Conde de monsaraz
António Sardinha
RESUMO
António Sardinha apresenta o Conde de Monsaraz como um poeta profundamente ligado à tradição rural e à terra natal, que superou o parnasianismo ao incorporar elementos regionais do Alentejo, criando uma poesia autêntica e emotiva. Destaca-se a sua herança familiar de lavradores nobres e o compromisso com o bem comum, sendo considerado um exemplo de como a ligação à terra e aos antepassados pode gerar uma poesia verdadeiramente nacional: “Ele espiritualizou esse esforço. E, comunicando-lhe a alma da sua alma, deu-lhe a expressão das coisas eternamente moças”.
- O Conde de Monsaraz é lembrado como alguém que manteve viva a tradição rural da sua família e soube expressar essa ligação à terra na sua poesia.
- António Sardinha destaca que a obra do Conde de Monsaraz não deve ser vista apenas pelo ponto de vista literário, mas sim pela sua profunda emoção e ligação à terra natal.
- O poeta foi influenciado pelo parnasianismo francês (Leconte de Lisle), mas superou os limites desse movimento ao incorporar elementos bucólicos e regionais, especialmente do Alentejo.
- Diferente de outros parnasianos, o Conde de Monsaraz tinha raízes profundas na terra e nos antepassados, o que lhe conferiu uma autenticidade e emoção únicas.
- Sardinha ressalta que o regionalismo do Conde de Monsaraz foi inovador e importante para a literatura portuguesa, sendo um dos primeiros a dar expressão artística à vida rural.
- O autor valoriza a herança familiar do Conde de Monsaraz, descendente de uma linhagem de lavradores nobres e comprometidos com o bem comum.
- O texto sublinha que a força poética do Conde de Monsaraz se intensificou no final da vida, quando se libertou das regras rígidas do parnasianismo e produziu obras de grande lirismo e autenticidade, como “Musa Alentejana”.
- Sardinha considera o Conde de Monsaraz um exemplo de como a ligação à terra e aos antepassados pode gerar uma poesia profunda, dinâmica e verdadeiramente nacional.
- O documento termina exaltando o Conde de Monsaraz como fruto das virtudes dos seus antepassados, alguém que espiritualizou o esforço rural e deu-lhe expressão imortal na literatura portuguesa.
CITAÇÕES
- Ligação à tradição rural e à terra:
- “No conde de Monsaraz ficou para sempre bem viva a tradição rural da sua gente. E porque a ninguém a ocultava, o conde de Monsaraz poderia receber a bênção que Mercier recebeu, pois se não aprendera a lavrar a herdade e a recolher o trigo, aprendera a cantar esse esforço fecundo e a dar-lhe expressão imortal.”
- A obra não deve ser vista apenas pelo ponto de vista literário:
- “Não consideremos o conde de Monsaraz debaixo do puro ponto de vista literário. É que não alcançamos a compreensão humana da sua obra, se a não olharmos através de um critério mais profundo.”
- Superação dos limites do parnasianismo:
- “O poeta foi influenciado pelo parnasianismo francês (Leconte de Lisle), mas superou os limites desse movimento ao incorporar elementos bucólicos e regionais, especialmente do Alentejo.”
- “No conde de Monsaraz existia uma realidade subconsciente, muito mais rica e muito mais criadora que os cânones cerrados da sua primeira fase artística. Era a comoção bucólica da terra, que o enchia das visões amoráveis da sua província natal…”
- Autenticidade e emoção únicas:
- “Parnasiano na correção exterior, o conde de Monsaraz já não padecia da mesma deficiência. Tinha Mortos e tinha Paisagem. De aí lhe veio logo no Crepusculares uma acentuada modalidade lírica…”
- Regionalismo inovador e expressão artística da vida rural:
- “O conde de Monsaraz, num avanço extraordinário sobre os seus processos e sobre a sua época, realizou em Portugal uma poderosa demonstração do que em arte pode ser o regionalismo. É um exemplo quase único de amplitude de espírito e de penetração lírica!”
- Herança familiar e compromisso com o bem comum:
- “Têm raízes profundas os Papanças. São de uma linhagem de ‘homens-bons’, que já no século XVIII se assentavam em vereação no cume arrogante de Monsaraz.”
- “Viver à ‘lei da nobreza’ era ser-se ‘autoridade social’, era servir-se, com mais encargos do que direitos, o bem-comum. Ricos, os Papanças aceitavam com diligência e zelo as responsabilidades públicas da sua fortuna.”
- Força poética intensificada no final da vida:
- “É no fim da existência que ele se liberta das imposições canónicas do seu parnasianismo exigente e nos deixa na Musa Alentejana, não o testamento de uma sensibilidade, mas um hino de força, que é bem o pregão de um forte temperamento na posse de si mesmo.”
- Exemplo de poesia nacional profunda e dinâmica:
- “Sardinha considera o conde de Monsaraz um exemplo de como a ligação à terra e aos antepassados pode gerar uma poesia profunda, dinâmica e verdadeiramente nacional.”
- Conclusão: espiritualização do esforço rural:
- “Ele espiritualizou esse esforço. E, comunicando-lhe a alma da sua alma, deu-lhe a expressão das coisas eternamente moças!”
CONDE DE MONSARAZ
Quando me lembro do conde de Monsaraz, lembro-me imediatamente daquele poema de Louis Mercier, em que o poeta, diante da assembleia muda dos Antepassados, lhes pede perdão por não ter sabido ser como eles um lavrador. No conde de Monsaraz ficou para sempre bem viva a tradição rural da sua gente. E porque a ninguém a ocultava, o conde de Monsaraz poderia receber a bênção que Mercier recebeu, pois se não aprendera a lavrar a herdade e a recolher o trigo, aprendera a cantar esse esforço fecundo e a dar-lhe expressão imortal.
Não consideremos o conde de Monsaraz debaixo do puro ponto de vista literário. É que não alcançamos a compreensão humana da sua obra, se a não olharmos através de um critério mais profundo. Havia no conde de Monsaraz prodigiosos recursos de emoção. Se os não possuíra, decerto se quedaria eternamente na imobilidade impecável da rima parnasiana, repetindo os temas doirados das receções na Embaixada e dos serenins em Palácio. Não aconteceu assim, como no-lo mostra a Musa Alentejana, como em breve no-lo mostrará a Lira de Outono, livro póstumo ainda inédito.
A razão é a mais simples das razões! No conde de Monsaraz existia uma realidade subconsciente, muito mais rica e muito mais criadora que os cânones cerrados da sua primeira fase artística. Era a comoção bucólica da terra, que o enchia das visões amoráveis da sua província natal, e que representou para o temperamento poético do conde de Monsaraz essa extraordinária eloquência lírica, de que saíram ‘As cegonhas’ e ‘As mondadeiras’, e que não o deixou nunca envelhecer.
O conde de Monsaraz, ao conformar-se literariamente, participara das influências de Leconte de Lisle. É de uso enfileirá-lo entre nós no reduzido grupo que, com Cesário Verde e Gonçalves Crespo à frente, introduziu em Portugal os processos concretos do grande mestre dos Poèmes barbares. Dentro dos limites convenientes, como mais tarde sucedeu com as inovações bizarras de Eugénio de Castro, não é lícito duvidar-se da ação salutar de semelhante corrente no arrasado sistema nervoso das pobrezinhas das nossas letras. Nós vínhamos então pela altura das quermesses idílicas do Ultrarromantismo, numa depravação vexatória do bom-senso e do bom-gosto. O Lugar-Comum, assento na Câmara-Alta, com carta de Conselho fazia as suas jornadas de triunfo. De Coimbra, cheios de hegelianismos confusos, uns rapazes atrevidos tinham já bradado não sei que irreverências famosas. A um exagero opunha-se outro exagero. Porque se da apelidada ‘escola coimbrã’ o nome de Antero se destaca para a primeira plana como uma das mais raras organizações com que a mentalidade portuguesa se enobrece, também é verdade que, pela via de Teófilo e de Junqueiro, penetrava na inteligência indígena o arrevesado e já tão provado filosofismo, de que proximamente resulta a nossa crise atual.
De passagem é-me agradável assinalar aqui a formação germânica do pensamento de Teófilo Braga, mas no que na Germânia se encontra de pior e de mais estragado! E se nos recordarmos agora que os verbalismos tonitruantes de Guerra Junqueiro emudeceram para nunca mais se ouvirem, desde que o insigne descendente de tanto marrano converso não achou em Victor Hugo mais nada que valesse a pena descaminhar aos direitos, nós reconhecemos, sem parcialidades de partido, que as consequências sociais da dissidência de Coimbra se resolveram em causas de absoluta desnacionalização para Portugal.
Por isso, menos importante e mais modesto, o movimento inspirado pelo parnasianismo francês torna-se-nos logo de começo simpático, tanto pela maneira aristocrática como se desviava das exaltações rubras da barricada, já em progresso na poesia do tempo, como pela espécie de higiene que iria desenvolver na natureza dulçorosa do lirismo em sucesso nos dois ou três cenáculos da época. Ao Macedo Papança das Crepusculares, ao Cesário Verde das equilibradas melancolias «de um Ocidental e ao Gonçalves Crespo dos quadradinhos estilizados e do detalhe precioso, nós teremos que agradecer um outro cuidado no arranjo da estrofe e um maior escrúpulo na estesia do vocábulo. Trouxeram-nos ritmos novos e novas imagens. Como ao depois na desinfeção violenta dos Oaristos e das Horas, abriram-se para nós janelas imprevistas e imprevistos foram muitos dos motivos literários que essa tendência chamou para a claridade.
É certo que, no sentido superior da palavra, Leconte de Lisle é mais um escritor de versos que propriamente um poeta. A ausência de fontes de vida interior na sua poesia faz que a reputemos como uma admirável criação mental, e não como um borbulhão espontâneo, em que as vozes secretas do espírito prevaleçam iluminadamente sobre os conceitos cristalizados da inteligência. A poesia, quando é poesia, tira as mais mergulhadas das suas raízes de um fundo de subconsciência, sendo assim mais dinâmica do que estática, mais vibração do que definição. Ora a arte de Parnaso, porque é arte e não poesia, é bem, à maneira clássica, unicamente estática. Parte da impressão periférica das coisas, não lhes penetra a sua força íntima. Entende-se, pois, porque o Parnasianismo teria de ser não um fim, mas um meio; não uma síntese, mas um processo. Tanto Leconte de Lisle, como Herédia, seu discípulo, tentaram, bem o sei, uma como que interpretação cíclica da humanidade. Porém, o seu intento segmentou-se em aspetos episódicos, a que faltava um largo sopro inspirado, que lhes imprimisse a necessária unidade.
Menores em relação ao prestígio justíssimo dos seus predecessores franceses, os nossos parnasianos, como parnasianos, pouco produziram, e se mais produzissem, não se fariam senão repetir. É esse o perigo da arte formal, brotada apenas de meras sugestões cerebrais. Cesário Verde, a viver, não iria além do Livro de Cesário. Gonçalves Crespo desdobrar-se-ia monotonamente em miniaturas e em noturnos, se aos seus dois volumes mais outros se tivessem juntado. Caracteriza-se talvez pela ausência de um sentido elemento de ordem subjetiva a diminuta produção de quase todos os poetas filiados no Parnaso. Cesário encontrou ainda a sua doença. No entanto, era um sem-paisagem, aperreado na asfixia geométrica da Baixa e comovendo-se mediocremente, com a preocupação de fixar atitudes, diante da natureza pobre dos arrabaldes. Eu creio assinalar uma circunstância importante, logo que recorde, com as origens citadinas de Cesário, a proveniência exótica da maioria dos parnasianos mais aclamados. Já não falo em Gonçalves Crespo, cuja naturalidade brasileira ninguém ignora. Transpondo-me a França, recordo Leconte de Lisle, nascido na Ilha Borbon, recordo Herédia, de boa proveniência cubana. A circunstância não é para desdenhar, se concedermos à poesia uma génese exclusivamente emotiva. A abstenção do sentimento da Terra e dos Mortos, ao contacto de horizontes e de ambiências que psiquicamente lhes seriam, senão hostis, pelo menos indiferentes, provocaria nesses poetas a insensibilidade afetiva, em que se baseia todo o segredo do seu vigor de análise e a rara energia do seu poder descritivo.
Parnasiano na correção exterior, o conde de Monsaraz já não padecia da mesma deficiência. Tinha Mortos e tinha Paisagem. De aí lhe veio logo no Crepusculares uma acentuada modalidade lírica que, afirmando-se mais a mais em outras páginas subsequentes, lhe valeu de alguém, a quem me escapa o nome, a designação galante de ‘Musset português’.
Eu não procuro instruir aqui o ensaio crítico que tanto me merecia a memória sempre querida do conde de Monsaraz. Desejo, todavia, fixar certas linhas interessantes da sua fisionomia literária, até hoje credora de mais significativas homenagens do que as costumadas frases de ocasião, com que a banalidade dos pretensiosos se mete a pontificar em dias de capa-de-asperges! Eis porque saliento o singular valor que para mim assume o facto de ser o conde de Monsaraz um enraizado com Mortos e com Paisagem.
Conheci de perto o conde de Monsaraz durante os anos em que andou tirando a sua ‘segunda formatura’, como ele próprio dizia. A ‘segunda formatura’ do conde de Monsaraz era a formatura do Alberto. Ao longo desse período, em Coimbra, na casa, já agora célebre, da Rua dos Militares, não houve ninguém que possuísse merecimento, que ali não fosse receber o estímulo generoso do poeta. O conde de Monsaraz foi um grande perdulário! Dispersou em bondade os largos tesouros do seu espírito gentilíssimo, fazendo da sua vida a mais extraordinária obra de emoção que é possível imaginar-se. Remoçava connosco. E se, puxando dos seus papéis, nos lia alguma poesia nova, li-a sempre com o receio da velhice.
«Mas, francamente, não me enganem!» E contava-nos então a história triste de um poeta consagrado do seu tempo que, de uma vez, o convidou a ir ouvir-lhe a leitura do poema em que trabalhava. A criatura declinava já sensivelmente, mais do que nunca falto de talento, que jamais tivera. Contudo, a fama guindara-o bem alto, quando cantava a cigarra de Anacreonte na olaia do velho Castilho. Rapaz, o conde de Monsaraz, ainda simplesmente Macedo Papança, escutou-o com caridade e com caridade o aplaudiu depois. E sempre que as palavras da nossa admiração o festejavam agora, o conde de Monsaraz acrescentava inalteravelmente: «Não me estarão vocês fazendo o mesmo que eu fiz ao outro?»
Não me esquecerá a mim a manhã de Inverno em que o conde de Monsaraz nos ofereceu um almoço alentejano, com a nossa ‘açorda’ tradicionalíssima fumegando o delicioso aroma dos poejos! Hora a hora, eu pude estudar a natureza magnificamente dotada desse filho de lavradores, que da lavoura trouxera para as letras o sabor rijo da província em que apareceu ao mundo. Não estranho, por isso, que o conde de Monsaraz se nos apresente como um caso literário digno de particular atenção. Em geral os poetas, à maneira que o coração se lhes cansa e a plenitude da seiva os vai desertando, ou emudecem prudentemente, ou, senhores de todos os recursos da técnica, limitam-se apenas a pequenas virtuosidades artísticas, em que se satisfaçam as veleidades do seu orgulho estético. No conde de Monsaraz verifica-se o contrário, sem receio de errarmos. É no fim da existência que ele se liberta das imposições canónicas do seu parnasianismo exigente e nos deixa na Musa Alentejana, não o testamento de uma sensibilidade, mas um hino de força, que é bem o pregão de um forte temperamento na posse de si mesmo. É onde se revela a intervenção dos elementos subconscientes de que os outros poetas da sua roda não dispunham e que é o segredo espantoso da facilidade lírica do conde de Monsaraz.
Nenhum poeta português se aproximou tanto das preferências literárias da atual geração como o autor ilustre de ‘A cruz do trovisco’ e da ‘Tragédia rústica’. O conde de Monsaraz, num avanço extraordinário sobre os seus processos e sobre a sua época, realizou em Portugal uma poderosa demonstração do que em arte pode ser o regionalismo. É um exemplo quase único de amplitude de espírito e de penetração lírica!
Eu sei! Dos mistérios da sua hereditariedade falaram os avós agarrados secularmente à gleba. E de tanto naturalismo instintivo saiu, como flor de maravilha, a nova Primavera do Poeta. De certo modo, o seu aprumo parnasiano adoçara-se sempre pelo lirismo húmido de uma galantaria bem formada. Há nas Páginas soltas o trecho, ‘Um pôr-do-sol’, que marca talvez o ponto de partida do conde de Monsaraz para a fase definitiva da sua obra. Aí se misturam as duas tendências. E como que simbolicamente, as janelas de um boudoir requintado, o boudoir de Clarinha, rasgam-se sobre um fundo campesino, em que se «Destacam medas de palha, / Onde, imóveis e tristonhas, / Vão meditar as cegonhas / Nas coisas da criação».
A saudade dos seus, a lembrança do passado distante, foi a varinha de condão que fez rebentar a oculta fonte de Juvência. Desde esse instante de milagre, o conde de Monsaraz sentiu-se em acordo com as predileções mais vivas da sua alma. A sua voz ganhara o acento inspirado das vozes iluminadas. E à sombra das árvores altas da velha quinta familiar, debaixo do olhar amorável de Nossa Senhora das Vidigueiras, o Poeta curvou-se às revelações do Sangue e da Terra, em busca do verdadeiro sentido da imortalidade.
Renan escreveu um dia dos seus antepassados que eles tinham vivido durante centenas de anos uma vida obscura, fazendo economias de pensamentos e de sensações, de cujo capital amontoado ele se sentia o único herdeiro. Essa economia ancestral também aflorou na personalidade do conde de Monsaraz. É-me grato a mim, e em crítica rigorosamente exacta, explicar o indivíduo pelos seus antecedentes. A dinastia agrícola, de que o conde de Monsaraz derivou, é quanto me basta para achar a compreensão perfeita da sua individualidade.
Têm raízes profundas os Papanças. São de uma linhagem de «homens-bons», que já no século XVIII se assentavam em vereação no cume arrogante de Monsaraz. Os arquivos públicos guardam a habilitação de José Mendes Papança, em Abril de 1779, para cavaleiro professo da Ordem de Cristo.[1] José Mendes Papança – diz o juiz da inquirição – é filho de legítimo matrimónio de Manuel Mendes Papança e de Antónia Godinha, todos naturais da freguesia da Nossa Senhora da Caridade, termo da vila de Monsaraz... neto paterno de Manuel Mendes e Maria Marques... materno de Domingues Alves e de Margarida Braz.» E continua o documento na sua parte mais expressiva: «que o pretendente é atualmente vereador naquela vila, que se trata à lei da Nobreza por ser nobre por seus pais e avós que foram lavradores abastados fabricando suas Herdades com muitos Criados e Escravos e que seu avô materno fora professo na Ordem de Cristo, todos conhecidos por nobres sem exercício mecânico e que o pretendente tem todos os requisitos de nobreza e os mais que determina o Definitório».[2]
Viver à ‘lei da nobreza’ era ser-se ‘autoridade social’, era servir-se, com mais encargos do que direitos, o bem-comum. Ricos, os Papanças aceitavam com diligência e zelo as responsabilidades públicas da sua fortuna. Perdeu o tempo presente a noção destes valores morais. Não a perco eu, porque um grande homem é o fruto merecido pelos seus Maiores. «Quando uma família viveu um longo passado na ordem e no dever – comenta Edmond Picard acerca de Gustave Le Bon –, surge por vezes um ser superior que é como que a flor ou o fruto da árvore familiar.» O conde de Monsaraz foi a recompensa obtida pelas virtudes de seus avós. «Vós conhecereis a árvore pelos frutos», ensinam os Evangelhos. Não deram de si melhor prova aqueles lavradores alentejanos, que tanto se sublimaram nas excelências do seu sangue, defendendo a terra que lavravam, já com o recuado Domingos Álvares, cavaleiro de Cristo, certamente por feitos próprios na fronteira em maré aziaga de invasão, já mais perto, com Joaquim Romão Mendes Papança, procurador de Monsaraz nas cortes de 28, clamando o voto de seu concelho na lealdade ao Rei e na obediência à Fé. Quem assim tirava da charrua uma espada, para a mudar em relha fecunda sempre que o perigo passasse, tornava-se digno de ser glorificado perante Deus e perante os homens por alguém da sua carne. De pé, ante a assembleia dos Manes, o conde de Monsaraz não se sentiria envergonhado por não haver seguido o sulco aberto na herdade pelo esforço centenário dos seus. Ele espiritualizou esse esforço. E, comunicando-lhe a alma da sua alma, deu-lhe a expressão das coisas eternamente moças!
[1] Torre do Tombo, Habilitações da Ordem de Cristo.
[2] A esta família Mendes Papança pertência a baronesa de Santo Amaro, depois no Brasil marquesa do mesmo título, D. Maria Benedita Papança de Almeida, por seu marido, o 1.º barão e 1.º marquês de Santo Amaro, José Egídio Álvares de Almeida, secretário de D. João VI e embaixador do Império a Londres e Paris.
Não consideremos o conde de Monsaraz debaixo do puro ponto de vista literário. É que não alcançamos a compreensão humana da sua obra, se a não olharmos através de um critério mais profundo. Havia no conde de Monsaraz prodigiosos recursos de emoção. Se os não possuíra, decerto se quedaria eternamente na imobilidade impecável da rima parnasiana, repetindo os temas doirados das receções na Embaixada e dos serenins em Palácio. Não aconteceu assim, como no-lo mostra a Musa Alentejana, como em breve no-lo mostrará a Lira de Outono, livro póstumo ainda inédito.
A razão é a mais simples das razões! No conde de Monsaraz existia uma realidade subconsciente, muito mais rica e muito mais criadora que os cânones cerrados da sua primeira fase artística. Era a comoção bucólica da terra, que o enchia das visões amoráveis da sua província natal, e que representou para o temperamento poético do conde de Monsaraz essa extraordinária eloquência lírica, de que saíram ‘As cegonhas’ e ‘As mondadeiras’, e que não o deixou nunca envelhecer.
O conde de Monsaraz, ao conformar-se literariamente, participara das influências de Leconte de Lisle. É de uso enfileirá-lo entre nós no reduzido grupo que, com Cesário Verde e Gonçalves Crespo à frente, introduziu em Portugal os processos concretos do grande mestre dos Poèmes barbares. Dentro dos limites convenientes, como mais tarde sucedeu com as inovações bizarras de Eugénio de Castro, não é lícito duvidar-se da ação salutar de semelhante corrente no arrasado sistema nervoso das pobrezinhas das nossas letras. Nós vínhamos então pela altura das quermesses idílicas do Ultrarromantismo, numa depravação vexatória do bom-senso e do bom-gosto. O Lugar-Comum, assento na Câmara-Alta, com carta de Conselho fazia as suas jornadas de triunfo. De Coimbra, cheios de hegelianismos confusos, uns rapazes atrevidos tinham já bradado não sei que irreverências famosas. A um exagero opunha-se outro exagero. Porque se da apelidada ‘escola coimbrã’ o nome de Antero se destaca para a primeira plana como uma das mais raras organizações com que a mentalidade portuguesa se enobrece, também é verdade que, pela via de Teófilo e de Junqueiro, penetrava na inteligência indígena o arrevesado e já tão provado filosofismo, de que proximamente resulta a nossa crise atual.
De passagem é-me agradável assinalar aqui a formação germânica do pensamento de Teófilo Braga, mas no que na Germânia se encontra de pior e de mais estragado! E se nos recordarmos agora que os verbalismos tonitruantes de Guerra Junqueiro emudeceram para nunca mais se ouvirem, desde que o insigne descendente de tanto marrano converso não achou em Victor Hugo mais nada que valesse a pena descaminhar aos direitos, nós reconhecemos, sem parcialidades de partido, que as consequências sociais da dissidência de Coimbra se resolveram em causas de absoluta desnacionalização para Portugal.
Por isso, menos importante e mais modesto, o movimento inspirado pelo parnasianismo francês torna-se-nos logo de começo simpático, tanto pela maneira aristocrática como se desviava das exaltações rubras da barricada, já em progresso na poesia do tempo, como pela espécie de higiene que iria desenvolver na natureza dulçorosa do lirismo em sucesso nos dois ou três cenáculos da época. Ao Macedo Papança das Crepusculares, ao Cesário Verde das equilibradas melancolias «de um Ocidental e ao Gonçalves Crespo dos quadradinhos estilizados e do detalhe precioso, nós teremos que agradecer um outro cuidado no arranjo da estrofe e um maior escrúpulo na estesia do vocábulo. Trouxeram-nos ritmos novos e novas imagens. Como ao depois na desinfeção violenta dos Oaristos e das Horas, abriram-se para nós janelas imprevistas e imprevistos foram muitos dos motivos literários que essa tendência chamou para a claridade.
É certo que, no sentido superior da palavra, Leconte de Lisle é mais um escritor de versos que propriamente um poeta. A ausência de fontes de vida interior na sua poesia faz que a reputemos como uma admirável criação mental, e não como um borbulhão espontâneo, em que as vozes secretas do espírito prevaleçam iluminadamente sobre os conceitos cristalizados da inteligência. A poesia, quando é poesia, tira as mais mergulhadas das suas raízes de um fundo de subconsciência, sendo assim mais dinâmica do que estática, mais vibração do que definição. Ora a arte de Parnaso, porque é arte e não poesia, é bem, à maneira clássica, unicamente estática. Parte da impressão periférica das coisas, não lhes penetra a sua força íntima. Entende-se, pois, porque o Parnasianismo teria de ser não um fim, mas um meio; não uma síntese, mas um processo. Tanto Leconte de Lisle, como Herédia, seu discípulo, tentaram, bem o sei, uma como que interpretação cíclica da humanidade. Porém, o seu intento segmentou-se em aspetos episódicos, a que faltava um largo sopro inspirado, que lhes imprimisse a necessária unidade.
Menores em relação ao prestígio justíssimo dos seus predecessores franceses, os nossos parnasianos, como parnasianos, pouco produziram, e se mais produzissem, não se fariam senão repetir. É esse o perigo da arte formal, brotada apenas de meras sugestões cerebrais. Cesário Verde, a viver, não iria além do Livro de Cesário. Gonçalves Crespo desdobrar-se-ia monotonamente em miniaturas e em noturnos, se aos seus dois volumes mais outros se tivessem juntado. Caracteriza-se talvez pela ausência de um sentido elemento de ordem subjetiva a diminuta produção de quase todos os poetas filiados no Parnaso. Cesário encontrou ainda a sua doença. No entanto, era um sem-paisagem, aperreado na asfixia geométrica da Baixa e comovendo-se mediocremente, com a preocupação de fixar atitudes, diante da natureza pobre dos arrabaldes. Eu creio assinalar uma circunstância importante, logo que recorde, com as origens citadinas de Cesário, a proveniência exótica da maioria dos parnasianos mais aclamados. Já não falo em Gonçalves Crespo, cuja naturalidade brasileira ninguém ignora. Transpondo-me a França, recordo Leconte de Lisle, nascido na Ilha Borbon, recordo Herédia, de boa proveniência cubana. A circunstância não é para desdenhar, se concedermos à poesia uma génese exclusivamente emotiva. A abstenção do sentimento da Terra e dos Mortos, ao contacto de horizontes e de ambiências que psiquicamente lhes seriam, senão hostis, pelo menos indiferentes, provocaria nesses poetas a insensibilidade afetiva, em que se baseia todo o segredo do seu vigor de análise e a rara energia do seu poder descritivo.
Parnasiano na correção exterior, o conde de Monsaraz já não padecia da mesma deficiência. Tinha Mortos e tinha Paisagem. De aí lhe veio logo no Crepusculares uma acentuada modalidade lírica que, afirmando-se mais a mais em outras páginas subsequentes, lhe valeu de alguém, a quem me escapa o nome, a designação galante de ‘Musset português’.
Eu não procuro instruir aqui o ensaio crítico que tanto me merecia a memória sempre querida do conde de Monsaraz. Desejo, todavia, fixar certas linhas interessantes da sua fisionomia literária, até hoje credora de mais significativas homenagens do que as costumadas frases de ocasião, com que a banalidade dos pretensiosos se mete a pontificar em dias de capa-de-asperges! Eis porque saliento o singular valor que para mim assume o facto de ser o conde de Monsaraz um enraizado com Mortos e com Paisagem.
Conheci de perto o conde de Monsaraz durante os anos em que andou tirando a sua ‘segunda formatura’, como ele próprio dizia. A ‘segunda formatura’ do conde de Monsaraz era a formatura do Alberto. Ao longo desse período, em Coimbra, na casa, já agora célebre, da Rua dos Militares, não houve ninguém que possuísse merecimento, que ali não fosse receber o estímulo generoso do poeta. O conde de Monsaraz foi um grande perdulário! Dispersou em bondade os largos tesouros do seu espírito gentilíssimo, fazendo da sua vida a mais extraordinária obra de emoção que é possível imaginar-se. Remoçava connosco. E se, puxando dos seus papéis, nos lia alguma poesia nova, li-a sempre com o receio da velhice.
«Mas, francamente, não me enganem!» E contava-nos então a história triste de um poeta consagrado do seu tempo que, de uma vez, o convidou a ir ouvir-lhe a leitura do poema em que trabalhava. A criatura declinava já sensivelmente, mais do que nunca falto de talento, que jamais tivera. Contudo, a fama guindara-o bem alto, quando cantava a cigarra de Anacreonte na olaia do velho Castilho. Rapaz, o conde de Monsaraz, ainda simplesmente Macedo Papança, escutou-o com caridade e com caridade o aplaudiu depois. E sempre que as palavras da nossa admiração o festejavam agora, o conde de Monsaraz acrescentava inalteravelmente: «Não me estarão vocês fazendo o mesmo que eu fiz ao outro?»
Não me esquecerá a mim a manhã de Inverno em que o conde de Monsaraz nos ofereceu um almoço alentejano, com a nossa ‘açorda’ tradicionalíssima fumegando o delicioso aroma dos poejos! Hora a hora, eu pude estudar a natureza magnificamente dotada desse filho de lavradores, que da lavoura trouxera para as letras o sabor rijo da província em que apareceu ao mundo. Não estranho, por isso, que o conde de Monsaraz se nos apresente como um caso literário digno de particular atenção. Em geral os poetas, à maneira que o coração se lhes cansa e a plenitude da seiva os vai desertando, ou emudecem prudentemente, ou, senhores de todos os recursos da técnica, limitam-se apenas a pequenas virtuosidades artísticas, em que se satisfaçam as veleidades do seu orgulho estético. No conde de Monsaraz verifica-se o contrário, sem receio de errarmos. É no fim da existência que ele se liberta das imposições canónicas do seu parnasianismo exigente e nos deixa na Musa Alentejana, não o testamento de uma sensibilidade, mas um hino de força, que é bem o pregão de um forte temperamento na posse de si mesmo. É onde se revela a intervenção dos elementos subconscientes de que os outros poetas da sua roda não dispunham e que é o segredo espantoso da facilidade lírica do conde de Monsaraz.
Nenhum poeta português se aproximou tanto das preferências literárias da atual geração como o autor ilustre de ‘A cruz do trovisco’ e da ‘Tragédia rústica’. O conde de Monsaraz, num avanço extraordinário sobre os seus processos e sobre a sua época, realizou em Portugal uma poderosa demonstração do que em arte pode ser o regionalismo. É um exemplo quase único de amplitude de espírito e de penetração lírica!
Eu sei! Dos mistérios da sua hereditariedade falaram os avós agarrados secularmente à gleba. E de tanto naturalismo instintivo saiu, como flor de maravilha, a nova Primavera do Poeta. De certo modo, o seu aprumo parnasiano adoçara-se sempre pelo lirismo húmido de uma galantaria bem formada. Há nas Páginas soltas o trecho, ‘Um pôr-do-sol’, que marca talvez o ponto de partida do conde de Monsaraz para a fase definitiva da sua obra. Aí se misturam as duas tendências. E como que simbolicamente, as janelas de um boudoir requintado, o boudoir de Clarinha, rasgam-se sobre um fundo campesino, em que se «Destacam medas de palha, / Onde, imóveis e tristonhas, / Vão meditar as cegonhas / Nas coisas da criação».
A saudade dos seus, a lembrança do passado distante, foi a varinha de condão que fez rebentar a oculta fonte de Juvência. Desde esse instante de milagre, o conde de Monsaraz sentiu-se em acordo com as predileções mais vivas da sua alma. A sua voz ganhara o acento inspirado das vozes iluminadas. E à sombra das árvores altas da velha quinta familiar, debaixo do olhar amorável de Nossa Senhora das Vidigueiras, o Poeta curvou-se às revelações do Sangue e da Terra, em busca do verdadeiro sentido da imortalidade.
Renan escreveu um dia dos seus antepassados que eles tinham vivido durante centenas de anos uma vida obscura, fazendo economias de pensamentos e de sensações, de cujo capital amontoado ele se sentia o único herdeiro. Essa economia ancestral também aflorou na personalidade do conde de Monsaraz. É-me grato a mim, e em crítica rigorosamente exacta, explicar o indivíduo pelos seus antecedentes. A dinastia agrícola, de que o conde de Monsaraz derivou, é quanto me basta para achar a compreensão perfeita da sua individualidade.
Têm raízes profundas os Papanças. São de uma linhagem de «homens-bons», que já no século XVIII se assentavam em vereação no cume arrogante de Monsaraz. Os arquivos públicos guardam a habilitação de José Mendes Papança, em Abril de 1779, para cavaleiro professo da Ordem de Cristo.[1] José Mendes Papança – diz o juiz da inquirição – é filho de legítimo matrimónio de Manuel Mendes Papança e de Antónia Godinha, todos naturais da freguesia da Nossa Senhora da Caridade, termo da vila de Monsaraz... neto paterno de Manuel Mendes e Maria Marques... materno de Domingues Alves e de Margarida Braz.» E continua o documento na sua parte mais expressiva: «que o pretendente é atualmente vereador naquela vila, que se trata à lei da Nobreza por ser nobre por seus pais e avós que foram lavradores abastados fabricando suas Herdades com muitos Criados e Escravos e que seu avô materno fora professo na Ordem de Cristo, todos conhecidos por nobres sem exercício mecânico e que o pretendente tem todos os requisitos de nobreza e os mais que determina o Definitório».[2]
Viver à ‘lei da nobreza’ era ser-se ‘autoridade social’, era servir-se, com mais encargos do que direitos, o bem-comum. Ricos, os Papanças aceitavam com diligência e zelo as responsabilidades públicas da sua fortuna. Perdeu o tempo presente a noção destes valores morais. Não a perco eu, porque um grande homem é o fruto merecido pelos seus Maiores. «Quando uma família viveu um longo passado na ordem e no dever – comenta Edmond Picard acerca de Gustave Le Bon –, surge por vezes um ser superior que é como que a flor ou o fruto da árvore familiar.» O conde de Monsaraz foi a recompensa obtida pelas virtudes de seus avós. «Vós conhecereis a árvore pelos frutos», ensinam os Evangelhos. Não deram de si melhor prova aqueles lavradores alentejanos, que tanto se sublimaram nas excelências do seu sangue, defendendo a terra que lavravam, já com o recuado Domingos Álvares, cavaleiro de Cristo, certamente por feitos próprios na fronteira em maré aziaga de invasão, já mais perto, com Joaquim Romão Mendes Papança, procurador de Monsaraz nas cortes de 28, clamando o voto de seu concelho na lealdade ao Rei e na obediência à Fé. Quem assim tirava da charrua uma espada, para a mudar em relha fecunda sempre que o perigo passasse, tornava-se digno de ser glorificado perante Deus e perante os homens por alguém da sua carne. De pé, ante a assembleia dos Manes, o conde de Monsaraz não se sentiria envergonhado por não haver seguido o sulco aberto na herdade pelo esforço centenário dos seus. Ele espiritualizou esse esforço. E, comunicando-lhe a alma da sua alma, deu-lhe a expressão das coisas eternamente moças!
[1] Torre do Tombo, Habilitações da Ordem de Cristo.
[2] A esta família Mendes Papança pertência a baronesa de Santo Amaro, depois no Brasil marquesa do mesmo título, D. Maria Benedita Papança de Almeida, por seu marido, o 1.º barão e 1.º marquês de Santo Amaro, José Egídio Álvares de Almeida, secretário de D. João VI e embaixador do Império a Londres e Paris.