concentrar em si o poder e a riqueza, e aniquilar a classe burguesa. É um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, diria até, muito mais humano. Não é um meio de guerra e de divisão social: creio que é, pelo contrário, um meio poderoso de pacificação e união. Não sendo só uma mera transformação da classe operária, estende-se a todas as classes sociais e tende a coordená-las num feixe harmónico».
A aspiração da «solidariedade» conduz, assim, na incerteza e flutuação das doutrinas as mais antagónicas, aqueles que, embora parcialmente, se deixam render à evidência das circunstâncias. O sindicalismo é, na realidade, a grande corrigenda aposta pela força dos acontecimentos à dispersão criminosa do 89. E se, intoxicado actualmente pelo princípio marxista da «divisão de classes», se apresenta eriçado de hostilidades negativistas, o tempo o adoçará pelo poder da inteligência e pela necessidade de concórdia, de maneira a devolver à sociedade a sua perdida paz, o seu tão ambicionado equilíbrio. Como o caminho se nos rasga diante, sabêmo-lo nós já, em presença dos testemunhos aqui examinados. Por eles se constata unanimemente a falência irreparável do Estado democrático. Nas controvérsias da escola e do livro, por antitéticas que se apresentem as atitudes e inclinações doutrinárias de cada um, todos convergem para um ponto único – e é que a crise inconjurável do Estado contemporâneo, filho tarado da Revolução e do Liberalismo, provoca o aumento intensíssimo do social sobre o político, do colectivo sobre o individual. Apercebe-se alfim que o evangelho de Rousseau desvinculara os homens das suas ligações mais imprescindíveis e instintivas, prosseguindo na quimera doida de materializar um fantasma, «cidadão abstracto dos Imortais-Princípios». E por afastados que os tratadistas se mantenham por enquanto das soluções tradicionais, é ainda para lá que convergem desde que ao indivíduo se substitui o «grupo» – desde que a ideia de solidariedade aparece a desvanecer o sulco de ruína e de morte, levantado nas sociedades históricas pelo gregarismo entusiástico do século que passou.
Tal conceito de «solidariedade» pressupõe, anterior ao direito do Estado, um direito social como fundamento da soberania. Isso envolve consigo o repúdio terminante do erro revolucionário, que tem o indivíduo puro e simples como alicerce e fim exclusivo da sociedade. Conforma-se ao mesmo tempo com os últimos enunciados das ciências experimentais que, lançando-se contra a apregoada lei biológica do egoismo, nos ensinam que a lei biológica fundamental da sociedade humana, «não é a lei darwiniana da luta e da concorrência», e sim a lei biológica humana do auxílio mútuo, do amor, da solidariedade, e da colaboração para o progresso contínuo e indefinido da humanidade». Coincide esta afirmação do eminente dr. Grasset, com a definição de sociedade que nos é dada pelos tomistas. Destina-se a sociedade, segundo São Tomás e seus discípulos, a promover a perfeição natural do homem, como «ser moral». Ignorando o Espírito, os tratadistas hodiernos, não vêem na «solidariedade» mais que uma cooperação para o domínio utilitário da existência. Mas é ao império do Espírito que carecemos de regressar, considerando o homem como uma «alma», e alma que é, em dependência directa, na sua liberdade e na sua responsabilidade, para com Deus que o criou.
Sensatamente, transpondo com ânimo certo as barreiras que lhe atravancam o caminho, o nosso século, em contraste frizante com o século anterior, procura eximir-se à escravidão da Matéria e prepara-se para travar com ela o grande combate. Valorizar o indivíduo, não como unidade rebelde, mas como elo da cadeia ininterrupta das gerações, tal a mira em que desde sempre a Igreja se empenha, cheia de amorosa solicitude. Não é outro o lema do Tradicionalismo, quando o inspira uma sensata filosofia. Tradicionalismo e Nacionalismo completam-se atualmente num apertado consórcio, esforçando-se o Nacionalismo por dotar os povos com instituições que os virilizem e apontando-lhes o Tradicionalismo quais elas sejam. No rumo já bem marcado que a Europa parece levar, ainda que suspensa por enquanto das bordas do abismo, o afervoramento dos laços colectivos, que o sindicalismo pressupõe, promete restituir ao indivíduo a consciência da sua dignidade, obliterada nos conúbios indecorosos, com que o Estado democrático o aviltou e diminuiu.
Graças a esses laços, a sociedade recomporá o seu tecido multicelular. O exemplo por nós citado e comentado da Constituição alemã de 1919 demonstra-nos que não só nos tratados a nova tendência se faz sentir. Evidentemente que a Constituição do Reich enferma do pecado mortal do marxismo. Não se invalida, porém, o que nela se constata de vital – de orgânico. A soberania política encontra já ali suficiente rectificação no anti-individualismo que ditou algumas das suas principais disposições. Para as inteligências covardes, ou retardatárias, julgo que é um aviso enérgico. O que se nos impõe agora é integrar nos seus termos exactos a transformação visível do Estado. Trata-se de um fenómeno intimamente ligado à transformação do pensamento europeu. Por mais que o contestem autores da natureza dos que nós examinámos, a Democracia debate-se no crepúsculo, o que rui com fragor de catástrofe é a concepção mentirosa que, tanto do Estado, como da sociedade, recebemos da Reforma e da Revolução. De forma que o movimento a que assistimos não é, estruturalmente, mais que um movimento de libertação. É o direito «cristão» que triunfa, direito todo animado pelo conceito superior de «solidariedade».
Se despirmos do seu limitado e grosseiro positivismo as fórmulas doutrinárias de um Duguit, logo observaremos como coincidem com as teorias de São Tomás sobre a sociedade e o Estado. O conceito de «pessoa», tão querido do Tomismo e tão essencial à justa posse da objectividade no campo do Direito, ei-lo de regresso, sepultadas como se acham já no limbo das larvas sem glória as torpes ideologias de um falso e depressivo racionalismo. É o conceito de pessoa, modificando e envolvendo o conceito centrífugo e errático de indivíduo, quem volta a inspirar as modernas directrizes jurídicas. Por ele o Estado se restaurará. Por ele a sociedade será salva a sociedade, a civilização ocidental!
NOTAS
[1] Buenos Aires, 1920.
[2] Paris, Nouvelle Librairie Nationale, 1922.
[3] Paris, Grasset, 1921.
»Impónese así una revisión – acrescenta o catedrático Posada –, y en ella, o para intentarla, es indispensable una clara interpretación de los movimientos determinantes de la crisis, único camino seguro, además, para fijar su naturaleza y su alcance, y señalar la solución posible de la misma, si es que nos hallamos en condiciones de vislumbrarla. La solución implicará la nueva labor constructiva de una teoría del Estado, labor que deberá basarse en el conocimiento objetivo del momento crítico, merced a la definición y apreciación de las preocupaciones determinantes del mismo, y que, a mi juicio y según las indicaciones expuestas, pueden resumirse en los siguientes términos:
1.° La que supone, o se suscita por la intensificación del aspecto social de la vida humana, y que para el Estado se traduce en un grave y delicado problema de incorporación o asimilación constitucional de los elementos o fuerzas en que lo social intensificado, se condensa y estrutura: movimiento sindical, federalismos, etc.;
2.º La que se produce como consecuencia lógica de una aspiración creciente por construir, para cada necesidad humana, esencial, una institución adecuada que desempeñe como función propia la dirección de las actividades que exige la plena y adecuada satisfacción de la respectiva necesidad: democracia funcional orgánica;
3.º La que resulta de la aspiración complementaria e inicial a la vez, por recoger todos los movimientos sociales y las actividades que las producen y las funciones en que se especifican, en un orden jurídico adecuado: creación de los Estados de derecho.»
Atirando fora certa terminologia eivada, arcaicamente, de pseudo-racionalismo, o professor Adolfo Posada diagnostica com acerto o mal profundo de que padece o Estado atual na sua íntima composição – nas mais insignificantes das suas rodagens. Saído de uma conceção simplista da Sociedade, o Estado atual, agora em declínio agudo e indebelável, conta apenas com o indivíduo, e considerado unicamente debaixo do ponto de vista político imediato. Tudo o que se afirme como soma de energias colectivas o ignora ou despreza, por alheio ao seu mecanismo e finalidade. Observa, pois, sensatamente Adolfo Posada quando escreve que a parte dominante e melindrosa do problema consiste em incorporar no Estado os novos elementos ou novas forças, que, de hora para hora, se estão suscitando com o desenvolver intensíssimo da vida local, regional e sindical. Daí o exigirem as circunstâncias uma outra visão ou teoria do Estado que, nas palavras do citado tratadista, «representa la más radical rectificación de la concepción individualista y gregaria del mismo, a que en definitivo ha respondido el régimen político constitucional y el liberalismo inspirador: el liberalismo abstracto y formalista.» Ilude-se, porém, Adolfo Posada ao supor que se trata de uma «nueva estructuración de fuerzas sociales», equivocando-se totalmente, e isso por obra dos mitos krausistas que lhe povoam o cérebro, na denominação de «democracia funcional orgânica» que confere à possantíssima reacção da sociedade europeia contra o perpétuo atomismo, a que pareciam havê-la condenado os erros criminosos da Revolução Francesa.
Evidentemente que, no desfazer já inevitável das construções ideológicas e jurídicas do Liberalismo, de modo nenhum se devem reputar como factores imprevistos e inteiramente contemporâneos aqueles que Posada enumera como impondo-se a uma urgente incorporação nas fórmulas superiores do Estado. Desde o regionalismo ao sindicalismo, é a ideia individualista da sociedade que cede às razões naturais e históricas da mesma, é a errata que finalmente surge a despojar do seu inexplicável prestígio os convencionalismos insensatos do Contrato Social. De maneira que não nos achamos em frente de uma «nueva estructuración de fuerzas sociales», mas sim de uma revolta dessas forças, permanentes e inalienáveis, contra o sofisma, já secular, que teimava em as dispersar e anular atrabiliariamente.
Nada mais falso, portanto, do que entender como «democracia», ainda que «orgânica» e «funcional» – oh, o pedantocratismo dos universitários! –, aquilo que é pura e simplesmente a negação dos princípios democráticos – gregaristas e individualistas, por condição irremediável. De resto, é o que o próprio Posada, apesar dos seus preconceitos, não deixa de reconhecer, até com uma saborosa ingenuidade, ao confessar que «las gentes quieren algo que no las ha procurado la Declaración de derechos y sienten la vida y las palpitaciones que la llenan de modo distinto a como las sentían los que asaltaron y tomaron la Bastilla».
«Y así no tiene nada de extraño – assevera em outra página o autor da Teoría social y jurídica del Estado, num manifesto conflito entre as indicações da realidade e as preferências doutrinárias do seu espírito – que al contemplar la actual situación de las cosas, de las ideas y de las instituciones, se hable, como hace M. Duguit en La transformación del Estado, de la forma romana, regalista, jacobina, napoleónica, colectivista del Estado, al caracterizar el Estado mismo que conceptuamos en crisis, y que parece deberá ser instituido por otra forma de Estado más amplia, más flexible, más protectora, más humana, esto es, para mí, más liberal, es decir, más intensamente inspirado en el «liberalismo» y en cuanto esto significa, no una simples política de partido, la representada por los partidos llamados liberales, sino cierta fecunda y noble actitud del espíritu individual y colectivo, reveladora de una fe razonada en el perfeccionamento moral del hombre, fe inspiradora de la confianza en la naturaleza humana, y la cual fe anima a realizar los esfuerzos más heróicos para levantar y llevar el hombre hacia una vida cada vez más digna, más noble, más desinteresada. Leía yo – insiste Adolfo Posada – en cierta ocasión un artículo de The New Statesman sobre el liberalismo y encontraba en él expuesto de modo admirable éste punto de vista que acabo de señalar, más una sugestiva indicación cuyos términos recuerdo; decía: “El liberalismo... en el mejor sentido, es sencillamente otra palabra para expresar la generosidad en política”.»
Elucida-nos a transcrição suficientemente sobre as directrizes filosóficas do tratadista Adolfo Posada. Achamo-nos em frente de um caso de romantismo jurídico – desse romantismo que o eminente jurisconsulto tradicionalista francês Marie de Roux soberbamente define, ao falar-nos de um como que «chimerisme technique», que, na própria frase, «se marie à merveille à l’irréalité de la mythologie révolutionnaire».
Assim o professor Posada que, com dedo de mestre, descobre o cancro irreparável do Estado contemporâneo, para logo se perder, no seu entusiasmo anacrónico pelos dogmas da Revolução, em divagações com tanto de absurdas como de abstractas, onde um protestantismo nato de krausista se liga à sociologia primária dos ideólogos do século XVIII. Não nos surpreende, por isso, que ele repute o Liberalismo como a «generosidade em política» e queira entender como sendo uma maior e mais pura aplicação dos princípios liberalistas as transformações por que estão passando as cariátides vazias do ignóbil embuste, que é o Estado democrático-parlamentar.
De acordo, portanto, com o catedrático da Universidade de Madrid em quanto à verificação do fenómeno, crise ou dissolução das instituições políticas que o século passado nos legou, afastamo-nos inteiramente do professor Adolfo Posada no que respeita às interpretações que ele nos oferece. Voltamos, porém, a coincidir com as suas considerações quando ele nos pondera que não basta incorporar na nova teoria do Estado os elementos de vida colectiva que tomam de dia para dia expansão e consciência vigorosas, mas harmonizá-los «en un orden jurídico adecuado», que Posada designa por «creación de los Estados de derecho», submetido à evidente tutela de Kant. Equivale isto a dizer que a determinação das formas precisa de ser acompanhada da determinação do conteúdo.
No natural desenvolvimento das suas afirmações, sugere-nos Adolfo Posada um testemunho expressivo na Constituição alemã de 11 de Agosto de 1919. Examinado com a atenção devida, semelhante documento ensina-nos, realmente, que o tempo das declarações simplistas, género Direitos-do-Homem, se vai distanciando cada vez mais, e que à noção exclusivamente política do indivíduo se começa a sobrepor a sua compreensão social. Efectivamente, na segunda parte da referida Constituição – do artigo 109.º ao artigo 165.º –, a a pessoa individual aparece-nos assegurada e garantida na sua tríplice existência moral, intelectual e económica. Assim, ainda que não haja religião do Estado, este reconhece como fundamental o direito de associação religiosa, concedendo às agremiações, que nesses termos se constituam, liberdade, autonomia e, consequentemente, a capacidade jurídica derivada das prescrições gerais da lei. Estabelece-se mais que as associações religiosas conservam o carácter de corporações de direito público, desde que o tenham; e, por último, que se identificam às associações religiosas as associações que se proponham a realização em comum de uma qualquer concepção moral do universo.
Mas o carácter social do «indivíduo, proclamado e mantido pela Constituição do Reich, não se traduz apenas no direito de agremiação para fins religiosos ou contemplativos. Com toda a solenidade se inscreve nela que o casamento, como fundamento da vida de família, da conservação e do crescimento da nação, fica debaixo da protecção especial da Constituição» – «expresión esta indicadora – comenta Posada – que se debe completar con otras, de verdadera sustancia moral, jurídica y económica». E o tratadista aduz, resumindo e aprovando: «Descansa el matrimonio sobre la igualdad de los sexos, y corresponde al Estado y a los municipios velar por la pureza, la salud y el mejoramiento social de la familia». É certo que numa disposição ou outra aparecem laivos de humanitarismo exagerado. Consequências do vento igualitário que ia desfazendo em menos de nada a obra formidável de Bismarck, não conseguem, contudo, turvar o que há de benemérito e arrojadamente inovador na Constituição do Reich. A ânsia de refundição global do Estado que os factos reclamam e a inteligência aconselha, reflecte-se já ali de uma maneira sensível. O cidadão dos Imortais-Princípios, desenraizado e esquematizado arbitrariamente, possui enfim ambiente e calor que o vitalizem. Reatam-se os vínculos humanos que nas suas generalizações insensatas o Liberalismo rompera quase por completo. E o respeito à integridade moral e social do indivíduo acentua-se de tal sorte na aludida Constituição, que, acerca dos funcionários públicos, se estatui que, salvo disposição contrária da lei, serão nomeados por toda a vida, declarando-se conjuntamente que «os funcionários são servidores da colectividade», e não de um partido, e garantindo-se-lhes liberdade de associação e de opinião política. Que se mire nesta lição a nossa república de maçons, judeus e mulatos!
Em matéria de direitos profissionais não é menos explícita a Constituição alemã, que assegura a cada uma, e a todas as profissões, a liberdade de se unirem para a defesa e melhoria das condições do trabalho, assentando-se simultaneamente que são ilegais todas as convenções e disposições que tendam a limitar ou impedir semelhante liberdade. Só por si, esta disposição derruba, e com forte machadada, todo o regime de individualismo económico, herdado da Revolução Francesa. E reabilitando a dignidade social do trabalho, determina o mencionado documento no seu artigo 160. ° que todo o empregado ou operário tem direito a que se lhe dispense o necessário tempo livre para o desempenho dos seus deveres cívicos; e, desde que não resulte daí prejuízo grave para os serviços em que se ocupa, ainda o tempo de que careça para exercer qualquer função honorífica, em que esteja investido, sem que com isso se afecte sensivelmente a remuneração que haja de cobrar.
A este conceito do Trabalho, tão perto do conceito cristão e tradicionalista, alia-se na Constituição do Reich o conceito de Propriedade. «A propriedade tem deveres – dispõe no seu último parágrafo o artigo 153.º – O seu desfruto deve constituir ao mesmo tempo um serviço prestado ao bem público». Pena é que tal doutrina seja diminuída pelo critério materialista do Estado alemão, inteiramente sujeito ao prestígio ideológico do marxismo. Porque se à elaboração da Constituição de 1919 correspondesse um outro espírito, uma concepção social inspirada pelos mandamentos do Cristianismo, não admite dúvidas que o estabelecido por ela, de uma maneira geral, tanto em relação ao Trabalho, como em relação à Propriedade, representava o reconhecimento de princípios e processos, preconizados desde há muito por todos os homens apaixonados pelo bem público, em quem os ensinamentos da Igreja se casem com um racional amor às experiências da história. A diferença está, pois, em que a Constituição do Reich, acentuando a linha marxista dos seus elaboradores, inclina-se fortemente para a socialização da propriedade (artigo 155.º), enquanto que as teorias de formação católica, com fonte nas lições inolvidáveis de Leão XIII, aspiram, pelo contrário, a uma criação cada vez maior de proprietários.
Da posse e utilização da riqueza, diz Santo Tomás que o homem não deve considerar as coisas exteriores como próprias, mas sim como comuns, de modo que haja nelas uma parte para acudir aos outros nas suas necessidades». Na sua famosa encíclica Rerum novarum, depois de nos recordar esta passagem do admirável Doutor Angélico, Leão XIII acrescenta: «Quem recebeu da divina bondade uma grande abundância, seja de bens externos e corporais, ou seja, de bens de espírito, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento e, simultaneamente, como ministro da Providência, para promover o alívio do próximo». Pelo referido percebe-se já o que na Constituição do Reich fere de esterilidade certas disposições suas, impregnadas de evidente justiça, mas que o seu carácter revolucionário, talvez ocasional, condenam a ser uma aplicação violenta de máximas subversivas, ao serviço de uma tendência económica absurda. Se não nos cabe, portanto, copiá-las ou aplaudi-las sem restrição, é-nos lícito, contudo, encará-las como um sinal bem manifesto do crepúsculo mortal em que entrou o individualismo democrático, cedendo, ainda que vagarosa e defeituosamente, o seu lugar a uma ideia mais humana do Estado.
Essa ideia é a que se desprende com dificuldade do tumulto de catástrofe em que o Liberalismo se some por toda a Europa – ideia que por ora se esboça na urgência do poder em se robustecer pela Ditadura, contra a legalidade estabelecida e acatada dos Parlamentos e do direito escrito. Assistimos ao afirmar de um instinto de vital conservação para as pátrias europeias, roídas durante mais de cem anos pela gafa cancerosa da democracia. Em presença do apelo unânime, tanto da inteligência como da produção, para a coordenação comum de um chefe (e na verificação de semelhante fenómeno Lenine e Mussolini equivalem-se), a unidade do Estado aparece-nos como custódia e fiel dos diversos pluralismos em que a sociedade volta a exprimir-se, depois de refeita da desorganização mortífera para onde o romantismo político a atirara. Se a Ditadura traduz assim a directriz dominante na transformação visível dos sistemas e métodos governativos, não é menos certo que a intensificação das funções concentradoras do Estado é acompanhada pelo crescimento vigoroso do sentido colectivo da vida individual, que o século passado desconheceu, ou, pelo menos, não quis conhecer, mas a cuja onda impetuosa já não é possível resistir-se. É debaixo desse aspecto que a Constituição alemã de 1919 significa o primeiro passo legal para a refundição completa da estrutura da dinâmica do Estado actual.
Marcámos já a sua origem marxista, procurando submeter o indivíduo inteiramente à comunidade. Se não houvesse outro caminho, cairíamos, como na Rússia, no exagero oposto ao dos dogmas de 89: na eliminação, não do individualismo, mas da individualidade humana. Porque a individualidade humana é a base da sociedade e porque, sem sociedade que a envolva e prolongue, a nossa individualidade se perde num atomismo irreparável, eis porque, anterior ao Estado, há uma soberania social que resulta do homem, como sujeito de direitos, mas que se exerce atravez dos institutos de formação natural e espontânea em que o homem se engasta, para nascer, desenvolver-se e prosperar: a Família, o Município, a Corporação. Diversa da soberania política, que pertence em exclusivo ao Estado, só a restauração da soberania social conseguirá restituir a este a posse das suas perdidas virtudes. Nem Estadismo – consequentemente –, nem individualismo!
Mas o medido e recíproco entendimento de duas forças, sem o jogo harmónico das quais, ou se morre de congestão, ou de absoluta paralisia. Dê-se à sociedade o que é da sociedade e ao Estado o que é do Estado. Distinga-se entre uma e outro, e não padeceremos mais, nem da fraqueza da autoridade central, nem da asfixiante opressão burocrática, em que as livres iniciativas criadoras morrem estranguladas à nascença.
Sublinhada se acha de sobejo a discordância profunda entre o Estado moderno, como concepção de direito, e as exigências da realidade, tão truncada e aprisionada pela rigidez do formalismo doutrinário dos reformadores e juristas. Desde sempre – e com uma pertinácia que nos mostra a certeza dos seus ensinamentos – o proclamaram os escritores tradicionalistas, ou mesmo aqueles, como Taine, a quem o objectivismo histórico bastou para esclarecer. Mas, tocado da mais palpitante actualidade, um trabalho há que não permite hesitações aos espíritos de boa-fé. Refiro-me ao estudo magistral de Louis Bourgès – Le romantisme juridique.[2] Chave de todas as questões contraditórias que agitam e perturbam os próprios fundamentos do Direito, o livro de Louis Bourgès defende-nos contra a falsa claridade («la fausse clarté», como ele nos diz) dos tratadistas em voga, alguns dos quais, com Duguit por cabeça, chegam por vezes, no excesso do seu negativismo crítico, a atingir posições simpáticas de ataque à grosseira mitologia do direito revolucionário. No entanto, se se lhes pede um sentido orgânico da sociedade ou do Estado, incorrem no linearismo mais execrável, a ponto de haver quem, como o professor de Direito Joseph Barthélemy, assevere que a noção da ordem é uma «noção negativa, geradora de inércia». Por isso Louis Bourgès nos pondera com agudeza e afiada lógica: «En resumé, le mouvement juridique révolutionnaire parti du príncipe de la liberté erigée en droit, en dehors de tout ordre, aboutit à ruiner, comme nous avons vu, tous les droits positifs privés et publics: il n’admet que la liberté naturelle commune à tout le monde, sans privilège ni garantie pour personne, jetant par conséquent toutes les libertés les unes contre les autres dans des conflits de droits irréductibles, sans autre solution que le triomphe de la force brutale. La ruine du droit souverain de l’Etat – insiste o autor de Le romantisme juridique – est le terme logique de ce mouvement contre les droits: l’anarchie est la dernière liberté publique à conquérir...»
Coincide Louis Bourgès, como espírito aberto à lição eterna das coisas, com o grande Bossuet, que já no século XVII escrevia que «le gouvernement est établi pour affranchir tous les hommes de toute oppression et de toute violence...» E acrescenta: «Et c’est ce qui fait l’état de parfaite liberté; n’ayant – dans le fond – rien de moins libre que l’anarchie qui ôte d’entre les hommes toute prétention légitime et ne connaît d’autre droit que celui de la force.» Eis porque, em contraste bem ressaltante, Louis Bourgès nos faz notar noutra parte com o seu comentário tão incisivo como adequado: «Tandis que la doctrine de l’Ancien Régime laissait les autorités individuelles, familiales, professionnelles, locales, s’épanouir en libertés concrètes et reservait au roi le domaine de la souveraineté, dans lequel la nation est généralement incompétente, au contraire la doctrine moderne entrave ou étouffe le pouvoir de chacun dans la sphère où il posséde une autorité réelle et, en compensation, elle lui reconnaît insolemment une fiction de liberté politique dans le domaine souverain, où il n’a pas d’autorité réelle et où il est fatalement le jouet des politiciens». E porquê?
Responda-nos ainda Louis Bourgès. Porque «c’est une des erreurs les plus grossières du XIX.e siècle que d’avoir imaginé une contradiction entre l’idée d’autorité et l’idée de liberté. Cette erreur – detalha o autor de Le romantisme juridique – vient de la Révolution qui avait opposé l’individu à l’État royal, en ne voyant dans le pouvoir du premier que sa liberté, et dans celui du second son autorité. En réalité elle opposait deux pouvoirs distincts, deux autorités, deux libertés. C’est un non-sens d’en conclure que la notion de liberté s’oppose à celle d’autorité. Il n’y a pas d’opposition d’une idée à l’autre, mais d’une personne à une autre. Lorsque deux personnes s’opposent, il est clair que leurs pouvoirs s’opposent. Et si l’une invoque sa liberté et l’autre son autorité, cela ne signifie pas que la première est sans autorité ni la seconde sans liberté, cela précise simplement l’aspect du pouvoir par lequel les deux personnes se heurtent».
Depreende-se daqui com vigoroso realce, primeiro, que a autoridade não exclui a liberdade e que a toda a «liberdade» corresponde autoridade. Ponto capital para a compreensão exacta das funções do Direito na sociedade, não é difícil já de se perceber que sem «liberdade», não se exerce um «direito», o qual, sendo uma força «justa», como define Louis Bourgès, desde que se exerce, é um «poder» e, portanto, uma autoridade. Donde o concluir-se justamente que é «liberdade» toda a afirmação de um «direito», sendo, portanto, «autoridade», sinónimo de «liberdade». A diferença entre a doutrina tradicional, superiormente renovada por Louis Bourgès, e a doutrina revolucionária, ou contemporânea, do Direito consiste, pois, num equívoco de fácil demonstração, o antagonismo da «liberdade» com o «poder». Sintetiza, melhor do que nós, Louis Bourgès: «En concrétisant d’une façon absolue ces notions abstraites et rélatives, l’esprit moderne a imaginé un antagonisme entre l’Autorité et la Liberté, considerées comme deux êtres en lutte éternelle l’un contre l’autre, la Liberté encarnant le Bien, et l’Autorité le Mal». E o ilustre publicista certamente reputado em conta mínima pelos burocratas da ciência oficial, não se contém sem exclamar: «On aperçoit ainsi la duperie de la doctrine qui appelle liberté politique le régime où le peuple dit souverain a si peu l’esprit et la condition d’un maître, que selon M. Esmein il est et se reconnaît incapable de se gouverner lui-même.»
Efectivamente, Esmein, perfeito tipo representativo de teólogo laico da Democracia, não hesita em estampar nos seus Eléments de Droit constitutionnel que a base dos governos parlamentares reside «sur cette idée que la nation souveraine est et se reconnaît incapable de formuler elle-même sa volonté en forme de loi». Repara a propósito o autor de Le romantisme juridique: «Et cette incapacité de gouverner ne résulte pas d’une disposition légale ni d’une infirmité accidentelle du souverain; elle résulte d’une inaptitude naturelle, incorrigible, perpétuelle. M. Esmein déclare que, si la Constitution autorisait le vote direct des lois par la nation, celle-ci n’aurait que l’illusion d’une décision propre. Quoi qu’on veuille, quoi qu’on fasse, la nation est incapable de se gouverner elle-même.»
Não carecemos de teimar mais, para que, reflectido nas teorias e sistemas com que se pretende explicar e justificar, o pecado original do Estado moderno avulte bem, e de uma vez para sempre, a nossos olhos. Esquivam-se os doutores de tamanha monstruosidade política e social a admitir que, sendo o direito uma «força justa», a sua legitimidade advem-lhe da sua completa concordância com as próprias razões da existência humana. Em pleno carnaval ideológico do século XVIII, sensatamente Montesquieu o anunciava naquela sua passagem, tão célebre como repetida: «Les lois, dans la signification la plus étendue, sont les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses...» Há, portanto, uma «substância permanente» – na frase de Louis Bourgès – que é o fundamento das leis, como tal, anterior ao arbítrio do homem, que precisa de se lhes submeter, para fugir a submissões mais duras e tirânicas. Como designar, porém, essa substância permanente – raiz, apoio e alma do Direito? Pelo seu nome, que é curto e singelo: a «Ordem». Não a «ordem» convencional e contingente dos legistas e reformadores. Mas a Ordem que é, como a Beleza, uma realidade moral inerente aos seres e às coisas». Esmein não se furta a constatar-lhe a influência dominadora, para logo, num desvio de sofista obcecado, a entender como um peso a que é de interesse vital fugir. «Les societés humaines et politiques – confessa ele – sont des formations naturelles et des organismes nécessaires qui évoluent en vertu de lois partiellement fatales. Dans la mesure où existe cette fatalité et où l’intelligence peut en reconnaître le processus et la direction, la liberté et la volonté des hommes doivent s’y plier, y conformer même leurs actes; c’est rendre plus complet et plus harmonique un résultat au fond inévitables.» Fale por nós Louis Bourgès: «Il y a lá une idée vraie, que M. Esmein exagère même... Mais ce qu’il y a de vrai dans cette citation, ce qui fonde la réalité objective du droit, est contredit du tout au tout par le même auteur, dès qu’it s’agit de nier la légitimité du droit royal et de justifier les inventions du droit moderne.»
E o autor persuasivo de Le romantisme juridique recorda, para documentar as suas asserções, um outro passo de Esmein, em que o conhecido tratadista pretende refutar a base jurídica do princípio monárquico. É como segue: «Les lois de l’histoire ne créent pas le droit, pas plus que les lois de la pesanteur ou de l’attraction des corps. Le droit est le fils de la liberté, non de la fatalité».
Escusado é assinalar-se a enormidade contida na asseveração de Esmein. Para ele o «permanente da vida social, em lugar de ordem», designa-se por fatalidade, verificando-se na oposição estabelecida tão firmemente entre conceito de ordem, e o conceito de liberdade, como Louis Bourgès aponta, o vício estrutural do subjectivismo moderno que faz do ensino do Direito uma doutrina com tanto de anárquica, como de anticientífica. De semelhante caos intelectual se nutre o falso antagonismo da liberdade com a autoridade, ao ponto de se escrever, com o civilista Planiol, que «la véritable obligation n’existe que pour l’homme qui agit sans la contrainte d’une volonté supérieure à la sienne». Olvidam os que tal sustentam e vulgarizam, tornando lógica e legítima, pela sobreposição crescente da pulverização individualista, aquele «insolidarismo total», de que nos fala o catedrático espanhol Fernández de los Ríos a propósito da sua viagem à Rússia sovietista – olvidam, repito, os que tal sustentam e vulgarizam, com ares de profunda revelação, que o homem é obrigado a respeitar a lei, não porque o legislador lh’a impõe, mas porque a lei, para ser obedecida e respeitada, deve derivar das leis naturais da justiça, «qui constituent un ordre aussi absolu que celui observé par la matiére». «Et lorsque la liberté – remata Louis Bourgès –, échappant à toute contrainte, lui désobéit, le désordre, la ruine du droit, qu’elle produit inévitablemente, sont la preuve que le droit résulte bien d’un rapport nécessaire que la volonté humaine ne peut modifier, en un mot, que le droit ne peut être autre que ce qu’il doit être.»
Porque o Direito não pode ser diferente daquilo que tem de ser, é que nós vemos negadores como Duguit, partindo de um critério absolutamente objectivo e até por vezes grosseiramente realista, aproximarem-se da ideia ou noção de «direito», em que se inspiram as teorias tradicionalistas. O que sucede nos âmbitos restritos das Universidades ou dos tratados, sucede igualmente no campo imediato dos acontecimentos. Vale como um símbolo o título de um livro curiosíssimo do professor de Montpellier, Gaston Morin – La révolte des faits contre le Code.[3] Encontra-se Gaston Morin bem longe de ser um tradicionalista, mas incorporado na grande corrente de reacção instintiva do tempo presente, é verdadeiramente um «renovador, ainda que em campo restricto e dominado embora por preconceitos sociológicos insubsistentes. Eis como ele se nos confessa: «Si le législateur néglige d’intervenir, il se produit dans l’évolution un moment critique où l’incohérence est compléte entre les formules juridiques et la réalité, où la vie, pour ainsi dire, se rebelle contre les formules qui prétendent l’enfermer. La société entre en contradiction avec elle-même.» E acrescentando que outra não é a crise da hora presente, Gaston Morin desenvolve o seu pensamento, imbuído, sem dúvida, de um falso relativismo, mas com cuja essência nos achamos perfeitamente de acordo. Como no Estado actual o indivíduo é a sua base, também no Código Civil, reflexo da arquitectura do Estado, a lei só atende ao indivíduo. «La révolution avait, au nom de la liberté humaine, dissout tous les corps constitués, interdit pour l’avenir tous les groupements – insculpe Gaston Morin no seu notável estudo. – Elle ne voulait respecter dans la société, en face de l’État, que les individus isolés, qui tous étaient regardés comme autant de souverainetés égalles entre elles.» E adita: «Le Code Civil tire le corrollaire logique de la doctrine en décidant que nul ne peut être obligé par la volonté d’autrui, mais seulement par sa volonté personnelle s’exprimant dans un contrat. Il est le code de l’individu.»
Justifica depois Gaston Morin: «Or, par une contradiction brutale des idées et des prévisions des hommes de la Révolution, malgré toutes les interdictions légales, l’histoire sociale, à l’epoque contemporaine, révèle un mouvement aux multiples aspects qui a l’impressionante puissance d’un phénomène naturel. Je veux dire la substitution progressive des groupements aux individus isolés comme facteurs de la vie économique... L’on peut dire que, chaque jour, nous entrons plus avant dans l’ère de la coopération et du fédéralisme. C’est, indépendament de toute réglementation juridique, dans le développement spontané des faits, la fin de l’ordre social issu de la Révolution et la formation d’un ordre nouveau... Dés lors, appliqué à la construction juridique des groupements, l’individualisme de la Révolution et du Code civil devient un contre-sens. Le code de l’individu ne peut pas être le code des groupements.»
Comparado o depoimento de Gaston Morin com o de Adolfo Posada, avalia-se bem o som que se desprende das duas mentalidades. Enquanto Adolfo Posada, vítima do anquilosamento intelectual, tão próprio das «esquerdas» espanholas, não atinge nitidamente as razões da transformação que está sofrendo o Estado moderno e resolve chamar-lhe, algo comicamente, «nuevo liberalismo», Gaston Morin, com um donaire de inteligência que o honra, não recua diante da evidência e, sem que o conduzam determinadas predilecções reaccionárias, denuncia o bolbo do mal, proclamando a não conformidade do individualismo da Revolução com o florir viçoso das novas formas corporativas da economia e da política. Vai mais além o professor de Montpellier, numa atitude simpática de sinceridade intelectual. E assim, sem vacilação de espécie alguma, filia no kantismo a principal causa da retracção que sofreu, depois do século XVIII, a noção do Direito. Para ele, o filósofo de Koenigsberg, nos seus Elementos metafísicos da doutrina do Direito, é «le théoricien par excellence de l’individualisme juridique». E condensa: «Le príncipe du Droit, selon Kant, c’est que l’homme existe comme un fin en soi et non pas comme un moyen... Il s’ensuit que l’homme ne peut être soumis à aucune autorité extérieure... Si grande qu’on la suppose, ses prescriptions, du moment qu’elles viennent uniquement du dehors, doivent être considerées comme arbitraires.» Calculando a falha que de semelhante sanção resulta para a regra comum do Direito, Gaston Morin procura defender, mas colocado num terreno falso, o individualismo kantiano contra as suas evidentes tendências anárquicas. «Nul, on le sait, n’a en plus que Kant une conception sévère de la morale: l’homme, bien loin de pouvoir suivre les impulsions de ses désirs ou les caprices de sa sensibilité, doit obéir à la loi intérieure de sa conscience. De même, dans l’ordre politique et social, si l’homme n’est jamais obligé par la volonté des autres, il est obligé par la sienne. Il va être soumis aux lois qu’il se donne à lui-même, il est tout à fois auteur et serviteur de la loi.»
E Gaston Morin, não satisfeito, aduz ainda: «Kant ne supprime donc ni la régle morale, ni la régle sociale. Il en déplace seulement le fondement. Aux contraintes extérieures il substitue la contrainte intérieure. Le lien moral aura sa source dans la consciencie individuelle, le lien social dans la volonté humaine librement engagée elle-même». Não é necessário refutar o que há de funestamente dispersivo no kantismo e nas suas derivantes. O processo do kantismo é o processo da moral protestante agravada, é o processo do grande envenenamento intelectual que a Europa do século passado sofreu, correndo quase riscos de morte. O próprio Gaston Morin, que assim se empenha em desculpar o kantismo das suas taras incuráveis, não lhe aceita nem lhe aplaude as direcções, pelo menos, no campo do Direito. Por isso mais significativo se torna o seu parecer, ao intentarmos o como que exame genealógico das causas múltiplas da crise que o Estado, como conceito e como instituição, está padecendo. Mas se Morin escapa à acção do kantismo, este, através de uma manifestação bastarda sua, que é o krausismo, influi poderosamente na inteligência e na visão do professor Adolfo Posada. Aludimos à supremacia mental que a filosofia de Krause assumiu em Espanha entre os supostos grandes homens da ala racionalista e republicana.
Discorrendo dos antecedentes ideológicos e críticos em que entronca a transformação que o Estado iniludivelmente padece, o próprio Adolfo Posada no-lo diz com natural simplicidade. Oiçamo-lo: «La segunda corriente naturalista descúbrese en el espléndido proceso del pensamiento filosófico alemán, con su proyección o matiz original en la derivación de lo que se ha llamado el Krausismo en España. De esta gran corriente, en cierto modo aparte de la sociologia y en determinados momentos paralela com ella, provienen conceptos essenciales de la ciencia política renovada, y generadores de la teoría jurídica del Estado... Expresión típica de esta gran corriente filosófica en el mundo de las ideas políticas y jurídicas y éticas, es la llamada doctrina o teoría orgánica del Estado, orgánica y jurídica al proprio tiempo, en la que se recogen y componen la tradición kantiana del Estado de derecho, y la concepción orgánica schellinguiana de la naturaleza, mediante la construción del Estado como organismo ético, o bien, como un orden de armonía natural condicionado por la acción del esfuerzo jurídico.» E Posada remata, afectando firmeza no meio das fantasmagorias germânicas em que se debate: «La doctrina orgánica del Estado culmina en la escuela de Krause, en Akrens de modo especial... teniendo una excepcional representación en España com Giner y su escuela.»
Acha-se patente, não só a contradição, mas também a confusão em que bracejam os tratadistas contemporâneos, para conciliarem as suas preferências doutrinárias com a lição cada vez mais incisiva da realidade, pelo que toca à estrutura e funções do Estado. Dominado inteiramente pela força expansiva de um fenómeno que a ninguém é dado sofismar, ou escurecer, Posada, figura-símbolo do universalismo do século findo, de le stupide, como Léon Daudet inolvidavelmente alcunhou o século XIX, esgota-se a desfiar raciocínios de mero discursador, para ajustar à ideologia que lhe enevoa o cérebro a interpretação de um acontecimento, que é o desmentido acabado de quanto constitui, para o verbalismo apático do perplexo catedrático madrileno, o seu indispensável pão espiritual. Kant e Krause são para ele os remotos inspiradores da revolução que principia a mudar as directrizes, até agora tidas como ortodoxas, dentro das teorias políticas do Estado! E o professor da Universidade de Madrid desorienta-se e perde-se numa selva escura de preconceitos de toda a espécie, deixando-nos avaliar quão funda não foi a intoxicação do germanismo no ocidente europeu! Um pequeno excerto em que se comprova lamentavelmente o que escrevemos: «La acción eficaz, en su función de hacer efectiva la ley de la solidaridad social, tiene que descansar en las reacciones de la conciencia colectiva, reacciones psíquicas de inspiración moral, sin cuyo apoyo no tendrá jamás virtualidad suficiente que el Estado elabore. Esas reacciones, en su incesante proceso expansivo de conciencia individual a conciencia individual, hasta constituir una atmósfera social, y condensarse en empujes sociales, forman lo que, algunas veces, hemos llamado fluido ético indispensable en la química psicológica de los Estados.» O «fluido ético»! A química psicológica dos Estados! Não merece a pena continuar, porque fica em demasia assinalada a depressão de pensamento a que a prática do kantismo conduz!
Não se lhe abandona à perversão debilitadora o professor Gaston Morin, conquanto não se decida a romper totalmente com Kant. Contenta-se apenas em verificar que a base do direito até agora foi o indivíduo, começando a ser daqui em diante o agrupamento. Gaston Morin é um relativista, impregnado de longe por outra barbaria não menos condenável, a da aplicação do transformismo à sociologia, em que Spencer pontificou, como sacerdote-máximo, e a que a soi-disant filosofia de Henri Bergson, como última moda exportada de Paris para intelectuais de pouca consistência, concedeu privilégio de ciência definitiva. Tanto a Posada, como a Morin – ambos representativos de falsas tendências ainda dominantes, mas já ambos eco da renovação que intensamente se opera no campo do Direito –, é fácil de ver que lhes falta por completo a noção de «absoluto», em que o Direito, como, de resto, tudo o mais, carece de se firmar. Um, abandonado ao devenir hegeliano, o outro entregue à miragem proteiforme e não menos anárquica do relativismo, são conjuntamente abrangidos por aquele reparo de Georges Valois, falando da subjectivação, no campo da economia, da noção de valor, igual, sem dúvida, nas suas consequências desastrosas, à subjectivação, no campo jurídico, da noção de direito: «Il est radicalement impossible d’asseoir une institution sociale ou nationale quelconque sur une science dont le fondement est une notion aussi fuyante.»
Ressalta de quanto se expõe o erro manifesto, o manifesto desnorteamento, que o individualismo político e moral lançou na própria percepção das ideias fundamentais. Mas como sinal de que a restauração da verdadeira ordem se evidencia já em toda a sua plenitude, o desacordo dos tratadistas, com exemplo típico nos dois casos aqui observados, o de Adolfo Posada e de Gaston Morin, é para nós suficientemente elucidativo. Sejam kantistas ou pragmatistas, por muito que se aferrem a qualquer superstição filosófica, não podem, contudo, resistir à penetração cada vez mais forte dos acontecimentos, em suma, à «revolta dos factos» (aproveitando de Morin uma expressão feliz) contra a desnaturação sistemática a que a Democracia violentamente sujeitou a sociedade e o Estado. Chame-se-lhe «novo liberalismo», queira explicar-se tamanha modificação no que até agora se tomava como matéria dogmática por um maior desenvolvimento das relações sociais e económicas, o que é certo é que não se trata senão do fundo inalterável das coisas que, cedo ou tarde, consegue prevalecer sempre, sob pena de se derrogarem as leis primordiais da vida. Eis o que sucede na alardeada e já tão denunciada «crise do Estado». Por contraditórios e desalentadores que sejam os aspectos através dos quais ela se nos denuncia, os espíritos reflectidos e cultos não duvidam nem um instante do sentido em que terminará por se resolver. Esse sentido está à vista na excitação que reina entre os especialistas das mais variadas ascendências e que são como que um pequeno mundo de rãs coaxando, incessantes, na ilusão de que o Universo é o seu charco e que nada mais existe para além do horizonte que enfaticamente se delimitam. Quando de elementos mais persuasivos não dispuséssemos para demonstrar a linha que leva a restituição progressiva do Estado aos seus moldes naturais e tradicionais, reputava suficientes as que nos oferece, ou a perplexidade, com tanto de aflitiva como de cómica, de um Adolfo Posada na sua Teoría social y jurídica del Estado, ou a serenidade aparente de um Gaston Morin no seu livro La révolte des faits contre le Code. Resigna-se Posada a declarar: «La teoría del Estado sólo podrá rehacerse, en la medida en que se dé cuenta del valor y fuerza de ese más que soplo huracán de la calle, que de tal modo ha decompuesto la vieja ideología liberal: y la transformación real de los Estados ha de producirse, de hecho se produce, bajo la pujante acción del fermento sindical. Ningún gobierno, digno de tal nombre, podrá dar un paso eficaz hacia la reconstrucción de las instituciones políticas vitales, si ignora o aparenta ignorar este hecho positivo, a veces brutalmente positivo, del movimiento sindicalista.»
Por seu lado Gaston Morin, inclinado pelo relativismo, a uma supressão gradual das funções do Estado e à sua substituição pelos diversos federalismos profissionais e económicos, e não hesitando em proclamar que «l’évangile de Rousseau ne répond donc pas aux exigences de la vie sociale», sustenta, como conclusão insofismável, que «l’étude du mouvement sociale... atteste que, dés à present, une époque historique est close: celle de l’individualisme, de l’isolement des individus qui cède de plus en plus la place aux groupements et à la solidarité». Achamo-nos, pois, dentro da ideia de «solidariedade», com que Duguit foi corrigindo a secura objectivista das suas teorias. O sindicalismo é, deste modo, o eixo da reconstrução futura, para todos os pensadores e publicistas a quem o problema da transformação do Estado preocupa agudamente. E com justeza Duguit repara que «o movimento sindicalista não é, na realidade, a guerra empreendida pelo proletariado, para destruir a burguesia e conquistar os instrumentos da produção. Não é, como pretendem os teóricos do sindicalismo revolucionário, a classe operária que adquire consciência de si mesma, para concentrar em si o poder e a riqueza, e aniquilar a classe burguesa. É um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, diria até, muito mais humano. Não é um meio de guerra e de divisão social: creio que é, pelo contrário, um meio poderoso de pacificação e união. Não sendo só uma mera transformação da classe operária, estende-se a todas as classes sociais e tende a coordená-las num feixe harmónico».
A aspiração da «solidariedade» conduz, assim, na incerteza e flutuação das doutrinas as mais antagónicas, aqueles que, embora parcialmente, se deixam render à evidência das circunstâncias. O sindicalismo é, na realidade, a grande corrigenda aposta pela força dos acontecimentos à dispersão criminosa do 89. E se, intoxicado actualmente pelo princípio marxista da «divisão de classes», se apresenta eriçado de hostilidades negativistas, o tempo o adoçará pelo poder da inteligência e pela necessidade de concórdia, de maneira a devolver à sociedade a sua perdida paz, o seu tão ambicionado equilíbrio. Como o caminho se nos rasga diante, sabêmo-lo nós já, em presença dos testemunhos aqui examinados. Por eles se constata unanimemente a falência irreparável do Estado democrático. Nas controvérsias da escola e do livro, por antitéticas que se apresentem as atitudes e inclinações doutrinárias de cada um, todos convergem para um ponto único – e é que a crise inconjurável do Estado contemporâneo, filho tarado da Revolução e do Liberalismo, provoca o aumento intensíssimo do social sobre o político, do colectivo sobre o individual. Apercebe-se alfim que o evangelho de Rousseau desvinculara os homens das suas ligações mais imprescindíveis e instintivas, prosseguindo na quimera doida de materializar um fantasma, «cidadão abstracto dos Imortais-Princípios». E por afastados que os tratadistas se mantenham por enquanto das soluções tradicionais, é ainda para lá que convergem desde que ao indivíduo se substitui o «grupo» – desde que a ideia de solidariedade aparece a desvanecer o sulco de ruína e de morte, levantado nas sociedades históricas pelo gregarismo entusiástico do século que passou.
Tal conceito de «solidariedade» pressupõe, anterior ao direito do Estado, um direito social como fundamento da soberania. Isso envolve consigo o repúdio terminante do erro revolucionário, que tem o indivíduo puro e simples como alicerce e fim exclusivo da sociedade. Conforma-se ao mesmo tempo com os últimos enunciados das ciências experimentais que, lançando-se contra a apregoada lei biológica do egoismo, nos ensinam que a lei biológica fundamental da sociedade humana, «não é a lei darwiniana da luta e da concorrência», e sim a lei biológica humana do auxílio mútuo, do amor, da solidariedade, e da colaboração para o progresso contínuo e indefinido da humanidade». Coincide esta afirmação do eminente dr. Grasset, com a definição de sociedade que nos é dada pelos tomistas. Destina-se a sociedade, segundo São Tomás e seus discípulos, a promover a perfeição natural do homem, como «ser moral». Ignorando o Espírito, os tratadistas hodiernos, não vêem na «solidariedade» mais que uma cooperação para o domínio utilitário da existência. Mas é ao império do Espírito que carecemos de regressar, considerando o homem como uma «alma», e alma que é, em dependência directa, na sua liberdade e na sua responsabilidade, para com Deus que o criou.
Sensatamente, transpondo com ânimo certo as barreiras que lhe atravancam o caminho, o nosso século, em contraste frizante com o século anterior, procura eximir-se à escravidão da Matéria e prepara-se para travar com ela o grande combate. Valorizar o indivíduo, não como unidade rebelde, mas como elo da cadeia ininterrupta das gerações, tal a mira em que desde sempre a Igreja se empenha, cheia de amorosa solicitude. Não é outro o lema do Tradicionalismo, quando o inspira uma sensata filosofia. Tradicionalismo e Nacionalismo completam-se atualmente num apertado consórcio, esforçando-se o Nacionalismo por dotar os povos com instituições que os virilizem e apontando-lhes o Tradicionalismo quais elas sejam. No rumo já bem marcado que a Europa parece levar, ainda que suspensa por enquanto das bordas do abismo, o afervoramento dos laços colectivos, que o sindicalismo pressupõe, promete restituir ao indivíduo a consciência da sua dignidade, obliterada nos conúbios indecorosos, com que o Estado democrático o aviltou e diminuiu.
Graças a esses laços, a sociedade recomporá o seu tecido multicelular. O exemplo por nós citado e comentado da Constituição alemã de 1919 demonstra-nos que não só nos tratados a nova tendência se faz sentir. Evidentemente que a Constituição do Reich enferma do pecado mortal do marxismo. Não se invalida, porém, o que nela se constata de vital – de orgânico. A soberania política encontra já ali suficiente rectificação no anti-individualismo que ditou algumas das suas principais disposições. Para as inteligências covardes, ou retardatárias, julgo que é um aviso enérgico. O que se nos impõe agora é integrar nos seus termos exactos a transformação visível do Estado. Trata-se de um fenómeno intimamente ligado à transformação do pensamento europeu. Por mais que o contestem autores da natureza dos que nós examinámos, a Democracia debate-se no crepúsculo, o que rui com fragor de catástrofe é a concepção mentirosa que, tanto do Estado, como da sociedade, recebemos da Reforma e da Revolução. De forma que o movimento a que assistimos não é, estruturalmente, mais que um movimento de libertação. É o direito «cristão» que triunfa, direito todo animado pelo conceito superior de «solidariedade».
Se despirmos do seu limitado e grosseiro positivismo as fórmulas doutrinárias de um Duguit, logo observaremos como coincidem com as teorias de São Tomás sobre a sociedade e o Estado. O conceito de «pessoa», tão querido do Tomismo e tão essencial à justa posse da objectividade no campo do Direito, ei-lo de regresso, sepultadas como se acham já no limbo das larvas sem glória as torpes ideologias de um falso e depressivo racionalismo. É o conceito de pessoa, modificando e envolvendo o conceito centrífugo e errático de indivíduo, quem volta a inspirar as modernas directrizes jurídicas. Por ele o Estado se restaurará. Por ele a sociedade será salva a sociedade, a civilização ocidental!
NOTAS
[1] Buenos Aires, 1920.
[2] Paris, Nouvelle Librairie Nationale, 1922.
[3] Paris, Grasset, 1921.