Velando as Armas
António Sardinha
O problema português, da Literatura à Política, o Integralismo o enunciava definitivamente, pondo em fórmula fácil tantas aspirações obscuras, entrevistas já de largo, no arrependimento de Garrett, na renúncia de Herculano, no pessimismo de Antero.
- António Sardinha
- António Sardinha
RESUMO
O Integralismo Lusitano nasceu do amor à literatura e à cultura nacional, defendendo Sardinha que o primeiro Romantismo, representado por Garrett e Herculano, resgatou as raízes populares e históricas de Portugal, em oposição ao classicismo artificial e ao ultra-romantismo decadente. É aqui destacado que o nacionalismo da sua geração transformou uma motivação estética numa razão social e política, propondo a união entre literatura e política como caminho para restaurar a identidade nacional. O livro “Outro Mundo”, de Hipólito Raposo, é apontado como exemplo de um neo-romantismo equilibrado e comprometido com a ideia nacional.
VELANDO AS ARMAS
Charles Maurras escreveu de uma vez no prefácio do seu interessantíssimo livro Quand les Français ne s’aimaient pas: «Les Lettres nous ont conduit à la Politique par des chemins que ce livre peut jalonner, mais notre nationalisme commença pour être esthétique.» Ao pensar um pouco nas nossas origens literárias – nas de Hipólito Raposo e nas minhas –, eu reconheço que também a nós as Letras nos conduziram à Política. Seriam talvez diversas as estradas, mas o mesmo anseio de franca renovação nacionalista bem cedo nos aqueceu a esperança de moços que ainda sonhavam com a Glória. Não a fomos encontrar, como os Goncourt, à venda numa loja de tarecos ignóbeis, uma ‘Glória’ de gesso, não sei se com a coroa de loiros pintada a purpurina. Decepções bem piores nos assaltaram, porém! E quando nós cuidávamos viver apenas para a nossa obra – para aquela obra que nos enche sempre o melhor dos vinte anos –, logo uma voz mais forte se ergue nas nossas veias, achando-nos de repente envolvidos nesta batalha, que não acaba nunca! Assim, tal como aconteceu a Maurras e aos seus companheiros, o nosso nacionalismo, de estético, se tornou político.
Eu não concordo com os que em princípio repudiam o Romantismo. O Romantismo entre nós, com Garrett e Herculano, não é a desorganização sentimental, de que Pierre Lasserre nos fala no seu estudo notável. Em Portugal o caso é muito outro. E é muito outro porque, contra o falso classicismo da Arcádia, a corrente romântica voltou a despertar o veio esquecido da nossa poesia lírica. Bastam três versos de Garrett no D. Branca para nos darem o verdadeiro sentido do nosso romantismo. Ei-los:
Nessas lindas ficções, nossa engenhosa
Mitologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam.
Esse desejo de auscultar e de aproveitar os elementos característicos da alma nacional levou naturalmente o nosso Romantismo ao gosto da história e, por isso mesmo, às apaixonadas campanhas municipalistas que põem um traço de luminosa fé, ao longo do ceticismo cansado do velho Herculano. O regresso às tendências íntimas do nosso país, pela compreensão social da Idade Média, é que atirou, por um equívoco, aliás compreensível, tanto Garrett como o ermitão de Vale-de-Lobos, para os acasos quase sempre sem prestígio da aventura constitucionalista. O parlamentarismo aparecia-lhes, não como uma novidade de importação, mas antes como o ressurgimento das liberdades de outrora, tão magnificamente afirmadas em Cortes pela boca rude dos rudes procuradores dos nossos concelhos. José Liberato Freire de Carvalho, com o Ensaio histórico-político sobre a constituição e governo do reino de Portugal, ajuda-nos a entender este erro de uma geração, de tão funestas consequências depois para Portugal.
Não confundimos Garrett e Herculano com os energúmenos de 22 e de 34! Quer nas admiráveis páginas que antecedem o Romanceiro, como nos seus discursos parlamentares, Garrett vincou com rara energia de espírito os seus esforços por uma profunda e consciente reconstrução nacional. Herculano acompanhou-o. E não se ignoram as suas palavras sobre a inteira incompatibilidade da democracia com a formação secular da pátria portuguesa. Não é outra a verdadeira essência do primeiro Romantismo monárquico e católico até em França, pela curiosidade entusiasmada que nas inteligências levantara a Idade Média. Apresentando as suas Odes, assim o declarava Victor Hugo, o Hugo de avant 1830, membro da Société Royale des Bonnes Lettres, onde os ultras tinham um dos mais fortes baluartes. «A literatura actual – dizia o que seria mais tarde avô de todo o internacionalismo literário da Revolução –, a literatura atual é a expressão antecipada da sociedade religiosa e monárquica que sairá sem dúvida do meio de tantos destroços, de tanta ruína recente.»
O mesmo sucedia entre nós. A ideia republicana é que era de precedência clássica. A prova encontra-se no Catão do próprio Garrett, quando o ideologismo de 20 lhe desencadeou uma saraivada, bastante exaustiva, de tropos e exclamações. Quanto ao mais, só a influência do romantismo francês, no seu significado político, se manifestou perniciosa entre nós. Herculano, ainda pelas razões indicadas, combate-lhe a perturbação económica, na defesa da enfiteuse, por exemplo. Debalde! A lufada destruidora passa-lhe por cima, empurrando-o a ele para o suicídio moral do isolamento e ao país para a carreira doida da perdição.
Referindo-se a Herculano, há três períodos de Silva Cordeiro que definem com a maior agudeza crítica o pecado original do Constitucionalismo. A geração romântica... não soube desentranhar do filão riquíssimo da nossa poesia popular os motivos que convinham para soldar os novos costumes liberais na continuidade histórica do sentimento nacional – observa superiormente o malogrado professor. Se abrirmos uma pequena exceção para algumas das Lendas e Narrativas de Herculano e para Garrett no Frei Luís de Sousa (sugestão profunda e em tudo verdadeira do carácter nacional), no mais, força é dizê-lo com Oliveira Martins e com o sr. Teófilo Braga, os românticos, destruindo muito, nada reconstruiram que pudesse erguer a geração liberal à consciência da sua unidade com as anteriores. De sorte que a vida constitucional, com as suas eleições, impostos e recrutamento, aparecia ao povo dos campos como enxertia artificial numa carcomida árvore, uma estrangeirada para uso de aventureiros, fidalgos ou bacharéis lá da cidade...»
Neste claríssimo depoimento se consubstancia bem a causa por que, românticos, Garrett e Herculano, se nos revelam de um romantismo diferente do que, importado nas bagagens da Palmela, triunfou na política e na literatura, para completa desnaturação da nossa nacionalidade. Na política foi a Carta e o respetivo cortejo de Atos-adicionais. Na Literatura foi o ultrarromantismo, com a cigarra de Anacreonte empoleirada nas olaias do velho Castilho. Tal é o romantismo que não nos pertence e o que nós temos como dissolvente e negativo! Porque o outro, servido com tanta nobreza por Garrett e por Herculano nos domínios das letras, achou também uma política nacionalista que o traduzisse. É a política de D. Miguel, na sua luta contra o absolutismo pombalino e na sua volta sinceríssima à sequência interrompida das nossas instituições tradicionais. O mal do século é que separou num conflito fratricida duas tentativas que logicamente procuravam o mesmo fim, como se pode examinar no livro destemperado, mas rico de materiais, que é o Saraiva e Castilho, de António Ribeiro Saraiva.
Eu não concordo com os que em princípio repudiam o Romantismo. O Romantismo entre nós, com Garrett e Herculano, não é a desorganização sentimental, de que Pierre Lasserre nos fala no seu estudo notável. Em Portugal o caso é muito outro. E é muito outro porque, contra o falso classicismo da Arcádia, a corrente romântica voltou a despertar o veio esquecido da nossa poesia lírica. Bastam três versos de Garrett no D. Branca para nos darem o verdadeiro sentido do nosso romantismo. Ei-los:
Nessas lindas ficções, nossa engenhosa
Mitologia nacional e própria
Tome enfim o lugar que lhe usurparam.
Esse desejo de auscultar e de aproveitar os elementos característicos da alma nacional levou naturalmente o nosso Romantismo ao gosto da história e, por isso mesmo, às apaixonadas campanhas municipalistas que põem um traço de luminosa fé, ao longo do ceticismo cansado do velho Herculano. O regresso às tendências íntimas do nosso país, pela compreensão social da Idade Média, é que atirou, por um equívoco, aliás compreensível, tanto Garrett como o ermitão de Vale-de-Lobos, para os acasos quase sempre sem prestígio da aventura constitucionalista. O parlamentarismo aparecia-lhes, não como uma novidade de importação, mas antes como o ressurgimento das liberdades de outrora, tão magnificamente afirmadas em Cortes pela boca rude dos rudes procuradores dos nossos concelhos. José Liberato Freire de Carvalho, com o Ensaio histórico-político sobre a constituição e governo do reino de Portugal, ajuda-nos a entender este erro de uma geração, de tão funestas consequências depois para Portugal.
Não confundimos Garrett e Herculano com os energúmenos de 22 e de 34! Quer nas admiráveis páginas que antecedem o Romanceiro, como nos seus discursos parlamentares, Garrett vincou com rara energia de espírito os seus esforços por uma profunda e consciente reconstrução nacional. Herculano acompanhou-o. E não se ignoram as suas palavras sobre a inteira incompatibilidade da democracia com a formação secular da pátria portuguesa. Não é outra a verdadeira essência do primeiro Romantismo monárquico e católico até em França, pela curiosidade entusiasmada que nas inteligências levantara a Idade Média. Apresentando as suas Odes, assim o declarava Victor Hugo, o Hugo de avant 1830, membro da Société Royale des Bonnes Lettres, onde os ultras tinham um dos mais fortes baluartes. «A literatura actual – dizia o que seria mais tarde avô de todo o internacionalismo literário da Revolução –, a literatura atual é a expressão antecipada da sociedade religiosa e monárquica que sairá sem dúvida do meio de tantos destroços, de tanta ruína recente.»
O mesmo sucedia entre nós. A ideia republicana é que era de precedência clássica. A prova encontra-se no Catão do próprio Garrett, quando o ideologismo de 20 lhe desencadeou uma saraivada, bastante exaustiva, de tropos e exclamações. Quanto ao mais, só a influência do romantismo francês, no seu significado político, se manifestou perniciosa entre nós. Herculano, ainda pelas razões indicadas, combate-lhe a perturbação económica, na defesa da enfiteuse, por exemplo. Debalde! A lufada destruidora passa-lhe por cima, empurrando-o a ele para o suicídio moral do isolamento e ao país para a carreira doida da perdição.
Referindo-se a Herculano, há três períodos de Silva Cordeiro que definem com a maior agudeza crítica o pecado original do Constitucionalismo. A geração romântica... não soube desentranhar do filão riquíssimo da nossa poesia popular os motivos que convinham para soldar os novos costumes liberais na continuidade histórica do sentimento nacional – observa superiormente o malogrado professor. Se abrirmos uma pequena exceção para algumas das Lendas e Narrativas de Herculano e para Garrett no Frei Luís de Sousa (sugestão profunda e em tudo verdadeira do carácter nacional), no mais, força é dizê-lo com Oliveira Martins e com o sr. Teófilo Braga, os românticos, destruindo muito, nada reconstruiram que pudesse erguer a geração liberal à consciência da sua unidade com as anteriores. De sorte que a vida constitucional, com as suas eleições, impostos e recrutamento, aparecia ao povo dos campos como enxertia artificial numa carcomida árvore, uma estrangeirada para uso de aventureiros, fidalgos ou bacharéis lá da cidade...»
Neste claríssimo depoimento se consubstancia bem a causa por que, românticos, Garrett e Herculano, se nos revelam de um romantismo diferente do que, importado nas bagagens da Palmela, triunfou na política e na literatura, para completa desnaturação da nossa nacionalidade. Na política foi a Carta e o respetivo cortejo de Atos-adicionais. Na Literatura foi o ultrarromantismo, com a cigarra de Anacreonte empoleirada nas olaias do velho Castilho. Tal é o romantismo que não nos pertence e o que nós temos como dissolvente e negativo! Porque o outro, servido com tanta nobreza por Garrett e por Herculano nos domínios das letras, achou também uma política nacionalista que o traduzisse. É a política de D. Miguel, na sua luta contra o absolutismo pombalino e na sua volta sinceríssima à sequência interrompida das nossas instituições tradicionais. O mal do século é que separou num conflito fratricida duas tentativas que logicamente procuravam o mesmo fim, como se pode examinar no livro destemperado, mas rico de materiais, que é o Saraiva e Castilho, de António Ribeiro Saraiva.
*
Decorridos quase cem anos, pretende o movimento integralista realizar no campo do puro nacionalismo esse acordo das Letras com a Política. Entende-se assim que não nos é lícito repelir o Romantismo, enquanto, na sua forma garrettiana, ele represente o ressurgimento das virtudes líricas da nossa raça. O ‘Coração sensível’, o amor das ruínas fingidas, os solilóquios ao luar no Ermo, irrompem mais tarde e é então que, desprezada a herança de Garrett, o nosso ideal artístico se abastarda e envilece de todo. Aí começa a decadência, a fraqueza crescente da criação literária entre nós. Assistindo à representação da Vida de São Gwenolé em Plonjean, Gaston Paris declarava que a arte contemporânea chegara à pior das situações, reduzida ao artifício, quase extinta, porque, cortada nas suas raízes, deixara de ser popular. Tal é, exactamente, o que sucede em Portugal, com academismos da mais baixa extração, em que o fôlego deserta e se marcha ao acaso, numa mediocridade confrangedora de vôo!
Ora o que a literatura deve ao contacto salutar do folclore, em Goethe e Uhland, achamos nós uma demonstração que se não destrói. Mais tarde o félibrige, com Mistral à sua frente, constitui para a nossa afirmação uma infalível prova-real. Impressionado por mais de uma circunstância, e talvez meditando os exemplos apontados, é que em Coimbra, há quase trinta anos, Alberto de Oliveira lançava à sua geração o programa de um renascimento, que ele com verdade e justiça batizou de neogarrettismo. «Garrett copiou Portugal para os seus livros, e mesmo os inferiores têm esse encanto e esse papel literário...» Não se perdeu o apelo de Alberto de Oliveira! Manuel da Silva Gaio dava-nos as Canções do Mondego e os Últimos crentes. Até Eça de Queiroz na Ilustre Casa de Ramires se deixaria tocar pela graça bondosa da sua terra. Depois Afonso Lopes Vieira viria facilitar-nos o caminho com o seu lusitanismo tão doce e tão elegíaco. A renacionalização começava, e começava, louvado Deus!, restituindo à nossa pátria o senso perdido de uma arte portuguesa, como Garrett a pressentira nas suas adivinhações de maravilha.
Aqui está como o nacionalismo a nós, os mais moços, nos trouxe das Letras à Política. Em frente do perigo, que nos ameaçava de morte, a razão estética volveu-se em razão social. É que a Política não mora muito longe da Literatura. Nem mesmo a propósito de um livro como Amori et dolori sacrum – comenta Charles Maurras – nem mesmo a propósito de Maurice Barrès, se ouvirá dizer: «Esqueçamos a política.» Porque a política encontra-se em toda a parte. Aquele que se sabe analisar não pode ignorar que papel terão tido as grandes causas políticas no fundo da sua alegria e do seu sofrimento.»
Assim é, de facto. A falta de uma aspiração nacional que fosse beleza e arte ensinou-nos a relacionar com ela o período de vergonhoso eclipse que atravessamos. Conhecemos a dor do pensamento, as nossas ideias sofreram também as penas do purgatório. Mas o apelo do sangue, que já falava na nossa sensibilidade, acabou por falar nas nossas convicções. O problema português, da Literatura à Política, o Integralismo o enunciava definitivamente, pondo em fórmula fácil tantas aspirações obscuras, entrevistas já de largo, no arrependimento de Garrett, na renúncia de Herculano, no pessimismo de Antero. Por isso, eu me comovo e perturbo ao pretender enquadrar em meia-dúzia de reflexões o livro de Hipólito Raposo, Outro Mundo. Discorreu-se já dele com abundância e não serei eu quem o louve, pelo muito que me pertença no coração e no grande sonho comum que lhe combustiona as páginas.
Agora do que eu me não dispenso é de lhe fixar a intenção, ligando-o no seu aspeto literário ao movimento em que o seu autor foi dos primeiros e dos primeiros será sempre pela ardência da fé e pelo calor da decisão. Dedicado à memória de Domingos Vaz Raposo, seu quarto avô, «devoto imaginário, adorador dos santos que por seu bendito cinzel ainda hoje resplandecem em milagres entre as luzes dos altares», o Outro Mundo vem daquela forte linhagem mental que levou José Pequito Rebelo, por seu turno, a oferecer os Novos Métodos de Cultura ao espírito tutelar dos seus Maiores, dos quais, com a terra herdada, herdara a tradição de «a lavrar nobremente». Nesta poderosa unidade moral, que é o património de uma geração, perscruta-se e toma corpo a consistência invencível com que amanhã a nacionalidade a si mesmo se restaurará.
Marcando um passo a mais, o Outro Mundo indica-nos até onde o nacionalismo exige que a arte escrita sirva uma ideia, sem se tornar sua escrava. É uma lição equilibrada de lusitanismo literário – de ‘neorromantismo’, se quiserem. E digo ‘neorromantismo’, pela flama mística que faz do Outro Mundo um breviário escolhido de símbolos, em que as figuras se abraçam num ritmo que sobe do tempo e vai pedir à raça a regra que os séculos lhe deram. É a disciplina dos Mortos, é a sua segunda vida dentro de nós. Nesses limites Hipólito Raposo se confinou. Porque neles se confinou, eles o perpetuam. E assim, pela cadeia eterna do sangue, o imaginário antigo continua a rezar, a rezar esquecidamente, no livro que um neto seu, em lembrança da Terra e dos Homens, de boa vontade lhe consagrou!
[ negritos acrescentados ]
Ora o que a literatura deve ao contacto salutar do folclore, em Goethe e Uhland, achamos nós uma demonstração que se não destrói. Mais tarde o félibrige, com Mistral à sua frente, constitui para a nossa afirmação uma infalível prova-real. Impressionado por mais de uma circunstância, e talvez meditando os exemplos apontados, é que em Coimbra, há quase trinta anos, Alberto de Oliveira lançava à sua geração o programa de um renascimento, que ele com verdade e justiça batizou de neogarrettismo. «Garrett copiou Portugal para os seus livros, e mesmo os inferiores têm esse encanto e esse papel literário...» Não se perdeu o apelo de Alberto de Oliveira! Manuel da Silva Gaio dava-nos as Canções do Mondego e os Últimos crentes. Até Eça de Queiroz na Ilustre Casa de Ramires se deixaria tocar pela graça bondosa da sua terra. Depois Afonso Lopes Vieira viria facilitar-nos o caminho com o seu lusitanismo tão doce e tão elegíaco. A renacionalização começava, e começava, louvado Deus!, restituindo à nossa pátria o senso perdido de uma arte portuguesa, como Garrett a pressentira nas suas adivinhações de maravilha.
Aqui está como o nacionalismo a nós, os mais moços, nos trouxe das Letras à Política. Em frente do perigo, que nos ameaçava de morte, a razão estética volveu-se em razão social. É que a Política não mora muito longe da Literatura. Nem mesmo a propósito de um livro como Amori et dolori sacrum – comenta Charles Maurras – nem mesmo a propósito de Maurice Barrès, se ouvirá dizer: «Esqueçamos a política.» Porque a política encontra-se em toda a parte. Aquele que se sabe analisar não pode ignorar que papel terão tido as grandes causas políticas no fundo da sua alegria e do seu sofrimento.»
Assim é, de facto. A falta de uma aspiração nacional que fosse beleza e arte ensinou-nos a relacionar com ela o período de vergonhoso eclipse que atravessamos. Conhecemos a dor do pensamento, as nossas ideias sofreram também as penas do purgatório. Mas o apelo do sangue, que já falava na nossa sensibilidade, acabou por falar nas nossas convicções. O problema português, da Literatura à Política, o Integralismo o enunciava definitivamente, pondo em fórmula fácil tantas aspirações obscuras, entrevistas já de largo, no arrependimento de Garrett, na renúncia de Herculano, no pessimismo de Antero. Por isso, eu me comovo e perturbo ao pretender enquadrar em meia-dúzia de reflexões o livro de Hipólito Raposo, Outro Mundo. Discorreu-se já dele com abundância e não serei eu quem o louve, pelo muito que me pertença no coração e no grande sonho comum que lhe combustiona as páginas.
Agora do que eu me não dispenso é de lhe fixar a intenção, ligando-o no seu aspeto literário ao movimento em que o seu autor foi dos primeiros e dos primeiros será sempre pela ardência da fé e pelo calor da decisão. Dedicado à memória de Domingos Vaz Raposo, seu quarto avô, «devoto imaginário, adorador dos santos que por seu bendito cinzel ainda hoje resplandecem em milagres entre as luzes dos altares», o Outro Mundo vem daquela forte linhagem mental que levou José Pequito Rebelo, por seu turno, a oferecer os Novos Métodos de Cultura ao espírito tutelar dos seus Maiores, dos quais, com a terra herdada, herdara a tradição de «a lavrar nobremente». Nesta poderosa unidade moral, que é o património de uma geração, perscruta-se e toma corpo a consistência invencível com que amanhã a nacionalidade a si mesmo se restaurará.
Marcando um passo a mais, o Outro Mundo indica-nos até onde o nacionalismo exige que a arte escrita sirva uma ideia, sem se tornar sua escrava. É uma lição equilibrada de lusitanismo literário – de ‘neorromantismo’, se quiserem. E digo ‘neorromantismo’, pela flama mística que faz do Outro Mundo um breviário escolhido de símbolos, em que as figuras se abraçam num ritmo que sobe do tempo e vai pedir à raça a regra que os séculos lhe deram. É a disciplina dos Mortos, é a sua segunda vida dentro de nós. Nesses limites Hipólito Raposo se confinou. Porque neles se confinou, eles o perpetuam. E assim, pela cadeia eterna do sangue, o imaginário antigo continua a rezar, a rezar esquecidamente, no livro que um neto seu, em lembrança da Terra e dos Homens, de boa vontade lhe consagrou!
[ negritos acrescentados ]