A voz dos bispos
António Sardinha
O texto analisa a pastoral coletiva dos bispos portugueses, destacando a sua importância num momento de incerteza nacional. Os bispos oferecem orientações claras aos católicos, reafirmando os princípios tradicionais da Igreja e rejeitando os valores da Revolução Francesa, especialmente o conceito de soberania popular, que consideram contrário à origem divina da autoridade. Eles defendem que a autoridade legítima deve estar fundamentada em Deus, criticam o individualismo e o Estado laico, e salientam a família como núcleo essencial da sociedade.
A pastoral também condena o naturalismo e a democracia quando esta se baseia em princípios opostos à doutrina católica, embora não rejeite a república como sistema político em si. Os bispos incentivam a organização dos católicos para defender a liberdade religiosa, mas deixam claro que essa organização não deve ser um partido político comum, e sim um “partido de Deus”, voltado para a ordem e a liberdade.
Por fim, os bispos reconhecem o dever de respeito ao Estado, mas também o direito à resistência diante de injustiças e tiranias. Salientam que os católicos devem participar da vida pública para promover o bem comum, sem comprometer a missão religiosa da Igreja. O texto conclui que a pastoral reafirma a missão histórica e espiritual de Portugal, que transcende o presente e abrange o passado e o futuro da nação.
A pastoral também condena o naturalismo e a democracia quando esta se baseia em princípios opostos à doutrina católica, embora não rejeite a república como sistema político em si. Os bispos incentivam a organização dos católicos para defender a liberdade religiosa, mas deixam claro que essa organização não deve ser um partido político comum, e sim um “partido de Deus”, voltado para a ordem e a liberdade.
Por fim, os bispos reconhecem o dever de respeito ao Estado, mas também o direito à resistência diante de injustiças e tiranias. Salientam que os católicos devem participar da vida pública para promover o bem comum, sem comprometer a missão religiosa da Igreja. O texto conclui que a pastoral reafirma a missão histórica e espiritual de Portugal, que transcende o presente e abrange o passado e o futuro da nação.
A voz dos bispos
Falaram os bispos portugueses. A sua pastoral colectiva – loquemur ad filios Lusitaniae – é um depoimento notabilíssimo que nesta hora alta de incertezas se reveste do maior dos significados. Têm já hoje os católicos de Portugal, que são a quase unanimidade do país, uma regra de conduta pública, traçada pela voz dos seus legítimos pastores. Mais uma vez a verdade se definiu, em termos que não vão ficar esquecidos! Todas as promessas da Igreja se recordam ali numa exortação cheia de ardor religioso. E é com profundo estímulo para nós que a pastoral dos nossos Prelados acolhe debaixo do ponto de vista eclesiástico os grandes ensinamentos contra-revolucionários que são o património social do nosso passado cristão e monárquico.
A Igreja não se subordina a interesses temporais, de modo a sujeitar o cumprimento da sua missão às contingências fragilíssimas da instabilidade política. Mas há princípios condenados solenemente pela Cadeira de Pedro que nunca podem merecer a expectativa benévola da Igreja na sua aplicação à sociedade. Esses princípios são os princípios da Revolução Francesa e expressos formalmente no dogma anárquico da soberania popular. A soberania popular é a negação da origem divina da Autoridade – representa a vitória do número, baseada exclusivamente na força material. Não passaram no silêncio dos indiferentes as palavras memorandas do Syllabus a tal respeito. Também no nosso pensamento, e como norma segura de acção, não se apagam nunca os ditames profundíssimos de Leão XIII e de Pio X sobre a natureza perturbadora dos governos democráticos.
A Igreja não reconhece assim aquele poder que se não entenda fundamentado no direito de Deus. Leão XIII fulminou terminantemente o «naturalismo social, económico e moral», que é a consequência imediata do espírito da Revolução, indo o Pontífice até ao ponto de indicar a Reforma como a sua causa primária e directa. «Foi desta heresia que nasceram no século último a falsa filosofia, o que se chama o direito moderno, a soberania do povo e essa licença sem freio fora da qual muitos não sabem ver o que seja a verdadeira liberdade.» A condenação da Democracia resulta sempre com o mesmo vigor de todas as letras emanadas de Roma. Não é que a Igreja repila a república, sistema político. Mas é porque a república, na maioria dos casos, não é senão a realização dos princípios que a Igreja proscreve e anatematiza, como contrários à lei de Deus e ao interesse da comunidade.
«A Revolução está afinal longe de ser apenas um facto, escreve o conde de Mun. É antes uma doutrina social, uma doutrina política, que pretende fundar a sociedade sobre a vontade do homem, em vez de a fundar sobre a vontade de Deus, colocando a soberania da razão humana em lugar da lei divina. Eis no que consiste a Revolução.» Ora se a Revolução, como doutrina, combate a Igreja, a Igreja, sem se submeter nem limitar, está ligada à doutrina que combater a Revolução. Não são outras as conclusões do escrito pontifício que interdisse a intervenção dos católicos no movimento democrático do Sillon. Bem categoricamente Pio X as formulava ao apresentar nesse documento os tradicionalistas como os únicos e verdadeiros amigos do povo. Pela continuidade admirável que encerra em si a prova histórica da divindade da Igreja, Pio X não fazia senão recordar os fortes e serenos conselhos dos seus predecessores no Pontificado – Pio VI, Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII.
Na sua pastoral os Prelados portugueses obedecem com serena elevação à herança gloriosa da filosofia católica. Defendendo contra os excessos funestos do individualismo, consagram a família como a célula social, para desfiar dela a justa constituição do agregado. Enumeram com dedo experiente de médicos da alma os motivos morais da nossa decadência e do consequente enfraquecimento da disciplina religiosa. Uma colectividade sem a presença contínua de Deus, é um corpo que se relaxa e desfibra em bocados. No repúdio irrevogável do individualismo contém-se o repúdio irrevogável de quantos frutos derivam dessa árvore maldita. Neles está compreendido o Estado de condição maçónica, firmemente apontado aos fiéis como um perigo mortal na encíclica de Leão XIII Humanum genus, que mais não foi do que a renovação de outros anátemas de Roma.
Tal é a lição a tirar da pastoral colectiva do Episcopado. O divórcio, a escola-laica, as medidas persecutórias, necessariamente filhas do regime de separatismo sectário, merecem as atenções paternais dos nossos Bispos nos seus funestos resultados. A organização dos católicos impõe-se, por isso, como força precisa para actuar na conquista de um mínimo de liberdade essencial. Semelhante organização não é, porém, de modo nenhum um partido, entenda-se. Partido católico só pode ser um: «o partido de Deus», que, como muito bem observa o abade Barbier no seu livro Le devoir politique des catholiques, não é senão «o partido da Ordem e da Liberdade».
O partido da Ordem e da Liberdade entre nós é aquele que, em relação à Igreja e ao Estado, seja o remate da nossa longa formação tradicional. A Igreja manda ponderar realmente as circunstâncias históricas que condicionam como meio-vital a existência autónoma das nacionalidades. Mas é esse um problema que a Igreja não põe aos católicos, de um modo absoluto, porque não lhe toca directamente. Os católicos, sendo também cidadãos de uma pátria livre, é que não podem pelos princípios em que comungam desinteressar-se das responsabilidades que lhes pertencem na consecução do bem comum. Católica era a Polónia, e não era o bastante para que a Polónia, como Polónia, possuísse a sua vida independente de pátria. Infere-se daqui – e a Igreja o reconhece – que os católicos, sem comprometerem a sua organização religiosa com as controvérsias agitadas da discussão política, devem, no entanto, participar como cidadãos da marcha das coisas públicas e dar-lhes a direcção mais conforme com as direcções da sua consciência.
É certo que a Igreja assenta como um mandamento o respeito ao Estado. Admite em todo o caso, mesmo teologicamente, a resposta violenta às violações da justiça e às iniquidades da tirania. Leão XIII na encíclica Libertas praestantissimum é explícito e categórico quando afirma que «a Igreja não condena que se queira libertar o seu país, ou do estrangeiro ou de um déspota, desde que isso se faça sem ofender a justiça». E mais adiante, para que se não tome como ofensa à justiça a oposição a uma determinada legalidade – que por ser legalidade, não é, contudo, direito –, o Pontífice, de imortal memória, acrescenta: «Quando se está debaixo de um golpe ou sob a ameaça de uma dominação que coloca a sociedade na opressão de uma violência injusta, ou priva a Igreja da sua liberdade legítima, é permitido procurar uma outra organização política, dentro da qual se possa agir com liberdade.»
Creio definido o pensamento que, segundo a pastoral colectiva do Episcopado, presidirá à organização católica. Não se trata nem de um ralliement, nem de uma abdicação. Os prelados portugueses, no seu ponto de vista religioso, só à causa da sua Religião atenderam. Mas eles são da linhagem virtuosa dos nossos bispos de outrora que, ao levantarem a Cruz de Cristo, sabiam que levantavam com Ela a bandeira sagrada das Quinas. Não podiam, pois, esquecer-se de que há um Portugal-Maior, que é mais dos que morreram e dos que estão para nascer, do que propriamente daqueles que com tanto sacrilégio e tanta veniaga o empurram cada vez mais para a ruína!
in Na feira dos mitos, 1926.
A Igreja não se subordina a interesses temporais, de modo a sujeitar o cumprimento da sua missão às contingências fragilíssimas da instabilidade política. Mas há princípios condenados solenemente pela Cadeira de Pedro que nunca podem merecer a expectativa benévola da Igreja na sua aplicação à sociedade. Esses princípios são os princípios da Revolução Francesa e expressos formalmente no dogma anárquico da soberania popular. A soberania popular é a negação da origem divina da Autoridade – representa a vitória do número, baseada exclusivamente na força material. Não passaram no silêncio dos indiferentes as palavras memorandas do Syllabus a tal respeito. Também no nosso pensamento, e como norma segura de acção, não se apagam nunca os ditames profundíssimos de Leão XIII e de Pio X sobre a natureza perturbadora dos governos democráticos.
A Igreja não reconhece assim aquele poder que se não entenda fundamentado no direito de Deus. Leão XIII fulminou terminantemente o «naturalismo social, económico e moral», que é a consequência imediata do espírito da Revolução, indo o Pontífice até ao ponto de indicar a Reforma como a sua causa primária e directa. «Foi desta heresia que nasceram no século último a falsa filosofia, o que se chama o direito moderno, a soberania do povo e essa licença sem freio fora da qual muitos não sabem ver o que seja a verdadeira liberdade.» A condenação da Democracia resulta sempre com o mesmo vigor de todas as letras emanadas de Roma. Não é que a Igreja repila a república, sistema político. Mas é porque a república, na maioria dos casos, não é senão a realização dos princípios que a Igreja proscreve e anatematiza, como contrários à lei de Deus e ao interesse da comunidade.
«A Revolução está afinal longe de ser apenas um facto, escreve o conde de Mun. É antes uma doutrina social, uma doutrina política, que pretende fundar a sociedade sobre a vontade do homem, em vez de a fundar sobre a vontade de Deus, colocando a soberania da razão humana em lugar da lei divina. Eis no que consiste a Revolução.» Ora se a Revolução, como doutrina, combate a Igreja, a Igreja, sem se submeter nem limitar, está ligada à doutrina que combater a Revolução. Não são outras as conclusões do escrito pontifício que interdisse a intervenção dos católicos no movimento democrático do Sillon. Bem categoricamente Pio X as formulava ao apresentar nesse documento os tradicionalistas como os únicos e verdadeiros amigos do povo. Pela continuidade admirável que encerra em si a prova histórica da divindade da Igreja, Pio X não fazia senão recordar os fortes e serenos conselhos dos seus predecessores no Pontificado – Pio VI, Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII.
Na sua pastoral os Prelados portugueses obedecem com serena elevação à herança gloriosa da filosofia católica. Defendendo contra os excessos funestos do individualismo, consagram a família como a célula social, para desfiar dela a justa constituição do agregado. Enumeram com dedo experiente de médicos da alma os motivos morais da nossa decadência e do consequente enfraquecimento da disciplina religiosa. Uma colectividade sem a presença contínua de Deus, é um corpo que se relaxa e desfibra em bocados. No repúdio irrevogável do individualismo contém-se o repúdio irrevogável de quantos frutos derivam dessa árvore maldita. Neles está compreendido o Estado de condição maçónica, firmemente apontado aos fiéis como um perigo mortal na encíclica de Leão XIII Humanum genus, que mais não foi do que a renovação de outros anátemas de Roma.
Tal é a lição a tirar da pastoral colectiva do Episcopado. O divórcio, a escola-laica, as medidas persecutórias, necessariamente filhas do regime de separatismo sectário, merecem as atenções paternais dos nossos Bispos nos seus funestos resultados. A organização dos católicos impõe-se, por isso, como força precisa para actuar na conquista de um mínimo de liberdade essencial. Semelhante organização não é, porém, de modo nenhum um partido, entenda-se. Partido católico só pode ser um: «o partido de Deus», que, como muito bem observa o abade Barbier no seu livro Le devoir politique des catholiques, não é senão «o partido da Ordem e da Liberdade».
O partido da Ordem e da Liberdade entre nós é aquele que, em relação à Igreja e ao Estado, seja o remate da nossa longa formação tradicional. A Igreja manda ponderar realmente as circunstâncias históricas que condicionam como meio-vital a existência autónoma das nacionalidades. Mas é esse um problema que a Igreja não põe aos católicos, de um modo absoluto, porque não lhe toca directamente. Os católicos, sendo também cidadãos de uma pátria livre, é que não podem pelos princípios em que comungam desinteressar-se das responsabilidades que lhes pertencem na consecução do bem comum. Católica era a Polónia, e não era o bastante para que a Polónia, como Polónia, possuísse a sua vida independente de pátria. Infere-se daqui – e a Igreja o reconhece – que os católicos, sem comprometerem a sua organização religiosa com as controvérsias agitadas da discussão política, devem, no entanto, participar como cidadãos da marcha das coisas públicas e dar-lhes a direcção mais conforme com as direcções da sua consciência.
É certo que a Igreja assenta como um mandamento o respeito ao Estado. Admite em todo o caso, mesmo teologicamente, a resposta violenta às violações da justiça e às iniquidades da tirania. Leão XIII na encíclica Libertas praestantissimum é explícito e categórico quando afirma que «a Igreja não condena que se queira libertar o seu país, ou do estrangeiro ou de um déspota, desde que isso se faça sem ofender a justiça». E mais adiante, para que se não tome como ofensa à justiça a oposição a uma determinada legalidade – que por ser legalidade, não é, contudo, direito –, o Pontífice, de imortal memória, acrescenta: «Quando se está debaixo de um golpe ou sob a ameaça de uma dominação que coloca a sociedade na opressão de uma violência injusta, ou priva a Igreja da sua liberdade legítima, é permitido procurar uma outra organização política, dentro da qual se possa agir com liberdade.»
Creio definido o pensamento que, segundo a pastoral colectiva do Episcopado, presidirá à organização católica. Não se trata nem de um ralliement, nem de uma abdicação. Os prelados portugueses, no seu ponto de vista religioso, só à causa da sua Religião atenderam. Mas eles são da linhagem virtuosa dos nossos bispos de outrora que, ao levantarem a Cruz de Cristo, sabiam que levantavam com Ela a bandeira sagrada das Quinas. Não podiam, pois, esquecer-se de que há um Portugal-Maior, que é mais dos que morreram e dos que estão para nascer, do que propriamente daqueles que com tanto sacrilégio e tanta veniaga o empurram cada vez mais para a ruína!
in Na feira dos mitos, 1926.