O espírito universitário
António Sardinha
Uma análise crítica do chamado “espírito universitário”, especialmente o espírito jurídico, argumentando que este exerce uma influência negativa na sociedade portuguesa. Sardinha distingue a Universidade como instituição — que deveria formar a cultura nacional — da mentalidade que se apoderou dela, marcada pelo formalismo jurídico e pelo método dedutivo dos juristas. O ensino do Direito, diferente das outras áreas mais técnicas, tem um impacto social profundo e duradouro, tendendo os juristas a impor modelos abstratos à sociedade, desconsiderando a complexidade histórica e a social real. Isso contribuiu para instabilidades políticas e para a decadência de Portugal, especialmente devido à influência do romanismo e à centralização estatal. Sardinha critica ainda o excesso de leis, o constitucionalismo improvisado e a subserviência dos juristas à letra da lei, de que resultam interpretações extravagantes e uma postura quase sacerdotal diante de conceitos como Estado e soberania. Conclui defendendo a necessidade de reformar a Universidade para que ela realmente contribua para a formação de uma inteligência nacional, combatendo o referido espírito universitário.
O espírito universitário
Eu não compreendo como haja ainda alguém neste país que considere o espírito universitário como um elemento seguro de educação nacional. Confunde-se a Universidade – organização destinada a preparar a cultura geral da Nação, com a mentalidade que abusivamente se apossou dela e abusivamente a pretende representar. Quando falo do espírito universitário, refiro-me àquele que marca com mais vigor a influência dessa alma parens, que devia ser uma Universidade, na acidentada vida pública da nossa pobre terra. Compreende-se desde já que seja o espírito jurídico, porquanto, dado o carácter experimental e imediato do ensino professado nas outras Faculdades, a ação social que dele resulta é logo corrigida e limitada pela sua natureza estritamente técnica e profissional.
Do ensino do Direito é que nós nos devemos recear, porque ao ensino do Direito, através da mania legislativa e da formação kantista dos seus cultores, é que a Europa agradece a instabilidade revolucionária do último século. Nós vemos, realmente, os juristas participarem de todas as tentativas de inovação política e económica, serem eles os mais decididos apóstolos da ilusória regeneração de que a Democracia se pretende sempre acompanhar. Enganam-se os que supõem os juristas inclinados às verdades tradicionais.
As verdades tradicionais são factos nascidos de uma longa elaboração histórica, que não se comporta nas normas rígidas em que o jurisconsulto procura por via de regra enfeixar e simplificar a marcha complexíssima da sociedade. A sociedade é para o jurista um tipo único e abstrato. O jurista, arvorado em legislador, tende por isso a realizar esse tipo, que a Democracia lhe oferece como nenhum outro sistema de filosofia política. Eis porque o Direito, em vez de exprimir a sociedade, passa assim despoticamente a determiná-la. É o que nos demonstrará um relance rápido pelo desenvolvimento social da Europa.
A Europa moderna constitui-se baseada na família e na propriedade, ao contacto maternal da Igreja. Com o Costume, interpretando as necessidades da existência em comum, se deu origem ao direito foraleiro tão fecundo e tão rico na sua amplitude e na sua maleabilidade. Aparecem, porém, os Legistas a desenterrar das ruínas do mundo clássico o formalismo já cadaverizado da jurisprudência romana. O divórcio entre a sociedade constituída e o abuso cesarista do Estado começa então. As realidades municipais e corporativas, surgidas da estrutura comunitária da Idade Média, desnaturam-se pela excessiva concentração das atribuições do Estado. Os Juristas, sobrepondo-se às realidades, preparam de longe os alvores da Revolução, que não foi senão um episódio da grande revolução iniciada no século XIII pelo triunfo perturbador do romanismo.
O direito romano só conhecia o Indivíduo e o Estado. Correspondia a uma fase social já ultrapassada, que à viva força se impôs a uma sociedade de condição diversa e dirigida já por outros ditames. Debalde a Igreja protestou pela voz dos Canonistas contra as cavilações dos Jurisconsultos. A Inglaterra, se escapou à ruptura violenta da sua continuidade orgânica, deveu-o ao belo instinto de defesa que a colocou em guarda contra os Legistas. A ideia abstrata da coletividade, a sua construção racionalista, predominou pelo contrário no continente europeu. Daí veio o absolutismo dos Reis, que, encarnando-se no Estado-Pessoa, abre a porta aos delírios da Revolução que consagram o mesmo abuso do Estado, tornado agora irresponsável pela irresponsabilidade natural dos regimes de sufrágio.
No romanismo se filia uma das causas mais poderosas da decadência de Portugal. A unificação absolutista da Renascença é entre nós possível pela influência larga dos nossos jurisconsultos. Eles predominam desaforadamente na direção das coisas públicas, a ponto de mais de uma vez os povos em Cortes pedirem ao Rei o encerramento dos Estudos Gerais. Durante o nosso século XVII são eles o maior entrave ao aproveitamento das belas energias que a guerra da Aclamação suscitara nesse magnífico despertar da alma secular da Raça. E mais tarde, quando chegue a hora da política geométrica e ferozmente unilateralista do marquês de Pombal, quem é que nós encontramos a sustentar-lhe os caprichos da sua ditadura nefasta senão os legistas e sempre os legistas?
Depois, com o importar das modas da França, escusado é salientar a preponderância dos juristas, com a Universidade à frente, na desnacionalização do país, revolvido de baixo para cima no furor sistemático de tudo se reformar, de tudo se demolir. Plurimae leges, pessima respublica – dizia a boa sapiência antiga. E o que foram os juristas para Portugal noventa anos de mentira constitucionalista e de contínua improvisação legislativa o estão bradando aos céus de uma maneira que a ninguém é lícito desconhecer.
Filho da Universidade, levei cinco anos a desempoeirar-me de todas as ideologias e de todos os Kantismos com que durante outros cinco anos a Universidade me enevoara o cérebro. Filhos da Universidade, e até seus professores, são em boa parte aqueles que têm arrastado Portugal à situação desgraçada em que nós o vemos, quase tão próximo da morte. Não sei de eloquência maior, na sua singeleza, do que este espectáculo ruinoso, para que continuemos a acreditar ainda no nacionalismo do espírito universitário. O jurista dispõe de uma mentalidade excessivamente especializada, agindo sempre pelo raciocínio e não utilizando nunca a necessária correção da história. O seu método, sendo um método dedutivo, e não indutivo, condu-lo forçosamente a encarar o Direito como anterior à sociedade. Daqui resulta o natural apoio que o espírito jurídico dispensa à democracia que lhe fornece – insisto, racionalmente – instituições mais conformes com esse tipo abstrato de sociedade que tão querido lhe costuma ser.
Com que razão Cheysson, discípulo de Le Play, escreveu um dia que os juristas sofriam a superstição do direito existente! A superstição do direito existente obriga os juristas a uma subalternização da inteligência à letra parada dos textos, onde, como Topsius nas suas folhas longínquas da Síria, o comentário não deixa nunca de revolver as maiores extravagâncias de interpretação. Sabe-se que uma faculdade levada ao exagero se deforma e mutila, tornando-se depressa em valor negativo. É o que sucede com os juristas, quando, mentalidades especiosas e enclaustradas numa floresta densa de subjetivismos, nos surgem com imponência sacerdotal, «ares de convívio diário com os deuses, a discorrer da constituição do Estado» ou do conceito da soberania. Ora aqui está o ponto fraco do ensino do Direito, por onde ele se transforma num agente de profunda depreciação intelectual.
No seu tempo, Varrão contara duzentas e oitenta e oito teorias sobre o bem supremo. No nosso tempo não sei quantas haja em direito político sobre matéria constitucional. Com que vigor Augusto Comte não castiga por esse pedantocratismo impertinente o que ele chama o «mandarinato universitário»!
A construção do Estado! O conceito da soberania! Deixando ao capricho da opinião individual o exame de factos, que só como factos se podem examinar, sucede dentro de pouco que a nossa personalidade, acidental e instável nas suas manifestações, domina e altera anarquicamente as regras eternas da colectividade. É no que conclui o estudo do Direito, não como meio mas como fim.
O parlamentarismo é disso a prova evidente, o parlamentarismo que os juristas aceitam com respeito dogmático, na sua submissão a quantas teias de aranha dimanaram da ideologia desgrenhada dos Imortais Princípios. Se foram os professores de Direito da Alemanha, com Weisshaupt à frente, quem facilitou o advento da Revolução pela propaganda do Iluminismo maçónico do século XVIII, não nos admiramos, pois, que os seus representantes mentais lhes não rejeitassem a herança!
Eis porque é necessário defender a Universidade, organização destinada a preparar a cultura geral do país, contra o espírito de desnacionalização que ali se alberga. Levantamos hoje o nosso grito, iniciando um combate que será um dos mais afervorados no nosso desejo de servir a Pátria. É preciso que haja uma inteligência nacional – e essa inteligência não existirá enquanto não existirem mestres capazes de a formarem e dirigirem. Porque outro não tem sido o nosso mal, é que nós nos achamos dispostos a não permitir que ele se continue encobrindo com manto de seda.
Viva a Universidade, mas guerra ao espírito universitário!
In Na Feira dos Mitos - Ideias e Factos, 1926