EL-REI D. MIGUEL
António Sardinha
António Sardinha apresenta D. Miguel I como legítimo rei de Portugal, injustamente caluniado e derrotado pelos liberais e pela influência estrangeira. Sardinha critica o liberalismo e a Maçonaria, valorizando as instituições tradicionais e a fidelidade dos miguelistas. Relata a perseguição sofrida por D. Miguel, o seu exílio e o contexto da sua capitulação em Évora-Monte, imposta pela Quádrupla Aliança. A queda do rei D. Miguel marcou o início da decadência nacional e o afastamento das verdadeiras raízes portuguesas.
EL-REI D. MIGUEL
A 14 de Novembro de 1866 falecia em Bronnbach, na Alemanha, precisamente no mesmo dia em que sessenta anos antes fora batizado, el-rei D. Miguel I.[1] Caluniado como nenhuma outra figura da nossa história, a reabilitação desse infeliz monarca impõe-se a todos os que queiram sentir e amar o passado da terra portuguesa na sua justa, na sua completa significação. Rei legítimo de Portugal, teve D. Miguel consigo a legitimidade do direito dinástico e a legitimidade da escolha nacional. É um facto que ninguém, em verdade, poderá honestamente contestar. Revoltado contra a mãe-pátria e, por consequência de semelhante revolta, colocado na situação de soberano estrangeiro, seu irmão D. Pedro, a quem erradamente se chama «IV» de Portugal, é que não foi mais do que um simples usurpador! Voltou ao país que renegara, de armas na mão e trazendo no coice uma onda de mercenários, arrebanhados, a tanto por cabeça, nas tabernas mais imundas de Londres. Tais são, com pequenas exceções, os 7.500 bravos do Mindelo, que, caindo sobre Portugal como o pior dos flagelos, conseguiram, à custa da traição interna e da influência inglesa, sobretudo, substituir as nossas instituições tradicionais pela mentira política, que nos entregaria mais tarde aos desvarios do presente.
A história de Portugal, nos começos do século transato, não se compreende em tantos dos seus aspetos contraditórios, sem que se conheça bem a história das sociedades secretas, suas inspiradoras. O Liberalismo nasceu entre nós no seio das lojas maçónicas, exatamente com aqueles que facilitaram aqui a penetração dos exércitos napoleónicos e que depois veríamos ministros de Estado, ao lado de D. Pedro, como, por exemplo, Bento Pereira do Carmo e Cândido José Xavier. Não nos é fácil desenhar agora, ainda que fugidiamente, o avanço das ideias revolucionárias em Portugal, conspirando primeiro com os sequazes de Junot, entendendo-se a seguir admiravelmente com partidários reconhecidos da União Ibérica.
Tanto a conjura de Gomes Freire em 1812, como a revolução de 1820, desenvolvidas e delineadas no regaço da Maçonaria, tinham trabalhos comuns com espiões espanhóis. Vingou o movimento de 1820, e as intenções que ocultamente o determinaram, palpitam-se bem na cínica nota de Silvestre Pinheiro Ferreira, nosso ministro dos Estrangeiros, ao governo britânico, ameaçando-o com a nossa entrega voluntária à Espanha, se não defendesse o novo regime do perigo que para ele as deliberações da Santa Aliança representavam. À série de atropelos, de latrocínios e desvergonhas que 1820 inaugura em Portugal, é o infante D. Miguel quem lhe põe cobro na célebre contra-revolução de Maio de 1823, designada por ‘a Vila-Francada’. À frente do exército e com o aplauso inteiro da nação, D. Miguel, restituindo a seu pai, el-rei D. João VI, os seus ‘inauferíveis Direitos’, o mesmo fez que devolver o país à sua ordem tradicional, interrompida pelos reformismos desorganizadores da Constituição de 22.
Depressa D. Miguel se viu ladeado de personagens vesgas, como Martins Pamplona – o companheiro dedicado de Gomes Freire, tanto nos conluios do Rossilhão, como no seu entusiasmo pela fortuna de Bonaparte. Perdoado só em 1820, Martins Pamplona conseguiu em Vila-Franca merecer a confiança de D. Miguel. Elevado a conde com o título de Sub-Serra, não demorou a trair o infante, constituindo com Palmela e outros sócios a sinistra camarilha que aprisionou inteiramente à sua vontade a vontade de D. João VI. É esse um capítulo da nossa história, conservado no escuro facciosamente, visto ser, na sua última fase, de 34 para cá, uma história de partido a história que é em geral do conhecimento de todos. Mas sobre a verdade dos documentos não resta dúvida que, em seguida ao golpe de Estado de Maio de 23, a Maçonaria, um momento vencida por D. Miguel, pensou logo em o perder, apossando-se do ânimo timorato do rei.
É contra a gente que rodeia D. João VI e o encaminha insensivelmente para um segundo ensaio de Constitucionalismo de importação, que D. Miguel se dispõe a dirigir em cheio essa espécie de pronunciamento, que termina na Bempostada. Aqui começa a difamação sistemática do futuro destronado de Évora-Monte. Apontam-no como querendo depor, e até assassinar!, a seu pai, debaixo das instigações malévolas de D. Carlota Joaquina. Sabem-se os resultados da Bempostada. O corpo diplomático intervém, D. João VI retira-se para bordo da nau Windsor-Castle, abandonando assim o território nacional. E mandando chamar a bordo seu filho, que obedece sem coação, exila-o para Viena de Áustria. Se a face dos acontecimentos se nos desnuda deste modo logo à primeira vista, abramos, para maior convencimento, as Instruções Maçónicas do Grande Oriente Espanhol Egípcio, impressas em Cádis em 1828.
«Depois de vários artigos em que se estabelece para Portugal a necessidade de separar por todos os meios possíveis D. João VI de sua esposa, preconizando, como processo mais seguro para se obter a vitória, a difusão da discórdia entre os membros da família real, eis o que aí se aconselha com a maior singeleza e naturalidade: Se como se deve esperar a Rainha e seu filho se opõem à revolução, aproveitando-se da sua influência, e trabalham contra nós fazendo demitir o ministério, será então necessário que todos os diplomatas e todos aqueles que pertencem à Ordem, se reúnam para protestar contra semelhante medida e para declarar em face da Europa que a Rainha e o Infante lesam os direitos da legitimidade. Deve trabalhar-se para decidir os representantes estrangeiros a tomarem parte neste ato em nome dos seus soberanos. Desta arte, os ministros serão conservados ou reintegrados no poder, e, sem o conhecer, D. João VI preparará tudo para chegar à última vergonha, a que o queremos arrastar.»
Graças à luz que jorra de tão valiosa transcrição, temos a descoberto os manejos disfarçados de que saiu a ida à Bemposta do corpo diplomático, com o ministro da França, Hyde de Neuville, à sua frente, manobrando como se fosse em pessoa o compadre Pamplona. D. Miguel, apanhado de surpresa numa rede, que não calculava donde lhe era lançada, submeteu-se e aceitou o desterro que o pai forçadamente lhe ditou. Lá rezava a papeleta de Cádis: «Se a Rainha e Dom Miguel... persistem em contrariar o nosso desígnio de destronar o déspota e de restabelecer a Constituição, é de absoluta necessidade decidir o Rei a banir sua esposa e seu filho da terra portuguesa...» Basta este lado da vida de D. Miguel, inteiramente encarado de maneira oposta à corrente, para nos elucidar de vez sobre o borrão de infâmia que lhe atiraram para cima da memória os vencedores de 34.
Partido para Viena D. Miguel, D. João VI fica então em Portugal na dependência absoluta da camarilha que o assassina aos poucos, devagar. Num receio permanente a tudo e a todos, definha-se com saudades do filho. Essa agonia da Realeza sente-se profundamente nas páginas memorandas de Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro – Exposição resumida do que, durante os dezoito meses que estive em Lisboa, sofri à fação, e aos celerados que cercavam El-Rei e o levaram à sepultura. D. João VI é espiado, não lhe deixam livre um só instante. E, quando se resolve a mandar vir D. Miguel, morre de repente, a seguir àquela merenda que fora comer a Belém – segundo a abertura do Portugal Contemporâneo. Morreu envenenado, já não há que duvidar![2] O ministério, com ele já morto, forja o decreto da Regência, de que nunca se conheceu o original com a assinatura do rei, e envia ao Rio una missão, a presentear com a coroa o Imperador. O que se receava era o regresso de D. Miguel, herdeiro legítimo de D. João VI. D. Pedro recebe, aborrecido, a missão portuguesa, fecha-se num quarto com Francisco Alves e sai de lá com a Carta, que nos remete no bolso de Lord Stuart, acompanhada da sua abdicação em D. Maria da Glória.
Indicado como príncipe-consorte e investido pelo irmão na regência do reino durante a menoridade da sobrinha, D. Miguel jura a Carta em Viena de Áustria e parte para Portugal. No seu livro Castilho e Saraiva, António Ribeiro Saraiva prova a nulidade desse juramento, porque, sem ele, não deixariam sair de Viena a D. Miguel, o qual, no entanto, ressalvou os seus direitos, depondo um protesto nas mãos do príncipe de Metternich. Com a sua sagacidade proverbial, Metternich escreveria de D. Miguel ao embaixador austríaco em Londres: «Começou a falar-me com franqueza e sinceridade da linha de procedimento que pensava seguir à sua chegada a Lisboa, e confesso que fiquei surpreendido da retidão de princípios e da sagacidade de vistas que me expôs com calor, precisão e clareza.» Até a lenda da imbecilidade grosseira de D. Miguel se desfaz com o testemunho do grande estadista!
Chegado a Lisboa, o país inteiro o quer e saúda como rei. D. Miguel apresenta-se, porém, como regente apenas e, sem que os Três Estados do Reino examinassem o ponto melindroso da sucessão, decidindo-se em seu favor, não usa o cetro, nem cinge a coroa. Aclamado deveras pela alma portuguesa, ele é o verdadeiro rei nacional, depois de D. Sebastião. Depositário das doutrinas da legitimidade definidas pela Santa Aliança, ninguém teime em o considerar como um soberano despótico, destinando-se a reinar sobre uma paisagem ensanguentada de forcas e de perseguições. Bem pelo contrário, num instante quase único na nossa história, ele procurava trazer à direção do Estado, por intermédio dos seus órgãos tradicionais ressuscitados, a influência benéfica do espírito ancestral da pátria.[3] Houve violências? Houve-as. Mas os liberais, formando uma pequena minoria, punham-se, por si, fora da lei pelo ingresso nas lojas maçónicas e trabalhando lá fora contra a integridade do nosso território. Nos Apontamentos para a história diplomática de Portugal, por Agostinho José Freire, aprende-se que D. Pedro, apelando para a intervenção estrangeira, oferecia, em troca de expulsão de D. Miguel, «a baía de Lourenço Marques ou quaisquer outras colónias asiáticas, ou das africanas na costa oriental». Em presença de factos como estes, percebe-se que a indignação em Portugal atingisse um grau subido de delírio. O Rei intervinha, tentava perdoar. «El-Rei perdoa; nós, não!» – e o cacete redemoinhava sobre a cabeça dos pedreiros-livres, em quem o povo via os sócios desses, senão os mesmos, que tinham porfiado em nos entregar a Junot.
Perante a imposição da Quádrupla-Aliança, D. Miguel capitulou em Évora-Monte, numa tarde de Maio, debaixo do imenso céu alentejano. Não traçaremos os inícios do regime que o substituiu. Só direi que os assassinatos a sangue-frio excederam então as execuções legais das justiças miguelinas, em número e em terror. Alarmado, assim o confessaria no parlamento o deputado constitucional Franzini. A espoliação, o esbanjamento e a ruína cobririam os piores crimes da república presente. Intacta, só permanece na sua honesta pobreza a figura forte de D. Miguel! Como D. Miguel, os seus partidários que não transigiram nunca. É um Portugal ignorado hoje, já desfeito na confusão dos cemitérios. Lembrarei aqui, como um símbolo, a admirável renúncia de um elvense, o tenente-coronel Marçal José de Mira. Ganhara os seus galões de oficial durante a Guerra Peninsular, no assalto a San Sebastián. Partindo a espada em Évora-Monte, abandonou as fileiras. E, a emparceirar-se com o partido vencedor, achou melhor acabar os seus dias, sem ter quase que vestir, a cavar a terra de outrem como hortelão, ele que arriscara a vida heroicamente e sabia guardar a boa lealdade de um soldado ao seu juramento.
É tempo, pois, de arrancarmos esse deturpado período da nossa história à lenda negra que o envolve insidiosamente. D. Miguel domina-o por completo com a sua figura galharda. Poucos reis foram, na verdade, tão populares como ele o foi! Teve a dupla consagração, a consagração do direito dinástico e a da vontade livre de Portugal. Com o seu exílio começou o declive rápido, por onde rolamos numa tristeza bem mais vil que a de antigamente. É que D. Miguel, ao embarcar, levava na pobreza das suas bagagens o espírito autóctone da pátria, a velha e experimentada alma lusitana. Na tarde da sua capitulação, tarde esplendorosa de maio, quase que morreu toda a nossa herança secular. Iam campear agora, num desaforo sem freio, as quimeras estultas, importadas de França pela pena leviana de meia-dúzia de ideólogos desnaturados. O eclipse do nosso génio coletivo totalizou-se densamente num prenúncio mau de tragédia. E a tragédia continua, porque continua sem se cerrar – e Deus sabe, até quando?! – o parêntesis aberto sobre a colina fúnebre de Évora-Monte.
[1] Sobre D. Miguel aconselhamos o volume Dom Miguel I König von Portugal, Luxemburgo, 1908, do catedrático luxemburguês dr. Artur Herchen. E damos ainda aos nossos leitores a agradável notícia de que o eminente historiador brasileiro, senhor Oliveira Lima, ultíma um largo estudo da época miguelina com o título A sucessão portuguesa (1826-28). Vamos ter, enfim, uma História de D. Miguel, de D. Miguel, que a historiografia monárquico-liberal expulsou de suas páginas, tornando quantidade inexistente os seis anos do seu reinado. E depois, com tais antecedentes, queixamo-nos da historiografia (?) republicana!
[2] Veja-se no dengoso volume Eles e elas, do sr. Júlio Dantas, o capítulo «A morte de D. João VI».
[3] Precioso a este respeito o raro opúsculo Memorande um d’une conférence de A. R. Saraiva... avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne, le 20 décembre 1833, sur le meilleur moyen de pacifier le Portugal, d’y mettre fin à la guerre civile, d’y retablir un vrai gouvernement constitutionnel, Londres, 1847. Nele se diz em nota, a p. 27: «Mais aujourd’hui, le Roi lui-même est convaincu plus que personne, du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir en son plein exercice et fonctions naturelles toute la belle organisation de notre noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues, et hétérogènes, que le Pombalisme (sic) (en vertu d’une sorte de dictadure, peut-être nécéssaire dans les circonstances alors) y avait introduites, au milieu du siècle dernier.» Em que consistia essa ‘Constituição’? No respeito à lei dos três Estados, em harmonia com a lei de 4 de Junho de 1824. Onde estava, pois, o absolutismo? Tratava-se até de uma reacção contra a hipertrofia do Estado pombalino.
A história de Portugal, nos começos do século transato, não se compreende em tantos dos seus aspetos contraditórios, sem que se conheça bem a história das sociedades secretas, suas inspiradoras. O Liberalismo nasceu entre nós no seio das lojas maçónicas, exatamente com aqueles que facilitaram aqui a penetração dos exércitos napoleónicos e que depois veríamos ministros de Estado, ao lado de D. Pedro, como, por exemplo, Bento Pereira do Carmo e Cândido José Xavier. Não nos é fácil desenhar agora, ainda que fugidiamente, o avanço das ideias revolucionárias em Portugal, conspirando primeiro com os sequazes de Junot, entendendo-se a seguir admiravelmente com partidários reconhecidos da União Ibérica.
Tanto a conjura de Gomes Freire em 1812, como a revolução de 1820, desenvolvidas e delineadas no regaço da Maçonaria, tinham trabalhos comuns com espiões espanhóis. Vingou o movimento de 1820, e as intenções que ocultamente o determinaram, palpitam-se bem na cínica nota de Silvestre Pinheiro Ferreira, nosso ministro dos Estrangeiros, ao governo britânico, ameaçando-o com a nossa entrega voluntária à Espanha, se não defendesse o novo regime do perigo que para ele as deliberações da Santa Aliança representavam. À série de atropelos, de latrocínios e desvergonhas que 1820 inaugura em Portugal, é o infante D. Miguel quem lhe põe cobro na célebre contra-revolução de Maio de 1823, designada por ‘a Vila-Francada’. À frente do exército e com o aplauso inteiro da nação, D. Miguel, restituindo a seu pai, el-rei D. João VI, os seus ‘inauferíveis Direitos’, o mesmo fez que devolver o país à sua ordem tradicional, interrompida pelos reformismos desorganizadores da Constituição de 22.
Depressa D. Miguel se viu ladeado de personagens vesgas, como Martins Pamplona – o companheiro dedicado de Gomes Freire, tanto nos conluios do Rossilhão, como no seu entusiasmo pela fortuna de Bonaparte. Perdoado só em 1820, Martins Pamplona conseguiu em Vila-Franca merecer a confiança de D. Miguel. Elevado a conde com o título de Sub-Serra, não demorou a trair o infante, constituindo com Palmela e outros sócios a sinistra camarilha que aprisionou inteiramente à sua vontade a vontade de D. João VI. É esse um capítulo da nossa história, conservado no escuro facciosamente, visto ser, na sua última fase, de 34 para cá, uma história de partido a história que é em geral do conhecimento de todos. Mas sobre a verdade dos documentos não resta dúvida que, em seguida ao golpe de Estado de Maio de 23, a Maçonaria, um momento vencida por D. Miguel, pensou logo em o perder, apossando-se do ânimo timorato do rei.
É contra a gente que rodeia D. João VI e o encaminha insensivelmente para um segundo ensaio de Constitucionalismo de importação, que D. Miguel se dispõe a dirigir em cheio essa espécie de pronunciamento, que termina na Bempostada. Aqui começa a difamação sistemática do futuro destronado de Évora-Monte. Apontam-no como querendo depor, e até assassinar!, a seu pai, debaixo das instigações malévolas de D. Carlota Joaquina. Sabem-se os resultados da Bempostada. O corpo diplomático intervém, D. João VI retira-se para bordo da nau Windsor-Castle, abandonando assim o território nacional. E mandando chamar a bordo seu filho, que obedece sem coação, exila-o para Viena de Áustria. Se a face dos acontecimentos se nos desnuda deste modo logo à primeira vista, abramos, para maior convencimento, as Instruções Maçónicas do Grande Oriente Espanhol Egípcio, impressas em Cádis em 1828.
«Depois de vários artigos em que se estabelece para Portugal a necessidade de separar por todos os meios possíveis D. João VI de sua esposa, preconizando, como processo mais seguro para se obter a vitória, a difusão da discórdia entre os membros da família real, eis o que aí se aconselha com a maior singeleza e naturalidade: Se como se deve esperar a Rainha e seu filho se opõem à revolução, aproveitando-se da sua influência, e trabalham contra nós fazendo demitir o ministério, será então necessário que todos os diplomatas e todos aqueles que pertencem à Ordem, se reúnam para protestar contra semelhante medida e para declarar em face da Europa que a Rainha e o Infante lesam os direitos da legitimidade. Deve trabalhar-se para decidir os representantes estrangeiros a tomarem parte neste ato em nome dos seus soberanos. Desta arte, os ministros serão conservados ou reintegrados no poder, e, sem o conhecer, D. João VI preparará tudo para chegar à última vergonha, a que o queremos arrastar.»
Graças à luz que jorra de tão valiosa transcrição, temos a descoberto os manejos disfarçados de que saiu a ida à Bemposta do corpo diplomático, com o ministro da França, Hyde de Neuville, à sua frente, manobrando como se fosse em pessoa o compadre Pamplona. D. Miguel, apanhado de surpresa numa rede, que não calculava donde lhe era lançada, submeteu-se e aceitou o desterro que o pai forçadamente lhe ditou. Lá rezava a papeleta de Cádis: «Se a Rainha e Dom Miguel... persistem em contrariar o nosso desígnio de destronar o déspota e de restabelecer a Constituição, é de absoluta necessidade decidir o Rei a banir sua esposa e seu filho da terra portuguesa...» Basta este lado da vida de D. Miguel, inteiramente encarado de maneira oposta à corrente, para nos elucidar de vez sobre o borrão de infâmia que lhe atiraram para cima da memória os vencedores de 34.
Partido para Viena D. Miguel, D. João VI fica então em Portugal na dependência absoluta da camarilha que o assassina aos poucos, devagar. Num receio permanente a tudo e a todos, definha-se com saudades do filho. Essa agonia da Realeza sente-se profundamente nas páginas memorandas de Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro – Exposição resumida do que, durante os dezoito meses que estive em Lisboa, sofri à fação, e aos celerados que cercavam El-Rei e o levaram à sepultura. D. João VI é espiado, não lhe deixam livre um só instante. E, quando se resolve a mandar vir D. Miguel, morre de repente, a seguir àquela merenda que fora comer a Belém – segundo a abertura do Portugal Contemporâneo. Morreu envenenado, já não há que duvidar![2] O ministério, com ele já morto, forja o decreto da Regência, de que nunca se conheceu o original com a assinatura do rei, e envia ao Rio una missão, a presentear com a coroa o Imperador. O que se receava era o regresso de D. Miguel, herdeiro legítimo de D. João VI. D. Pedro recebe, aborrecido, a missão portuguesa, fecha-se num quarto com Francisco Alves e sai de lá com a Carta, que nos remete no bolso de Lord Stuart, acompanhada da sua abdicação em D. Maria da Glória.
Indicado como príncipe-consorte e investido pelo irmão na regência do reino durante a menoridade da sobrinha, D. Miguel jura a Carta em Viena de Áustria e parte para Portugal. No seu livro Castilho e Saraiva, António Ribeiro Saraiva prova a nulidade desse juramento, porque, sem ele, não deixariam sair de Viena a D. Miguel, o qual, no entanto, ressalvou os seus direitos, depondo um protesto nas mãos do príncipe de Metternich. Com a sua sagacidade proverbial, Metternich escreveria de D. Miguel ao embaixador austríaco em Londres: «Começou a falar-me com franqueza e sinceridade da linha de procedimento que pensava seguir à sua chegada a Lisboa, e confesso que fiquei surpreendido da retidão de princípios e da sagacidade de vistas que me expôs com calor, precisão e clareza.» Até a lenda da imbecilidade grosseira de D. Miguel se desfaz com o testemunho do grande estadista!
Chegado a Lisboa, o país inteiro o quer e saúda como rei. D. Miguel apresenta-se, porém, como regente apenas e, sem que os Três Estados do Reino examinassem o ponto melindroso da sucessão, decidindo-se em seu favor, não usa o cetro, nem cinge a coroa. Aclamado deveras pela alma portuguesa, ele é o verdadeiro rei nacional, depois de D. Sebastião. Depositário das doutrinas da legitimidade definidas pela Santa Aliança, ninguém teime em o considerar como um soberano despótico, destinando-se a reinar sobre uma paisagem ensanguentada de forcas e de perseguições. Bem pelo contrário, num instante quase único na nossa história, ele procurava trazer à direção do Estado, por intermédio dos seus órgãos tradicionais ressuscitados, a influência benéfica do espírito ancestral da pátria.[3] Houve violências? Houve-as. Mas os liberais, formando uma pequena minoria, punham-se, por si, fora da lei pelo ingresso nas lojas maçónicas e trabalhando lá fora contra a integridade do nosso território. Nos Apontamentos para a história diplomática de Portugal, por Agostinho José Freire, aprende-se que D. Pedro, apelando para a intervenção estrangeira, oferecia, em troca de expulsão de D. Miguel, «a baía de Lourenço Marques ou quaisquer outras colónias asiáticas, ou das africanas na costa oriental». Em presença de factos como estes, percebe-se que a indignação em Portugal atingisse um grau subido de delírio. O Rei intervinha, tentava perdoar. «El-Rei perdoa; nós, não!» – e o cacete redemoinhava sobre a cabeça dos pedreiros-livres, em quem o povo via os sócios desses, senão os mesmos, que tinham porfiado em nos entregar a Junot.
Perante a imposição da Quádrupla-Aliança, D. Miguel capitulou em Évora-Monte, numa tarde de Maio, debaixo do imenso céu alentejano. Não traçaremos os inícios do regime que o substituiu. Só direi que os assassinatos a sangue-frio excederam então as execuções legais das justiças miguelinas, em número e em terror. Alarmado, assim o confessaria no parlamento o deputado constitucional Franzini. A espoliação, o esbanjamento e a ruína cobririam os piores crimes da república presente. Intacta, só permanece na sua honesta pobreza a figura forte de D. Miguel! Como D. Miguel, os seus partidários que não transigiram nunca. É um Portugal ignorado hoje, já desfeito na confusão dos cemitérios. Lembrarei aqui, como um símbolo, a admirável renúncia de um elvense, o tenente-coronel Marçal José de Mira. Ganhara os seus galões de oficial durante a Guerra Peninsular, no assalto a San Sebastián. Partindo a espada em Évora-Monte, abandonou as fileiras. E, a emparceirar-se com o partido vencedor, achou melhor acabar os seus dias, sem ter quase que vestir, a cavar a terra de outrem como hortelão, ele que arriscara a vida heroicamente e sabia guardar a boa lealdade de um soldado ao seu juramento.
É tempo, pois, de arrancarmos esse deturpado período da nossa história à lenda negra que o envolve insidiosamente. D. Miguel domina-o por completo com a sua figura galharda. Poucos reis foram, na verdade, tão populares como ele o foi! Teve a dupla consagração, a consagração do direito dinástico e a da vontade livre de Portugal. Com o seu exílio começou o declive rápido, por onde rolamos numa tristeza bem mais vil que a de antigamente. É que D. Miguel, ao embarcar, levava na pobreza das suas bagagens o espírito autóctone da pátria, a velha e experimentada alma lusitana. Na tarde da sua capitulação, tarde esplendorosa de maio, quase que morreu toda a nossa herança secular. Iam campear agora, num desaforo sem freio, as quimeras estultas, importadas de França pela pena leviana de meia-dúzia de ideólogos desnaturados. O eclipse do nosso génio coletivo totalizou-se densamente num prenúncio mau de tragédia. E a tragédia continua, porque continua sem se cerrar – e Deus sabe, até quando?! – o parêntesis aberto sobre a colina fúnebre de Évora-Monte.
[1] Sobre D. Miguel aconselhamos o volume Dom Miguel I König von Portugal, Luxemburgo, 1908, do catedrático luxemburguês dr. Artur Herchen. E damos ainda aos nossos leitores a agradável notícia de que o eminente historiador brasileiro, senhor Oliveira Lima, ultíma um largo estudo da época miguelina com o título A sucessão portuguesa (1826-28). Vamos ter, enfim, uma História de D. Miguel, de D. Miguel, que a historiografia monárquico-liberal expulsou de suas páginas, tornando quantidade inexistente os seis anos do seu reinado. E depois, com tais antecedentes, queixamo-nos da historiografia (?) republicana!
[2] Veja-se no dengoso volume Eles e elas, do sr. Júlio Dantas, o capítulo «A morte de D. João VI».
[3] Precioso a este respeito o raro opúsculo Memorande um d’une conférence de A. R. Saraiva... avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne, le 20 décembre 1833, sur le meilleur moyen de pacifier le Portugal, d’y mettre fin à la guerre civile, d’y retablir un vrai gouvernement constitutionnel, Londres, 1847. Nele se diz em nota, a p. 27: «Mais aujourd’hui, le Roi lui-même est convaincu plus que personne, du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir en son plein exercice et fonctions naturelles toute la belle organisation de notre noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues, et hétérogènes, que le Pombalisme (sic) (en vertu d’une sorte de dictadure, peut-être nécéssaire dans les circonstances alors) y avait introduites, au milieu du siècle dernier.» Em que consistia essa ‘Constituição’? No respeito à lei dos três Estados, em harmonia com a lei de 4 de Junho de 1824. Onde estava, pois, o absolutismo? Tratava-se até de uma reacção contra a hipertrofia do Estado pombalino.
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O tratado de Londres, firmado pela Quádrupla Aliança, em 22 de Abril, a chegada dos navios ingleses à nossa costa, o desembarque do almirante Napier que da Figueira avançaria por Leiria, Ourem e Torres Novas, a perda da batalha da Asseiceira, a marcha da divisão espanhola do general Rodil, através da Beira e do Alto Alentejo, afirmavam o claro propósito de que a ofensiva da Primavera fosse a última do exército liberal, na conquista da vitória.
Tornava-se evidente que as forças de D. Miguel, ainda com resistência para prolongar o sacrifício da guerra civil ou para enobrecer um desespero em campo aberto, já não poderiam sustentar um trono condenado pela intervenção estrangeira, combalido pelas constantes deserções e traições e pela quase permanente incapacidade dos comandos superiores, em contraste com a perícia de dois chefes militares, corno eram Saldanha e Terceira, um grande soldado e um perfeito general.
A Asseiceira, em alguns recontros indecisa, terminara na tarde de 16 de Maio. Na véspera, a infanta D. Isabel Maria seguira de Santarém para Elvas com alguns servidores e urna pequena escolta, para não ficar exposta às agruras de um possível cerco.
Muitos propunham (e queriam...) que a rendição se desse ali mesmo, em Santarém. D. Miguel, julgando já insustentável a posição que tivera durante meses, logo no dia seguinte a abandonou a D. Pedro e a Saldanha (que então «passou do Cartaxo») e atravessou o Tejo em direcção a Évora, no intuito de concentrar forças para a acção decisiva que se aproximava.
Com más lembranças saía o Rei de Santarém: ali lhe ficavam cinco mil soldados, mortos de tifo pela invernia; durante a ocupação, haviam perecido alguns milhares de habitantes da vila, às vezes enterrados a cento e cento, de sol a sol; lá ficava no seu pobre caixão de folha, na igreja do Milagre, o cadáver da Infanta D. Maria da Assunção, morta em Janeiro, aos vinte e oito anos, no meio da geral desdita e que à falta de outras honras, após alguns anos do triunfo liberal, só pôde ser sepultada em campa rasa.
Às forças do Duque da Terceira, na Golegã, vinha entregar-se e entregar a cavalaria do seu comando - os dragões de Chaves e vários corpos municiados - o brigadeiro Joaquim Urbano, que àquela cilada de deshonra trouxera os soldados, iludidos e inflamados na esperança de que iam combater pelo seu Rei.
Tanta perfídia, mereceu nas Memórias do Marquês de Fronteira estas palavras de honrada punição de um adversário:
«0 general traiu o seu Rei, na desgraça, e traiu os seus subordinados, levando-os a cometer uma infâmia, e, honra seja feita aos bravos dragões de Chaves, tenho a convicção, porque o presenciei de perto, de que, se uma voz se levantasse entre eles naquela ocasião, lembrando-lhes o seu Rei, preferiam morrer todos a abandonar a sua bandeira.»
Igualmente avulta, pela sua miséria moral, o procedimento que cobriu de vergonha o coronel António Cardoso de Albuquerque. E outros, e tantos...
As tropas de D. Pedro, à última hora, viam subitamente aumentados com bons reforços os seus efectivos. Bem certo é que a história muitas vezes se repete... Chega a ser fastidiosa, pela insistência, a sua verdade justiceira. D. Miguel entra em Évora a 21. No dia imediato dirige uma proclamação ao País, a protestar contra a intervenção da Espanha, da Inglaterra e da França nos negócios da política interna de Portugal. A Nação ainda o ouvia, mas já não podia falar. A 23 reúne-se no paço do Arcebispo um conselho, no qual, examinada friamente a situação, se decide por maioria pedir o armistício. As possibilidades de resistência diminuíam de hora a hora. Ouviam-se muitas vozes provocadoras de desânimo. A confusão dominava já os melhores juízos.
No outra dia, a 24, o Rei passa a última revista às tropas nas cercanias de Évora. Era um adeus mudo e solene: 16.000 infantes, 14.000 cavaleiros, 35 peças de artilharia ali estavam ainda em parada, para a vida e para a morte. No Algarve, o general Cabreira, dizia-se, comandava 3.000 infantes, 200 cavaleiros, algumas bocas de fogo, fora as guerrilhas da Serra; havia mais gente para entrar no conto que operava e se batia para as bandas de Alcácer. Somadas as guarnições dispersas além do Tejo, as forças miguelistas subiriam a 35.000 homens.
Mas batiam-se contra os marechais, mas tinham de lutar contra a Espanha, a França, a Inglaterra e, mais ainda, contra a misteriosa corda de traições e defecções que vinham do general Póvoas e da vitória vencida de Souto Redondo.
Terceira internara-se já no Alentejo, esse mesmo Terceira que, ainda então Conde de Vila Flor, fora no estado maior do Infante D. Miguel receber a Arroios o Conde de Amarante, que descia a Lisboa para colher os louros do pronunciamento de Trás-os-Montes contra o Vintismo. Pelo Alentejo penetrava também Saldanha, a largas marchas, para envolver e reduzir os campos de operações daquele mesmo Príncipe que onze anos antes ele acompanhara a Vila Franca, e que no regresso da Campanha da Poeira pisara aos pés o laço constitucional. É assim, mudável e vária a humana condição...
Aprazados os dois marechais para Montemor, ali se reúnem com o general miguelista Guedes de Oliveira e assentam que a convenção seria assinada em Évora-Monte, passados três dias.
Fora também a 26 de Maio, em 1823, que o regimento de infantaria do Castelo de S. Jorge se erguera ao toque de deitar correias no pronunciamento da Vilafrancada, ordenada pelo Infante D. Miguei e pelo brigadeiro José de Sousa Sampaio.
Na velha praça alentejana compareciam agora os dois marechais, por D. Pedro; o general Azevedo Lemos, por D. Miguel; o brigadeiro D. Ramon, representante de D. Carlos de Espanha; o secretário da legação inglesa que já estava no quartel general de Saldanha, seria o portador das antigas condições de capitulação, ditadas pela Grã-Bretanha, e malogradas por inaceitáveis, após a conferência do ministro lord Howard com o general Lemos, em 22 de Março, na ponte de Asseca.
Um mês depois daquela digníssima desinteligência, firmava-se em Londres, o já referido pacto da Quádrupla Aliança.
Não perdia o seu tempo a Maçonaria...
Pela Convenção, D. Miguel I tinha de deixar Portugal, dentro de 15 dias; escolheria o porto português e a nacionalidade do navio em que desejasse embarcar; reconhecia-se-lhe o direito à pensão anual de 60 contos; os seus oficiais conservariam os postos alcançados; os civis regressariam em paz aos seus lares...
Parecia um programa de concórdia civil, logo completado com o decreto de amnistia.
Assinada a Convenção numa casota térrea da vila, foi servida uma ceia que a presença do general vencido impediu que fosse festiva.
Lemos nada quisera nem pedira para si. O filho do povo, sempre tão desdenhado por certos fidalgos sem nobreza, que só mantinham o privilégio de ultrajar os nomes de avós ilustres, declarava que seguiria o destino do seu Rei, para o desterro. Ao descer de Évora-Monte por entre oliveiras, dolorosamente simbólicas, esse general Azevedo Lemos, ladeado apenas dos seus ajudantes e do marquês de Fronteira, que o acompanharia até aos postos avançados do exército miguelista, representou ali a lealdade e a vencida dignidade do povo português, nessa noite de silêncio e de luar tépido, em que a História abriu as páginas à glorificação das suas virtudes militares.
No dia seguinte, 27 de Maio, D. Miguel mandava ler e afixar a Convenção; dirigia o seu maior louvor às tropas, mostrando-lhes a impossibilidade de prosseguir numa luta sem esperança, desde que, contra a legitimidade do direito dinástico, contra a própria dignidade da Pátria, tropas e navios estrangeiros andavam combatendo em Portugal. O inimigo já não era uma facção de portugueses, constituía-o uma coligação de três poderosas nações da Europa.
De encontro aos quinais da Sé, do Paço do Arcebispo, do antigo palácio da Inquisição, ouviam-se ferros a tinir: eram as espadas que os oficiais partiam por desespero, para não as entregarem ao vencedor. Outros muitos arrancavam as barbas, em gritos de cólera e dor: Traição! Traição!
Em cumprimento das cláusulas da Convenção, o exército realista começava a desarmar e a destroçar.
Na noite de 27, em Lisboa, já decretada a amnistia, abria-se para a récita de gala o Teatro de S. Carlos. Por não ter mandado fuzilar o irmão e preferir dar um testemunho irrefragável de Clemência, e dos sentimentos de Amor e de Indulgência, D. Pedro sente, no camarote real, o primeiro ímpeto da justiça popular, nos insultos e doestos que não acalmam e ali desacatam ruidosamente a sua autoridade.
Acima dos dois príncipes irmãos, o vencedor e o vencido na luta pela soberania, erguia-se de mais baixo e para mais alto, a soberania do povo. O Imperador do Brasil ali conheceu que o preço da vitória da Liberdade foram os grossos patacões, talvez trinta fossem eles, vilmente arremessados à sua face mole e pálida de ético.
Ele pôde ainda dizer: «Fora, canalha!», mas essa canalha era agora o «poder mais alto que se alevantava». Ela ficou, ficaria, e quem saiu fora foi D. Pedro com a primeira hemoptise, com pedras e lama sobre a carruagem, para se finar dali a quatro meses, numa câmara de Queluz. Quem se ausentava do teatro e de Portugal era a Realeza verdadeira, sem alcunha que a desmentisse.
Em 28 e 29, D. Miguel preparava-se para o incerto desterro de que não mais voltaria.
Às vezes, surgindo às varandas do Paço do Arcebispo, seu quartel de uma semana, ainda o aclamam com doloroso fervor os corações fiéis do povo; abraça a chorar os soldados, que vão regressar aos regimentos ou às terras distantes, muitos a perder a vida em assaltos de vindicta; despede-se dos oficiais, e por alguns mais necessitados distribui o pouco dinheiro que ainda tinha consigo. Despida a farda, aparece vestido com um casaco de saragoça, calças e colete de pano azul. Chama o seu particular José Luís Rocha, filho da sua ama de leite Genoveva, e incumbe-o de uma honrada e honrosa missão: ir entregar a D. Pedro o cofre das jóias da Coroa. Para se indemnizarem dos valores de quinze contos, junta D. Miguel àquelas as próprias jóias do seu uso e da sua casa.
Quem perdera um trono «a que subira por dever», como ele acentuaria, mais cuidado tinha de pôr em conservar a honra, único património que levava para o exílio.
Ao receber a mensagem do Rocha, à vista de tal escrúpulo, o Imperador do Brasil não pôde deixar de comentar, entre admirado e desdenhoso: «Isto são mesmo coisas do mano Miguel!» - Tinha razão para estranheza o acolhimento de D. Pedro: as jóias confundira-as em Évora a honradez do Proscrito, e não bastou um século de luzes para as destrinçar!
* * *
Na madrugada de 30 de Maio, D. Miguel descia as brandas escadas do Paço do Arcebispo e começava a subir o fragoso calvário da sua alma. E por ele iria caminhando ao peso da vida, através de ermos de miséria e de infortúnio, até que a morte o colheria em terra estrangeira.
Ao passo das montadas, como vencido, deixava as Portas de Moura, transpunha a porta do Senhor da Pobreza, saindo das muralhas e entrando na campina, onde o esperavam dois esquadrões do Regimento de Lanceiros da Rainha, sob o comando do tenente-coronel Simão Infante de Lacerda.
Por última honra ao Vencido, que fora Rei de Portugal, escoltava-o um pelotão de vinte soldados da cavalaria realista. No comando dum dos esquadrões, ia o capitão D. Carlos de Mascarenhas, antigo amigo e companheiro de D. Miguel.
Ao mesmo tempo, em Elvas, a Infanta D. Isabel Maria ia recebendo as deputações dos marechais de D. Pedro. Ali se conformava mais uma vez com os factos, preparando-se para regressar a Lisboa, a congratular-se com a restauração solene da Carta.
Aos olhos turvos dos que iam, a claridade da manhã, inundava a charneca, acendia as vagas dos trigos loiros, no meio dos quais os montes avultavam como ilhas brancas na imensidade do horizonte, até à serra de Portel.
Por entre azinheiras, os pelicos, vestidos com a solenidade de dalmáticas, por S. Manços, na praça do Geraldo ou no portal da Sé, sob a bênção do Apostolado, ficavam quietos, com os rafeiros ao lado, a ver o desfile em silêncio funéreo... À tropeada da cavalaria, as cegonhas largavam das moitas em voos calmos, de aves semi-doméstícas, com rumo ao amor dos ninhos, suspensos em amieiros solitários, todos aleijados das investidas do suão.
Em volta, o terreno ia-se alongando, prolongando em convulsões irregulares de estevas floridas que ampliavam em brandas colinas a festa da planície, jucunda e farta, como mesa de lavrador.
Dos altos, os moinhos de vento acenavam para as searas, prometendo-lhes a glória de as converter no pão da vida, enquanto no topo da serra se transfigura à tremulina, a velha ermida de S. Pedro.
Vem à escolta avisos sinistros: a quadrilha do Batalha e do Galamba andava patrulhando pelo alfoz de Portel; num clube de Lisboa, talvez o mesmo em que se planeara a assuada a D. Pedro, em S. Carlos, resolvera-se a façanha de assassinar D. Miguel no longo caminho de Évora para Sines; e havia cúmplices nos próprios oficiais da escola, segredava-se. Os ministros da Inglaterra, da França e da Suécia, dirigiram-se ao governo para prevenir este plano carniceiro, que faria pagar com o sangue do Rei destronado, os excessos as violências, os crimes que não eram dele.
O ministro da guerra, Agostinho José Freire, entrava no dia 30 em Estremoz, e de lá tranquilizava o governo, ele que a voz pública denunciava como instigador do atentado e inspirador dos tumultos de Sines.
(Viria depois a ser morto ao passar na Pampulha pela mesma canalha que cortejou).
A quadrilha do Batalha compunha-se de muitas centenas de facínoras, recrutados entre a pior gente do Alentejo e do Algarve, em boa união com a rufiagem de Lisboa - todos bravos homens, que se mantiveram ausentes, enquanto se lutou em combate leal.
Simão Infante compreendeu que devia contar com o assalto do Batalha, quando soube que já haviam sido roubadas as bagagens de D. Miguel e as de sua aia D. Francisca Vadre, ficando ambos reduzidos às reservas da roupa que vestiam.
Ao pelotão de 40 soldados que se destacara em avançada, sob o comando da capitão D. Carlos Mascarenhas, procurou resistir o Batalha com a sua gente, defrontando-se-lhe no caminho. D. Carlos fez-lhe saber que se dentro de cinco minutos não estivesse livre a passagem, carregaria à espada toda a quadrilha. Os bandoleiros afastaram-se aos gritos de insulto a D. Miguel e à tropa liberal que nobremente o escoltava. Para muito longe ficavam na lembrança do Rei deposto os amores de Queluz e de Braga, as sortes de toureio na sua maior agilidade, as manhas sábias do velho Calabaça, as cantigas do Sedovem...
Naquele calor de incêndio, com os trigos a cair à foice, chovia cinza na alma do Rei. Aos trinta e dois anos, já lhe sobrava a experiência da vida: vitórias, derrotas, traições, ingratidões, lutas, covardias - tudo por Ele passara, de tudo, pouco ou muito, havia sofrido. Na marcha de funeral da sua glória e da sua esperança, iria pensando no conceito genérico que tantas vezes havia de repetir, como resumo crítico do seu momento histórico: Fomos ambos felizes, eu e meu Irmão. Por ele, esteve a inteligência sem honra; por mim, a gente de honra sem inteligência.
Ao passar em Ferreira este cortejo triste, já a má vontade do povo se traduzia no entusiasmo pelo sol nascente da política...
Na tarde de 31, D. Miguel, a sua comitiva e a escolta, chegaram pela força do calor, à vila de Alvalade, onde o povo com bondade e carinho recebeu os vencidos, já fatigados por vinte léguas de jornada.
D. Miguel foi hospedado em casa do lavrador Luís da Lança Parreira e de sua mulher D. Teresa Luísa, família principal da terra, que agasalharam com o que tinham e com os melhores sentimentos de respeito o seu Real Hóspede.
D. Miguel ali ceou, dormiu e almoçou no dia seguinte, 1 de Junho. Ao despedir-se com lágrimas de comoção daquela boa família portuguesa, que lhe beijava a mão na hora do infortúnio, o Rei deposto fixava numa nota escrita os nomes dos hospedeiros leais e corajosos, capazes de render homenagens a uma sombra que se afastava para sempre... Por esquecimento, ali ficou uma faca de prata que os descendentes daqueles lavradores foram guardando, e uma espada que o guerrilheiro Remexido lá mandou buscar depois, por quatro homens da sua hoste.
Mais algumas léguas de caminho e avistariam o mar, outra planície a que não se adivinhava o fim... Às cinco horas, D. Miguel entrava em Sines, sentindo de todos os lados a curiosidade azeda do povo. Turvava-se a alma desse rapaz prisioneiro que estava na flor da vida e fora rei absoluto de Portugal.
Descansou em casa do padre Galufo durante uma hora. Em terra, já o esperava com os seus oficiais Nicolau Lockyer, comandante da fragata inglesa Stag, fundeada no porto desde a véspera, ida de Lisboa com a corveta Nemrod.
Esta fragata Stag que ali esperava D. Miguel, era a mesma para onde D. Pedro quisera embarcar num momento de exaltação, durante o conselho de 7-8 de Agosto de 32, após o combate de Souto Redondo e do recontro do Bandeira, que ele esteve observando de uma janela do palácio dos Carrancas.
A fragata estava à foz do Douro, para ser utilizada em extremo recurso... Ia agora cumprir o seu destino.
A multidão dos moradores da vila e arredores, juntos aos manifestantes idos de Lisboa, comprimiam-se ao longo da rua que levava ao porto.
O povo foi-se exaltando a tal extremo que se tornou necessário estabelecer um serviço de defesa das embocaduras, formando-se alas com os esquadrões apeados e de espadas nuas.
O comandante da Stag convidou o Rei a embarcar sem demora, persuadido de que a pessoa de D. Miguel corria risco em terra. Como na descida para a praia não se podia ir a cavalo, D. Miguel e o seu séquito foram descendo a riba, desde a matriz até ao escaler, entre os oficiais ingleses e os portugueses, aos gritos de assuada, insultos, vivas à Carta, à Rainha e morras ao tirano.
Durante este percurso, uma pedra ou bloco de caliça, arremessado de um telhado, veio atingir um pé do capitão D. Carlos, sem o molestar.
Averiguou-se mais tarde que esse projéctil se destinava ao general Lemos, por última vingança do seu antigo sargento, Francisco Maria Raposo, castigado em Lamego, injustamente, dizia ele, por ter deixado escapar um preso. Este facto gerou a lenda de que D. Miguel fora apedrejado em Sines, glória triste que a laboriosa vila por certo indignadamente repudiará.
Após o embarque do Rei e da sua comitiva, em que iam o Conde de Soure, seu ajudante, D. Bernardo de Almada, ajudante de campo, o mordomo António José Guião, João Gaudêncio Torres, o general Lemos, o padre Joaquim dos Reis, confessor, Diogo José de Noronha, os seus criados fiéis, ao todo umas sessenta pessoas, a fragata e a corveta inglesa salvaram com os tiros da ordenança, a que não correspondeu a corveta portuguesa, do comando do capitão Limpo, cuja marujada viera para terra a colaborar na assuada dos garotos e vadios. Este foi por certo um grande serviço prestado à situação triunfante por aquele audaz marinheiro.
Os oficiais assinaram todos o auto de entrega, passara o comandante inglês o seu recibo: « - D. Miguel embarcou...», certificava o documento.
A fragata levantou ferro na manhã seguinte, para vir fundear em Cascais, a meter víveres; mas desse pequeno percurso ficou e veio até nós o eco de um protesto que, começando a correr no termo de uma guerra civil, se prolongou pelas distâncias e mudanças de um século inteiro, sem razão que reduzi-lo possa a definitivo silêncio.
Évora-Monte não simboliza apenas o ocaso da estrela política de um Príncipe que foi amado e aclamado por defender com os seus direitos uma aspiração histórica, jurídica e moral. Príncipes desgraçados, outros tem havido em Portugal, sacrificados ou mortos em perfeita inocência, e a justiça humana não dá mostras de melhoria, nem a injustiça revela sinais de decadência em todo o orbe.
A capitulação de há um século foi o epitáfio de uma esperança, a da reconciliação do passado com as exigências constantes da renovação; valeu a morte duma reacção consciente, de uma aspiração de renascimento que, vinda das escolas e academias, encontraria a oportunidade de se traduzir em úteis reformas económicas, sociais e políticas.
Requer-se à inteligência que tenha dignidade, o dever de descobrir nas reacções de 23 e de 28, algum pensamento construtivo, que através de todas as indecisões, era nacional e verdadeiro; é preciso reconhecer outras realidades vivas, além dos espantalhos das forcas e das sombras dos cacetes, como apregoam em seus balcões, certos rendeiros da História de Portugal, em signo de Maçonaria.
Se concedemos que Évora-Monte foi um fim, é só para marcar com essa data o começo de uma época de sistemática falsificação em que Portugal mudou de face, e de natureza, distanciando-se em odioso divórcio governantes e governados, pela interposição de clientelas fortemente organizadas em batalha legal.
Em Évora-Monte acabaram também, em holocausto à Liberdade, as ordens religiosas, apressadamente extintas em decreto de 28 - dois dias depois! - logo promulgado por D. Pedro em 30 de Maio, e cujo relatório abre assim:
Senhor: - Está hoje extinto o prejuízo, que durou séculos, de que a existência das Ordens Regulares é indispensável à Religião Católica, e útil ao Estado, e a opinião dominante é que a Religião nada lucra com elas, e que a sua conservação não é compatível com a civilização e luzes do século, e com a organização política que convém aos Povos.
Por tal diploma se renegava entusiasticamente toda a acção das ordens religiosas e militares na constituição e defesa da Pátria, e a maior glória do passado civilizador de Portugal nas quatro partes do mundo!
Percebe-se bem a ligação estreita destes dois instantes da nossa história, tão íntima ligação os prende que eles se fundem no mesmo ruinoso e diabólico desígnio: chega a parecer que a guerra civil durara aqueles anos todos, só para que não houvesse frades nem freiras em Portugal. Dispersaram-se os melhores núcleos de ensino, as portas da mais ampla caridade cerraram-se de todo. Fecharam-se Alcobaça, Santa Cruz, Tibães, perseguiram-se velhos, desbarataram-se livrarias seculares, calaram-se os órgãos conventuais, esmoreceu e quase se extinguiu em Portugal, durante um século, o amor sereno e desinteressado do estudo das letras.
Demoliram-se, incendiaram-se ou saquearam-se conventos e mosteiros, para roubar e vender pratas e alfaias; transmudou-se a nossa fisionomia espiritual, barbarizou-se o conceito moral da vida portuguesa.
Haverá ainda quem encontre deleite a contemplar o campo de ruínas que durante o século hoje findo, alastrou de lés a lés de Portugal: toda a comparsaria dos que rastejam, como osgas, pelas alfurjas da Maçonaria e pelas mesas das redacções. Mas o tempo futuro, vingador das violências do passado e das hesitações covardes da hora presente, dará serenidade à crítica histórica para reconhecer e louvar a justiça daqueles Portugueses vencidos. Por supremo sacrifício, com dor da inteligência e do coração, eles capitularam em Évora-Monte, sem poderem evitar com tantos trabalhos e com o preço do seu sangue, que os destinos da Nação ficassem entregues ao domínio espiritual e material do estrangeiro.
(Hipólito Raposo In A Voz, 26 de Maio de 1934)
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