ESTUDOS PORTUGUESES
  • PORTugAL
    • 1129 - Palavra-Sinal "Portugal"
    • Pola : lei : e : pola : grei
    • Cruz da Ordem de Cristo
  • Democracia
    • Oligarquia e Corrupção
    • Outra Democracia
    • Município
  • Os Mestres
    • Santo Isidoro de Sevilha, c. 560-636
    • São Tomás de Aquino, 1224-1274
    • Francisco Suárez, 1548-1617
    • João Pinto Ribeiro, 1590-1649
    • Francisco Velasco de Gouveia, 1580-1659
    • Visconde de Santarém, 1791-1856
    • Almeida Garrett, 1799-1854
    • Alexandre Herculano, 1810-1877
    • Martins Sarmento, 1833-1899
    • Joaquim Nery Delgado, 1835-1908
    • Alberto Sampaio, 1841-1908
    • Eça de Queirós, 1845-1900
    • Joaquim Pedro de Oliveira Martins, 1845-1894
    • Ferreira Deusdado, 1858-1918
    • Ramalho Ortigão, 1836-1915
    • Moniz Barreto, 1863-1896
    • Rocha Peixoto, 1866-1909
    • António Lino Neto, 1873-1934
  • Integralismo Lusitano
    • Publicações aconselhadas, 1914-16
    • Integralismo Lusitano - Periódicos e Editoras
    • Afonso Lopes Vieira, 1878-1946
    • Adriano Xavier Cordeiro , 1880-1919
    • Hipólito Raposo, 1885-1953
    • Luís de Almeida Braga, 1886-1970
    • António Sardinha, 1887-1925 >
      • Poesia
      • Santo António
      • Os Jesuítas e as Letras
      • 31 de Janeiro
      • 24 de Julho
      • A retirada para o Brasil
      • El-Rei D. Miguel
      • A 'Vila-Francada' [ 1823 ]
      • Um romântico esquecido [António Ribeiro Saraiva]
      • Conde de Monsaraz
      • Super flumina babylonis
      • A tomada da Bastilha
      • Pátria e Monarquia
      • D. João IV
      • D. João V
      • Alcácer-Quibir
      • A "Lenda Negra" [ acerca dos Jesuítas]
      • O espírito universitário [ espírito jurídico ]
      • As quatro onças de oiro
      • O problema da vinculação
      • Mouzinho da Silveira
      • A energia nacional
      • A voz dos bispos
      • O 'filósofo' Leonardo
      • O génio peninsular
      • O 'oitavo sacramento'
      • O Sul contra o Norte
      • Consanguinidade e degenerescência
      • O velho Teófilo
      • Sobre uma campa
    • Alberto Monsaraz, 1889-1959
    • Domingos de Gusmão Araújo, 1889-1959
    • Francisco Rolão Preto, 1893-1977
    • José Pequito Rebelo, 1893-1983
    • Joaquim Mendes Guerra, 1893-1953
    • Fernando Amado, 1899-1968
    • Carlos Proença de Figueiredo, 1901-1990
    • Luís Pastor de Macedo, 1901-1971
    • Leão Ramos Ascensão, 1903-1980
    • António Jacinto Ferreira, 1906-1995
    • José de Campos e Sousa, 1907-1980
    • Guilherme de Faria, 1907-1929
    • Manuel de Bettencourt e Galvão, 1908
    • Mário Saraiva, 1910-1998
    • Afonso Botelho, 1919-1996
    • Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003
    • Gonçalo Ribeiro Telles, 1922-2020
    • Rivera Martins de Carvalho, 1926-1964
    • Teresa Martins de Carvalho, 1928-2017
  • Índice
  • Cronologia
  • Quem somos
  • Actualizações
  • PORTugAL
    • 1129 - Palavra-Sinal "Portugal"
    • Pola : lei : e : pola : grei
    • Cruz da Ordem de Cristo
  • Democracia
    • Oligarquia e Corrupção
    • Outra Democracia
    • Município
  • Os Mestres
    • Santo Isidoro de Sevilha, c. 560-636
    • São Tomás de Aquino, 1224-1274
    • Francisco Suárez, 1548-1617
    • João Pinto Ribeiro, 1590-1649
    • Francisco Velasco de Gouveia, 1580-1659
    • Visconde de Santarém, 1791-1856
    • Almeida Garrett, 1799-1854
    • Alexandre Herculano, 1810-1877
    • Martins Sarmento, 1833-1899
    • Joaquim Nery Delgado, 1835-1908
    • Alberto Sampaio, 1841-1908
    • Eça de Queirós, 1845-1900
    • Joaquim Pedro de Oliveira Martins, 1845-1894
    • Ferreira Deusdado, 1858-1918
    • Ramalho Ortigão, 1836-1915
    • Moniz Barreto, 1863-1896
    • Rocha Peixoto, 1866-1909
    • António Lino Neto, 1873-1934
  • Integralismo Lusitano
    • Publicações aconselhadas, 1914-16
    • Integralismo Lusitano - Periódicos e Editoras
    • Afonso Lopes Vieira, 1878-1946
    • Adriano Xavier Cordeiro , 1880-1919
    • Hipólito Raposo, 1885-1953
    • Luís de Almeida Braga, 1886-1970
    • António Sardinha, 1887-1925 >
      • Poesia
      • Santo António
      • Os Jesuítas e as Letras
      • 31 de Janeiro
      • 24 de Julho
      • A retirada para o Brasil
      • El-Rei D. Miguel
      • A 'Vila-Francada' [ 1823 ]
      • Um romântico esquecido [António Ribeiro Saraiva]
      • Conde de Monsaraz
      • Super flumina babylonis
      • A tomada da Bastilha
      • Pátria e Monarquia
      • D. João IV
      • D. João V
      • Alcácer-Quibir
      • A "Lenda Negra" [ acerca dos Jesuítas]
      • O espírito universitário [ espírito jurídico ]
      • As quatro onças de oiro
      • O problema da vinculação
      • Mouzinho da Silveira
      • A energia nacional
      • A voz dos bispos
      • O 'filósofo' Leonardo
      • O génio peninsular
      • O 'oitavo sacramento'
      • O Sul contra o Norte
      • Consanguinidade e degenerescência
      • O velho Teófilo
      • Sobre uma campa
    • Alberto Monsaraz, 1889-1959
    • Domingos de Gusmão Araújo, 1889-1959
    • Francisco Rolão Preto, 1893-1977
    • José Pequito Rebelo, 1893-1983
    • Joaquim Mendes Guerra, 1893-1953
    • Fernando Amado, 1899-1968
    • Carlos Proença de Figueiredo, 1901-1990
    • Luís Pastor de Macedo, 1901-1971
    • Leão Ramos Ascensão, 1903-1980
    • António Jacinto Ferreira, 1906-1995
    • José de Campos e Sousa, 1907-1980
    • Guilherme de Faria, 1907-1929
    • Manuel de Bettencourt e Galvão, 1908
    • Mário Saraiva, 1910-1998
    • Afonso Botelho, 1919-1996
    • Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003
    • Gonçalo Ribeiro Telles, 1922-2020
    • Rivera Martins de Carvalho, 1926-1964
    • Teresa Martins de Carvalho, 1928-2017
  • Índice
  • Cronologia
  • Quem somos
  • Actualizações
Search by typing & pressing enter

YOUR CART

DUAS DATAS

António Sardinha

RESUMO
Reflexões sobre Dois Momentos Decisivos da História de Portugal
Duas datas: O Auge e o Declínio da Segunda Dinastia Portuguesa. António Sardinha destaca dois acontecimentos fundamentais, ambos ocorridos em Agosto, que marcam pontos extremos na trajetória da segunda dinastia portuguesa: a conquista de Ceuta, em 21 de Agosto de 1415, e a derrota em Alcácer-Quibir, em 4 de Agosto de 1578. Para Sardinha, estes eventos representam o início da grandeza e o sinal de decadência de Portugal.

Ceuta: O Início da Expansão e a Missão Cristã. A tomada de Ceuta é o ponto de partida para a construção do império marítimo português, permitindo a Portugal tirar partido da sua posição geográfica, evitando a subordinação ao centralismo de Castela. Sardinha sublinha a motivação religiosa dos principais protagonistas no início da expansão: a conquista de Ceuta é uma missão ao serviço do ideal de Cristandade.  O projeto de expansão tinha como foco África e as ilhas atlânticas, mas desviou-se devido ao fascínio pelas riquezas da Índia. Este desvio assinala o princípio da decadência nacional.

Alcácer-Quibir: O Fim de um Ciclo e o Início da Expiação. A derrota em Alcácer-Quibir, de que resultou o desaparecimento do rei D. Sebastião, é apresentada como o trágico epílogo de um ciclo histórico. A crise nacional subsequente, encerra uma época de esplendor e inaugura um período de expiação coletiva. Sardinha sugere que a reflexão sobre estas duas datas pode oferecer ensinamentos para o futuro do país, salientando a importância das alianças e do papel estratégico de Portugal no Atlântico.

Mudanças de Perspetiva e Contexto Histórico. Este texto - Duas Datas - foi escrito no verão de 1917 e, em 1924, Sardinha mudara de perspectiva em alguns pontos, mas decidiu ainda assim incluí-lo no volume que organizou e intitulou Ao ritmo da ampulheta, postumamente publicado. Em notas de rodapé, Sardinha registou algumas importantes alterações na sua visão:
  • Substitui o conceito de "latinidade" por "ocidental", sublinhando a noção de hispanidade.
  • Deixa de considerar a expansão para a Índia como causa da decadência nacional, e passa a reconhecer a dimensão espiritual de toda a Expansão Ultramarina.
Em 1916, a Alemanha declarou guerra a Portugal, manifestando o Integralismo Lusitano apoio a D. Manuel II e à aliança luso-britânica. O desenrolar e o desfecho da guerra, levaram António Sardinha a rever a sua perspectiva acerca da questão de Marrocos e do futuro da Península.






​DUAS DATAS

Eu não quero que termine Agosto sem aqui lembrarmos a passagem de duas datas, que são das maiores na história de Portugal. Foi a 21 de Agosto que Ceuta, chave do Estreito e cabeça da Moirama, caía em nosso poder. Duzentos e tantos anos mais tarde, era em Agosto também, a 4, por sinal, que Portugal sucumbia em Alcácer-Quibir, debaixo dos golpes do mesmo Moiro, que dois séculos antes havíamos desbaratado.

Nestas duas datas se encerra todo o curso da nossa vida de povo durante a segunda dinastia. Portugal, colocado à beira do Oceano, tinha que sofrer a influência da lei dos litorais. A sua expansão para o mar seria irreprimível no dia em que lhe não fosse mais possível manter-se dentro dos antigos limites, ou quando a autonomia da sua existência política lhe exigisse um ponto de apoio, que na Península não encontraria. Enquanto a centralização castelhana se não consumasse, ainda a nossa vida se tornava fácil, socorrendo-se dos diversos antagonismos que dificultavam a consumação desse facto e cultivando-os até habilidosamente, por meio da forma sábia dos tratados e alianças.

Uma hora chegou, porém, em que forçosamente soçobraríamos, se nos não achássemos já então firmados na nossa força naval, iniciando as bases de um verdadeiro imperialismo marítimo. É a hora de Isabel-a-Católica, quando da nossa parte, herdeiro do espírito e da obra do infante D. Henrique, a marcha dos destinos da nacionalidade tomara consciência na figura superior de D. João II. Para trás, ficara a epopeia de Marrocos e a aventura grandiosa das Navegações. Ceuta abrira a nova idade de Portugal, saudada pelo Cronista como um estranho alevantar de outras gentes e de outras gerações. São os homens rudes das nossas costas, os homens de Nuno Gonçalves, que dão realização ao sentido obscuro da Pátria, na sua necessidade imperiosa de dilatação. D. Fernando já a pressentira. Mas errou-lhe a direção, ao intentá-la territorialmente contra o coração de Castela. E se Deus o não escolhera para o papel glorioso dos seus sucessores, não nos esquecemos nunca de que ele é o continuador de D. Dinis na organização cuidadosa da marinha nacional, tanto de guerra como mercante.

Há no problema histórico da nossa largada ultramarina dois aspetos que convém distinguir. Marrocos, do outro lado das nossas águas, era decerto o ‘Algarve de além-mar’ – o nosso natural prolongamento. Prolongamento tão natural, que a questão marroquina de hoje em dia justifica para a inteligência de todos a importância do que seria para nós a posse dessa ‘África fértil e vizinha’ – como a apelidaria mais tarde o conde de Ericeira, último governador da Tânger portuguesa. O erro da nossa ação colonizadora foi abandonar-se o alastramento rural e pacífico da Pátria através das cabeceiras de África e das ilhas do Atlântico, para nos mergulharmos, de alma desvairada e sedenta, na miragem faustosa do oiro da Índia.
​

Aí começa a ruína de Portugal, abalando-se nas frotas a ver da riqueza estonteante do Oriente e trocando por um futuro de incerteza e naufrágios a estabilidade segura de um império, de que é prova ainda agora a fidelidade respeitosa, de que o marroquino atual reveste o nome português. Não comparemos por isso o desvario de comercialização e de rapina que nos levou a entrar nas cidadelas do Indostão, entre crepúsculos de sangue e glória, com o que seriam as virtudes da raça, desenvolvendo-se em penetrações enraizadas no trato forte da terra e na defesa ameaçada da civilização.[1]
 
Ceuta é o primeiro passo numa empresa que faria de nós, um século adiante, os salvadores do predomínio latino,[2] quando o Islamismo avançava da Ásia, triunfante, batendo até às portas de Viena e já senhor da orgulhosa Constantinopla. Não nos alheemos de que a ideia social da Idade Média outra não era senão a ideia de Cristandade. Existia assim a sociedade internacional, que hoje não existe. E cristã até aos seus mais íntimos fundamentos, a civilização destacava-se pelo seu conteúdo religioso da onda espessa de barbaria que a circundava. Semelhante conceito o vemos renascer na nossa época em livros de mais de um escritor imperialista de nomeada, especialmente nos trabalhos do almirante americano A. T. Mahan. Pois dentro da ideia da Cristandade, a conquista de Ceuta se concebeu, desejosos os Infantes de receberem a sagrada investidura da Cavalaria por um ato que os tornasse bem dignos desse como que oitavo sacramento. «O que a mim me parece é que este feito não foi achado por nós, nem por nenhuma outra pessoa deste mundo, somente que foi revelado por Deus.» E as palavras de Nun’Álvares a D. João I, ao comunicar-lhe em Montemor o Rei o projeto e ao pedir-lhe conselho, essas palavras traduzem a vocação histórica da nacionalidade e são na boca de um herói, que foi santo, a visão de Portugal-Maior, que de longe lhe estava acenando e sorrindo.[3]

Ceuta ganhou-se no mesmo mês de Agosto que já vira Aljubarrota e no relógio do tempo se destinava para contemplar de entre os furores da canícula africana a agonia espantosa de Alcácer. Não destacarei aqui o alcance da tomada de Ceuta que ia facilitar a expulsão definitiva dos moiros de Espanha, arrancando-lhe a guarda da passagem do Estreito. Escusado é salientar também que de Ceuta, sobre a testa enrugada de Marrocos, resultaria a cisma profunda do Infante, atirando os nossos navegadores para os mistérios apavorantes do Oceano. Rebatamos, no entanto, o velho lugar-comum que nos supõe avançando ao acaso, não longe da linha da terra, sem um norte definido, quase só ao sabor das correntes e dos ventos.

A navegação portuguesa – está hoje provado – possuiu um pensamento científico. E, mais tarde, se D. João II repele os serviços de Colombo, é porque Colombo cientificamente lhe não dava garantias sérias do seu empreendimento. De facto, ele procurava atingir o Cipango pelo Ocidente, numa noção confusa da esfericidade do globo. D. João II, submetendo-as ao exame da sua Junta de Astrónomos e Matemáticos, não encontrou bases firmes nas razões de Colombo. Assim de Colombo é que nós podemos afirmar que a sua navegação se dirigiu à aventura, tendo como única indicação a opinião recebida de pilotos portugueses, e talvez dos papéis de Bartolomeu Perestrelo, seu sogro, de que a poente, navegando sempre a direito, se encontrava solo firme.
Mas é de Ceuta que nós tratamos. A sua tomada, relativamente à nossa nacionalidade, representava o primeiro passo para o domínio tranquilo dessa «África fértil e vizinha», naturalmente olhada como a outra metade do nosso Algarve. A África significou depois para nós, durante o apogeu da dinastia de Avis, a escola viril das nossas energias, criadas e desenvolvidas na peleja dura contra o Moiro. O Moiro saíra-nos de casa, mas ficara-nos à vista. Da memória de todos não se sumira ainda a lembrança da perda de Espanha. Dominar e reduzir o inimigo da Fé importava o mesmo que assentar mais fundos os alicerces da Pátria.

O segredo da Era de Quatrocentos revela-se-nos deste modo na formidável identidade de aspirações que Nuno Gonçalves exprimiu para sempre nas suas tábuas admiráveis. É a Grei que se reconhece e a si própria se define. Mas depressa vieram as consequências do nosso erro colonial. Buscámos a Índia. E, povo de agricultores, nunca o comércio nos traria à vida nacional o equilíbrio que só pela terra e pelo arado nos pudera fixar. Chegam da Índia as notícias dos seus esplendores. É uma febre alta de delírio que atira a nação para cima de uma floresta de naus. O trabalho afrouxa e quase se extingue nos vilares da metrópole, onde só a enxurrada dos escravos avulta. O sangue negro contamina-nos. Contamina-nos o individualismo solto da Renascença. Principia a decadência, Portugal desnacionaliza-se. Só a Índia nos atrai, donde regressamos piratas, com as mãos enodoadas de morticínios e de depredações. É certo que salvamos com a nossa ruína os destinos da Civilização. O Turco alastrava-se para o coração da Europa, quando o surpreendemos pelas costas. Daí o haver-nos Miguel Ângelo imortalizado numa alegoria dos frescos da Capela-Sistina. Mas a Índia é a perdição doirada que nos chama! E Portugal não se tem mão na sua loucura – é um povo embarcando-se como um só homem, é um povo embarcando-se incessantemente e para sempre.

Distante, torna-se difícil e pesado o nosso poderio na Índia. Para lhe acudirmos, abandonam-se ao pé da porta as praças da África. «Há-de vir ainda um dia em que as comendas se ganharão nas costas do Algarve!», declamara, sombrio, o conde do Redondo, ao votar em conselho contra tal resolução. Esse dia veio, esse dia não tardou a raiar. Raiou com a morte de D. João III, na hora em que de novo os moiros entram a agitar-se, fortes dos progressos assustadores do Turco. A jornada da África foi, pois, para a consciência coletiva de Portugal um ato de verdadeiro alcance nacional. Pretendíamos voltar ao caminho perdido dos varões de Quatrocentos, ao império da Terra, já agora querido e desejado por todos, considerando nos fumos da Índia, que mais não foram senão fumos de catástrofe! D. Sebastião é assim um grande rei, porque encarna, não só o sentir do seu povo, mas um desejo maior, o da sua época.

Porque o Turco avançava sempre, São Pio V, levantando na Cruz a defesa da civilização, pregara uma Cruzada. Procura-se o ideal extinto de Cristandade. A Igreja é já a Igreja de Trento, remoçada e depurada. A Jerusalém-Libertada corporiza no poema de Torquato Tasso o símbolo do sentimento erguido daquele tempo. Não julguemos, por isso, um simples caso de patologia o entusiasmo cavalheiresco de D. Sebastião. Incitam-no todos à empresa arrojada de implantar no coração da Moirama o sinal do Crucificado, impondo-lhe, com os direitos esquecidos da conquista, o primado supremo da civilização. Em Camões, em António Ferreira, em Diogo de Teive, nós achamos a documentação de semelhante estado do espírito nacional. Só uma interpretação racionalista da história é que entenderá a jornada de Alcácer como o arremesso impulsivo de um doido. Não me cabe aqui desembaraçar a memória de D. Sebastião desse juízo corrente. Só recordarei que a sua carta de 24 de Abril de 1576 ao monteiro-mor Manuel de Melo é o bastante para reabilitar de uma maneira duradoira a política africana do seu reinado. «E por estas novas serem da qualidade e importância que vedes – escreve o Rei –, me pareceu fazer-vo-las logo saber... considerando o que se deve cuidar e pode esperar de imigos tão vizinhos e poderosos, e de tanta experiência na guerra, como são turcos, cujo principal intento é haverem os portos de mar daquele Reino, e os mais de África para em cada um deles terem muitas galés, de que, se assim sucedesse (o que Deus não permita), resultariam grandes males, quase sem remédio a toda a Espanha.»

Destruída como fica, por este significativo depoimento, a lenda infamante que atribui à loucura de D. Sebastião a jornada de África, o seu testamento, para quem o conheça, acaba de o emoldurar na auréola de amor com que a nação o quis e estremeceu.

Morto sem remédio na batalha, por centenas de anos Portugal o esperou, como a encarnação perfeita do seu génio. Alcácer-Quibir é, desta sorte, um desastre que, se houve responsabilidades nele, couberam inteiramente a Portugal, como a uma só pessoa. Defronte da eça funerária, Frei Miguel dos Santos o confessava em Belém, do púlpito para baixo. A grandeza do rasgo de D. Sebastião mede-se ao presente pela importância que assume para a Península o problema marroquino – insisto –, sendo Alcácer o epílogo funesto da manhã de glória iniciada em Ceuta.

Fechava-se com a expiação de um povo inteiro no areal africano o período varonil da nossa adolescência. Tentava reparar-se o erro cometido no desenvolvimento marítimo da nacionalidade. Já era tarde! Hoje que Agosto termina, eu penso enlaçar com essas duas datas de Ceuta e de Alcácer o anel misterioso de um nosso ainda possível futuro. No dia em que Portugal se possa valorizar por alianças que lhe restituam o primado do Atlântico e a colaboração na chave do Estreito,[4] talvez que mais de perto se perceba então como a tarde sangrenta de Alcácer não foi perdida para nós – pelo menos no pensamento enorme que ali arrastou o país atrás do seu rei.

​



[1] Mantenho, como documento de certo estado de espírito, estas afirmações. A arrancada da Índia, reputo-a actualmente como uma das mais belas demonstrações do carácter universalista da nossa história (1924).

[2] Por fidelidade ao espírito com que escrevia, conservo este apelativo ‘latino’. A reflexão e o estudo, ajudando-me a eliminar o que há de retórico e falso em todo ele, ensinam-me hoje a corrigi-lo por ‘ocidental’!

[3] Ultimamente, com os seus arcaicos processos racionalistas, o senhor António Sérgio tem procurado diminuir o aspecto espiritual da Conquista e da Navegação, para lhe sobrepor um exclusivo intuito económico. Trata-se de importação tardia de certas teorias da história, já hoje devidamente reprimidas. Além de que os conceitos de economia, em que o senhor António Sérgio se inspira, não podem retrotrazer-se ao período a que os aplica.

[4] Escrito este pequeno ensaio no Verão de 1917, já ele continha o embrião da futura política hispanista, tão calorosamente defendida pelo autor e de que ele foi o definidor e iniciador em Portugal, registe-se contra as tolas campanhas de silêncio, com que o procuram obscurecer cabalas de ínfima espécie.



​
In Ao ritmo da ampulheta - Crítica e doutrina, 1925.
​​...nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"!

​​- António Sardinha (1887-1925) - 
Fotografia

​www.estudosportugueses.com​

​2011-2025
​
[sugestões, correções e contributos: [email protected]]