ESTUDOS PORTUGUESES
  • PORTugAL
    • 1129 - Palavra-Sinal "Portugal"
  • Democracia
    • Oligarquia e Corrupção
    • Outra Democracia
    • Município
  • Os Mestres
    • Santo Isidoro de Sevilha, c. 560-636
    • São Tomás de Aquino, 1224-1274
    • Francisco Suárez, 1548-1617
    • João Pinto Ribeiro, 1590-1649
    • Francisco Velasco de Gouveia, 1580-1659
    • Visconde de Santarém, 1791-1856
    • Almeida Garrett, 1799-1854
    • Alexandre Herculano, 1810-1877
    • Martins Sarmento, 1833-1899
    • Joaquim Nery Delgado, 1835-1908
    • Alberto Sampaio, 1841-1908
    • Eça de Queirós, 1845-1900
    • Ferreira Deusdado, 1858-1918
    • Ramalho Ortigão, 1836-1915
    • Moniz Barreto, 1863-1896
    • Rocha Peixoto, 1866-1909
    • António Lino Neto, 1873-1934
  • Integralismo Lusitano
    • Publicações aconselhadas, 1914-16
    • Integralismo Lusitano - Periódicos e Editoras
    • Afonso Lopes Vieira, 1878-1946
    • Adriano Xavier Cordeiro , 1880-1919
    • Hipólito Raposo, 1885-1953
    • Luís de Almeida Braga, 1886-1970
    • António Sardinha, 1887-1925 >
      • Poesia
      • Santo António
      • Os Jesuítas e as Letras
      • 31 de Janeiro
      • 24 de Julho
      • A retirada para o Brasil
      • El-Rei D. Miguel
      • A 'Vila-Francada' [ 1823 ]
      • Um romântico esquecido [António Ribeiro Saraiva]
      • Conde de Monsaraz
      • Super flumina babylonis
      • A tomada da Bastilha
      • Pátria e Monarquia
      • D. João IV
      • D. João V
      • Alcácer-Quibir
      • A "Lenda Negra" [ acerca dos Jesuítas]
      • O espírito universitário [ espírito jurídico ]
      • As quatro onças de oiro
      • O problema da vinculação
      • Mouzinho da Silveira
      • A energia nacional
      • A voz dos bispos
      • O 'filósofo' Leonardo
      • O génio peninsular
      • O 'oitavo sacramento'
      • O Sul contra o Norte
      • Consanguinidade e degenerescência
      • O velho Teófilo
      • Sobre uma campa
    • Alberto Monsaraz, 1889-1959
    • Domingos de Gusmão Araújo, 1889-1959
    • Francisco Rolão Preto, 1893-1977
    • José Pequito Rebelo, 1893-1983
    • Joaquim Mendes Guerra, 1893-1953
    • Fernando Amado, 1899-1968
    • Carlos Proença de Figueiredo, 1901-1990
    • Luís Pastor de Macedo, 1901-1971
    • Leão Ramos Ascensão, 1903-1980
    • António Jacinto Ferreira, 1906-1995
    • José de Campos e Sousa, 1907-1980
    • Guilherme de Faria, 1907-1929
    • Manuel de Bettencourt e Galvão, 1908
    • Mário Saraiva, 1910-1998
    • Afonso Botelho, 1919-1996
    • Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003
    • Gonçalo Ribeiro Telles, 1922-2020
    • Rivera Martins de Carvalho, 1926-1964
    • Teresa Martins de Carvalho, 1928-2017
  • Índice
  • Cronologia
  • Quem somos
  • Actualizações
  • PORTugAL
    • 1129 - Palavra-Sinal "Portugal"
  • Democracia
    • Oligarquia e Corrupção
    • Outra Democracia
    • Município
  • Os Mestres
    • Santo Isidoro de Sevilha, c. 560-636
    • São Tomás de Aquino, 1224-1274
    • Francisco Suárez, 1548-1617
    • João Pinto Ribeiro, 1590-1649
    • Francisco Velasco de Gouveia, 1580-1659
    • Visconde de Santarém, 1791-1856
    • Almeida Garrett, 1799-1854
    • Alexandre Herculano, 1810-1877
    • Martins Sarmento, 1833-1899
    • Joaquim Nery Delgado, 1835-1908
    • Alberto Sampaio, 1841-1908
    • Eça de Queirós, 1845-1900
    • Ferreira Deusdado, 1858-1918
    • Ramalho Ortigão, 1836-1915
    • Moniz Barreto, 1863-1896
    • Rocha Peixoto, 1866-1909
    • António Lino Neto, 1873-1934
  • Integralismo Lusitano
    • Publicações aconselhadas, 1914-16
    • Integralismo Lusitano - Periódicos e Editoras
    • Afonso Lopes Vieira, 1878-1946
    • Adriano Xavier Cordeiro , 1880-1919
    • Hipólito Raposo, 1885-1953
    • Luís de Almeida Braga, 1886-1970
    • António Sardinha, 1887-1925 >
      • Poesia
      • Santo António
      • Os Jesuítas e as Letras
      • 31 de Janeiro
      • 24 de Julho
      • A retirada para o Brasil
      • El-Rei D. Miguel
      • A 'Vila-Francada' [ 1823 ]
      • Um romântico esquecido [António Ribeiro Saraiva]
      • Conde de Monsaraz
      • Super flumina babylonis
      • A tomada da Bastilha
      • Pátria e Monarquia
      • D. João IV
      • D. João V
      • Alcácer-Quibir
      • A "Lenda Negra" [ acerca dos Jesuítas]
      • O espírito universitário [ espírito jurídico ]
      • As quatro onças de oiro
      • O problema da vinculação
      • Mouzinho da Silveira
      • A energia nacional
      • A voz dos bispos
      • O 'filósofo' Leonardo
      • O génio peninsular
      • O 'oitavo sacramento'
      • O Sul contra o Norte
      • Consanguinidade e degenerescência
      • O velho Teófilo
      • Sobre uma campa
    • Alberto Monsaraz, 1889-1959
    • Domingos de Gusmão Araújo, 1889-1959
    • Francisco Rolão Preto, 1893-1977
    • José Pequito Rebelo, 1893-1983
    • Joaquim Mendes Guerra, 1893-1953
    • Fernando Amado, 1899-1968
    • Carlos Proença de Figueiredo, 1901-1990
    • Luís Pastor de Macedo, 1901-1971
    • Leão Ramos Ascensão, 1903-1980
    • António Jacinto Ferreira, 1906-1995
    • José de Campos e Sousa, 1907-1980
    • Guilherme de Faria, 1907-1929
    • Manuel de Bettencourt e Galvão, 1908
    • Mário Saraiva, 1910-1998
    • Afonso Botelho, 1919-1996
    • Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003
    • Gonçalo Ribeiro Telles, 1922-2020
    • Rivera Martins de Carvalho, 1926-1964
    • Teresa Martins de Carvalho, 1928-2017
  • Índice
  • Cronologia
  • Quem somos
  • Actualizações
Search by typing & pressing enter

YOUR CART

O génio peninsular

António Sardinha

RESUMO
António Sardinha expõe o conceito do ‘génio peninsular’, destacando a singularidade e riqueza cultural de Portugal em relação à Espanha. Analisa a influência do lirismo português na literatura europeia, a distinção de valores e caráter entre as duas nações, e como o espírito hispânico, tanto português quanto castelhano, moldou a civilização e o papel histórico da Península Ibérica. Salienta a necessidade de restaurar o patriotismo e a vocação apostólica das pátrias peninsulares para enfrentar os desafios contemporâneos.

  • O Conceito de ‘Génio Peninsular’ surge num momento em que as relações entre Portugal e Espanha atravessam uma fase decisiva. A reflexão é motivada pela celebração do 12 de Outubro [de 1492], data fixada como a do descobrimento da América por Colombo, que simboliza a comunhão espiritual entre as nações hispânicas, incluindo Portugal e o Brasil.  A ‘raça’ é aqui uma vez mais entendida por António Sardinha, não como um conceito étnico, mas como afinidade moral e civilizacional. Portugueses e brasileiros partilham, com os demais povos hispânicos, uma origem e um destino histórico comum.
  • O Conceito de Hispanidade e a Identidade Portuguesa. O termo ‘espanhol’ como designação exclusiva dos habitantes de Espanha é recente; historicamente, todos os povos da Península eram chamados de espanhóis. Garrett, em nota ao seu Camões, destaca que, antes da perda da independência portuguesa, a unidade peninsular era vista como natural, sendo a designação ‘Espanha’ um termo geográfico e não político. Luís de Camões, em “Os Lusíadas”, insere os portugueses na grandeza da Península, mostrando que a afirmação nacional se dava dentro de um quadro mais amplo, onde as diferentes nações conviviam e colaboravam.
  • A Unidade Hispânica: Supernacionalismo e Colaboração. A unidade hispânica era, para Camões, uma forma de supernacionalismo, cimentada na consciência coletiva da época dos Descobrimentos. A Península era composta por várias nações – aragoneses, navarros, galegos, castelhanos e portugueses – que, apesar das rivalidades, partilhavam valores, cultura e uma história comum. As guerras e alianças, frequentemente mediadas por casamentos dinásticos, reforçavam essa ligação e criavam uma rede de solidariedade e influência mútua, visível tanto nas ações militares quanto na produção literária e artística.
  • O Papel das Alianças Dinásticas e a Dimensão Civilizadora. As alianças matrimoniais entre casas reais peninsulares foram essenciais para a paz e prosperidade da região. Princesas portuguesas, como D. Catarina de Lencastre e Santa Teresa de Portugal, desempenharam papéis decisivos na conciliação entre Portugal e Castela. O período posterior às batalhas de Aljubarrota e Toro marca um século de colaboração diplomática e militar, durante o qual Portugal e Espanha partilharam a hegemonia no Mediterrâneo e nos oceanos, expandindo a influência peninsular pelo mundo.
  • A Expansão Universal do Génio Peninsular. A centúria de Quinhentos revela a colaboração espontânea das nacionalidades peninsulares em letras, armas e descobertas. O génio peninsular destaca-se pela sua vocação universal, apostólica e civilizadora, cuja expressão maior é a expansão do Cristianismo e a fundação de novas nacionalidades. Apesar da crítica dos enciclopedistas do século XVIII, a Península teve um papel central na construção da civilização ocidental, tanto no plano espiritual como no material.
  • O Hispanismo e a Latinidade. A Península Ibérica foi mediadora entre civilizações antigas e a Europa, transmitindo saberes e valores. A presença de figuras como Séneca, Trajano e Teodósio ilustra a influência hispânica nos destinos da Latinidade. A palavra “saudade”, única na língua portuguesa, é citada como expressão máxima da alma peninsular, marcando a diferença subtil mas profunda entre portugueses e espanhóis.
  • A Diversidade das Nações Peninsulares. Cada nacionalidade da Península assumiu um papel distinto: Castela liderou a luta interna contra o Islão, Aragão e Catalunha projetaram-se no Mediterrâneo, enquanto Portugal se dedicou às descobertas marítimas. Esta diversidade serviu uma finalidade comum, com Castela representando a vocação terrestre e Portugal a marítima. A separação política entre ambos foi essencial para a concretização dos grandes feitos históricos.
  • O Reflexo do Hispanismo em Camões e na Literatura. Camões reconheceu, nos “Lusíadas”, tanto a diversidade como a unidade das nações peninsulares. A obra é vista como o testamento de uma Espanha entendida como comunidade espiritual, não como entidade nacionalista. Com o advento do individualismo renascentista, o espírito hispânico foi obscurecido, mas manteve-se presente na defesa da Cristandade e na afirmação do Catolicismo como elemento civilizador.
  • A Monarquia Dualista e a Autonomia Portuguesa. O domínio filipino não significou a perda da independência portuguesa, mas sim uma monarquia dualista, com respeito pelas instituições e costumes portugueses. O centralismo castelhano, no entanto, resultou na reação portuguesa e na restauração da independência, marcando o início do declínio tanto de Espanha como de Portugal no concerto europeu. Durante o domínio filipino, a sensibilidade portuguesa influenciou profundamente a cultura castelhana, refletindo-se na literatura e nas artes.
  • A Influência Portuguesa na Cultura Peninsular. A literatura e as artes portuguesas tiveram grande impacto em Castela, especialmente através de figuras como Jorge de Montemor. A poesia lírica galaico-portuguesa serviu de modelo aos poetas castelhanos. A sensibilidade portuguesa, marcada pelo lirismo e pela saudade, tornou-se um traço identificador da Península e influenciou movimentos literários europeus, como o bucolismo e o pré-romantismo.
  • Caracterização do Génio Peninsular. Segundo Moniz Barreto, aos peninsulares coube a função histórica do heroísmo e da fé. Caracterizam-se pela energia da vontade, honra militar, paixão pela perfeição e religiosidade intensa, mas também por certa ausência de imaginação penetrante e curiosidade infatigável. O génio português distingue-se por maior capacidade de compreensão, sensibilidade mais delicada, lirismo profundo e uma criação épica de nobreza singular. Ainda que não constitua um génio totalmente à parte, estas qualidades conferem à literatura portuguesa um carácter próprio e uma intervenção relevante na cultura peninsular.
  • O Destino Universal e Apostólico do Génio Peninsular. A unidade profunda e a universalidade do génio peninsular manifestam-se na sua vocação apostólica: portugueses e espanhóis foram missionários, descobridores e fundadores de nacionalidades. O erro do absorcionismo destruiu o paralelismo político do século XVI, mas o espírito lírico português sobreviveu, influenciando a cultura europeia. O génio peninsular, sinónimo de Latinidade e função histórica do Catolicismo, é fonte de um imperialismo espiritual e civilizador, responsável por ampliar os horizontes da civilização.
  • Conclusão: Atualidade do Génio Peninsular. O texto conclui que, dispersos pelas margens do Atlântico, portugueses e espanhóis afirmaram um tipo humano e cultural inconfundível. Camões, ao chamar os portugueses de “gente fortíssima de Espanha”, reconhecia essa herança comum. Hoje, a América Latina reaviva a consciência do hispanismo, convocando as pátrias peninsulares a restaurar o antigo patriotismo moral e espiritual. A Península, outrora centro civilizacional, é novamente chamada a desempenhar um papel de liderança num mundo em crise, inspirada pelo legado dos seus grandes poetas e heróis.




​O GÉNIO PENINSULAR
​ 

Importa definir o que seja o ‘génio peninsular’ numa hora em que o problema das relações hispano-lusitanas parece atingir uma curva decisiva do seu caminho. Nada mais próprio para isso do que a comemoração do 12 de Outubro – data em que as naus de Colombo avistaram terra e que a Espanha de hoje, em comunhão com as nacionalidades americanas, suas filhas, recorda cheia de elevação e entusiasmo, celebrando a Fiesta de la Raza. Raça, evidentemente, num sentido de civilização e afinidade moral – e nunca num estreito significado étnico. Deste modo, nem Portugal nem o Brasil se devem reputar estranhos à grande assembleia dos povos hispânicos, de que o 12 de Outubro começou já a lançar os primeiros lineamentos espirituais.
​
Considerando assim a ‘raça’, como expressão de um determinado tipo histórico, nós, portugueses, tais como somos, somos tão hispânicos como os ‘espanhóis’, propriamente ditos. ‘Espanhol’, tomado como apelativo nacionalista, é uma criação política recente, não excedendo talvez no conceito geral dos Estados europeus mais que duzentos e tantos anos.

Com inspirada razão observa o nosso inspiradíssimo Garrett em nota ao seu Camões: «Nem uma só vez se achará em nossos escritores a palavra espanhol designando exclusivamente o habitante da Península não português. Enquanto Castela esteve separada de Aragão, e já muito depois de unida a Leão, etc., nós e as outras nações das Espanhas, Aragoneses, Granadiz, Castelhanos, Portugueses e todos, éramos, por estranhos e domésticos, comummente chamados ‘espanhóis’... A fatal perda da nossa independência política, depois da batalha de Alcácer-Quibir, deu o título de reis das Espanhas aos de Castela e Aragão, que o conservaram ainda depois da gloriosa restauração de 1640. Mas Espanhóis somos, e de Espanhóis nos devemos prezar todos os que habitamos esta Península.»

Não fazia Garrett senão recolher a ideia que da unidade hispânica se nos viera transmitindo desde sempre e que em Camões encontrou o seu definidor insuspeito. Espanha – ou melhor, ‘as Espanhas’ – valia então unicamente como vocábulo geográfico. Assim nos aparece em Camões, quando Baco, ao aludir aos portugueses no concílio dos Deuses, os designa (Lusíadas, Canto I, estrofe XXXI) como «Uma gente fortíssima de Espanha».

O conceito que Camões possuía de Espanha mostra-se-nos bem patente no Canto III do seu imortal poema. Concretiza ele: «Eis aqui se descobre a nobre Espanha, / Como cabeça ali da Europa toda». E logo acrescenta: «Com nações grandes se engrandece, / Cercadas com as ondas do Oceano, / Todas de tal nobreza, e tal valor, / Que qualquer delas cuida que é melhor.»

​Dentro deste quadro, a unidade hispânica se compreendia como uma espécie de super-nacionalismo, tão intimamente cimentado na consciência da gloriosa época de Quinhentos que Camões, cantando a plenitude da afirmação portuguesa, a incluía sem desdouro nem subalternização no molde físico e cultural que a Península representava perante o mundo, curvado ao prestígio das suas irradiações. Interessante é verificar ainda em Camões quais as «nações diferentes com que Espanha se engrandece»: «Tem o Tarragonês, que se fez claro, / Sujeitando Parténope inquieta, / O Navarro, as Astúrias que reparo / Já foram, contra a gente Maometa / Tem o Galego cauto, e o grande, e raro / Castelhano, a quem fez o seu Planeta / Restituidor de Espanha, e senhor dela, / Bétis, Leão, Granada com Castela.»

O mesmo pensamento se repete e desenvolve, ao referir-se Camões à invasão castelhana que precedeu a batalha de Aljubarrota. Aí nos surgem «Os Vândalos, na antiga valentia / Ainda confiados, se ajuntavam / Da cabeça de toda Andaluzia, / Que do Gualdalquivir as águas lavam.»

Têm também «Os que cortando vão co’o duro arado / Os campos Leoneses, cuja gente / C’os Mouros foi nas armas excelente.»

E não faltam nem os «sórdidos Galegos, duro bando», nem a «a gente Biscaínha, que carece de polidas razões», nem os de Guipúzcoa e das Astúrias, que «com minas de ferro se enobrece». Ao chocar bravio dos dois exércitos contrários, Camões assinala perfeitamente que não são espanhóis contra portugueses, mas sim castelhanos, e das suas estrofes se depreende que o próprio inimigo é menos estrangeiro e mais parente que os outros povos, demorando em Europa, mas para lá dos Pirenéus «A fera batalha se encruece» e por fim «A sublime bandeira Castelhana / Foi derribada aos pés da Lusitana».

Não se denuncia em nada aqui o ódio declamatório e convencional com que mais tarde Castela foi vituperada entre nós. Os embates das duas nações hispânicas Camões os encara quase como lutas de irmãos, terminando exemplarmente em família: «Destas, e outras vitórias longamente / Eram os Castelhanos oprimidos, / Quando a paz desejada já da gente / Deram os vencedores aos vencidos, / Depois que quis o Padre Omnipotente / Dar os Reis inimigos por maridos / As duas ilustríssimas Inglesas, / Gentis, formosas, ínclitas Princesas.»

O reconhecimento da importância das ligações dinásticas na formação da civilização peninsular, Camões a indicava numa estrofe que vale como um tratado político. «Les rélations de parenté, d’alliance et de cousinage entre des maisons que simbolisent d’autre parte d’éminentes rivalités d’intérêts nationaux représentaient un degré de civilisation et d’humanité qui est en partie abandonné» – escreve Charles Maurras. «C’était la fleur de leur pays d’origine que les reines portaient aux pays de leurs époux: les moeurs, les langues, les arts, les sciences, les lettres; la poésie, les industries courraient de cour en cour, haussées à leur point d’excellence, et il en résultait comme un aspect nouveau, moral, spirituel, de ce que la diplomatie appelait l’équilibre de notre Europe, au temps où il existait encore une Europe.»

Eis a teoria completa da influência do elemento feminino no desenho e tessitura da história peninsular. Se D. Catarina de Lencastre, irmã de nossa rainha D. Filipa, assentando-se no trono de Castela, facilita a paz entre portugueses e castelhanos, já antes acontecera o mesmo com outras princesas nossas, tal como Santa Teresa de Portugal e a «formosíssima Maria», para glória e pacificação da Península. A dinastia saída de Aljubarrota caracteriza-se especialmente pela prática dessa auspiciosa política matrimonial. Sucede até – nunca é demais repeti-lo! – que Isabel-a-Católica, filha de portugueses, descendia do Santo Condestabre e do Mestre de Avis, em grau igual àquele em que D. Afonso V, vencido por ela em Toro, descendia de D. João I de Castela. Donde o mostrar-se bem manifesta a natureza familiar das lutas internas da Península, que não errará muito quem as definir como verdadeiras ‘guerras-civis’.

Exactamente, na centúria de Quinhentos, quando se tornam mais estreitas as alianças de parentesco entre Portugal e Castela é que a Península atinge o maior esplendor da sua capacidade civilizadora. Salienta algures o malogrado crítico que foi Moniz Barreto: «Depois que em Aljubarrota e em Toro os portugueses e os castelhanos afirmaram reciprocamente a sua independência contra mútuas tentativas de invasão, iniciou-se na Península um período de inteligências diplomáticas que dura um século e corresponde em Portugal aos reinados de D. João II, D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, e em Espanha aos reinados de Fernando e Isabel, de Carlos V, de Filipe II.»

E Moniz Barreto acrescenta, detalhando com persuasão: «Durante este período, que é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares, a consciência da força própria suprime desconfianças e temores, e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois oceanos. É este pensamento que inspira os casamentos dinásticos e se traduz por auxílios militares, que conduz um infante de Portugal à barra de Tunes, que faz combater os cavaleiros espanhóis nos areais de Alcácer-Quibir, que encontrando intérpretes condignos nos grandes poetas da Península, enche de elogios magníficos do génio espanhol a epopeia das glórias portuguesas, que dita a Herrera a lamentação à morte do Rei desejado, que em pleno reinado de Filipe IV leva o maior vulto do teatro nacional espanhol a coroar com a auréola da poesia a memória do Príncipe constante. Se é um facto que se presta a reflexões que o período da aliança espanhola coincida com a época da maior prosperidade e de plena expansão do génio português.»

Inegavelmente, essa centúria de Quinhentos, tanto nas Letras como nas Armas, tanto no Mar como na Terra, demonstra a quanto subira a colaboração espontânea das duas nacionalidades peninsulares. Era ainda o fruto do proveitoso elemento humano que Camões entrevira, ao considerar as vantagens pacíficas da intervenção do parentesco na resolução dos agitados problemas da vida do Estado. Um forte e sábio paralelismo se impusera assim a Portugal e a Castela como regra de acção comum. Iniciara-se já a empresa formidável das Descobertas e, debaixo de um novo aspecto, dir-se-ia que o espírito da Cruzada ressurgia na Península. Se a civilização é essencialmente o Cristianismo, ninguém a dilatou e serviu como os povos naturais da antiga Hispânia! É o traço dominante da sua alma, o selo que lhes imprime grandeza e individualidade. Por esse prisma, o génio peninsular é universal como nenhum outro. A vocação apostólica constitui a sua determinante mais poderosa. E, pelo nosso amor ao Absoluto, é fácil de se abranger a razão porque o Cristianismo na Península se revela e radica, não só como confissão religiosa, mas, sobretudo, como uma íntima e veemente afirmação social.

Compreende-se já porque portugueses e castelhanos foram no mundo missionários e descobridores e como apenas eles se glorificam com o raro título de fundadores de nacionalidades! Ninguém ignora a lenda-negra que infama a Península como inútil para as conquistas superiores da humanidade. É uma calúnia do século XVIII, principalmente, da estreita e sectária mentalidade dos Enciclopedistas, que não podendo separar o Catolicismo da vida da Península, a denegriram por sistema, cobrindo-a de diatribes e de aleives sem conto. No entanto, metade do mundo devia às Espanhas a sua entrada na civilização – e a paz da Europa, perturbada, de um lado, pela ameaça crescente do Turco e, pelo outro, pelo alastramento da heresia protestante, salvou-se de uma catástrofe mortal, por virtude ainda do esforço heróico dos reis e soldados peninsulares.

Parece-me interessante acentuar que mesmo muitas das páginas havidas como escuras no passado da Península entram a ganhar com o avanço das correcções da história uma inesperada e desforrada claridade. Tal é o que se verifica pelo que respeita à Bélgica. Sem a abundante penetração espanhola que o governo dos Áustrias lhe inoculou, a Bélgica não se saberia hoje explicar como nação, desde que lhe faltam para isso outros motivos que não sejam os que recebeu da passagem dos ‘tércios’ e que tão evidentes são, recorrendo a um nobre exemplo na poesia inconfundível de Emile Verhaeren. De resto, não nos surpreenderemos se considerarmos com a atenção devida que na composição da Latinidade, como forma superior de cultura e vida internacional, entraram predominantemente dois agentes decisivos: o Catolicismo e o Hispanismo.

Não falarei do papel que a Península exerceu nas antigas idades, transmitindo à Europa, pela sua posição de terra intermediária, os frutos das civilizações primitivas. Mas já é de necessidade lembrar que, no segundo período do seu prestígio, Roma se nutre das reservas que a Península inesgotavelmente lhe comunica. Ele é Séneca, ele é Marcial, ele é Columela, ele é Quintiliano, ele é Trajano, ele é Teodósio. Me peritus discet Iber – ponderava já mestre Horácio, qualificando o hispânico de douto. Pois é debaixo das águias romanas que a adolescência maravilhosa do génio peninsular começa propriamente. Em sinal do que a Península iria valer no futuro como geradora de novas pátrias, olhemos para a Dácia, que nos aparece então, cavando os alicerces da moderna România. Abre-os Trajano, um hispânico, que estabiliza com veteranos, hispânicos também, essa espécie de guarda avançada da Latinidade contra o rumorejar bravio dos enxames bárbaros. E – circunstância reveladora! –, no românico contemporâneo persiste algo de indefinível e misterioso, que evoca o lirismo melancólico do ocidente peninsular. É o vocábulo dor, «l’expression même de notre pays et de notre âme... dor, parole intraduisible qui ne se comprend pas, qui se sent seulement et dont je n’ai trouvé le presque équivalent que dans la langue de nos frères portugais – la saudade.»

Mas a profunda identificação dos destinos de Latinidade com os destinos do Hispanismo demonstra-se e afiança-se ainda mais na Idade-Média, quando as indulgências da Cruzada tanto se ganham na Península como na Terra-Santa. Não só pela Gesta inolvidável da Reconquista nós levantámos uma muralha invencível em que a onda islamita se quebra e desfaz, como oferecemos à Europa os restos da cultura clássica que, através dos árabes, nos chegara do Oriente. São Tomás e Dante recebem desta maneira o influxo sábio da Península, como já antes com Santo Isidoro de Sevilha e com o bracarense Paulo Orósio – discípulo de Santo Agostinho – o resplendor do pensamento antigo se mantivera aqui ininterrupto e brilhante.

Repartida a Península em diversas nacionalidades, a cada uma cabe depois marcadamente um papel distinto. É Castela quem no interior avoca a si a continuação da guerra contra o Mouro. Aragoneses e catalães espalham-se pelo Mediterrâneo e levam as cintilações afortunadas da sua estrela até Constantinopla, fundando o ducado de Atenas, de passageira existência. A nós toca-nos a empresa de Marrocos e a epopeia do Mar. Se tais manifestações são variadas e por vezes divergentes nas suas linhas imediatas, reconhecemos que as ilumina e conduz como que providencialmente a presença suprema de uma finalidade comum. Fundido o Aragão com Castela, recebe-lhe esta como herança a sua política europeia, a sua acção ao Mediterrâneo. Fica Portugal entregue a si próprio na dilatação da Fé e do Império.

Então se verifica que a sorte da Europa e o fastígio da civilização dependem em grande parte das duas pátrias peninsulares. Castela, nesse dualismo concorde, significa a vocação terrestre, enquanto Portugal concretiza a vocação marítima. Se Portugal e Castela se tivessem conglobado, ou a Península faltaria às gloriosas arrancadas marítimas com que completámos o conhecimento do mundo, ou a Cristandade houvera soçobrado debaixo da pata do Turco galopando já pelos plainos da Hungria, quando na Europa se ateava o incêndio das discórdias religiosas. Sem dificuldade se constata, pois, que a unidade do génio peninsular, na sua projecção histórica-social, foi garantida pela separação política de Castela e Portugal, providencialmente assegurada em Aljubarrota e nos campos de Toro.

Percebe-se agora porque a consciência do Hispanismo inspirou Camões em toda a extensão do seu poema. Se ele realçou como ninguém a diversidade das nações da Península, como ninguém assinalou também a apertada ligação que as unia entre todas.

Chamou Oliveira Martins aos Lusíadas, num dos seus muitos rasgos de vidência incomparável, o testamento de Espanha. São, na verdade, os Lusíadas o grito final de Espanha – mas da ‘Espanha’ no sentido de comunidade espiritual em que nós a entendemos, nunca no de uma exígua e exclusiva designação nacionalista. O Épico adivinhava bem, no estertor dos grandes estímulos do passado, que a nossa hora de ‘hispanos’ ia obscurecer-se, com o advento do naturalismo solto da Renascença e já com a Reforma levantando no coração dos povos e nos degraus dos tronos o colo atrevido da serpe individualista. O concílio de Trento, apontando à Europa mutilada o ideal de Cristandade como única força colectiva capaz de a restaurar, apenas encontra ao seu lado as duas nações da Península.

Reflectem os Lusíadas o sentimento profundo que atira D. Sebastião, como sendo o último cruzado, para os areais de Marrocos. É o desígnio frio, sistemático, impassível, que em outro campo guia o braço de Filipe, do admirável Filipe II!, na defesa da Cristandade, de que foi o derradeiro campeão. Isolada e incompreendida, a ‘Espanha’ torna-se na Europa uma caricatura arcaica e truculenta, de que Cervantes recolhe as linhas inolvidáveis no D. Quijote, obedecendo talvez a uma inconsciência genial. A íntima comunhão da Cristandade com a Latinidade, ao pulverizar-se nos assomos do século XVII, mostrava-nos assim claramente que, a par do Catolicismo, o Hispanismo era, com efeito, uma das suas mais decisivas razões de existir.

Não desaparecíamos, porém, na conspiração total que nos vitimava, sem termos deixado impressa a nossa individualidade nas oficinas misteriosas em que a História se elabora! Só pelo desvio do eixo da civilização do Mediterrâneo para o Atlântico – e essa é a parte própria de Portugal dentro do morgadio peninsular –, nada, de entre os benefícios e promessas que o futuro, porventura, reservasse à humanidade, se poderia já esquivar ao preito de gratidão que se nos devia. Na verdade, a Idade-Moderna é nossa filha – é filha dos argonautas portugueses, em toda a sua amplitude e em todas as suas conquistas. Também o espírito científico de que o nosso tempo tanto se orgulha é descendente daqueles humildes teólogos espanhóis que em Trento, contra a doutrina terrível da Predestinação, salvaram a liberdade da inteligência e da alma, sustentando e impondo vitoriosamente os postulados dignificadores do livre-arbítrio. Prestemos essa homenagem aos Jesuítas, aliados, na defesa da civilização, por meio de uma nova milícia mística, aos que durante a Idade-Média interpuseram na Península uma barreira robusta, impedindo o espraiar da onda muçulmana!

Tais são as duas grandes características por que se marca a Idade-Contemporânea no seu balanço positivo: uma, o desvio do eixo da civilização do Mediterrâneo para o Atlântico, executa-se graças à tenacidade e ao denodo dos marinheiros lusitanos; a outra, cujo alcance é escusado salientar e sem a virtude da qual se haveria caído no mais depressivo materialismo intelectual e moral, deriva da crença tão ardente como raciocinada dos companheiros de Santo Inácio de Loiola. Na sua dupla face, o génio peninsular com energia perdurável rasgava assim o caminho dos séculos vindouros. E não inventariamos as consequências miúdas do seu gesto áureo, o lado e largo de bom semeador! Porque desde as noções trazidas à geografia, à linguística e às ciências-naturais pela prática das longas viagens até às célebres Leyes de Índia, de Cisneros, e aos métodos de colonização empregados pelos portugueses, de que a Holanda e a Inglaterra copiaram e aperfeiçoaram a lição; desde o renascimento das doutrinas políticas de São Tomás e seus comentadores, com que veementemente se opôs ao desenvolvimento excessivo do romanismo jurídico e das concomitantes tendências absolutistas, até às bases entrevistas pelos seus teólogos de um direito internacional, com razão e fundamentos orgânicos, o génio peninsular, condensado por Camões na sua índole cavalheiresca e militante, abriu um sulco tão fundo na fisionomia espiritual da Europa que o renascimento mental hodierno, se quiser ser sincero e honrado, a ele terá de ir buscar a recuada genealogia.

Mas... e eu antecipo-me ao «mas», já desenhado na mente do meu leitor. Mas, se a unidade da Península depositava as condições da sua existência no paralelismo de Portugal e Castela, como se explicará que Portugal sucumbisse na sua autonomia política diante da ambição dissimulada da côrte de Madrid? Trata-se de um problema que excede os presentes limites pela sua extrema complexidade. Primeiro: é falso que Portugal perdesse a sua independência. A monarquia dos Filipes, com assento simultâneo em Madrid e em Lisboa, foi uma monarquia-dualista, como o era em nossos dias a Áustria e a Hungria. Segundo: exactamente, no período filipino, é que nós influimos de tal forma no que constituía a essência da psicologia castelhana, que todo o século de ouro da literatura dos nossos vizinhos vibra cheio de Portugal e do mais enternecido lusitanismo. Terceiro porque a política-centralista do Conde-Duque, verdadeira debaixo do ponto de vista castelhano, mas perniciosa debaixo do ponto de vista peninsular, nos pretendeu reduzir à precária situação de simples província, quebrando o estatuto, que, jurado nas côrtes de Tomar, nos prendia à coroa dos Áustrias, é que nós soltámos logo o brado de independência, criando na Península, entre as suas duas metades, o divórcio que inicia a decaída tanto de Espanha como de Portugal no concerto dos Estados europeus. E, enunciada a questão nestes termos, detalhemos agora um pouco para sua demonstração completa.

Efectivamente, o parêntesis histórico da chamada intrusão filipina carece de ser revisto à luz crítica hodierna. Quem percorra a História de Portugal nos séculos XVII e XVIII, de Rebelo da Silva, apesar de ser outro o propósito do seu autor, facilmente concluirá que, mantida no político e no administrativo a nossa soberania, nunca Portugal foi anexado à Espanha. «O governo dos Filipes não teve directamente em vista a absorção da nacionalidade portuguesa», declara o insuspeito Teófilo Braga, referindo-se às Ordenações Filipinas.[1] Não se extingue um povo quando se lhes dá um código por onde se reger. E insiste: «Nas côrtes de Tomar de 1581, o rei de Espanha, tomando posse deste reino, jurava guardar os foros, costumes e isenções da nação portuguesa; que o seu governo, administração e economia andariam em separado do resto de Espanha.» Não foram abolidas as côrtes, por determinação das quais só se poderia lançar tributos. A câmara de Lisboa, em 1602, embargava um alvará dos governadores do reino, em que se pedia o serviço de oitocentos mil cruzados, «por ser feito sem consentimento nem procuração das cidades e lugares do reino, que têm voto em côrtes».

Explica-se já porque na célebre defesa do Conde-Duque de Olivares, intitulada Nicandro, dissesse o seu autor, dirigindo-se a Filipe IV: «De la revolución de Braganza y de Portugal tuvo la culpa el abuelo de V.M. (Filipe II), que debió, hallando-se con ejército poderoso, y él en Portugal, traerse consigo el duque de Braganza; que nunca varones de tan alta linaje y con pretensiones de rey se han de dejar en provincias conquistadas y que fueron cabezas de imperio, y que por genio proprio y aborrecimiento a castellanos desean restituirse a él. Podía excusar los puertos secos (o sean aduanas interiores) entre Portugal y Castilla... Debía dar a los caballeros portugueses virreinatos, gobiernos en Castilla y regiones a ella sujetas, obispados, abadias a los eclesiásticos, y con esta proporción introducir castellanos en Portugal y portugueses en las partes de Europa donde V.M. impera. Debía quitar la sombra de casa Real que dejó en Lisboa, porque no viendo ellos este aparato no se arrojarían a buscar alma a aquél cuerpo...»

Ninguém, na verdade, respeitaria tanto as nossas liberdades e privilégios, como Filipe II as respeitou, muito embora tivesse por detrás de si o exército do duque de Alba. Anota a este respeito Cánovas del Castillo nos seus Estudios del reinado de Filipe IV: «Que para decir la verdade entera, no solamente es falso que fuese en Portugal tirano Felipe II, sino que ni siquiera mereció allí el título que en general merece de Prudente.»

Não exagerou o historiador e estadista espanhol! Filipe II, conferindo o expediente dos negócios de Portugal ao Conselho de Portugal, formado de portugueses e despachando em português, dotava a sua monarquia-dualista com um órgão próprio e incompatível com toda a tendência centralista. Inclusivamente – como se queixava o Nicandro –, as alfândegas tinham subsistido na antiga linha fronteiriça. E se atentarmos um pouco mais, logo veremos que, ao publicar Francisco Rodrigues Lobo o seu poema nacionalista O Condestabre, a figura de Nun’Álvares foi cantada e exalçada em ressoante idioma castelhano por engenhos como Lope de Vega e Luis Vélez de Guevara. Tocamos com isto no aspecto interessante do problema. É que o governo dos Filipes corresponde justamente a uma extraordinária preponderância da nossa sensibilidade – do lirismo inolvidável dos portugueses, na alma um tanto impermeável de Castela. Se nos recordarmos que a Diana de Jorge de Montemor cria um género novo na Europa e determina depois, por intermédio da Astréa, de Honoré d’Urfé, o advento de pré-romantismo em França e a génese do mito abominável da ‘Bondade-Natural’, ajuizaremos melhor a capacidade inconfundível de sentir e amar, só própria de Portugal, que nos põe a nós de moda na literatura e costumes castelhanos ao longo do reinado dos três Filipes.

A nossa penetração na côrte dos Áustrias já era grande devido, principalmente, ao prestígio persuasivo da formosíssima imperatriz Isabel, mãe de Filipe II. Educara-o a ele, órfão de tenros anos, a notável D. Leonor de Mascarenhas, a quem Sá de Miranda chamava «a nossa Vitória Colonna». Filipe é, em tudo, um caso expressivo de portuguesismo – gostando até de ouvir os rouxinóis pela noite escura. Herdara da mãe essa discreta impressionabilidade. Porque, relatando as lágrimas vertidas por Carlos V sobre o ataúde da esposa morta, o cardeal Cienfuegos diria: «las demostraciones del Emperador en esta desgracia fueron iguales a la pérdida, llorando tanto tiempo, y con tanta alma, que se conocía bien que con el amor, y el trato de la Emperatriz, se le había pegado toda la ternura Portuguesa». A ‘ternura portuguesa’ constitui assim um motivo frequentemente glosado do outro lado da raia, no Madrid seiscentista. Cervantes reflecte-a na Galatea e nas Aventuras de Persiles y Segismunda. Por sua vez, Lope de Vega faria exclamar a um dos seus personagens na Dorotea: «Tengo los ojos niños y portuguesa el alma.»
Ocorria tão significativo fenómeno numa hora parda em que a nossa individualidade política parecia eclipsada. Mas como acreditá-la morta, se nós persistíamos, exactamente, pelas virtudes inapagáveis do nosso espírito? Já debaixo da ditadura do Conde-Duque, Calderón de la Barca afirmaria de nós no seu Príncipe constante, e num verso, não só português, mas de impecável gravidade camoneana: «Que ainda mortos somos portugueses!»

Tirso de Molina, então, apaixonado por Portugal e pela acção dramática da nossa história, povoaria o seu teatro de temas e de figuras lusitanas. Exemplifiquemos com La gallega Mari-Hernández, com El vergonzoso en palacio e, sobretudo, com Las Quinas de Portugal, em que se celebra a instituição da nossa pátria como reino autónomo, ressuscitando-se em todo o seu efeito cénico a tradição do milagre de Ourique, de que em breve se iria alimentar, e fortemente, a mística nacionalista dos doutores e panfletários da Restauração. Enfim, não havia em Castela uma qualquer manifestação, ainda a mais simples, das coisas serenas do saber e da arte, em que nós não primássemos pelo relevo da nossa personalidade indestrutível!

Nosso fôra Afonso Sanches Coelho, fundador de uma escola de pintura, em que o retrato de Côrte encontrara o seu tipo definitivo. Nosso era o insigne Manuel Pereira, escultor incomparável, cuja existência e obra mal se conhecem entre nós. De Portugal descendiam Diego de Velázquez e Claudio Coelho. E não olvidemos, no campo militar, D. Gregório de Brito, o heróico defensor de Lérida contra Condé.

Dentro do quadro geral da Península, Portugal mantinha-se a si mesmo, inassimilado e inassimilável. Sobrevivia-se, pois, principalmente, pelas intensas virtudes e motivos do seu lirismo sem igual. Com o Amadis nós ditáramos uma forma de sensibilidade que se tornara europeia. Enquanto a Gesta representava a idiossincrasia própria de Castela, na poesia lírica se vertera a condição amorável e comunitária das gentes do ocidente peninsular. Tanto que em idioma galaico-lusitano é que primitivamente os poetas castelhanos trovavam as suas queixas de amor e a ingenuidade das suas devoções. Personifica-se depois no Amadis a musa desenvolta e melancólica do Cancioneiro. Ao mesmo tempo a Gesta populariza-se e prolifica no património inesgotável dos rimances orais, cantados em comum, ou na lareira, ou na romaria. Numa convergência psicológica, a hereditariedade do Amadisfunde-se no Quijote com a herança copiosa do Romanceiro. O Quijote fixa no seu aspecto analítico a decomposição do ideal cavalheiresco da conquista e do sacrifício que Castela individualizara.

Mas já o nosso lirismo, gerando novas modalidades de gosto social e literário, lançara por toda a Europa na Diana, de Jorge de Montemor, com mais originalidade que a Arcadia, de Sanazzaro, a paixão dos naturalismos pastoris, donde surgiriam o pincel de Watteau, os idílios do Trianon e o bucolismo bastardo de Jean-Jacques Rousseau. A corrente tornara-se tão decisiva que, ao sentir-se vencido em Barcelona pelo Cavaleiro de Blanca-Luna, D. Quixote, desiludido, resolve fazer-se também pastor. Simbólica e perfeita homenagem da outra face do génio peninsular à grei que devassara os segredos do Oceano e que de Camões – um lírico – arrancava pelo poder moral da Acção uma epopeia, em que a Espanha, decaída, contemplaria pelos séculos fora o resplendor invencível do seu «testamento»!


*


Delineando em contornos largos a teoria do ‘génio peninsular’, não faço senão confirmar a intuição profunda do nosso malogrado crítico Moniz Barreto. «A nós, peninsulares – comenta ele –, a função que coube na História é o Heroísmo e a Fé. Destituídos de imaginação penetrante e do dom de vasta compreensão, desprovidos de larga simpatia e de curiosidade infatigável, primamos pela energia da vontade e pela grandeza do carácter. O fundo desse carácter é a honra militar. A capacidade de afirmar e querer, de obedecer e dedicar-se, uma tendência singularmente nobre de transformar o mundo à imagem do nosso ideal, uma generosa impaciência da perfeição, o desdém da beleza plástica e das delicadezas aristocráticas, um pensamento simples como um acto, a paixão concentrada e a seriedade trágica, eis outros tantos traços do génio peninsular. Este génio produz uma singular concepção da vida, que se manifesta por uma religião realista e violenta, por uma política absoluta e insensata, pela preponderância do génio da aventura e ausência de capacidade prática; que põe o amor no casamento, o ideal na acção, a beleza no valor moral; que inspira os maiores prodígios de energia no mundo moderno, e faz que a nossa história seja, como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma. Importado para a Literatura, esse génio produz um lirismo robusto e monótono, um teatro destituído de análise de caracteres, mas animado pelas ideias da honra e da morte, sátiras de um sarcasmo violento, romances em que a acção absorve a análise e que são a pintura da realidade crua e feia, e a maior das modernas epopeias.

» Mas para produzi-la foi preciso a intervenção do génio português» – continua Moniz Barreto. «Do corpo das populações ibéricas dominadas e unificadas pelo génio castelhano, destaca-se pela influência acidental de circunstâncias históricas uma estreita faixa da orla marítima. Esta estreita faixa se constitui em nação independente, e durante cem anos exerce um papel culminante na história moderna. Em sincronismo necessário com esta explosão de vida activa, desabrocha uma breve mas esplêndida floração literária. Se estudarmos os documentos que a constituem e completarmos esse estudo pelo exame das produções que datam da renascença romântica, nada acharemos neles que distinga constitucionalmente o nosso génio do das populações ibéricas constituídas numa nação espanhola, como nada encontramos que geográfica e etnicamente fundamente a autonomia da nossa vida política. Mas um exame mais atento descobrirá certas qualidades secundárias que, dando uma fisionomia peculiar ao nosso espírito, se reflectem na nossa literatura: uma maior capacidade de compreender e assimilar, uma menor energia de afirmação e crença, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carácter menos vigoroso e mais nobre, mais razão e menos vontade, heróis mais humanos, mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, de grave e triste, entranhas mais húmidas e o dom das lágrimas. Estes traços manifestam-se na nossa literatura por um lirismo profundo e sentido, expressão de uma alma amorosa e meiga por um teatro capaz de pintar caracteres e espelhar a vida; por uma, ainda que tardia, floração de romances em que a análise do coração não é anulada em proveito da acção, e finalmente por uma criação épica em que a grandeza heróica do génio peninsular é vazada em moldes de uma nobreza essencialmente nossa. Se esses traços não são bastantes para constituir um génio à parte, são contudo suficientes para dar à nossa literatura um carácter peculiar, e para nos assegurar num futuro próximo uma intervenção salutífera na marcha de cultura dos povos peninsulares.»

Depoimento notável, o que acabamos de reproduzir, apesar dos preconceitos mentais que por vezes lhe obliquam a visão, ele vinca já nitidamente aquilo que é a linha própria e intransmissível da nacionalidade portuguesa. O leitor separará sem custo o que há de acidental e de essencial no testemunho de Moniz Barreto. Moniz Barreto, como Oliveira Martins, surpreendidos com as afinidades que de perto nos prendiam à Espanha restante, não acharam outra explicação para a nossa existência como pátria senão a do factor-Acaso. Hoje, desde o campo geográfico ao campo étnico, Portugal justifica a sua génese por motivos fundamentados e bem evidentes. No campo geográfico, sobretudo a influência do Oceano; no campo étnico, a verificação daquele velho antagonismo entre lusitanos e celtiberos, que os analistas clássicos registam e que, no seu belo e recente trabalho acerca de Viriato, o sábio exumador das ruínas de Numância, dr. Adolfo Schulten, definiu penetrantemente de «obstinação ibérica».

O que se conclui daqui, como lição irrefragável, é a dupla feição do ‘génio peninsular’ na sua unidade profunda e na sua profunda universalidade. O erro absorcionista que destruíu o admirável paralelismo político do século XVI e que Filipe II ainda pretendeu salvar com a sua monarquia-dualista – esse erro, levando-nos ao divórcio espiritual e ao desentendimento material, motivou o crepúsculo no mundo, tanto de Espanha, como de Portugal. Mas, justamente pelo amor do ‘absoluto’, em que o criticismo de Moniz Barreto aponta um defeito, o nosso primado não se apagou de todo. Do alastramento da concepção lírica da Vida, tão nossa, tão lusitana, propagada à Europa, principalmente, pelo bucolismo de Jorge de Montemor, derivou, como categoria espúria, a psicose romântica, a convenção naturalista do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, a Revolução. No Quijote, como filosofia da Existência, entronca pelo mesmo desvio adulterino o pessimismo materialista do século findo, a metafisica de Kant e o bovarismo das democracias burguesas e plutocráticas. Embora diminuído e pervertido, a Idade-Moderna vive, nutre-se, de uma projecção do ‘génio peninsular’ – tal é a forma invencível da sua predestinada natureza apostólica!

Sinónimo, portanto, de Latinidade e, consequentemente, função histórica e social do Catolicismo, o ‘génio peninsular’ é a fonte legítima do único imperialismo pacificamente civilizador, porque é um imperialismo anímico – uma soberania espiritual. Dispersos e fragmentados pelas duas margens do Atlântico, não há forma nenhuma de sociabilidade superior que nós não tivéssemos gerado e executado. Com iluminada inspiração, exclamava Rubén Darío: «¡Yo soy el caballero de la humana energía!»

Cavaleiros da humana energia, espanhóis e portugueses ampliaram os roteiros da civilização e foram, nas fumaradas das batalhas e nas gáveas das naus, os seus adiantados-mores. Regidos pelo mesmo denominador-comum, a Madre-Hispânia, afirmaram perduravelmente um tipo inconfundível, o tipo ‘hispânico’, em que Camões, na pujança dos seus sentimentos nacionalistas, nos inseria sem desdouro, ao chamar-nos «uma gente fortíssima de Espanha» e ao considerar o nome de Afonso «nome em armas famoso em nossa Hespéria». Achava-se Camões dentro de uma realidade que se esvaíu para nós, hoje isolados na nossa pequenês, sem que saibamos o tesouro que trazemos dentro de alma! Essa realidade ressurge dos limbos da história e é a América que nos impõe o dever de despertarmos para ela.

Como, na verdade, «el espíritu se ensancha» – escreve um moço publicista argentino – «cuando mira que desde los Pirineos a Magallanes y de Magallanes al Río Grande se acota en el mundo y con el Gran Océano como mare nostrum, todo el contenido territorial de la civilización hispánica».[2] Esta é a definição perfeita do «hispanismo» – este é o significado elevado e nobre de ‘Espanha’, como Camões o entendia, com eco ainda na sensibilidade agudíssima de Garrett. Recolhamo-lhes nós a herança, restaurando o antigo patriotismo moral e mental da raça hispânica, que é tanto português como castelhano! De novo a existência da Península se torna o centro de uma directriz mundial. No estremecimento de catástrofe em que a Europa se perde, arrastada para o abismo por chefes incapazes, é para a Península, com Maurras e Barrès por condutores, que se voltam as esperanças desfalecidas da Latinidade. A vocação apostólica das duas pátrias peninsulares ressuscita-a a iminência aflitiva do perigo. Abramos, confiados, os Lusíadas! E, como depois das Descobertas e às vésperas gloriosas de Lepanto, repita-se exortadoramente com o Épico: «Eis aqui se descobre a nobre Espanha, / Como cabeça ali da Europa toda.»
 



[1] História do direito português. Os forais, Coimbra, 1868.

[2] Dr. J. Francisco V. Silva, Reparto de América Española y Pan-Hispanismo, Madrid, Francisco Beltrán.





in António Sardinha, À Lareira de Castela​ (ed. 1943).
​​...nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"!

​​- António Sardinha (1887-1925) - 
Fotografia

​www.estudosportugueses.com​

​2011-2025
​
[sugestões, correções e contributos: [email protected]]