Super flumina BabyloniS
António Sardinha
RESUMO
Em “Super flumina babylonis”, António Sardinha defende que os problemas enfrentados pela Monarquia e pela Igreja em Portugal não resultaram da essência dessas instituições, mas sim da influência corruptora de ideias estrangeiras introduzidas pela Maçonaria. Na sequência do despotismo iluminista do marquês de Pombal, o Constitucionalismo e o Liberalismo continuaram a enfraquecer a Realeza e a Igreja: a Realeza foi submetida aos particulares e instáveis interesses das oligarquias partidárias, enquanto os líderes da Igreja se tornavam meros funcionários do Estado. Para Sardinha, a regeneração de Portugal exige que as essências tradicionais da Monarquia e da Igreja sejam repostas, libertando-as do ideologismo e das corrupções da Maçonaria.
SUPER FLUMINA BABYLONIS
Não confundamos a Monarquia com o Constitucionalismo, ainda mesmo no período em que ambos pareceram tão intimamente ligados! A primeira vítima do Constitucionalismo foi a dinastia, que ele levou a desposar um princípio antagónico, não só da sua natureza, mas até da própria natureza da nacionalidade. Se quisermos ser justos, temos que reconhecer que a proclamação da República marca para a Realeza o começo da sua libertação. Durante a época em que as imposições de um partidarismo sectário e mesquinho a escravizavam miseravelmente, nós vemos como se esforçava já por recuperar a perdida independência. Quantas vezes, pela virtude dos seus recursos admiráveis, à Monarquia se não sobrepôs, embora momentaneamente, à desordem brava das facções! O constante apelo à ditadura, que caracteriza o insucesso do nosso parlamentarismo, é a prova mais eloquente do que fica dito. E se detalharmos mais, lembrar-nos-emos da energia superior de D. Maria II, lutando sempre que as circunstâncias lho permitiam, para que a sua quase-legitimidade triunfasse, contra o seu vício de origem, das restrições que os políticos a toda a hora lhe gritavam junto do trono. Sacrificando-se ao prestígio abalado de uma coroa apenas nominal, como interpretar o assassinato de el-rei D. Carlos senão como o resultado trágico do duelo irreconciliável que se travara entre a Monarquia e o Liberalismo logo na noite em que, a seguir à vitória de 34, a canalha insatisfeita apupou o Regente na récita de gala em São Carlos?!
Estabelecida com inteiro espírito de justiça uma distinção a que nos obrigam o respeito da verdade e os ensinamentos da história, acentuamos desde já como são caluniosas e insubsistentes as acusações que por vezes se dirigem à política religiosa da Monarquia-Constitucional. Não é que defendamos a Monarquia – Constitucional! Nada mais condenável, sem dúvida, do que a sua política de atropelo e de vexames! Mas não nos esqueçamos que ela não é da essência da Realeza, mas sim do património social e ideológico do Liberalismo. Filho da Revolução Francesa, o Liberalismo recolheu-lhe toda a herança, embora nas suas formas atenuadas. Aproveitando-se de uma desastrada disputa dinástica, nós sabemos como tomou posse do nosso país. A Maçonaria foi, como agente universal da indisciplina e da negação, a sua introdutora entre nós. E a Igreja não escapou à infiltração do seu morbo dissolvente e pertinaz!
Não receia o prestígio da Igreja que se desvendem as faltas dos seus servidores, quando indignos. Até a pureza da sua missão ressalta mais diáfana, como ressalta mais clara a sua instituição divina. Nas mãos abomináveis dos Papas do Tusculum a Igreja permaneceu íntegra e luminosa, como nas mãos de Gregório VII ou de São Pio V. A perversão total da Renascença invade o Vaticano com Alexandre VI. No entanto, Alexandre VI passou. E, a braços com uma crise gravíssima, a Igreja prosseguiu una e indefetível, não tardando a remoçar-se no revigoramento da hierarquia e da fé. Espelho perfeito da Igreja-Ecuménica, também a Igreja de Portugal conheceu as mesmas angústias, sofreu a mesma paixão. O seu eclipse data de Pombal, de tendências jansenistas mais ou menos conhecidas e em tudo um fiel imitador do regalismo, que a Europa católica se dispunha então incondicionalmente a perfilhar, de olhos postos no exemplo da Casa de Áustria e da Casa de França.
Pretendeu Pombal, a título de nacionalizar a Igreja, diminuir os laços que nos prendiam a Roma. Verificada, ou não, a sua matrícula na Maçonaria, o que é fora de contestação é que os principais colaboradores do Marquês nessa tentativa de dissidentismo pertenceram à classe eclesiástica. Expulsos os Jesuítas, cerca-se Pombal dos Padres do Oratório, a quem não era estranha a influência de Port-Royal, para os substituir na direção da mocidade. E erigindo novas dioceses, sob a capa de um zelo aparente, o seu fim é concentrar na omnipotência da Coroa, pela apresentação de prelados de confiança, a independência já precária do Catolicismo em Portugal.
Criatura de Pombal, que ele gratificou com a pensão anual de 1.000$000 rs., o célebre P. António Pereira de Figueiredo facilita-lhe os desígnios com fundamentos canónicos, ao escrever a Tentativa teológica. Até no número dos bispos mais ou menos picados de vaidades separatistas, se destaca o doutíssimo D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas, sendo que, entre esses bispos, nem todos primavam, nem pelas excelências da piedade, nem pelos benefícios do saber. É o seu símbolo perfeito o ‘Cardeal Otomano’, que personifica bem a decadência da Igreja em Portugal. Ao seu lado aparecem-nos Frei Manuel de Mendonça, frade bernardo, imposto pelo Marquês para Geral e Reformador da sua Ordem, e Frei João de Mansilha, provincial dos Dominicanos, ambos devassos, ambos vendilhões de bens espirituais, acusados até de ladrões dos seus mosteiros.
Tais os colaboradores de Pombal! Se é evidente que ao Regalismo anda selada a responsabilidade da Monarquia, não é menos evidente que, abastardada pelo Absolutismo, a monarquia de D. José não era já a monarquia tradicional. Essa fôra subvertida pela onda naturalista do século XVIII, que viera rematar o trabalho da lenta infiltração paga da Renascença. Alguns sacerdotes ilustres protestaram, e um deles, D. Frei Miguel da Anunciação, bispo de Coimbra, atrozmente difamado, perseguido e preso, teve a julgá-lo Frei Manuel do Cenáculo, futuro arcebispo de Évora, e Frei Inácio de São Caetano, depois Arcebispo-Confessor. Eis uma página que, se ensombra o nome de um dos nossos reis, não dignifica também a tradição do episcopado nacional!
As «cadeias doiradas» do Regalismo – na expressão de certas folhas católicas quando fazem estilo, ao aprisionarem a oprimida Igreja-Portuguesa – não abriram deste modo escrúpulos na consciência dos prelados do tempo – guardadas, claro, algumas exceções raríssimas. Constituíram até uma escada de fácil acesso para muita ambição desordenada. E no alastramento do filosofismo revolucionário, é tristíssimo verificarmos que no seio das Ordens Religiosas o fermento das ideias francesas encontrava excelente acolhida. Isso contribuiu profundamente para a relaxação dos costumes monásticos, que a Junta do melhoramento temporal das ordens regulares – de «Mesa do Pioramento» a alcunhou o autor da História de decadência da Igreja Lusitana –, longe de mitigar, pelo menos, só agravou, e agravou profundamente.
O general Foy dá-nos um testemunho precioso da influência do espírito da Enciclopédia nos conventos portugueses. Conta-nos ele que, ao ser retirada a censura dos livros à Inquisição, se viram logo nas bibliotecas conventuais Les Oeuvres de Voltaire e de Montesquieu, fraternalmente alinhadas, nas mesmas prateleiras, ao lado da Summula de São Tomás. As consequências afloraram depressa. Os frades de São Bento e os cónegos regrantes de Santo Agostinho, sobretudo, forneceram um meio propício ao maçonismo invasor. Noviço de Santa Cruz de Coimbra, José Liberato Freire de Carvalho, D. Frei José do Loreto, desempenha um papel primacial no desenvolvimento da Maçonaria entre nós.
Enlaçada a Maçonaria ao Liberalismo, a política religiosa seguida inspirou-se imediatamente no figurino regalista de Pombal. É nos clubs secretos que se conspira contra as bases tradicionais da sociedade, saindo de lá, em grande caravana pelo país abaixo, a revolução de 1820. Na lista dos cabecilhas avulta Frei Francisco de São Luís, mais tarde Bispo-Conde eleito, reitor da Universidade e finalmente, Patriarca de Lisboa, com a designação de Cardeal Saraiva. Segundo a relação das lojas existentes em Portugal por volta de 1821 e dada nesse ano à estampa em Paris, o futuro Cardeal-Patriarca fazia parte do estado-maior do Grande Oriente Lusitano com o crisma maçónico de Condorcet. Funcionavam com ele os Irm... Spartacus (D. Pascoal, membro do Grande Oriente Espanhol e encarregado da correspondência), Temístocles (cónego Castelo-Branco), Durac (padre Portela, «declarado profano por não ser exacto nas contas»), e Tarquínio, (José Pedro, dono de um botequim, em que «se alistavam os adeptos»). Como se mostra, era, na verdade, a melhor companhia para quem se cobriria ainda com a púrpura cardinalícia!
Não é isolado o caso de Frei Francisco de São Luís. Não me refiro já aos simples tonsurados, legião inúmera nas hostes do Liberalismo e ao serviço da Maçonaria. Refiro-me apenas aos prelados. Ninguém ignora que o clero constitucionalista se encarna à maravilha no tipo rechonchudo e cínico do padre Marcos – Capelão-Mor do Paço e D. Prior de Guimarães, salvo engano. Pois D. Marcos teve quem o precedesse nos juramentos prestados sobre o compasso e o esquadro, à face do Supremo Arquiteto do Universo! O arcebispo da Baía, D. Frei Vicente da Soledade, presidiu às Constituintes de 22. No horror dos vintistas ao padre, não se lhe confiaria um lugar de proeminência, se a inscrição nos fastos do grémio lhe não abonasse a conduta. Mas o episódio mais impressivo sucedeu com o penúltimo bispo de Elvas, D. Frei Joaquim de Menezes e Ataíde.
Na sua História da Maçonaria em Portugal, Borges Grainha, ao mencionar a loja Liberalidade, instalada em Elvas no ano de 1818, informa pertencerem a ela «as principais pessoas daquela praça, entre outras o Bispo Ataíde, o general Stubs, o visconde de Vila Nova de Gaia, José Lúcio Valdez, depois conde do Bomfim, o cónego João Travassos, o tenente-coronel Manuel Geraldes Ferreira Passos, que era o Venerável, e António Manuel Varejão, então ajudante de infantaria 8 e liberal exaltado, mas que serviu de testemunha contra os Irm. da sua Loja, depois da queda da Constituição de 1820». A composição da loja Liberalidade, com um bispo e um general sujeitos a um tenente-coronel, ensina-nos magnificamente o que é o espírito maçónico, na sua subversão de toda a hierarquia e autoridade legítimas. Não se dirigia então a Maçonaria ao povo, que se conservava enraizado e fiel à sua dupla disciplina católica e monárquica. Auxiliada pelo vento da inovação, o seu proselitismo desenvolvia-se de preferência nas classes elevadas, a nobreza e o alto clero, especialmente. Compreende-se assim o motivo por que os franceses, quando das três invasões, acharam nessas classes alguns auxiliares valiosos. Se o povo os repeliu, repeliu-os ajudados pelo pequeno clero e pelos morgados da província, ainda virgens da corrupção revolucionária. Voltemos, porém, ao bispo Ataíde.
Não o curou o desfecho desastroso das ideologias de 1820. No regresso, em 1828, do infante D. Miguel, uma devassa geral pronunciou em Elvas o prelado da diocese como desafeto à Realeza. A devassa ordenou-a o governador militar Brito Mousinho e executou-a o vereador mais velho e juiz pela Ordenação, Domingos Sardinha Mergulhão, meu tio-bisavô e bisavô do atual conde de Martens-Ferrão.[1] Não foi o bispo o único eclesiástico pronunciado. Foi também o seu secretário, foram vários frades e alguns párocos das freguesias rurais. Entre os civis pronunciados distinguia-se o nome do ex-corregedor Luís Manuel de Évora Macedo – detalhe saborosíssimo! –, bisavô por linha paterna do atual conde de Monsaraz, meu querido companheiro nas lutas integralistas. Suspendeu-se o procedimento contra o bispo, embora a pronúncia obrigasse a prisão. Pôde, entretanto, D. Frei Joaquim de Menezes e Ataíde passar a fronteira, morrendo de peste em Gibraltar, onde se refugiara.
O seu sucessor, D. Frei Ângelo de Nossa Senhora de Boa-Morte, padece, pelo contrário, os rigores do Liberalismo. Elegera-o para a mitra de Elvas o governo de el-rei D. Miguel I e a Santa Sé confirmara-lhe a eleição. Ocorre neste meio tempo o epílogo trágico de Évora-Monte. A ralé em Lisboa espanca o bispo de Elvas em plena rua, deixando-o com lesões na cabeça, que o vitimaram volvidos anos. A nova situação não o reconhece como prelado, como não reconheceu a todos os que ‘o governo intruso’ apresentara nas catedrais vagas. São escorraçados, já ungidos e no exercício do seu sagrado ministério, D. Frei Fortunato de São-Boaventura, D. Francisco Alexandre Lobo e D. Frei Joaquim de Nazareth. Em Bragança o general Avilês depõe o bispo e força o Cabido a eleger vigário capitular. As violências consumam-se com a extinção das Ordens Religiosas. A monarquia bastarda de 34 envilece-se numa política de perseguição e de espoliação. Mas há, a acompanhá-la, teólogos, prelados e até um futuro cardeal, que se inclinam diante do poder e não recuam em face de uma desobediência a Roma. As culpas são grandes, o crime não tem perdão. Mas não se acuse só a Monarquia! Acuse-se também na sua cumplicidade lamentável a Igreja Portuguesa![2]
Com uma estátua inaugurada e subsidiada pela Maçonaria, o bispo Alves Martins é talvez um dos últimos representantes desse episcopado vergonhoso. Ministro e presidente de Conselho, nunca se aproveitou do seu valimento para minorar as leis proibitivas da associação e da liberdade religiosas. Narra um viajante estrangeiro que, assistindo de uma vez a uma sessão no nosso Parlamento, pasmou de que o motivo do debate fosse a repressão das congregações, sendo o presidente da Câmara de mais a mais um prelado. Tratava-se, naturalmente, do bispo de Vizeu, que se recusou em Roma a assinar as decisões conciliares que proclamaram Nossa Senhora imaculada na Sua Conceição.
Na mesma esteira, ainda Borges Grainha nos aponta outros prelados com registo na Maçonaria. Os dissidentes cabralistas do Grande Oriente elegeram, ao separar-se, para seu Grão-Mestre o cónego Francisco Eleutério Castelo-Branco, estando filiados por essa época na loja-mãe o arcebispo de Évora (Anes de Carvalho), com o crisma de Demóstenes, e D. Januário, bispo eleito de Castelo-Branco, com o crisma de Haberkorn. Eis as consequências do Regalismo, organizado em carreira pública, para as prebendas da Igreja, pelas necessidades partidárias da monarquia constitucional! Indiferentes a tudo o que interessasse à dignidade e à independência de Catolicismo, os prelados não passavam de altos funcionários do Estado, com a mesma psicologia de burocratas meticulosos, que Fradique Mendes assinalava magistralmente, ao descrever a Madame de Jouarre, sua madrinha, aquele nosso padre Salgueiro, pessoa por ele convivida em certa casa de hóspedes da travessa da Palha.
Com passagem inevitável pelo Ministério de Justiça, párocos e bispos são retratados, numa assombrosa fidelidade de traço, nesse ótimo ‘amanuense das coisas de Jesus Cristo’. Não admiravam como ele na obra pontifical de Pio IX, nem a Infabilidade nem o Syllabus. E porque se prezavam de liberais, desejavam mais progresso, bendiziam os benefícios de instrução e assinavam o Primeiro de Janeiro. O seu cuidado era, para uns, a côngrua, para outros a cadeira em São Bento. E enquanto nas paróquias os curas sonhavam com eleições e armavam em caciques, os seus superiores marchavam com todos os governos e, sempre que havia uma votação difícil, lá iam, pachorrentos, decidi-la a Lisboa. A sua voz nunca se ouviu, mais forte, nem numa repreensão ou num singelo protesto. Como um ferrete indelével, ficou-lhes gravado por isso na memória o formidável Canes mutii da palavra sangrenta de Pio IX!
É deveras melindroso o assunto. Mas é preciso numa hora de injustas acusações que se reponha a verdade no seu merecido lugar. Nem a Igreja é atingida pela conduta dos seus maus servidores, nem a Monarquia se deve envolver nos erros que partiram, não dela, mas do sofisma que a diminuiu e corrompeu. Monarquia e Igreja sofreram ambas o contágio funesto da Revolução. Sua vítima e sua prisioneira, tão depressa a primeira capitulou, logo a segunda se viu invadida por uma turba de ambiciosos sem conciência. Há aqui uma identidade entre as duas instituições, que se apresenta iniludivelmente à nossa meditação. As causas de grandeza para uma são as condições de desenvolvimento para outra. Se a guerra à Igreja é património da Revolução, património da Revolução é a guerra à Monarquia. Ora se a Monarquia é por sua virtude própria o natural inimigo da Revolução, segue-se que é por isso mesmo a aliada natural da Igreja. Nada de confusões, meus senhores! Façamos todos penitência sentida, porque se, em Portugal, a Monarquia faltou à Igreja, a culpa foi dos princípios que abastardaram a nação e a que a Igreja não se eximiu.
[1] Quando um dia se escreva o agitado romance que foi a vida de um certo Augusto César de Vasconcelos, morto em Elvas de avançada idade, Domingos Sardinha Mergulhão, a única pessoa possuidora do segredo de tão misteriosa existência, terá nele o seu lugar bem marcado. Vinha de uma velha família elvense esse Domingos Sardinha Mergulhão, ainda que nascido no termo de Monforte e descendente de um dos ramos que se expandira para fora de Elvas. O primeiro Sardinha de que em Elvas os documentos nos acusam os vestígios é Domingos Martins Sardinha, que em 1273 aforou um pardieiro da rua dos Mercadores para fazer uma tenda. Nobilitou-se depois a família e é interessante notar que o nome Domingos ‘e o patronímico’ Domingues aparecem nela frequentíssimamente. Recorda um membro desta família a «Varandinha de João Domingues» em Elvas.
Assentando praça em Elvas, requereu Domingos Sardinha Mergulhão o reconhecimento como cadete. Para isso teve que provar nobreza por si, seus pais e avós. Era filho do capitão de milícias da comarca de Portalegre, Cosme Damião Sardinha, Guarda-Mor de Saúde da vila de Assumar, e de D. Teodósia Catarina de Sena Mergulhão. Ainda em cadete, casou em São Pedro de Elvas com sua prima D. Mariana Madalena da Costa Sardinha. No seu curioso voluminho, Notas histórico-militares (Elvas, 1898), insere o benemérito folclorista António Tomás Pires o excerto de uma carta de D. Mariana Madalena a seu marido, em que se revela uma bela alma feminina.
Pedindo baixa do serviço por motivo de saúde, entregou-se Domingos Sardinha aos cuidados da sua casa, bastante afazendada. Quando da primeira invasão francesa elegeram-no para capitão de uma Companhia de Ordenanças da cidade de Elvas. E ingressando no corpo municipal da mesma cidade, não só como «vereador mais velho», por falta de Juiz-de-Fora, pronunciou o bispo Ataíde, como propôs em câmara, para que se pedisse a D. Miguel para assumir o título de rei, sem prévia consulta das Côrtes. Cavaleiro professo na Ordem de Cristo, encontramo-lo à frente, desde então, da política miguelista em Elvas, tendo que emigrar em 1834, sem que não houvesse primeiro passado pelas cadeias. A única filha, que lhe sobreviveu, D. Maria Amália da Costa Sardinha Mergulhão, casou com João Miguel Francisco de Assis de Sequeira Barreto, nascendo deste casamento, além de outros filhos, D. Mariana Amália da Costa Sardinha Mergulhão de Sequeira Barreto, esposa do conselheiro Martens Ferrão.
Ora Domingos Sardinha Mergulhão privou, protegendo-o até nas suas dificuldades financeiras, com o referido Augusto César de Vasconcelos. Quem ler o epitáfio de Augusto César de Vasconcelos no cemitério de Elvas nem de longe supõe o enigma que essa pedra tumular encobre. Encobre naturalmente os restos do Delfim, os restos do pobre Luís XVII, que tudo se aposta em identificar com Augusto César de Vasconcelos, apesar das suas constantes negativas, tão constantes como a sua pertinácia em ocultar, até aos próprios filhos, o seu verdadeiro nome. Só se abriu com Domigos Sardinha Mergulhão, compadre e amigo. Mas o compadre e amigo igualou-o no silêncio sagrado, que inabalavelmente manteve. Depositário do segredo do presumível neto de São Luís e magistrado de uma devassa, em que um bispo saíu pronunciado como maçon, Domingos Sardinha Mergulhão merecia-nos a presente nota.
[2] Veja-se o magnífico estudo de Mons. J. Augusto Ferreira, Memórias para história de um cisma, Braga, 1917.
[ 1925 - António Sardinha - Ao ritmo da ampulheta ]
Argumentação
- 1. Monarquia ≠ Constitucionalismo - “Não confundamos a Monarquia com o Constitucionalismo, ainda mesmo no período em que ambos pareceram tão intimamente ligados! A primeira vítima do Constitucionalismo foi a dinastia, que ele levou a desposar um princípio antagónico, não só da sua natureza, mas até da própria natureza da nacionalidade.”
- 2. O Constitucionalismo enfraqueceu a Realeza. “Durante a época em que as imposições de um partidarismo sectário e mesquinho a escravizavam miseravelmente, nós vemos como se esforçava já por recuperar a perdida independência. Quantas vezes, pela virtude dos seus recursos admiráveis, a Monarquia se não sobrepôs, embora momentaneamente, à desordem brava das facções!”
- 3. O Liberalismo como herança da Revolução Francesa - “Filho da Revolução Francesa, o Liberalismo recolheu-lhe toda a herança, embora nas suas formas atenuadas. Aproveitando-se de uma desastrada disputa dinástica, nós sabemos como tomou posse do nosso país. A Maçonaria foi, como agente universal da indisciplina e da negação, a sua introdutora entre nós.”
- 4. A política religiosa da Monarquia Constitucional não representa a essência da Realeza - “Não é que defendamos a Monarquia – Constitucional! Nada mais condenável, sem dúvida, do que a sua política de atropelo e de vexames! Mas não nos esqueçamos que ela não é da essência da Realeza, mas sim do património social e ideológico do Liberalismo.”
- 5. Pombal e o regalismo. “Pretendeu Pombal, a título de nacionalizar a Igreja, diminuir os laços que nos prendiam a Roma. Verificada, ou não, a sua matrícula na Maçonaria, o que é fora de contestação é que os principais colaboradores do Marquês nessa tentativa de dissidentismo pertenceram à classe eclesiástica.”
- 6. Decadência da Igreja. “Espelho perfeito da Igreja-Ecuménica, também a Igreja de Portugal conheceu as mesmas angústias, sofreu a mesma paixão. O seu eclipse data de Pombal, de tendências jansenistas mais ou menos conhecidas e em tudo um fiel imitador do regalismo, que a Europa católica se dispunha então incondicionalmente a perfilhar…”
- 7. A Maçonaria e o Liberalismo conspiraram contra as bases tradicionais. “Enlaçada a Maçonaria ao Liberalismo, a política religiosa seguida inspirou-se imediatamente no figurino regalista de Pombal. É nos clubs secretos que se conspira contra as bases tradicionais da sociedade, saindo de lá, em grande caravana pelo país abaixo, a revolução de 1820.”
- 8. Conflitos, perseguições e extinção das ordens religiosas. “As violências consumam-se com a extinção das Ordens Religiosas. A monarquia bastarda de 34 envilece-se numa política de perseguição e de espoliação. Mas há, a acompanhá-la, teólogos, prelados e até um futuro cardeal, que se inclinam diante do poder e não recuam em face de uma desobediência a Roma.”
- 9. Crítica ao episcopado liberal. “Indiferentes a tudo o que interessasse à dignidade e à independência de Catolicismo, os prelados não passavam de altos funcionários do Estado, com a mesma psicologia de burocratas meticulosos…”
- 10. Responsabilidade compartilhada. “Mas não se acuse só a Monarquia! Acuse-se também na sua cumplicidade lamentável a Igreja Portuguesa!”
- 11. Conclusão – Separar essência e corrupção. “Nem a Igreja é atingida pela conduta dos seus maus servidores, nem a Monarquia se deve envolver nos erros que partiram, não dela, mas do sofisma que a diminuiu e corrompeu. Monarquia e Igreja sofreram ambas o contágio funesto da Revolução.”
- Monarquia ≠ Constitucionalismo:A Monarquia não deve ser confundida com o Constitucionalismo. O Constitucionalismo foi prejudicial à dinastia e à nacionalidade, levando a Monarquia a adotar princípios contrários à sua essência.
- O Constitucionalismo enfraqueceu a Realeza: A Monarquia perdeu independência e prestígio ao submeter-se ao Constitucionalismo, tornando-se vítima de um sistema que favorecia o partidarismo e a instabilidade.
- O Liberalismo como herança da Revolução Francesa: O Liberalismo, introduzido em Portugal pela Maçonaria, trouxe ideias revolucionárias que corromperam tanto a Monarquia quanto a Igreja.
- A política religiosa da Monarquia Constitucional não representa a essência da Realeza: Os erros e abusos cometidos durante a Monarquia Constitucional derivam do Liberalismo, não da tradição monárquica autêntica.
- Pombal e o regalismo: O Marquês de Pombal tentou nacionalizar a Igreja, enfraquecendo os laços com Roma e promovendo o regalismo, com apoio de membros do clero.
- Decadência da Igreja: A Igreja em Portugal sofreu decadência devido à influência do ideário da Revolução Francesa, à infiltração maçónica e à ambição de alguns eclesiásticos.
- A Maçonaria e o Liberalismo conspiraram contra as bases tradicionais: A Maçonaria, aliada ao Liberalismo, atuou principalmente entre a nobreza e o alto clero para subverter a ordem tradicional.
- Conflitos, perseguições e extinção das ordens religiosas: Bispos e prelados são perseguidos pelos Liberais e pela Maçonaria, e as ordens religiosas foram extintas. Bispos e prelados tornaram-se meros funcionários do Estado, negligenciando a independência e dignidade do Catolicismo.
- Responsabilidade compartilhada: Tanto a Monarquia quanto a Igreja foram vítimas do contágio revolucionário e sofreram devido à corrupção dos seus princípios originais.
- Conclusão – Separar essência e corrupção: Os erros cometidos não devem ser atribuídos à essência da Monarquia ou da Igreja, mas sim aos princípios revolucionários que as corromperam.