UM ROMÂNTICO ESQUECIDO [António Ribeiro Saraiva]
António Sardinha
RESUMO
- O texto apresenta António Ribeiro Saraiva como uma figura injustamente esquecida do Romantismo português. Sardinha destaca que, embora a obra literária de Saraiva seja irregular e por vezes desproporcional, ele representa um tipo social e moral de romântico genuinamente português, diferente do modelo europeu.
- Sardinha faz uma análise histórica do Romantismo, mostrando as suas raízes na literatura pastoral e sentimental, especialmente através da influência de obras como Amadis de Gaula, argumentando que o lirismo português, presente desde os cancioneiros medievais até ao Romantismo, é marcado por uma afetividade natural e equilibrada, sem os excessos passionais do Romantismo francês ou alemão. Saraiva é apresentado como exemplo desse romantismo português: um homem de sentimentos profundos, mas sempre equilibrados, como se vê em seu amor por Catarina Sherson, relatado em seu Diário. Mesmo diante de desilusões amorosas e dificuldades políticas, Saraiva mantém dignidade, autocontrole e senso moral.
- No campo político, Saraiva é visto como um tradicionalista inteligente, defensor da restauração das instituições portuguesas autênticas (municípios e cortes gerais), em oposição ao absolutismo monárquico e ao parlamentarismo de importação. Sardinha considera que Saraiva compreendeu o Romantismo como um regresso às formas naturais do génio coletivo português, superando até Garrett e Herculano nesse entendimento.
- Por fim, o texto valoriza a produção poética de Saraiva, especialmente os seus poemas regionais, e defende que ele merece maior reconhecimento como precursor do regionalismo literário em Portugal e como representante do verdadeiro espírito romântico nacional.
ASPECTOS POLÍTICOS
- Visão sobre a política nacional. Saraiva defende a restauração das instituições tradicionais portuguesas, como os Municípios e sua representação em Cortes Gerais, em oposição ao absolutismo monárquico e ao parlamentarismo importado. Sardinha cita o Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, onde Saraiva propõe: “…conciliar os dois grandes princípios que as duas seções da nação sustentavam, ou pretendiam sustentar, a saber, a Legitimidade de um lado, e o governo chamado Constitucional ou Representativo do outro. […] a Legitimidade consiste não só em D. Miguel ser a pessoa que ocupa o trono, mas em que se observam os verdadeiros Contratos Sociais, o verdadeiro Direito Público Português, a verdadeira antiga Constituição…”
- Crítica ao absolutismo e ao parlamentarismo. Saraiva mostra-se crítico tanto ao absolutismo monárquico quanto ao parlamentarismo de inspiração estrangeira, defendendo uma política baseada nas tradições portuguesas: “…a política de D. Miguel, como Ribeiro Saraiva a formulava, era a política histórica da Nacionalidade, em reação contra os dois absolutismos, o absolutismo monárquico, enxertado por Pombal na árvore da nossa realeza tradicional, e o absolutismo parlamentar importado de França com a aragem nefasta da Revolução.”
- Reflexão sobre o papel do Estado. Saraiva demonstra uma compreensão orgânica da estrutura do Estado, valorizando a liberdade identificada com a legitimidade e as instituições autênticas do povo português: “Conceito inteiramente orgânico da estrutura e das relações do Estado, ele imprime a Saraiva o cunho de uma personalidade política superior. É aí que Saraiva excede a Garrett na compreensão do Romantismo, como sendo o regresso do nosso génio coletivo às suas formas naturais, completamente destroçadas por mais de um século de centralização absolutista e de falso e empedernido classicismo.”
UM ROMÂNTICO ESQUECIDO
Sempre me interessou a figura de António Ribeiro Saraiva, injustamente olvidado no forte e curioso recorte da sua lusitaníssima personalidade. Não o creio merecedor de elogios incondicionais, quanto à obra literária que nos legou – esfarrapada, tumultuosa e, por vezes, falta do mais rudimentar sentido das proporções. No entanto, se à palavra romântico ligarmos a sua verdadeira significação que é a de um tipo social e moral determinado, António Ribeiro Saraiva descobre-se-nos logo como um romântico perfeitamente caracterizado, mas tomando o Romantismo por aquele aspeto particularíssimo através do qual nós, portugueses, o devemos tomar.
Evidentemente que ao acentuar semelhante restrição tenho no pensamento a crítica geral a que o Romantismo está hoje sujeito, como sendo uma psicose das mais desordenadas. Desorganização entusiástica do sentimento, lhe chama acertadamente algures Pierre Lasserre. E se considerarmos que a paranoia revolucionária com que o século passado abriu seu caminho é filha legítima do vento romântico, já se compreende que Ernest Seillière nos apresente Jean-Jacques Rousseau como «pai do mundo moderno». Jean-Jacques Rousseau é, com efeito, o depravador da sensibilidade culta na antiga sociedade – na sociedade repousada ainda nos seus alicerces tradicionais, embora alicerces já abaladíssimos. Em todo o caso, as raízes do mal cresciam desde muito de atrás e, se nos fixarmos na influência da Astrée, de Honoré d’Urfé, na formação emotiva de Rousseau, verificaremos sem custo que, ao alto da história-pregressa do morbo romântico, se encontra, presidindo, única e exclusivamente o gosto já secular, tanto em França como nos demais países do Ocidente, pelos arrebatamentos idílicos e convencionais da novela pastoral.Assim, com fundamentados motivos, nos observa o dr. Ricardo Jorge no seu magnífico estudo acerca do poeta seiscentista Francisco Rodrigues Lobo: «A obra de Rousseau, que mais de um século andado revoluciona a literatura e os espíritos, que é senão uma explosão de sentimentalidade exaltada, de uma violência afetiva, apenas mais esquisita, complexa e torturada do que a tenra maviosidade dos zagais de outrora? O agitador do sensibilismo, sentado num penedo de Vevey à beira de água, desaperta o caudal das lágrimas e entretém-se a vê-las pingar no espelho do lago...» E o doutor Ricardo Jorge acrescenta, aludindo à Primavera de Rodrigues Lobo: «O Sereno é um avatar embrionariamente acanhado do Saint-Preux, como este o é dessa progénie de desequilibrados, sonhadores, lipemaníacos e misantropos – Werther, Obermann, Fausto, Manfred, René, e tantos outros heróis menores de um egotismo dorido, e retumbante. A moléstia do romantismo, que aflige a Europa inteira no século passado, não será a expansão do fermento patogénico do bucolismo, eivado agora de superior virulência, difusibilidade e energia mórbida. Requinta a estética, mas exacerba-se a loucura: os bucólicos eram doidos assim, mansos como os cordeiros e puros como os líricos, nas suas cabanas de colmo; os românticos saíram revoltados e tenebrosos, possessos e epiléticos, bramando e contorcendo-se como furiosos em cela de manicómio. A novela bucólica, há que reconhecê-lo, é o fuzil de uma cadeia que engranza na novela sentimental oitocentista onde prende o elo possante e lavrado da novela romântica dos nossos dias.»
Não se engana o ilustre professor nas suas bem concatenadas suposições! A genealogia do Romantismo entronca, por mais de uma ramada, no fundo rebuscado das velhas pastorais. «La Pastorale antique, commence par rappeler M. Seiliére – escreve – avait été tout d’abord assez réaliste entre les mains de Théocrite et de son école, René Gillouin no seu recente livro Une nouvelle philosophie de l’Histoire moderne et française, apanhado valiosíssimo das ideias e obra de Ernest Seillière, já citado. «Mais dans la suite la hantise de l’âge d’or, qui trahit... l’incapacité d’adaptation de l’individu à un milieu social rapidement progressif, trouva dans l’Églogue un cadre où se déployer à l’aise. L’utopie parle encore plus hardiment dans le Chasseur d’Eubée de Dion, et le roman grec, pénétré de néoplatonisme, se fait aimablement pastoral en même temps que subtilement érotique avec Longus. »
Depois, «dans le monde que l’antiquité classique lui fournissait ainsi préparée, la Renaissance devait verser cette conception proche parente du platonisme, la morale romanesque, telle que l’avaient constituée la lyrique courtoise et l’épopée arthurienne. Les Italiens se tinrent d’abord assez près de l’antique ; les Espagnols au contraire, imprégnés de courtoisie par leurs Amadis, habillèrent sans retard leurs pastorales en romans de chevalerie, amputés toutefois de ce trait viril et guerrier qui en faisait partie intégrante au Moyen-Âge, et réduits presque exclusivement à leur portion érotique. Naguère, la courtoisie ou le platonisme avaient du moins remplacé, comme principe d’action, la volonté de puissance par l’amour, avide de conquête et dès lors incitateur de hauts faits ou de perfection sociale, dans l’exaltation du joie masculin.»
Atribui René Gillouin à sugestão espanhola um decréscimo desvirilizador no pastoralismo amoroso, generalizado pela Renascença. «L’amour pastoral moderne – comenta ele – tel qu’il apparaît dans la Diane de Montemayor et plus nettement encore dans l’Astrée d’Honoré d’Urfé (les deux grands succès du genre) ... c’est un sentiment timide et langoureux, larmorant et extasié. Il aboutit à l’entière divinisation de la femme et à l’identification de l’érotisme avec la religion... » Se, na verdade, o alastramento do ideal pastoril, «en faisant de ses bergers des causeurs de salon aristocratique et des métaphysiciens de l’amour, en transportant sur la chaume la culture la plus raffinée», acaba por insinuar e sugerir que «l’état de nature est un état social accompli» – ainda na expressão de René Gillouin –, a culpa não pertence, se olharmos bem às coisas, à impregnação dos conceitos eróticos do Amadis na literatura pastoralesca exportada da Península.
Antes de avançarmos, convém esclarecer que é, sobretudo, de Portugal que a aura do Amadis irradia, sabido já hoje, depois da identificação biográfica e cronológica de João de Lobeira, realizada pelo falecido folclorista António Tomás Pires, que no ocidente peninsular e não em outra parte das Espanhas («les Espagnols» aparecem decerto em René Gillouin como uma simples designação geográfica) é que a célebre novela de cavalaria teve a sua origem e o seu nascimento.
Relaciona-se o problema que nos preocupa com a questão fundamental do lirismo português. Não é o Amadis senão um aspeto desse lirismo tão próprio da nossa raça e tão inconfundível como ela. Superiormente o declarava já o grande Menéndez Pelayo, quando o mistério teimava em se manter ainda sobre qual fosse o berço e a naturalidade do Amadis. No por estas fútiles presunciones, sino por motivos algo más hondos, aun sin contar con los indicios históricos y documentales, se siente inclinado el ánimo a buscar en el Oeste o Noroeste de España la cuna de este libro», asevera Menéndez Pelayo. «Domina en él un idealismo sentimental que tiene de gallego o portugués mucho más que de castellano: la acción flota en una especie de atmósfera lírica que en los siglos XIII y XIV sólo existía allí. No todo es vago devaneo y contemplación apasionada en el Amadis, porque la gravedad peninsular imprime su huella en el libro, haciéndole mucho más casto, menos liviano y frívolo que sus modelos franceses; pero hay todavía mucho de enervante y muelle que contrasta con la férrea austeridad de las gestas castellanas. Todo es fantástico, los personajes y la geografía. El elemento épico-histórico no aparece por ninguna parte, lo cual sería muy extraño en un libro escrito originalmente en Castilla, donde la epopeya reinaba como soberana y lo había penetrado todo, desde la historia hasta la literatura diáctica.»
Já antes e no mesmo volume Menéndez Pelayo nos dissera: «Había, no obstante, una región de la Península donde, ya por oculta afinidad de orígenes étnicos, ya por antigua comunicación con los países celtas, ya por la ausencia de una poesía épica nacional que pudiera contrarrestar el impulso de las narraciones venidas de fuera, encontraran los cuentos bretones segunda patria, y favorecidos por el prestigio de la poesía lírica, por la moda cortesana, por el influjo de las costumbres caballerescas, despertaron el germen de la inspiración indígena, que sobre aquél tronco, que parecía ya carcomido y seco, hizo brotar la prolífica vegetación del Amadis de Gaula, primer tipo de la novela idealista española. Fácilmente se comprenderá que aludo a los reinos de Galicia y Portugal, de cuyo primitivo celticismo (al menos como elemento muy poderoso de su población, y también de la de Asturias y Cantabria) sería demasiado escepticismo dudar... si no se admite la persistencia de este primitivo fondo, no solo quedan sin explicación notables costumbres, creencias y supersticiones vivas aun, y casos de atavismos tan singulares como el renacimiento del mesianismo de Artús en el rey Don Sebastián, sino que resulta enigmático el proceso de la literatura caballeresca, que tan profundamente arraigó allí, que conquistó sin esfuerzo las imaginaciones como si estuviesen preparadas para recibirla y que fue imitada con tanta originalidad a la vuelta de algunas generaciones.»
Alongámo-nos talvez demais nas transcrições arrancadas ao mestre eminente das Orígenes de la novela e da Historia de los heterodoxos españoles, honra e glória do pensamento hispânico. Mas elas exprimem-nos o quanto o Amadis e o género sentimental inaugurado pela afamada novela se afastava do que é essencial e determinante no génio castelhano, a ponto de lhe ficar quase estrangeiro. E René Gillouin incorre num erro grave de apreciação, ao acusar o Amadis, pela sua numerosa ramificação pastoralesca, de perverter, de feminilizar excessivamente o espírito da pastoral, herdada dos antigos e rejuvenescida pela Renascença, ao contacto sereno e sóbrio da conceção platónica do amor. Era o que Menéndez Pelayo já entendia, quando nos repara que «lo más grave y lo que hizo sospechoso desde luego a los moralistas el Almadis, con su innumerable progenie, fue la falsa idealización de la mujer, convertida en ídolo, deleznable de un culto sacrílego o imposible, la extravagante esclavitud amorosa, cierta efeminación que está en el ambiente del libro, a pesar de su castidad relativa». Nada menos exato, contudo! Se indubitavelmente, no Amadis, Oriana «es personaje tanto o más importante que Amadis», nesse facto se traduz a situação que a mulher ocupa na instituição doméstica do povo galaico-lusitano, de que é indício bastante significativo a comunidade dos bens, em que repousa o regime nupcial português, tão diverso do regime nupcial espanhol. Percorramos o nosso lirismo, tão natural e humano, e logo se concluirá que, a não ser na época ultrarromântica, nunca a paixão amorosa se praticou entre nós através da hipertrofia sentimental que as reflexões de Menéndez Pelayo nos levam a supor.
Falando dos poetas do período de D. Dinis, o próprio Menéndez Pelayo comenta: «Por algunos de estos poetas, especialmente en el hijo de D. Dinis, Alfonso Sánchez, es de aplaudir la suave ingenuidad en la expresión de los afectos; en otros se notan los gérmenes de cierto depurado idealismo análogo al del Petrarca; así en Vasco Martins, que trovaba por una muerta, prototipo de perfecciones el mayor que el mundo halló.» E adiciona um pouco mais adiante: «El único resultado, el mérito grande y positivo de esta imitación provenzal, consiste en la parte técnica, en la gimnasia de rimas, en el duro aprendizaje, que convirtió a la lengua galaica en el más antiguo tipo de los dialectos líricos de la Península. No importa que esas formas sirviendo por de pronto para la expresión amanerada y trivial de un sentimiento falso, que hacia el rey D. Denis perderse en cavilaciones metafísicas y alardear de una pasión misteriosa, tímida e inmaculada, que tanto contrastaba con la intemperancia habitual de su vida, y con las costumbres de la gente de su tiempo.»
Tão próximo do nó da questão, Menéndez Pelayo, que, por um lado, atinge a bela exaltação lírica de Vasco Martins, considera por outro lado afetada e superficial a musa tantas vezes discreta de D. Dinis. É uma manifesta impossibilidade de apreender o que há de normal nessa ideia afetiva de mulher, companheira e colaboradora da vida, metade com a qual repartimos os desgostos e as alegrias. A gran coyta do corazon em que os cancioneiros se humedecem, reproduzindo a flor mais pura do nosso lirismo, assume para Menéndez Pelayo as linhas exageradas, quase caricaturais, que o século XVII castelhano dispensou à emotividade passional dos portugueses, aos «portugueses derretidos», de que nos fala o epigrama conhecidíssimo de Lope de Vega:
A un portugués que lloraba
Preguntaron la ocasión;
Respondió que el corazón
Y que enamorado estaba,
Por mitigar su dolor
Le perguntaron de quién;
Respondió que de ninguién,
Llóro de puro amor!
Ora o «llorar de puro amor», que enche de amaviosidades inéditas o espanholismo castiço do ciclo literário de Tirso de Molina e de Calderón de la Barca, não dá de modo nenhum entre nós os desregramentos passionais de que andam cheios os fastos do romantismo de além-fronteiras. Onde se encontra, por exemplo, em Portugal um caso como o que Charles Maurras analisa e disseca, com fina experiência de psicólogo, a propósito de George Sand e de Musset, no seu conhecidíssimo livro Les amants de Venise? Que diferença incomparável com o desse José Augusto Pinto de Magalhães e de Fanny Owen, embora já fortemente impregnado da fatalidade amorosa, nascida do desvario sensibilista dos franceses. Quer parecer-me a mim que se confunde na hipótese presente o amor de mulher como esposa com o amor de mulher como amante. Repara justamente Gaston Paris, que a harpa bretã é a única de que se desprende a nota apaixonada do amor ilegítimo e fatal, gerando uma conceção de amor que até então se não descobre em nenhum outro povo nem em nenhum outro ciclo poético. Amor mais forte que a honra, amor mais forte que o sangue e mais forte que a morte, enlaça-nos numa cadeia inquebrantável, como a que enlaçou e perdeu sem remédio Iseu e Tristão. É, porventura, o que sucede com a concepção amorosa em que o nosso lirismo se inspira e enternece? Evidentemente que não.
Enganava-se, pois, Menéndez Pelayo, quando considerava o Amadis como criador de uma «falsa idealización de la mujer, convertida en ídolo deleznable de un culto sacrílego o imposible». São mais acertados os juízos que a tal respeito nos oferece o filólogo Menéndez Pidal, seu ilustre discípulo. Diz ele: «Europa entera se embelesó con las maravillosas aventuras de Tristán y Lanzarote, dichosas víctimas de la temible sirena, que rompió todo sagrado vínculo, atraídas con fatal encanto al adúltero infierno de su amor: pero España, al dar su fruto propio en el mundo de la ficción, produjo el Amadis, donde esa poesía cortés y aventurera desecha la levadura antisocial de los modelos franceses, para convertirse en la poesía del amor legítimo, sublimado por la más inquebrantable fidelidad. Y el Amadis, nimbado com esta luz divina, sobrevivió a la muerte de sus modelos y halló admiración en las literaturas renacentistas, cuando Torcuato Tasso transportaba las ficciones del libro de caballerías al poema épico, estimando que los poetas españoles sobrepasaban a los franceses por su concepción del amor cual un hábito nobilísimo y constante de la voluntad. Y aún más: en nuestros días, el conde de Gobineau, tan simplistamente convencido de la superioridad única de los pueblos arias y de la decadencia inevitable de los mestizos, cuando quiso coronar sus estudios sobre la raza superior con vaticinios poéticos, puesto a buscar un símbolo de la más elevada condición de la humanidad aria en lucha con la objeción de las raças espurias, desechó a Tristan y Lanzarote, y no acerló a hallar en toda la Edad Media otro héroe personificador más grande que este doncel Amadis, misteriosamente nacido en la literatura hispánica. El diplomático y orientalista francés, lo mismo que el poeta italiano, reconocía la grandeza que fluye de la pureza moral del héroe español.»
Tudo exacto, desde que se tome o termo «espanhol», como apelativo geográfico. Alheio, portanto, à mancha danada que Menéndez Pelayo lhe imputava, o Amadis é o espelho cristalino da profunda natureza lírica da nossa raça. A delicadeza do seu coração não exclui as práticas vigorosas de cavaleiro intemerato. Lembremo-nos de que, sendo estruturalmente lírico o génio português, não deixamos de ser por isso um povo de ação – um ninho permanente de descobridores e de navegadores. A nossa epopeia que, além de nacional, é cheia de sentido universalista em relação ao sonho inquieto da Renascença, por quem foi concebida e escrita, senão por um lírico? O que é o mito supremo do Encoberto senão uma condensação coletiva de lirismo? Assentemos que o lirismo para nós é alma, enquanto para os outros é imaginação, e o problema fica inteiramente esclarecido, desde a génese longínqua do Amadis até ao alvorecer do Romanceiro com Garrett.
Parece-me assim suficientemente demonstrado o critério porque devemos encarar o Romantismo entre nós. Referindo-se à Menina e Moça, escreve Menéndez Pelayo que a novela de Bernardim se caracteriza por «un sentimentalismo algo enfermizo, pero que llega a ser encantador por lo temprano y solitario de su aparición», terminando por capitulá-lo de «pre-romanticismo patético y sincero». Se Menéndez Pelayo atentasse pausadamente nos nossos Cancioneiros, veria que já ali palpita esse pre-romanticismo. Ele é condição inata do espírito lusíada. E, transmitido dos Cancioneiros ao Amadis, prolonga-se em inolvidáveis criações literárias da Menina e Moça à Diana, de Jorge de Montemor. Com a Diana internacionaliza-se, abastardando-se depois através da Astréa, de Honoré d’Urfé, e dos epigramas com que a dureza psíquica do castelhano europeíza o nosso temperamento amorável e enternecido.
Recordam-se, certamente, como, nos Trabajos de Persiles y Segismunda, Cervantes nos conta a história de el enamorado português, a quem chama Manoel de Sosa Cortiño». Trata-se indubitavelmente do que foi mais tarde Frei Luís de Sousa. Como cavaleiro de Malta caiu Manuel de Sousa Coutinho cativo dos berberiscos. Em Argel conheceu a Cervantes que, mais tarde, sombra do nome dele, fantasiou o episódio da sua novela. Afirma Cervantes «ser costumbre el morir de amor los Portugueses». E apresentando como morto do mesmo mal ao seu companheiro das ribas argelinas, à hora em que Manuel de Sousa Coutinho calcava já as proximidades da profissão, estampa o epitáfio que lhe consagrou «un hermano suyo, que heredó su hacienda». Ei-lo: «Aquí yace viva la memoria del ya muerto Manuel de Sosa Coitiño, Caballero Portugués, que a no ser Portugués aún era vivo, no murió a las manos de ningún Castellano, sino a las de amor, que todo lo puede; procura saber su vida, y envidiarás su muerte, pasajero».
Afigura-se-me este testemunho bastante elucidativo, para que o hajamos de glosar demoradamente. Se a afetividade espontânea da nossa índole, vista de fora, produzia a incompreensão, que vai desde a sátira de Cervantes aos juízos severos de Menéndez Pelayo, não é para admirar também que, lançada aos torneios artísticos da Europa, pelo prestígio dominador da Diana, se tornasse depressa, numa bastardia inqualificável, o tronco seguro donde derivou, como moda social e literária, o Coração sensível.
Mas nós começáramos discorrendo acerca de António Ribeiro Saraiva, cuja significação adentro do nosso Romantismo é das mais expressivas, e mais completa até que a de Garrett debaixo de determinados aspetos. A publicação recente do Diário de Ribeiro Saraiva, por cujas mãos passaram os fios mais delicados da diplomacia miguelista no seu estrebuchar, acabam então de prestar à figura desse velho que prefere admiravelmente o desterro voluntário a ser na sua pátria um emigrado perpétuo, as mais inesperadas e vigorosas facetas. É o Diário de Ribeiro Saraiva como todos os Diários que não obedecem a propósitos de literatura doméstica, um alto, um extraordinário documento humano. Que riqueza de vontade, que amplitude de visão, que disciplina de espírito e que heroísmo de inteligência! Não nos falta até uma paixão, a paixão de Ribeiro Saraiva por Catarina Sherson, «a minha Catarina», como ele enternecidamente lhe chama.
Pois mais que as desgraças políticas, mais que a abundância e a vivacidade de Saraiva, dedicando-se ao negócio de vinhos para viver e não dispondo muitas vezes de uma pequena moeda com que pagar o correio – o correio numeroso e agitado da Causa! –, o seu amor, tão ardente e refletido, por Catarina Sherson exemplifica-nos perfeitamente o que acerca da conceção da mulher no nosso lirismo ficou resumidamente ponderado. Não conhece Ribeiro Saraiva maior enlevo, entrega-se-lhe de alma e coração, num palpitar de adolescente tímido.
No entanto, que humanidade não há em todo o seu afeto, por arrebatado que ele frequentemente se manifeste! Catarina Sherson abandona-o, por fim, a família não a quer ligada a um homem que perdeu as vantagens da sua antiga carreira, e que não possui posição na sociedade. António Ribeiro Saraiva vacila por momentos, e é esse, como experiência moral, um dos momentos mais interessantes, mais cheio de singeleza dramática, do seu Diário. Oiçamo-lo. Escreve ele em 24 de Abril de 1834:
«Fui a um baile a casa de Richardson, onde encontrei a minha querida Catarina, com quem dancei, e conversei com ela quase toda a noite. Estava extremamente amável, dizendo-lhe eu que estava muito triste porque tinha tido muito más notícias para a causa de Portugal (pois ali mesmo Henrique de la Belinaye me tinha dito, como coisa segura, que não tinha dúvida nenhuma estar, pelo menos, feito e escrito o tratado da Inglaterra, França, Espanha e D. Pedro, para arranjarem a seu modo os negócios da Península e intervirem por força contra nós, etc.). A minha querida me disse que não me entristecesse, que isso não mudava nada seus sentimentos a meu respeito. Dizendo eu que, se eu estivesse certo de que os desastres da causa que eu defendia e a posição infeliz em que eu poderia logo achar-me não me fariam perdê-la, a ela, eu não teria a aflição que tinha com estas notícias más, e, enquanto tivesse a certeza do seu afeto, como agora ela mo tinha (sic), me reputaria feliz e pouca influência então teriam os desastres, etc. – a isto ela respondeu, apertando-me a mão, e, olhando-me com um ar da mais doce ternura, me disse com uma expressão angélica: Then be happy! Poucos instantes depois, tirou do seio a pequena cruz que eu lhe dera como lembrança do seu dia de anos no princípio de Abril, e ma mostrou sem dizer nada, tornando a a guardar no seio. Eu lhe mostrei o sinete que tinha comprado esta manhã com o forget-me-not: ela observou-o, achou o bonito e mo dava de novo; eu não o quis aceitar e ela, admirada, me perguntou porquê. «Porque é vosso», respondi eu, e então sorrindo mui levemente o atou na ponta do lenço, sem dizer mais nada...»
Assim amava e sofria no tempo do Coração sensível um temperamento português! Não sei de nada melhor para destruir os estilos da lenda sentimental que Cervantes eternizou literariamente nos Trabajos de Persiles y Segismunda e de cujo processo as Lettres d’une religieuse portugaise constituem talvez a peça mais demonstrativa! Tal é a face exata do nosso Romantismo. Como ele, expressão clássica porque é espontânea e natural, se entronca diretamente na castidade sentimental do Amadis! «On sait l’histoire de cet Amadis des Gaules qui, ayant charmé la captivité de François I à Madrid, fut rapporté par lui en France et, aussitôt traduit par Herberay des Essarts, conquit dans notre pays une popularité sans égale et y suscita d’innombrables continuations et imitations» – conta do Amadis o citado René Gillouin. E reconhecendo que « d’une manière générale, ces Amadis font peu de place à l’adultère », ainda que « instituent en revanche une véritable école de capitulation amoureuse par les filles », o autor do curioso volume Une nouvelle philosophie de l’histoire moderne et française toca o mais que lhe é possível tocar na diferença dos dois tipos passionais – o do romantismo francês, derivado da desordem dos sentidos, e o do nosso lirismo, elemento positivo do génio e carácter português.
A propósito da moda social que o Amadis representou no domínio das emoções amorosas, conta-nos René Gillouin que «moralistes peu suspects de pruderie, tels que la Noue», não se continham sem desabafar perante os resultados honestíssimos da moda, cuja leitura tanto encantava a prisão de Francisco I, em Madrid: «J’ai oui dire à vos bons gentilhommes que ces livres avaient une propriété occulte à la génération des cornes, et je me doute que lui-même en avait fait l’expérience». Pergunta se uma influência parecida se desenhou porventura em Portugal – e ninguém ignora a voga que o Amadis e a sua numerosíssima descendência obtiveram entre nós. Dois episódios o atestam inolvidavelmente. É um deles a modificação da célebre novela na parte referente à infelicidade de Briolanja. Di-lo uma espécie de sigla ou nota intercalada no texto castelhano de Montalvo. Bem diversas as coisas decorriam entre Briolanja e Amadis, até que «el señor infante don Alfonso de Portugal, habiendo piedad de esta hermosa doncella (Briolanja), de otra guisa lo mandase poner». Por outro lado, na sua Arte de Galanteria, D. Francisco de Portugal conta-nos a história de um D. Fuão qualquer que, ao chegar a casa, deparou com a família e a criadagem em pranto desfeito. «Pois quem morreu?» – interrogou, com angustioso sobressalto. «Morreu o Amadis, senhor! Morreu o Amadis!» – lhe volveram em carpido coro.
Se a nossa impressionabilidade se chocava tão fundamente com a vida e obra do esforçado cavaleiro, seria para admitir-se que o germe nefasto, denunciado por La Noue, Brantôme e outros, se verificasse também em Portugal nos seus desarranjos sociais e morais. Acontece, porém, que Purser no seu Palmeirin of England atribui tão danada corrupção, não ao Amadis original, mas às paráfrases obscenas vulgarizadas em França por Des Essarts» – elucida Ricardo Jorge. Assim devia ser, porque, filho – insisto – da nossa conceção do amor, o Amadis refletia-lhe a idealização, sem lhe aumentar a fatalidade desregrada das paixões invencíveis do ciclo bretão.
O que era essa conceção do amor, e em pleno advento do Romantismo, claramente o aprendemos em António Ribeiro Saraiva. Na sua notação breve, o Diário acusa-nos todo um tormento íntimo, todo um coração pisado. Mas António Ribeiro Saraiva possui-se nobremente, porque nobre é o sentimento que lhe agita a existência. Há ocasiões em que ele, atormentado pelo amor, pensa em submeter-se, em aceitar o governo de Lisboa. Mas reage logo sobre si – e reage com humildade cristã, reconhecendo que Deus o arranca de um caminho desviado e perigoso. E a pouco e pouco o vulto de Catarina Sherson vai-se apagando, vai-se sumindo, e na vida pobre, mas rica de significação interior, de António Ribeiro Saraiva, é sempre uma cicatriz que não seca nunca.
Há no Diário uma pequena passagem que nos explica inteiramente António Ribeiro Saraiva. Foi a 16 de Janeiro de 1839, dia em que encomendou um casaco azul, «de que estou mui precisado» – declara. António Ribeiro Saraiva passa a noite em casa, classificando e ordenando papéis. Falando com outro emigrado, este pô-lo ao corrente de várias coisas que se diziam de mim, de defeitos que me eram achados, tanto por amigos como por inimigos meus, alguns sem razão, mas outros, e desgraçadamente a maior parte, com ela. Ele me referiu – insinua Saraiva – estas coisas como amigo, e não como intrigante, e na verdade me fez um serviço, porque, ao menos de parte, me hei-de emendar e pregar assim aos maldizentes (e Saraiva sublinha com ironia para si) a logração de terem menos que dizer, com razão». Tal se nos apresenta Saraiva – homem da sociedade antiga, homem da sociedade tradicional, a quem a prática dos Sacramentos e o constante exercício dessa espécie de psicanálise, que é a confissão, davam o conhecimento profundo da sua própria natureza e, portanto, um sentido perfeito, sem falseações sentimentais, de todos os valores humanos, devidamente relacionados e escalonados. Não nos esqueçamos também que António Ribeiro Saraiva recebera na sua formação mental o molde rigoroso das disciplinas clássicas. Ele revela-se-nos como uma criação sadia das velhas e desacreditadas humanidades. Filho de um desembargador, que ganhou para si e para os seus a nobilitação, António Ribeiro Saraiva é na proporção e na harmonia das suas faculdades uma figura sem recorte de aptidões excecionais. Mostra-se-nos bem como o produto normal de uma coletividade normal. Podemo-lo por isso tomar à vontade como uma média, como um padrão do que valia então entre nós o homem português.
Como subsídio para o estudo do «homem português», o Diário merece a aplicação carinhosa do nosso espírito. Não roço senão aspetos superficiais. E este do Romantismo, personificado em Ribeiro Saraiva como espécie social e moral, excedia, sem dúvida, as linhas modestas do presente ensaio. Discorrendo ainda do seu frustrado amor com Catarina Sherson, regista: «Foi ele a 29 de Abril do mesmo ano de 1836 passar a noite a casa de Casal Ribeiro. Voltando para casa estive conversando com Albino sobre o seu projeto de namorar Miss C... como fazendo-lhe boa conta; por esta ocasião esteve ele aconselhando-me que tratasse de fazer a corte a alguma rapariga que soubesse tinha fortuna, mesmo para me distrair. Eu disse-lhe o quanto agora isso me era difícil, porque nenhuma achava que me fizesse impressão. Então reflexionei sobre as qualidades da minha (?) sempre querida Catarina, como ela tinha por onde eu a adorasse, principalmente pelas qualidades morais; como todos os que a viam a amavam; como eu fazia como glória de ser amado por ela, assim como ela was proud of my love, como me dizia.»
E Ribeiro Saraiva acrescenta: «Albino citou-me a opinião de D. Francisco Manuel sobre a vantagem dos casamentos de razão, em contraposição aos de paixão (eu faço distinção entre estes e os de afeição) e acabou por concluir como, afinal, as qualidades morais acabaram por nos tornar amigos de nossas esposas, mesmo quando o casamento fosse de consciência, etc. – Eu de novo falei das qualidades morais da minha Catarina e disse como, desgraçadamente, até aquela timidez e resolução de seguir a vontade de seus pais era uma virtude, de maneira que nem acusá-la podia disso! Albino citou, em confirmação, a opinião de seu pai, que esteve para recusar casar com sua mãe, só porque ela consentiu na proposta de ser tirada por justiça de casa de seu tio e educador, etc.»
Entendo que nada mais é necessário para que se fixe definitivamente que de modo nenhum o lirismo estrutural da nossa raça, gerador dos tipos de sensibilidade que o Amadis generalizou, assumiu em Portugal a acção corrosiva de que se acompanhou por toda a Europa o desenvolvimento das suas formas bastardas. É frequentíssimo encontrar-se nos nobiliários, como exceção censurável, o registo: «casou por amor». A solidez da família portuguesa transparece, robusta, no excerto arrancado ao Diário de Ribeiro Saraiva. Esta faceta da sua psicologia, desnudando os mais ocultos recessos de uma alma, leva-nos evidentemente a não incorporar o nosso Romantismo na crítica geral a que a psicose romântica está implacavelmente sujeita. Onde a desordem em Ribeiro Saraiva, mesmo na fase aguda da sua crise amorosa? Sempre a mesma posse de si mesmo, o mesmo senso perfeito das relatividades que mostrou em mais de uma emergência política. Porque, se moralmente a experiência de António Ribeiro Saraiva se reveste do mais alto interesse, não é menos interessante a sua experiência política.
Efetivamente, basta passar a vista no Diário, pelo relato da entrevista de António Ribeiro Saraiva com o príncipe de Metternich, em Viena de Áustria, para que tomemos o pulso à sua visão de diplomata e de estadista. Confirma-se até a impressão superior que se recebe da leitura do raríssimo opúsculo Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, agent portugais à Londres, sous le gouvernement de Don Miguel, avec Lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne, le 20 Décembre, 1833, sur le meilleur moyen de pacifier le Portugal, d’y mettre fin à la guerre civile, d’y rétablir un vrai gouvernement constitutionnel... Por este Memorandum podemos verificar que a política de D. Miguel, como Ribeiro Saraiva a formulava, era a política histórica da Nacionalidade, em reação contra os dois absolutismos, o absolutismo monárquico, enxertado por Pombal na árvore da nossa realeza tradicional, e o absolutismo parlamentar importado de França com a aragem nefasta da Revolução.
Escutemos o infatigável emigrado miguelista em nota ao aludido opúsculo: «Dès que l’on voudrait sincèrement mettre de côté des caprices déraisonnables, et arriver de bon gré à la réconciliation de toute la grande famille Portugaise, au rétablissement de l’Unité Sociale et Nationale, il y aurait un moyen qui m’a toujours semblé le seul capable de mener a ce désirable résultat. Ce moyen – prossegue António Ribeiro Saraiva – consisterait à concilier les deux grands principes que les deux sections de la nation soutenaient, ou prétendaient soutenir, savoir, la Légitimité d’un côté, le gouvernement appelé Constitutionnel ou Représentatif de l’autre. Cela s’obtiendrait par le système que je proposais ; car dans ce système, la Légitimité ne consiste pas seulement en ce que Don Miguel soit la personne qui occupe le trône, mais en ce que les véritables Contrats Sociaux, le véritable Droit Public Portugais, la véritable ancienne Constitution soient observés. » Mais adiante Saraiva esclarece-nos: «Mais aujourd’hui, le Roi lui-même est convaincu plus que personne, du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre admirable Constitution ancienne, purgées des formes absolues, et hétérogènes, que le Pombalisme (en vertu d’une sorte de dictature, peut-être nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduites, au milieu du siècle dernier.» Qual seria então a nossa antiga Constituição, na frase de Saraiva, as nossas «leis fundamentais», verdadeiros contratos sociais, ainda na expressão do agudíssimo emigrado? ["A partir do momento em que se queira sinceramente pôr de lado caprichos irracionais e chegar de bom grado à reconciliação de toda a grande família portuguesa, ao restabelecimento da Unidade Social e Nacional, haveria um caminho que sempre me pareceu o único capaz de conduzir a este resultado desejável. Isto significa, como prossegue António Ribeiro Saraiva, que consistiria em conciliar os dois grandes princípios que os dois grandes sectores da nação apoiavam, ou pretendiam apoiar, a saber, a Legitimidade, por um lado, e o chamado Governo Constitucional ou Representativo, por outro. Isto seria obtido pelo sistema que propus; pois neste sistema, a Legitimidade consiste não só no facto de D. Miguel ser a pessoa que ocupa o trono, mas em que se observam os verdadeiros Contratos Sociais, o verdadeiro Direito Público português, a verdadeira Constituição antiga. Mas adiante Saraiva esclarece-nos: "Mas hoje, o próprio Rei está mais convencido do que ninguém do dever, ao mesmo tempo que da imperiosa necessidade, de restabelecer, no seu pleno exercício e funções naturais, toda a bela organização da nossa admirável Constituição antiga, expurgada das formas absolutas e heterogéneas que o pombalismo (em virtude de uma espécie de ditadura, talvez necessário nas circunstâncias da época) introduziu-o em meados do século passado." Qual seria então a nossa antiga Constituição, na frase de Saraiva, as nossas «leis fundamentais», verdadeiros contratos sociais, ainda na expressão do agudíssimo emigrado?]
Evidentemente que se tratava, numa linha de inteligente tradicionalismo, da restauração das instituições próprias – municípios e cortes gerais – do povo português. Eis no que a liberdade, identificada com a legitimidade, se traduzia para António Ribeiro Saraiva. Conceito inteiramente orgânico da estrutura e das relações do Estado, ele imprime a Saraiva o cunho de uma personalidade política superior. É aí que Saraiva excede a Garrett na compreensão do Romantismo, como sendo o regresso do nosso génio coletivo às suas formas naturais, completamente destroçadas por mais de um século de centralização absolutista e de falso e empedernido classicismo. E tocámos num ponto interessantíssimo: o do equívoco, tanto de Garrett, como de Herculano, supondo que na implantação do regime parlamentar se voltava à continuidade perdida da nossa velha e civilizada tradição representativa. Foi esse equívoco corrente, e à sua sombra medrou em adeptos e em entusiasmo o sistema bastardo que Mouzinho da Silveira sobreporia, a golpes de pena insensatos, aos nossos robustos institutos sociais e jurídicos.
Um livro há dessa época, que nos manifesta toda a amplitude do engano ou confusão em que laboravam tantos espíritos notáveis por mais de um título. É o Ensaio histórico-político sobre a constituição e governo do reino de Portugal, onde o parlamentarismo, instituição tradicional em Inglaterra, nos aparece como se fora o ressurgimento das nossas liberdades de outrora – das liberdades, de que demos à Europa um elevado exemplo nas cortes de 1641. Garrett e Herculano, enamorados pelo gosto medievalista que o Romantismo inaugurava, entregaram-se cegamente ao canto da sereia. E daí os clamores do segundo no seu panfleto A Voz do Profeta e, depois, o desterro voluntário que se impôs na solidão de Vale-de-Lobos. Mais inquieto, Garrett jornadeia através das oscilações revolucionárias dos primeiros trinta anos do liberalismo. Mas, por fim, nos seus célebres discursos de 1864 na Câmara dos Pares, grita bem alto o arrependimento que lhe punge a alma, aconselhando a quem o ouvia a imediata renacionalização da nossa administração e da nossa política. «Não, senhores, são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juízes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos: São algumas poucas e simples bases de reforma e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem para que, em harmonia e conformidade com elas, seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública, menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...»
Ora neste aspeto é que Ribeiro Saraiva se nos revela mais equilibrado que Garrett e que o mesmo Herculano. Tendo saído moço de Portugal, nem um só instante se desenraíza da Pátria, aonde não tornaria a vir. Ele interpreta fielmente a verdadeira e íntima face do Romantismo – do nosso que, pela sua essência medievalista, não podia deixar de ser, monárquico e católico – tal como em França, à roda da restauração dos Bourbons. Nessa altura, o próprio Victor Hugo – o Hugo avant 1830, como membro da Société Royale des Bonnes Lettres, não recuava em declarar enfaticamente e solenemente: «La littérature actuelle... est l’expression anticipée de la société religieuse et monarchique, qui sortira sans doute du milieu de tant de débris, de tant de ruines récentes.» E Louis Bertrand comenta: «d’abord les romantiques sont royalistes, tandis que les classiques sont libéraux».
E é tão profundo e tão nacionalista o sentido romântico de António Ribeiro Saraiva que se em política o leva certeiramente contra os abusos do Absolutismo sem o desviar do amor e do apoio ao que havia de permanente e vivo nas instituições tradicionais, no puro domínio das coisas do espírito realiza uma tentativa interessantíssima, pelo inesperado e pela intenção de regionalismo literário. Sem dúvida que António Ribeiro Saraiva não possui em poesia as asas e a delicadeza de Garrett. Mas não lhe fica muito distante na ideia que formava da renovação das nossas letras. Destrambelhado, sem nexo nem harmonia, é o que se infere do curioso livro Saraiva e Castilho, dois fartos volumes em que os dados biográficos, as nótulas críticas e os ensaios poéticos se misturam numa variedade e num pitoresco indescritível de cosmorama. Ao acaso, uma transcrição em que se vinca bem o conceito que Ribeiro Saraiva fazia do Romantismo. É de uma carta a Castilho, da Carta-monstro a A.F. de Castilho, segundo seu pedido.
Escreve Saraiva: «Não sei quem me disse aqui, que hoje o gosto por aí mais vogante era o Casimiro-de-lavinhismo e o Victor-Hugoísmo, tanto nos homens isto, como nas mulheres. Pois, assim como não imagino que semelhante mania contribua para apurar a moral da Nação, menos entendo que venham a concorrer para o refinamento da boa literatura poética.» É um repositório abundantíssimo esse do Saraiva e Castilho, onde com frequência nos surgem detalhes do mais inesperado sabor. Aludindo à mudança dos nomes das ruas em Coimbra por homenagem a certos vultos do regime liberal, observa Saraiva: «A do meu antigo sócio e amigo (Legitimista então) Joaquim António de Aguiar, pode-se desculpar; bem que (pois o nome é já estirado) convinha historicamente acentuar-lhe, ainda que fosse entre parêntesis («digníssimo Mata-Frades e Vira-Casacas») – aludindo àquela azul, de botões amarelos, com que os mesmos olhos que agora ajudam a escrever isto, o viram dançar como um bilro, todo o serão, na Quinta das Canas, no dia do Préstito a Santa Clara, em 1823, à saúde e regozijo da Restauração, nesse dia efetuada em Coimbra, do governo legítimo e toleirão de D. João VI. Joaquim António de Aguiar, dançando como um bilro na sua casaca azul de botões amarelos, em honra dos inauferíveis direitos, é, na verdade, um traço que nunca mais se esquece.
Mas o valor do Saraiva e Castilho reside, sobretudo, nos materiais que nos fornece para uma outra compreensão do nosso Romantismo. Saraiva, já estudado como homem e como político, deixa-nos aí o seu depoimento como poeta. Depoimento nem sempre à altura de um gosto medianamente exigente, mas, sem dúvida, mesmo nas suas quedas, revelador de um incontestável e autêntico temperamento literário. De resto, António Ribeiro Saraiva informa-nos das condições desvantajosas em que a sua vida decorria, para que houvesse de realizar uma obra duradoira e definitiva. «Trabalhos tenho eu delineados, e quase posso dizer, elaborados, na cabeça, que, se os executasse, creio seriam, não só de alguma honra, mas proveito considerável para o nosso Portugal. São coisas acima do que vulgarmente se apelida Literatura. São considerações, descrição, ilustração, etc., da nossa verdadeira e belíssima Constituição Portuguesa Antiga; da sua filosofia, suas vantagens, sua sabedoria, enfim; compará-la-ia em seus principais pontos e feições à da Inglaterra (que, in absoluto, não é tão bela, nem tão sábia, nem tão filosófica), e às de outros países. É obra em que poderia, creio eu, fazer alguma figura; porém, para executá-la precisava outro descanso, que não tenho, e pelo menos outros meios de subsistência, para não ser obrigado a cada instante, como agora me sucede, a interromper trabalho o mais transcendente, para atender a que uma garrafa de vinho seja bem arrolhada, ou bem lavada.»
Apesar de o negócio dos vinhos, de que vivia, roubar a Saraiva a natural disposição para o labor intelectual, a sua prodigiosa actividade interior não fugia de quando em quando a esse desabafo íntimo do espírito. Suponho perdido o manuscrito da Musa cotidiana (Saraiva seguindo os preceitos tradicionais usava de uma ortografia bastante simplificada), de que é possível fossem trasladados para o segundo volume do Saraiva e Castilho os poemetos («poemête» escrevia Saraiva) ali insertos. Afora outras peças de menor preço, são elas «O Natal na minha terra», «O San-João», «A Semana-Santa e o Entrudo». «A minha terra é Sernancelhe, na Beira-Alta, bispado de Lamego, comarca de Trancoso – elucida o poeta – vila acastelada, muito nobre e antiga.»
Começa António Ribeiro Saraiva:
Irmã gémea da saudade,
Memória de horas gostosas,
Ou de amor ou de amizade,
Ou de puerícia mimosas,
Vem dar-me suave auxílio
No mais favorito empenho,
Que hoje na terra do exílio,
Pensando na pátria, eu tenho.
Lembra-me a cena fagueira,
De inocência e de alegria,
Que outrora, na minha Beira,
Sacro Natal me trazia.
Vinha a Festa desejada
Em próprio tempo chegando
E talvez era acusada,
Porque não vinha voando!
A expressão é fácil, o ritmo espontâneo, o verso fluente. Reputo Ribeiro Saraiva nas suas tentativas por vezes mais diáfano que o Garrett de Camões e de Dona Branca:
Mas ei-lo amanhece o dia
Vinte e quatro de Dezembro!...
Com doce melancolia
Dele saudoso me lembro!...
Me lembro?... Não; vejo, sinto,
Gozo, no paterno tecto,
Muito melhor do que o pinto
Este dia predilecto...
.........................................
Que ternura de homens é esta
Que à vila vem caminhando,
Rindo e cantando de festa,
Carro triunfal puxando?
Trazem o cepo que, ardendo
Durante a Missa-do-Galo
Da igreja o adro aquecendo,
Servirá de iluminá-lo.
E as cenas domésticas desenrolam-se com a consoada na lareira, e antes, no templo, a adoração do Presépio. Garrett, na D. Branca insculpiu três versos que são a teoria perfeita do nosso Romantismo:
Nossas lindas ficções, nossa engenhosa
Mitologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam.
Outro não é o rumo de António Ribeiro Saraiva nos seus poemetos. Reeditados e devidamente prefaciados, constituiriam um lindo feixe de geórgicas portuguesas. Na opulência das imagens, nos recursos inesgotáveis que recebe do folclore, na cor local e na exatidão com que a respeita, António Ribeiro Saraiva – beirão de boa gema, com a inteligência tonificada pela ação clarificadora das disciplinas clássicas, é, sem receio de exagero ou de impugnação, o precursor do regionalismo em Portugal. Na magnífica unidade da sua existência moral e intelectual, parece-me ser já tempo de quebrarmos o silêncio a que o votavam na sua própria pátria. Vimos como ele só por si nos ajuda a reconstituir a fisionomia espiritual do nosso Romantismo, bem diferente da do Romantismo francês. Tanto basta para que esse romântico esquecido, que foi António Ribeiro Saraiva, ocupe na história das nossas letras lugar que a indigência mental dos críticos não lhe soube designar ainda.
In Da Hera nas Colunas, 1929.
Evidentemente que ao acentuar semelhante restrição tenho no pensamento a crítica geral a que o Romantismo está hoje sujeito, como sendo uma psicose das mais desordenadas. Desorganização entusiástica do sentimento, lhe chama acertadamente algures Pierre Lasserre. E se considerarmos que a paranoia revolucionária com que o século passado abriu seu caminho é filha legítima do vento romântico, já se compreende que Ernest Seillière nos apresente Jean-Jacques Rousseau como «pai do mundo moderno». Jean-Jacques Rousseau é, com efeito, o depravador da sensibilidade culta na antiga sociedade – na sociedade repousada ainda nos seus alicerces tradicionais, embora alicerces já abaladíssimos. Em todo o caso, as raízes do mal cresciam desde muito de atrás e, se nos fixarmos na influência da Astrée, de Honoré d’Urfé, na formação emotiva de Rousseau, verificaremos sem custo que, ao alto da história-pregressa do morbo romântico, se encontra, presidindo, única e exclusivamente o gosto já secular, tanto em França como nos demais países do Ocidente, pelos arrebatamentos idílicos e convencionais da novela pastoral.Assim, com fundamentados motivos, nos observa o dr. Ricardo Jorge no seu magnífico estudo acerca do poeta seiscentista Francisco Rodrigues Lobo: «A obra de Rousseau, que mais de um século andado revoluciona a literatura e os espíritos, que é senão uma explosão de sentimentalidade exaltada, de uma violência afetiva, apenas mais esquisita, complexa e torturada do que a tenra maviosidade dos zagais de outrora? O agitador do sensibilismo, sentado num penedo de Vevey à beira de água, desaperta o caudal das lágrimas e entretém-se a vê-las pingar no espelho do lago...» E o doutor Ricardo Jorge acrescenta, aludindo à Primavera de Rodrigues Lobo: «O Sereno é um avatar embrionariamente acanhado do Saint-Preux, como este o é dessa progénie de desequilibrados, sonhadores, lipemaníacos e misantropos – Werther, Obermann, Fausto, Manfred, René, e tantos outros heróis menores de um egotismo dorido, e retumbante. A moléstia do romantismo, que aflige a Europa inteira no século passado, não será a expansão do fermento patogénico do bucolismo, eivado agora de superior virulência, difusibilidade e energia mórbida. Requinta a estética, mas exacerba-se a loucura: os bucólicos eram doidos assim, mansos como os cordeiros e puros como os líricos, nas suas cabanas de colmo; os românticos saíram revoltados e tenebrosos, possessos e epiléticos, bramando e contorcendo-se como furiosos em cela de manicómio. A novela bucólica, há que reconhecê-lo, é o fuzil de uma cadeia que engranza na novela sentimental oitocentista onde prende o elo possante e lavrado da novela romântica dos nossos dias.»
Não se engana o ilustre professor nas suas bem concatenadas suposições! A genealogia do Romantismo entronca, por mais de uma ramada, no fundo rebuscado das velhas pastorais. «La Pastorale antique, commence par rappeler M. Seiliére – escreve – avait été tout d’abord assez réaliste entre les mains de Théocrite et de son école, René Gillouin no seu recente livro Une nouvelle philosophie de l’Histoire moderne et française, apanhado valiosíssimo das ideias e obra de Ernest Seillière, já citado. «Mais dans la suite la hantise de l’âge d’or, qui trahit... l’incapacité d’adaptation de l’individu à un milieu social rapidement progressif, trouva dans l’Églogue un cadre où se déployer à l’aise. L’utopie parle encore plus hardiment dans le Chasseur d’Eubée de Dion, et le roman grec, pénétré de néoplatonisme, se fait aimablement pastoral en même temps que subtilement érotique avec Longus. »
Depois, «dans le monde que l’antiquité classique lui fournissait ainsi préparée, la Renaissance devait verser cette conception proche parente du platonisme, la morale romanesque, telle que l’avaient constituée la lyrique courtoise et l’épopée arthurienne. Les Italiens se tinrent d’abord assez près de l’antique ; les Espagnols au contraire, imprégnés de courtoisie par leurs Amadis, habillèrent sans retard leurs pastorales en romans de chevalerie, amputés toutefois de ce trait viril et guerrier qui en faisait partie intégrante au Moyen-Âge, et réduits presque exclusivement à leur portion érotique. Naguère, la courtoisie ou le platonisme avaient du moins remplacé, comme principe d’action, la volonté de puissance par l’amour, avide de conquête et dès lors incitateur de hauts faits ou de perfection sociale, dans l’exaltation du joie masculin.»
Atribui René Gillouin à sugestão espanhola um decréscimo desvirilizador no pastoralismo amoroso, generalizado pela Renascença. «L’amour pastoral moderne – comenta ele – tel qu’il apparaît dans la Diane de Montemayor et plus nettement encore dans l’Astrée d’Honoré d’Urfé (les deux grands succès du genre) ... c’est un sentiment timide et langoureux, larmorant et extasié. Il aboutit à l’entière divinisation de la femme et à l’identification de l’érotisme avec la religion... » Se, na verdade, o alastramento do ideal pastoril, «en faisant de ses bergers des causeurs de salon aristocratique et des métaphysiciens de l’amour, en transportant sur la chaume la culture la plus raffinée», acaba por insinuar e sugerir que «l’état de nature est un état social accompli» – ainda na expressão de René Gillouin –, a culpa não pertence, se olharmos bem às coisas, à impregnação dos conceitos eróticos do Amadis na literatura pastoralesca exportada da Península.
Antes de avançarmos, convém esclarecer que é, sobretudo, de Portugal que a aura do Amadis irradia, sabido já hoje, depois da identificação biográfica e cronológica de João de Lobeira, realizada pelo falecido folclorista António Tomás Pires, que no ocidente peninsular e não em outra parte das Espanhas («les Espagnols» aparecem decerto em René Gillouin como uma simples designação geográfica) é que a célebre novela de cavalaria teve a sua origem e o seu nascimento.
Relaciona-se o problema que nos preocupa com a questão fundamental do lirismo português. Não é o Amadis senão um aspeto desse lirismo tão próprio da nossa raça e tão inconfundível como ela. Superiormente o declarava já o grande Menéndez Pelayo, quando o mistério teimava em se manter ainda sobre qual fosse o berço e a naturalidade do Amadis. No por estas fútiles presunciones, sino por motivos algo más hondos, aun sin contar con los indicios históricos y documentales, se siente inclinado el ánimo a buscar en el Oeste o Noroeste de España la cuna de este libro», asevera Menéndez Pelayo. «Domina en él un idealismo sentimental que tiene de gallego o portugués mucho más que de castellano: la acción flota en una especie de atmósfera lírica que en los siglos XIII y XIV sólo existía allí. No todo es vago devaneo y contemplación apasionada en el Amadis, porque la gravedad peninsular imprime su huella en el libro, haciéndole mucho más casto, menos liviano y frívolo que sus modelos franceses; pero hay todavía mucho de enervante y muelle que contrasta con la férrea austeridad de las gestas castellanas. Todo es fantástico, los personajes y la geografía. El elemento épico-histórico no aparece por ninguna parte, lo cual sería muy extraño en un libro escrito originalmente en Castilla, donde la epopeya reinaba como soberana y lo había penetrado todo, desde la historia hasta la literatura diáctica.»
Já antes e no mesmo volume Menéndez Pelayo nos dissera: «Había, no obstante, una región de la Península donde, ya por oculta afinidad de orígenes étnicos, ya por antigua comunicación con los países celtas, ya por la ausencia de una poesía épica nacional que pudiera contrarrestar el impulso de las narraciones venidas de fuera, encontraran los cuentos bretones segunda patria, y favorecidos por el prestigio de la poesía lírica, por la moda cortesana, por el influjo de las costumbres caballerescas, despertaron el germen de la inspiración indígena, que sobre aquél tronco, que parecía ya carcomido y seco, hizo brotar la prolífica vegetación del Amadis de Gaula, primer tipo de la novela idealista española. Fácilmente se comprenderá que aludo a los reinos de Galicia y Portugal, de cuyo primitivo celticismo (al menos como elemento muy poderoso de su población, y también de la de Asturias y Cantabria) sería demasiado escepticismo dudar... si no se admite la persistencia de este primitivo fondo, no solo quedan sin explicación notables costumbres, creencias y supersticiones vivas aun, y casos de atavismos tan singulares como el renacimiento del mesianismo de Artús en el rey Don Sebastián, sino que resulta enigmático el proceso de la literatura caballeresca, que tan profundamente arraigó allí, que conquistó sin esfuerzo las imaginaciones como si estuviesen preparadas para recibirla y que fue imitada con tanta originalidad a la vuelta de algunas generaciones.»
Alongámo-nos talvez demais nas transcrições arrancadas ao mestre eminente das Orígenes de la novela e da Historia de los heterodoxos españoles, honra e glória do pensamento hispânico. Mas elas exprimem-nos o quanto o Amadis e o género sentimental inaugurado pela afamada novela se afastava do que é essencial e determinante no génio castelhano, a ponto de lhe ficar quase estrangeiro. E René Gillouin incorre num erro grave de apreciação, ao acusar o Amadis, pela sua numerosa ramificação pastoralesca, de perverter, de feminilizar excessivamente o espírito da pastoral, herdada dos antigos e rejuvenescida pela Renascença, ao contacto sereno e sóbrio da conceção platónica do amor. Era o que Menéndez Pelayo já entendia, quando nos repara que «lo más grave y lo que hizo sospechoso desde luego a los moralistas el Almadis, con su innumerable progenie, fue la falsa idealización de la mujer, convertida en ídolo, deleznable de un culto sacrílego o imposible, la extravagante esclavitud amorosa, cierta efeminación que está en el ambiente del libro, a pesar de su castidad relativa». Nada menos exato, contudo! Se indubitavelmente, no Amadis, Oriana «es personaje tanto o más importante que Amadis», nesse facto se traduz a situação que a mulher ocupa na instituição doméstica do povo galaico-lusitano, de que é indício bastante significativo a comunidade dos bens, em que repousa o regime nupcial português, tão diverso do regime nupcial espanhol. Percorramos o nosso lirismo, tão natural e humano, e logo se concluirá que, a não ser na época ultrarromântica, nunca a paixão amorosa se praticou entre nós através da hipertrofia sentimental que as reflexões de Menéndez Pelayo nos levam a supor.
Falando dos poetas do período de D. Dinis, o próprio Menéndez Pelayo comenta: «Por algunos de estos poetas, especialmente en el hijo de D. Dinis, Alfonso Sánchez, es de aplaudir la suave ingenuidad en la expresión de los afectos; en otros se notan los gérmenes de cierto depurado idealismo análogo al del Petrarca; así en Vasco Martins, que trovaba por una muerta, prototipo de perfecciones el mayor que el mundo halló.» E adiciona um pouco mais adiante: «El único resultado, el mérito grande y positivo de esta imitación provenzal, consiste en la parte técnica, en la gimnasia de rimas, en el duro aprendizaje, que convirtió a la lengua galaica en el más antiguo tipo de los dialectos líricos de la Península. No importa que esas formas sirviendo por de pronto para la expresión amanerada y trivial de un sentimiento falso, que hacia el rey D. Denis perderse en cavilaciones metafísicas y alardear de una pasión misteriosa, tímida e inmaculada, que tanto contrastaba con la intemperancia habitual de su vida, y con las costumbres de la gente de su tiempo.»
Tão próximo do nó da questão, Menéndez Pelayo, que, por um lado, atinge a bela exaltação lírica de Vasco Martins, considera por outro lado afetada e superficial a musa tantas vezes discreta de D. Dinis. É uma manifesta impossibilidade de apreender o que há de normal nessa ideia afetiva de mulher, companheira e colaboradora da vida, metade com a qual repartimos os desgostos e as alegrias. A gran coyta do corazon em que os cancioneiros se humedecem, reproduzindo a flor mais pura do nosso lirismo, assume para Menéndez Pelayo as linhas exageradas, quase caricaturais, que o século XVII castelhano dispensou à emotividade passional dos portugueses, aos «portugueses derretidos», de que nos fala o epigrama conhecidíssimo de Lope de Vega:
A un portugués que lloraba
Preguntaron la ocasión;
Respondió que el corazón
Y que enamorado estaba,
Por mitigar su dolor
Le perguntaron de quién;
Respondió que de ninguién,
Llóro de puro amor!
Ora o «llorar de puro amor», que enche de amaviosidades inéditas o espanholismo castiço do ciclo literário de Tirso de Molina e de Calderón de la Barca, não dá de modo nenhum entre nós os desregramentos passionais de que andam cheios os fastos do romantismo de além-fronteiras. Onde se encontra, por exemplo, em Portugal um caso como o que Charles Maurras analisa e disseca, com fina experiência de psicólogo, a propósito de George Sand e de Musset, no seu conhecidíssimo livro Les amants de Venise? Que diferença incomparável com o desse José Augusto Pinto de Magalhães e de Fanny Owen, embora já fortemente impregnado da fatalidade amorosa, nascida do desvario sensibilista dos franceses. Quer parecer-me a mim que se confunde na hipótese presente o amor de mulher como esposa com o amor de mulher como amante. Repara justamente Gaston Paris, que a harpa bretã é a única de que se desprende a nota apaixonada do amor ilegítimo e fatal, gerando uma conceção de amor que até então se não descobre em nenhum outro povo nem em nenhum outro ciclo poético. Amor mais forte que a honra, amor mais forte que o sangue e mais forte que a morte, enlaça-nos numa cadeia inquebrantável, como a que enlaçou e perdeu sem remédio Iseu e Tristão. É, porventura, o que sucede com a concepção amorosa em que o nosso lirismo se inspira e enternece? Evidentemente que não.
Enganava-se, pois, Menéndez Pelayo, quando considerava o Amadis como criador de uma «falsa idealización de la mujer, convertida en ídolo deleznable de un culto sacrílego o imposible». São mais acertados os juízos que a tal respeito nos oferece o filólogo Menéndez Pidal, seu ilustre discípulo. Diz ele: «Europa entera se embelesó con las maravillosas aventuras de Tristán y Lanzarote, dichosas víctimas de la temible sirena, que rompió todo sagrado vínculo, atraídas con fatal encanto al adúltero infierno de su amor: pero España, al dar su fruto propio en el mundo de la ficción, produjo el Amadis, donde esa poesía cortés y aventurera desecha la levadura antisocial de los modelos franceses, para convertirse en la poesía del amor legítimo, sublimado por la más inquebrantable fidelidad. Y el Amadis, nimbado com esta luz divina, sobrevivió a la muerte de sus modelos y halló admiración en las literaturas renacentistas, cuando Torcuato Tasso transportaba las ficciones del libro de caballerías al poema épico, estimando que los poetas españoles sobrepasaban a los franceses por su concepción del amor cual un hábito nobilísimo y constante de la voluntad. Y aún más: en nuestros días, el conde de Gobineau, tan simplistamente convencido de la superioridad única de los pueblos arias y de la decadencia inevitable de los mestizos, cuando quiso coronar sus estudios sobre la raza superior con vaticinios poéticos, puesto a buscar un símbolo de la más elevada condición de la humanidad aria en lucha con la objeción de las raças espurias, desechó a Tristan y Lanzarote, y no acerló a hallar en toda la Edad Media otro héroe personificador más grande que este doncel Amadis, misteriosamente nacido en la literatura hispánica. El diplomático y orientalista francés, lo mismo que el poeta italiano, reconocía la grandeza que fluye de la pureza moral del héroe español.»
Tudo exacto, desde que se tome o termo «espanhol», como apelativo geográfico. Alheio, portanto, à mancha danada que Menéndez Pelayo lhe imputava, o Amadis é o espelho cristalino da profunda natureza lírica da nossa raça. A delicadeza do seu coração não exclui as práticas vigorosas de cavaleiro intemerato. Lembremo-nos de que, sendo estruturalmente lírico o génio português, não deixamos de ser por isso um povo de ação – um ninho permanente de descobridores e de navegadores. A nossa epopeia que, além de nacional, é cheia de sentido universalista em relação ao sonho inquieto da Renascença, por quem foi concebida e escrita, senão por um lírico? O que é o mito supremo do Encoberto senão uma condensação coletiva de lirismo? Assentemos que o lirismo para nós é alma, enquanto para os outros é imaginação, e o problema fica inteiramente esclarecido, desde a génese longínqua do Amadis até ao alvorecer do Romanceiro com Garrett.
Parece-me assim suficientemente demonstrado o critério porque devemos encarar o Romantismo entre nós. Referindo-se à Menina e Moça, escreve Menéndez Pelayo que a novela de Bernardim se caracteriza por «un sentimentalismo algo enfermizo, pero que llega a ser encantador por lo temprano y solitario de su aparición», terminando por capitulá-lo de «pre-romanticismo patético y sincero». Se Menéndez Pelayo atentasse pausadamente nos nossos Cancioneiros, veria que já ali palpita esse pre-romanticismo. Ele é condição inata do espírito lusíada. E, transmitido dos Cancioneiros ao Amadis, prolonga-se em inolvidáveis criações literárias da Menina e Moça à Diana, de Jorge de Montemor. Com a Diana internacionaliza-se, abastardando-se depois através da Astréa, de Honoré d’Urfé, e dos epigramas com que a dureza psíquica do castelhano europeíza o nosso temperamento amorável e enternecido.
Recordam-se, certamente, como, nos Trabajos de Persiles y Segismunda, Cervantes nos conta a história de el enamorado português, a quem chama Manoel de Sosa Cortiño». Trata-se indubitavelmente do que foi mais tarde Frei Luís de Sousa. Como cavaleiro de Malta caiu Manuel de Sousa Coutinho cativo dos berberiscos. Em Argel conheceu a Cervantes que, mais tarde, sombra do nome dele, fantasiou o episódio da sua novela. Afirma Cervantes «ser costumbre el morir de amor los Portugueses». E apresentando como morto do mesmo mal ao seu companheiro das ribas argelinas, à hora em que Manuel de Sousa Coutinho calcava já as proximidades da profissão, estampa o epitáfio que lhe consagrou «un hermano suyo, que heredó su hacienda». Ei-lo: «Aquí yace viva la memoria del ya muerto Manuel de Sosa Coitiño, Caballero Portugués, que a no ser Portugués aún era vivo, no murió a las manos de ningún Castellano, sino a las de amor, que todo lo puede; procura saber su vida, y envidiarás su muerte, pasajero».
Afigura-se-me este testemunho bastante elucidativo, para que o hajamos de glosar demoradamente. Se a afetividade espontânea da nossa índole, vista de fora, produzia a incompreensão, que vai desde a sátira de Cervantes aos juízos severos de Menéndez Pelayo, não é para admirar também que, lançada aos torneios artísticos da Europa, pelo prestígio dominador da Diana, se tornasse depressa, numa bastardia inqualificável, o tronco seguro donde derivou, como moda social e literária, o Coração sensível.
Mas nós começáramos discorrendo acerca de António Ribeiro Saraiva, cuja significação adentro do nosso Romantismo é das mais expressivas, e mais completa até que a de Garrett debaixo de determinados aspetos. A publicação recente do Diário de Ribeiro Saraiva, por cujas mãos passaram os fios mais delicados da diplomacia miguelista no seu estrebuchar, acabam então de prestar à figura desse velho que prefere admiravelmente o desterro voluntário a ser na sua pátria um emigrado perpétuo, as mais inesperadas e vigorosas facetas. É o Diário de Ribeiro Saraiva como todos os Diários que não obedecem a propósitos de literatura doméstica, um alto, um extraordinário documento humano. Que riqueza de vontade, que amplitude de visão, que disciplina de espírito e que heroísmo de inteligência! Não nos falta até uma paixão, a paixão de Ribeiro Saraiva por Catarina Sherson, «a minha Catarina», como ele enternecidamente lhe chama.
Pois mais que as desgraças políticas, mais que a abundância e a vivacidade de Saraiva, dedicando-se ao negócio de vinhos para viver e não dispondo muitas vezes de uma pequena moeda com que pagar o correio – o correio numeroso e agitado da Causa! –, o seu amor, tão ardente e refletido, por Catarina Sherson exemplifica-nos perfeitamente o que acerca da conceção da mulher no nosso lirismo ficou resumidamente ponderado. Não conhece Ribeiro Saraiva maior enlevo, entrega-se-lhe de alma e coração, num palpitar de adolescente tímido.
No entanto, que humanidade não há em todo o seu afeto, por arrebatado que ele frequentemente se manifeste! Catarina Sherson abandona-o, por fim, a família não a quer ligada a um homem que perdeu as vantagens da sua antiga carreira, e que não possui posição na sociedade. António Ribeiro Saraiva vacila por momentos, e é esse, como experiência moral, um dos momentos mais interessantes, mais cheio de singeleza dramática, do seu Diário. Oiçamo-lo. Escreve ele em 24 de Abril de 1834:
«Fui a um baile a casa de Richardson, onde encontrei a minha querida Catarina, com quem dancei, e conversei com ela quase toda a noite. Estava extremamente amável, dizendo-lhe eu que estava muito triste porque tinha tido muito más notícias para a causa de Portugal (pois ali mesmo Henrique de la Belinaye me tinha dito, como coisa segura, que não tinha dúvida nenhuma estar, pelo menos, feito e escrito o tratado da Inglaterra, França, Espanha e D. Pedro, para arranjarem a seu modo os negócios da Península e intervirem por força contra nós, etc.). A minha querida me disse que não me entristecesse, que isso não mudava nada seus sentimentos a meu respeito. Dizendo eu que, se eu estivesse certo de que os desastres da causa que eu defendia e a posição infeliz em que eu poderia logo achar-me não me fariam perdê-la, a ela, eu não teria a aflição que tinha com estas notícias más, e, enquanto tivesse a certeza do seu afeto, como agora ela mo tinha (sic), me reputaria feliz e pouca influência então teriam os desastres, etc. – a isto ela respondeu, apertando-me a mão, e, olhando-me com um ar da mais doce ternura, me disse com uma expressão angélica: Then be happy! Poucos instantes depois, tirou do seio a pequena cruz que eu lhe dera como lembrança do seu dia de anos no princípio de Abril, e ma mostrou sem dizer nada, tornando a a guardar no seio. Eu lhe mostrei o sinete que tinha comprado esta manhã com o forget-me-not: ela observou-o, achou o bonito e mo dava de novo; eu não o quis aceitar e ela, admirada, me perguntou porquê. «Porque é vosso», respondi eu, e então sorrindo mui levemente o atou na ponta do lenço, sem dizer mais nada...»
Assim amava e sofria no tempo do Coração sensível um temperamento português! Não sei de nada melhor para destruir os estilos da lenda sentimental que Cervantes eternizou literariamente nos Trabajos de Persiles y Segismunda e de cujo processo as Lettres d’une religieuse portugaise constituem talvez a peça mais demonstrativa! Tal é a face exata do nosso Romantismo. Como ele, expressão clássica porque é espontânea e natural, se entronca diretamente na castidade sentimental do Amadis! «On sait l’histoire de cet Amadis des Gaules qui, ayant charmé la captivité de François I à Madrid, fut rapporté par lui en France et, aussitôt traduit par Herberay des Essarts, conquit dans notre pays une popularité sans égale et y suscita d’innombrables continuations et imitations» – conta do Amadis o citado René Gillouin. E reconhecendo que « d’une manière générale, ces Amadis font peu de place à l’adultère », ainda que « instituent en revanche une véritable école de capitulation amoureuse par les filles », o autor do curioso volume Une nouvelle philosophie de l’histoire moderne et française toca o mais que lhe é possível tocar na diferença dos dois tipos passionais – o do romantismo francês, derivado da desordem dos sentidos, e o do nosso lirismo, elemento positivo do génio e carácter português.
A propósito da moda social que o Amadis representou no domínio das emoções amorosas, conta-nos René Gillouin que «moralistes peu suspects de pruderie, tels que la Noue», não se continham sem desabafar perante os resultados honestíssimos da moda, cuja leitura tanto encantava a prisão de Francisco I, em Madrid: «J’ai oui dire à vos bons gentilhommes que ces livres avaient une propriété occulte à la génération des cornes, et je me doute que lui-même en avait fait l’expérience». Pergunta se uma influência parecida se desenhou porventura em Portugal – e ninguém ignora a voga que o Amadis e a sua numerosíssima descendência obtiveram entre nós. Dois episódios o atestam inolvidavelmente. É um deles a modificação da célebre novela na parte referente à infelicidade de Briolanja. Di-lo uma espécie de sigla ou nota intercalada no texto castelhano de Montalvo. Bem diversas as coisas decorriam entre Briolanja e Amadis, até que «el señor infante don Alfonso de Portugal, habiendo piedad de esta hermosa doncella (Briolanja), de otra guisa lo mandase poner». Por outro lado, na sua Arte de Galanteria, D. Francisco de Portugal conta-nos a história de um D. Fuão qualquer que, ao chegar a casa, deparou com a família e a criadagem em pranto desfeito. «Pois quem morreu?» – interrogou, com angustioso sobressalto. «Morreu o Amadis, senhor! Morreu o Amadis!» – lhe volveram em carpido coro.
Se a nossa impressionabilidade se chocava tão fundamente com a vida e obra do esforçado cavaleiro, seria para admitir-se que o germe nefasto, denunciado por La Noue, Brantôme e outros, se verificasse também em Portugal nos seus desarranjos sociais e morais. Acontece, porém, que Purser no seu Palmeirin of England atribui tão danada corrupção, não ao Amadis original, mas às paráfrases obscenas vulgarizadas em França por Des Essarts» – elucida Ricardo Jorge. Assim devia ser, porque, filho – insisto – da nossa conceção do amor, o Amadis refletia-lhe a idealização, sem lhe aumentar a fatalidade desregrada das paixões invencíveis do ciclo bretão.
O que era essa conceção do amor, e em pleno advento do Romantismo, claramente o aprendemos em António Ribeiro Saraiva. Na sua notação breve, o Diário acusa-nos todo um tormento íntimo, todo um coração pisado. Mas António Ribeiro Saraiva possui-se nobremente, porque nobre é o sentimento que lhe agita a existência. Há ocasiões em que ele, atormentado pelo amor, pensa em submeter-se, em aceitar o governo de Lisboa. Mas reage logo sobre si – e reage com humildade cristã, reconhecendo que Deus o arranca de um caminho desviado e perigoso. E a pouco e pouco o vulto de Catarina Sherson vai-se apagando, vai-se sumindo, e na vida pobre, mas rica de significação interior, de António Ribeiro Saraiva, é sempre uma cicatriz que não seca nunca.
Há no Diário uma pequena passagem que nos explica inteiramente António Ribeiro Saraiva. Foi a 16 de Janeiro de 1839, dia em que encomendou um casaco azul, «de que estou mui precisado» – declara. António Ribeiro Saraiva passa a noite em casa, classificando e ordenando papéis. Falando com outro emigrado, este pô-lo ao corrente de várias coisas que se diziam de mim, de defeitos que me eram achados, tanto por amigos como por inimigos meus, alguns sem razão, mas outros, e desgraçadamente a maior parte, com ela. Ele me referiu – insinua Saraiva – estas coisas como amigo, e não como intrigante, e na verdade me fez um serviço, porque, ao menos de parte, me hei-de emendar e pregar assim aos maldizentes (e Saraiva sublinha com ironia para si) a logração de terem menos que dizer, com razão». Tal se nos apresenta Saraiva – homem da sociedade antiga, homem da sociedade tradicional, a quem a prática dos Sacramentos e o constante exercício dessa espécie de psicanálise, que é a confissão, davam o conhecimento profundo da sua própria natureza e, portanto, um sentido perfeito, sem falseações sentimentais, de todos os valores humanos, devidamente relacionados e escalonados. Não nos esqueçamos também que António Ribeiro Saraiva recebera na sua formação mental o molde rigoroso das disciplinas clássicas. Ele revela-se-nos como uma criação sadia das velhas e desacreditadas humanidades. Filho de um desembargador, que ganhou para si e para os seus a nobilitação, António Ribeiro Saraiva é na proporção e na harmonia das suas faculdades uma figura sem recorte de aptidões excecionais. Mostra-se-nos bem como o produto normal de uma coletividade normal. Podemo-lo por isso tomar à vontade como uma média, como um padrão do que valia então entre nós o homem português.
Como subsídio para o estudo do «homem português», o Diário merece a aplicação carinhosa do nosso espírito. Não roço senão aspetos superficiais. E este do Romantismo, personificado em Ribeiro Saraiva como espécie social e moral, excedia, sem dúvida, as linhas modestas do presente ensaio. Discorrendo ainda do seu frustrado amor com Catarina Sherson, regista: «Foi ele a 29 de Abril do mesmo ano de 1836 passar a noite a casa de Casal Ribeiro. Voltando para casa estive conversando com Albino sobre o seu projeto de namorar Miss C... como fazendo-lhe boa conta; por esta ocasião esteve ele aconselhando-me que tratasse de fazer a corte a alguma rapariga que soubesse tinha fortuna, mesmo para me distrair. Eu disse-lhe o quanto agora isso me era difícil, porque nenhuma achava que me fizesse impressão. Então reflexionei sobre as qualidades da minha (?) sempre querida Catarina, como ela tinha por onde eu a adorasse, principalmente pelas qualidades morais; como todos os que a viam a amavam; como eu fazia como glória de ser amado por ela, assim como ela was proud of my love, como me dizia.»
E Ribeiro Saraiva acrescenta: «Albino citou-me a opinião de D. Francisco Manuel sobre a vantagem dos casamentos de razão, em contraposição aos de paixão (eu faço distinção entre estes e os de afeição) e acabou por concluir como, afinal, as qualidades morais acabaram por nos tornar amigos de nossas esposas, mesmo quando o casamento fosse de consciência, etc. – Eu de novo falei das qualidades morais da minha Catarina e disse como, desgraçadamente, até aquela timidez e resolução de seguir a vontade de seus pais era uma virtude, de maneira que nem acusá-la podia disso! Albino citou, em confirmação, a opinião de seu pai, que esteve para recusar casar com sua mãe, só porque ela consentiu na proposta de ser tirada por justiça de casa de seu tio e educador, etc.»
Entendo que nada mais é necessário para que se fixe definitivamente que de modo nenhum o lirismo estrutural da nossa raça, gerador dos tipos de sensibilidade que o Amadis generalizou, assumiu em Portugal a acção corrosiva de que se acompanhou por toda a Europa o desenvolvimento das suas formas bastardas. É frequentíssimo encontrar-se nos nobiliários, como exceção censurável, o registo: «casou por amor». A solidez da família portuguesa transparece, robusta, no excerto arrancado ao Diário de Ribeiro Saraiva. Esta faceta da sua psicologia, desnudando os mais ocultos recessos de uma alma, leva-nos evidentemente a não incorporar o nosso Romantismo na crítica geral a que a psicose romântica está implacavelmente sujeita. Onde a desordem em Ribeiro Saraiva, mesmo na fase aguda da sua crise amorosa? Sempre a mesma posse de si mesmo, o mesmo senso perfeito das relatividades que mostrou em mais de uma emergência política. Porque, se moralmente a experiência de António Ribeiro Saraiva se reveste do mais alto interesse, não é menos interessante a sua experiência política.
Efetivamente, basta passar a vista no Diário, pelo relato da entrevista de António Ribeiro Saraiva com o príncipe de Metternich, em Viena de Áustria, para que tomemos o pulso à sua visão de diplomata e de estadista. Confirma-se até a impressão superior que se recebe da leitura do raríssimo opúsculo Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, agent portugais à Londres, sous le gouvernement de Don Miguel, avec Lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne, le 20 Décembre, 1833, sur le meilleur moyen de pacifier le Portugal, d’y mettre fin à la guerre civile, d’y rétablir un vrai gouvernement constitutionnel... Por este Memorandum podemos verificar que a política de D. Miguel, como Ribeiro Saraiva a formulava, era a política histórica da Nacionalidade, em reação contra os dois absolutismos, o absolutismo monárquico, enxertado por Pombal na árvore da nossa realeza tradicional, e o absolutismo parlamentar importado de França com a aragem nefasta da Revolução.
Escutemos o infatigável emigrado miguelista em nota ao aludido opúsculo: «Dès que l’on voudrait sincèrement mettre de côté des caprices déraisonnables, et arriver de bon gré à la réconciliation de toute la grande famille Portugaise, au rétablissement de l’Unité Sociale et Nationale, il y aurait un moyen qui m’a toujours semblé le seul capable de mener a ce désirable résultat. Ce moyen – prossegue António Ribeiro Saraiva – consisterait à concilier les deux grands principes que les deux sections de la nation soutenaient, ou prétendaient soutenir, savoir, la Légitimité d’un côté, le gouvernement appelé Constitutionnel ou Représentatif de l’autre. Cela s’obtiendrait par le système que je proposais ; car dans ce système, la Légitimité ne consiste pas seulement en ce que Don Miguel soit la personne qui occupe le trône, mais en ce que les véritables Contrats Sociaux, le véritable Droit Public Portugais, la véritable ancienne Constitution soient observés. » Mais adiante Saraiva esclarece-nos: «Mais aujourd’hui, le Roi lui-même est convaincu plus que personne, du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre admirable Constitution ancienne, purgées des formes absolues, et hétérogènes, que le Pombalisme (en vertu d’une sorte de dictature, peut-être nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduites, au milieu du siècle dernier.» Qual seria então a nossa antiga Constituição, na frase de Saraiva, as nossas «leis fundamentais», verdadeiros contratos sociais, ainda na expressão do agudíssimo emigrado? ["A partir do momento em que se queira sinceramente pôr de lado caprichos irracionais e chegar de bom grado à reconciliação de toda a grande família portuguesa, ao restabelecimento da Unidade Social e Nacional, haveria um caminho que sempre me pareceu o único capaz de conduzir a este resultado desejável. Isto significa, como prossegue António Ribeiro Saraiva, que consistiria em conciliar os dois grandes princípios que os dois grandes sectores da nação apoiavam, ou pretendiam apoiar, a saber, a Legitimidade, por um lado, e o chamado Governo Constitucional ou Representativo, por outro. Isto seria obtido pelo sistema que propus; pois neste sistema, a Legitimidade consiste não só no facto de D. Miguel ser a pessoa que ocupa o trono, mas em que se observam os verdadeiros Contratos Sociais, o verdadeiro Direito Público português, a verdadeira Constituição antiga. Mas adiante Saraiva esclarece-nos: "Mas hoje, o próprio Rei está mais convencido do que ninguém do dever, ao mesmo tempo que da imperiosa necessidade, de restabelecer, no seu pleno exercício e funções naturais, toda a bela organização da nossa admirável Constituição antiga, expurgada das formas absolutas e heterogéneas que o pombalismo (em virtude de uma espécie de ditadura, talvez necessário nas circunstâncias da época) introduziu-o em meados do século passado." Qual seria então a nossa antiga Constituição, na frase de Saraiva, as nossas «leis fundamentais», verdadeiros contratos sociais, ainda na expressão do agudíssimo emigrado?]
Evidentemente que se tratava, numa linha de inteligente tradicionalismo, da restauração das instituições próprias – municípios e cortes gerais – do povo português. Eis no que a liberdade, identificada com a legitimidade, se traduzia para António Ribeiro Saraiva. Conceito inteiramente orgânico da estrutura e das relações do Estado, ele imprime a Saraiva o cunho de uma personalidade política superior. É aí que Saraiva excede a Garrett na compreensão do Romantismo, como sendo o regresso do nosso génio coletivo às suas formas naturais, completamente destroçadas por mais de um século de centralização absolutista e de falso e empedernido classicismo. E tocámos num ponto interessantíssimo: o do equívoco, tanto de Garrett, como de Herculano, supondo que na implantação do regime parlamentar se voltava à continuidade perdida da nossa velha e civilizada tradição representativa. Foi esse equívoco corrente, e à sua sombra medrou em adeptos e em entusiasmo o sistema bastardo que Mouzinho da Silveira sobreporia, a golpes de pena insensatos, aos nossos robustos institutos sociais e jurídicos.
Um livro há dessa época, que nos manifesta toda a amplitude do engano ou confusão em que laboravam tantos espíritos notáveis por mais de um título. É o Ensaio histórico-político sobre a constituição e governo do reino de Portugal, onde o parlamentarismo, instituição tradicional em Inglaterra, nos aparece como se fora o ressurgimento das nossas liberdades de outrora – das liberdades, de que demos à Europa um elevado exemplo nas cortes de 1641. Garrett e Herculano, enamorados pelo gosto medievalista que o Romantismo inaugurava, entregaram-se cegamente ao canto da sereia. E daí os clamores do segundo no seu panfleto A Voz do Profeta e, depois, o desterro voluntário que se impôs na solidão de Vale-de-Lobos. Mais inquieto, Garrett jornadeia através das oscilações revolucionárias dos primeiros trinta anos do liberalismo. Mas, por fim, nos seus célebres discursos de 1864 na Câmara dos Pares, grita bem alto o arrependimento que lhe punge a alma, aconselhando a quem o ouvia a imediata renacionalização da nossa administração e da nossa política. «Não, senhores, são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juízes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos: São algumas poucas e simples bases de reforma e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem para que, em harmonia e conformidade com elas, seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública, menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...»
Ora neste aspeto é que Ribeiro Saraiva se nos revela mais equilibrado que Garrett e que o mesmo Herculano. Tendo saído moço de Portugal, nem um só instante se desenraíza da Pátria, aonde não tornaria a vir. Ele interpreta fielmente a verdadeira e íntima face do Romantismo – do nosso que, pela sua essência medievalista, não podia deixar de ser, monárquico e católico – tal como em França, à roda da restauração dos Bourbons. Nessa altura, o próprio Victor Hugo – o Hugo avant 1830, como membro da Société Royale des Bonnes Lettres, não recuava em declarar enfaticamente e solenemente: «La littérature actuelle... est l’expression anticipée de la société religieuse et monarchique, qui sortira sans doute du milieu de tant de débris, de tant de ruines récentes.» E Louis Bertrand comenta: «d’abord les romantiques sont royalistes, tandis que les classiques sont libéraux».
E é tão profundo e tão nacionalista o sentido romântico de António Ribeiro Saraiva que se em política o leva certeiramente contra os abusos do Absolutismo sem o desviar do amor e do apoio ao que havia de permanente e vivo nas instituições tradicionais, no puro domínio das coisas do espírito realiza uma tentativa interessantíssima, pelo inesperado e pela intenção de regionalismo literário. Sem dúvida que António Ribeiro Saraiva não possui em poesia as asas e a delicadeza de Garrett. Mas não lhe fica muito distante na ideia que formava da renovação das nossas letras. Destrambelhado, sem nexo nem harmonia, é o que se infere do curioso livro Saraiva e Castilho, dois fartos volumes em que os dados biográficos, as nótulas críticas e os ensaios poéticos se misturam numa variedade e num pitoresco indescritível de cosmorama. Ao acaso, uma transcrição em que se vinca bem o conceito que Ribeiro Saraiva fazia do Romantismo. É de uma carta a Castilho, da Carta-monstro a A.F. de Castilho, segundo seu pedido.
Escreve Saraiva: «Não sei quem me disse aqui, que hoje o gosto por aí mais vogante era o Casimiro-de-lavinhismo e o Victor-Hugoísmo, tanto nos homens isto, como nas mulheres. Pois, assim como não imagino que semelhante mania contribua para apurar a moral da Nação, menos entendo que venham a concorrer para o refinamento da boa literatura poética.» É um repositório abundantíssimo esse do Saraiva e Castilho, onde com frequência nos surgem detalhes do mais inesperado sabor. Aludindo à mudança dos nomes das ruas em Coimbra por homenagem a certos vultos do regime liberal, observa Saraiva: «A do meu antigo sócio e amigo (Legitimista então) Joaquim António de Aguiar, pode-se desculpar; bem que (pois o nome é já estirado) convinha historicamente acentuar-lhe, ainda que fosse entre parêntesis («digníssimo Mata-Frades e Vira-Casacas») – aludindo àquela azul, de botões amarelos, com que os mesmos olhos que agora ajudam a escrever isto, o viram dançar como um bilro, todo o serão, na Quinta das Canas, no dia do Préstito a Santa Clara, em 1823, à saúde e regozijo da Restauração, nesse dia efetuada em Coimbra, do governo legítimo e toleirão de D. João VI. Joaquim António de Aguiar, dançando como um bilro na sua casaca azul de botões amarelos, em honra dos inauferíveis direitos, é, na verdade, um traço que nunca mais se esquece.
Mas o valor do Saraiva e Castilho reside, sobretudo, nos materiais que nos fornece para uma outra compreensão do nosso Romantismo. Saraiva, já estudado como homem e como político, deixa-nos aí o seu depoimento como poeta. Depoimento nem sempre à altura de um gosto medianamente exigente, mas, sem dúvida, mesmo nas suas quedas, revelador de um incontestável e autêntico temperamento literário. De resto, António Ribeiro Saraiva informa-nos das condições desvantajosas em que a sua vida decorria, para que houvesse de realizar uma obra duradoira e definitiva. «Trabalhos tenho eu delineados, e quase posso dizer, elaborados, na cabeça, que, se os executasse, creio seriam, não só de alguma honra, mas proveito considerável para o nosso Portugal. São coisas acima do que vulgarmente se apelida Literatura. São considerações, descrição, ilustração, etc., da nossa verdadeira e belíssima Constituição Portuguesa Antiga; da sua filosofia, suas vantagens, sua sabedoria, enfim; compará-la-ia em seus principais pontos e feições à da Inglaterra (que, in absoluto, não é tão bela, nem tão sábia, nem tão filosófica), e às de outros países. É obra em que poderia, creio eu, fazer alguma figura; porém, para executá-la precisava outro descanso, que não tenho, e pelo menos outros meios de subsistência, para não ser obrigado a cada instante, como agora me sucede, a interromper trabalho o mais transcendente, para atender a que uma garrafa de vinho seja bem arrolhada, ou bem lavada.»
Apesar de o negócio dos vinhos, de que vivia, roubar a Saraiva a natural disposição para o labor intelectual, a sua prodigiosa actividade interior não fugia de quando em quando a esse desabafo íntimo do espírito. Suponho perdido o manuscrito da Musa cotidiana (Saraiva seguindo os preceitos tradicionais usava de uma ortografia bastante simplificada), de que é possível fossem trasladados para o segundo volume do Saraiva e Castilho os poemetos («poemête» escrevia Saraiva) ali insertos. Afora outras peças de menor preço, são elas «O Natal na minha terra», «O San-João», «A Semana-Santa e o Entrudo». «A minha terra é Sernancelhe, na Beira-Alta, bispado de Lamego, comarca de Trancoso – elucida o poeta – vila acastelada, muito nobre e antiga.»
Começa António Ribeiro Saraiva:
Irmã gémea da saudade,
Memória de horas gostosas,
Ou de amor ou de amizade,
Ou de puerícia mimosas,
Vem dar-me suave auxílio
No mais favorito empenho,
Que hoje na terra do exílio,
Pensando na pátria, eu tenho.
Lembra-me a cena fagueira,
De inocência e de alegria,
Que outrora, na minha Beira,
Sacro Natal me trazia.
Vinha a Festa desejada
Em próprio tempo chegando
E talvez era acusada,
Porque não vinha voando!
A expressão é fácil, o ritmo espontâneo, o verso fluente. Reputo Ribeiro Saraiva nas suas tentativas por vezes mais diáfano que o Garrett de Camões e de Dona Branca:
Mas ei-lo amanhece o dia
Vinte e quatro de Dezembro!...
Com doce melancolia
Dele saudoso me lembro!...
Me lembro?... Não; vejo, sinto,
Gozo, no paterno tecto,
Muito melhor do que o pinto
Este dia predilecto...
.........................................
Que ternura de homens é esta
Que à vila vem caminhando,
Rindo e cantando de festa,
Carro triunfal puxando?
Trazem o cepo que, ardendo
Durante a Missa-do-Galo
Da igreja o adro aquecendo,
Servirá de iluminá-lo.
E as cenas domésticas desenrolam-se com a consoada na lareira, e antes, no templo, a adoração do Presépio. Garrett, na D. Branca insculpiu três versos que são a teoria perfeita do nosso Romantismo:
Nossas lindas ficções, nossa engenhosa
Mitologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam.
Outro não é o rumo de António Ribeiro Saraiva nos seus poemetos. Reeditados e devidamente prefaciados, constituiriam um lindo feixe de geórgicas portuguesas. Na opulência das imagens, nos recursos inesgotáveis que recebe do folclore, na cor local e na exatidão com que a respeita, António Ribeiro Saraiva – beirão de boa gema, com a inteligência tonificada pela ação clarificadora das disciplinas clássicas, é, sem receio de exagero ou de impugnação, o precursor do regionalismo em Portugal. Na magnífica unidade da sua existência moral e intelectual, parece-me ser já tempo de quebrarmos o silêncio a que o votavam na sua própria pátria. Vimos como ele só por si nos ajuda a reconstituir a fisionomia espiritual do nosso Romantismo, bem diferente da do Romantismo francês. Tanto basta para que esse romântico esquecido, que foi António Ribeiro Saraiva, ocupe na história das nossas letras lugar que a indigência mental dos críticos não lhe soube designar ainda.
In Da Hera nas Colunas, 1929.
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Várias obras de António Ribeiro Saraiva in Internet Archive: https://archive.org/search?query=Ant%C3%B3nio+Ribeiro+Saraiva