O problema da vinculação
António Sardinha
RESUMO
António Sardinha destaca o rigor histórico de Xavier Cordeiro na análise das instituições vinculares, sublinhando a sua visão do Direito como expressão dinâmica das relações sociais e rejeitando abordagens abstratas ou idealistas. Defende a restauração dos Vínculos de forma facultativa, adaptando-os à realidade económica atual, critica a liberdade de testar por ser alheia à tradição portuguesa e enaltece o trabalho de Xavier Cordeiro como expressão de esperança e amor ao país, finalizando com a exortação de preservar o património nacional como base da identidade e continuidade da Pátria.
- O problema da vinculação. A simples constatação de que a família é a base da sociedade não basta: para que ela cumpra bem o seu papel, é essencial garantir-lhe estabilidade através da indissolubilidade e de uma base económica sólida. O regime de partilha forçada dos bens, inspirado pelo Código de Napoleão, fragilizou a estrutura familiar em Portugal, uma tendência já acentuada pela introdução da lei do divórcio. Sem estabilidade económica, e com influências de um individualismo crescente na legislação desde 1834, a família perdeu força e prestígio, tornando-se mais vulnerável às mudanças sociais. A abolição dos Vínculos, vista como uma medida progressista, baseou-se mais em sentimentos do que em ponderação racional, ignorando os benefícios sociais e morais do património vinculado, que outros países europeus voltam a reconhecer. O exemplo de países como Alemanha e Estados Unidos, com sistemas como o höferollen e o homestead, evidencia como a preservação do património familiar contribui para a solidez dos lares. No passado, as famílias portuguesas mantinham-se fortes e ligadas à terra, o que impedia o êxodo para as cidades e reforçava a autonomia local. Em contraste, a divisão igualitária dos bens, herdada do modelo francês, enfraqueceu as famílias e as comunidades.
- A proposta do Integralismo Lusitano. O Integralismo Lusitano propõe restaurar os Vínculos como forma de revitalizar a família e as pequenas autonomias municipais, defendendo que só com famílias economicamente enraizadas será possível recuperar a coesão social. Essa proposta não é inédita, pois retoma ideias de pensadores como Oliveira Martins, Elvino de Brito e Moreira Júnior, e encontra paralelos em países como Inglaterra, Itália e Áustria, onde sistemas semelhantes garantem estabilidade social. Apesar dos receios de que os Vínculos signifiquem regressão, Sardinha argumenta que eles funcionam como uma reserva económica, protegendo pelo menos uma parte da fortuna familiar contra adversidades. Historicamente, o Vínculo limitava a imobilização a uma terça parte dos bens, ampliada depois pela legislação republicana, mas sempre orientada pela ideia de proteção familiar.
- A análise de Adriano Xavier Cordeiro. O trabalho de Xavier Cordeiro distingue-se pelo rigor histórico e pelo entendimento do Direito como uma realidade dinâmica, adaptável às necessidades sociais, em oposição a concepções rígidas e abstratas surgidas com a Revolução Francesa. Para Cordeiro, as instituições legais não devem ser decretadas ou abolidas arbitrariamente, mas sim adaptadas à realidade do momento. O autor rejeita o individualismo excessivo e propõe a reabilitação dos Vínculos como resposta às carências sociais, evidenciando coragem e convicção em sua defesa da tradição.
- A adaptação das instituições e a crítica à liberdade de testar. Sardinha reconhece a necessidade de adaptar o sistema vincular às exigências económicas atuais, sem impor obrigatoriedade, exceto em casos específicos ligados a mercês nobiliárquicas. Cordeiro aborda também formas intermédias de vinculação, como o emprazamento e o casal de família, e critica a introdução da liberdade de testar, prática estrangeira à tradição portuguesa, por considerar que ela prejudicaria ainda mais a estabilidade familiar.
- Exortação final. A memória de Xavier Cordeiro é celebrada como exemplo de esperança e dedicação ao país, destacando a importância de preservar o património nacional como elemento essencial à continuidade da Pátria. Encerra-se com um apelo à conservação da terra portuguesa como herança sagrada, fundamental para a sobrevivência nacional.
O PROBLEMA DA VINCULAÇÃO
Não basta reconhecer que a célula fundamental da sociedade é a família, e não o indivíduo. Para que a família prospere e exerça com prestígio as suas funções salutares, é preciso assegurar-lhe com a indissolubilidade devida a necessária fixidez. Se em Portugal a lei antissocial do divórcio acabou de desorganizar a família, ela já estava há muito condenada ao enfraquecimento e à ruína, desde que o velho sistema vincular cedeu de todo em todo ao regime da partilha forçada na herança, introduzido nas nossas instituições jurídicas pela influência nefasta do Código de Napoleão.
Não se compreende família estável, família duradoira, sem a correspondente base económica, embora o não pense assim o individualismo excessivo da nossa legislação, que, a partir de 34, raramente é digna de registo, debaixo de qualquer ponto de vista construtivo. Acumularam-se destroços sobre destroços num país em que o delírio reformista atingiu o máximo da sua intensidade, dado o entusiasmo romântico daqueles que um dia se meteram a ‘regenerar-nos’ em nome dos Imortais-Princípios. Nessa disposição de espírito, os Vínculos viram-se abolidos por uma política de ideias abstratas, mais com razões de sentimento do que com razões de inteligência. Ainda agora é o sentimento que os enegrece e repele, considerando neles uma violação dos sagrados direitos do indivíduo. Olham-se como um privilégio odioso, e não como um instituto de previdência e proteção. Manifesta-se evidentemente aqui uma ignorância global de quais sejam as vantagens sociais e morais do património vinculado numa hora em que a própria França republicana tende a restaurá-lo com o seu bien de famille insaisissable, estabelecido também pelo recente Código Civil Brasileiro, art. 70.º-73.º
Afinal, a defesa dos Vínculos, pondo de parte os aspetos teóricos da questão, pode hoje muito bem fazer-se em nome da experiência, comparando não só os resultados que a Alemanha e a América do Norte têm tirado dos höferollen e do homestead, mas cotejando, sobretudo, a fragilidade dos lares contemporâneos com a resistência assombrosa das famílias antigas.
As famílias antigas resistiam – e resistiam agarradas à terra, num consórcio admirável com a propriedade, que as fortificara e engrandecera. Isso importava consigo a ausência de certos males que a sociedade moderna padece. O absentismo não depauperava então a vida dos campos e as populações rurais, enraizadas no solo, não tomavam, como agora, o caminho dos centros urbanos, engrossando a hoste cada vez mais numerosa dos deserdados e dos descontentes. O êxodo para as cidades é hoje assustador, como assustador é o predomínio abusivo das grandes tentaculares – na imagem inolvidável de Verhaeren – que sorvem tudo às províncias paralíticas – braços, dinheiro, atividades e representação. Por outro lado, a família não consegue ultrapassar, intacta e forte, mais que duas ou três gerações. Contribui estruturalmente para essa deficiência orgânica a partilha igual dos bens em matéria de sucessão, que os nossos civilistas copiaram servilmente do modelo francês.
Assentando exclusivamente no reconhecimento das necessidades públicas, o Integralismo Lusitano insere a ressurreição dos Vínculos no seu plano de restauração nacional. É até essa a parte que mais se lhe impugna na sua ação doutrinária. O Integralismo Lusitano limita-se, todavia, a incorporar numa obra de conjunto os trabalhos anteriores de Oliveira Martins, de Elvino de Brito e do doutor Moreira Júnior. O localismo interessa-nos como condição basilar do revigoramento das pequenas autonomias municipais. As pequenas autonomias municipais não se verão, porém, robustecidas, sem que as famílias, de que são compostas, se sintam presas à terra por todas as raízes da sua personalidade. O sistema vincular surge-nos, pois, como o único meio de lhes assegurar a estabilidade, já renovando a enfiteuse a favor das classes não possuidoras, já dando às abastanças consolidadas outra consistência, que, sem a imobilização de uma sua quota-parte, nunca poderão atingir.
O exemplo que a natureza fortemente localista da vida pública na Inglaterra nos oferece a esse respeito, constitui para nós um poderoso motivo para prosseguirmos com tenacidade na nossa campanha a favor dos Vínculos. A Itália e a Áustria recolhem os mesmos benefícios do sistema fideicomissório que as suas leis estabelecem em relação à transmissão da propriedade. Receia-se em Portugal, por amor da Igualdade, que os Vínculos tragam uma regressão a tempos de imaginária e novelesca dureza. O Vínculo, para a quase unanimidade das opiniões, é sempre um monopólio detestável. Puro engano! Quando outra coisa não seja, é seguramente uma ‘reserva económica’, que garante dos revezes da sorte um dos ramos da família. Inicialmente, não se imobilizava mais que a terça dos bens, que era dantes o quinhão livre para quem tivesse herdeiros obrigatórios. Hoje, pelas disposições legislativas da República, vai-se mais longe, vai-se até metade da fortuna, com a diferença de que essa faculdade legal se volta, na maioria dos casos, contra os interesses familiares, enquanto no Vínculo, como instituição de previdência, só à família tinha de aproveitar.
Eu sei que é um problema complexíssimo este da vinculação. Não se trata de despertar um organismo morto, já sem condições de viabilidade na época presente. Trata-se de o adaptar e reformar em harmonia com as exigências da atualidade. O Integralismo Lusitano põe no estudo de um assunto tão delicado o melhor da sua atenção. A prova temo-la na admirável Memória, lida à Associação dos Advogados pelo nosso ilustre camarada Dr. Adriano Xavier Cordeiro. Aí se encara a questão com superiores qualidades de observação e de competência. Jurista pela linha predominante do seu espírito, a inteligência de Adriano Xavier Cordeiro documenta-se notavelmente por brilhantes aptidões literárias e por uma sadia cultura histórica.
Quero eu analisar e resumir as partes fundamentais do trabalho de Adriano Xavier Cordeiro, trabalho que honra a mentalidade portuguesa pela insurreição que ele representa no campo do Direito contra os falsos dogmas do 89. A Memória de Xavier Cordeiro marca um acontecimento na renovação tradicionalista do nosso país. «A hora das grandes almas é aquela em que tudo parece perdido», diz algures o almirante Mahan. Adriano Xavier Cordeiro é uma dessas grandes almas que, no momento cerrado da dúvida, sabem crer, e crer intemeratamente, como ninguém. Se todos lhe seguissem o exemplo, Portugal não teria conhecido as vergonhas sem nome de uma expiação coletiva que está bem longe ainda de lhe ser redentora!
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Destaca-se o trabalho de Xavier Cordeiro pelo seu rigoroso método histórico, que em ciências sociais e políticas é o único método experimental possível. Estuda nele Adriano Xavier Cordeiro a génese e o desenvolvimento das instituições vinculares, debatendo as várias teorias que as pretendem filiar, segundo uns – e Oliveira Martins com preferência –, nos chamados bens de avoenga, ou no direito feudal, conforme a opinião do ilustre historiador Gama Barros.
Não cabe aqui o exame da questão, que mais interessa aos eruditos do que propriamente àqueles que procuram fundamentar somente as razões imediatas das suas convicções contrarrevolucionárias. O que importa em primeiro lugar é salientar o carácter atual e todo prático que preside em nós à ideia da restauração dos Vínculos.
Desde já se declara que, a tornarem-se exequíveis um dia, ninguém pensa em lhes atribuir natureza obrigatória. Não passarão nunca de uma faculdade reconhecida por lei, exceto nos poucos casos em que a constituição de morgado andar inerente ao recebimento de qualquer mercê nobiliárquica. A parte melindrosa do problema não consiste, pois, em ressuscitar a instituição. A dificuldade consiste em a ajeitar às exigências económicas do momento presente. Adriano Xavier Cordeiro vai ao encontro da dificuldade e trespassa-a com a clara limpidez da sua visão jurídica. Para a inteligência de Xavier Cordeiro, conformada no convívio dos textos legais, mas esclarecida – já o assinalei – por um notável espírito histórico, o Direito não é uma conceção abstrata, pairando nos domínios transcendentes do conceito puro. Ao contrário dos algebrismos hirtos e dogmáticos, em que a mentalidade do jurisconsulto se esteriliza por via de regra, para Adriano Xavier Cordeiro o Direito é sempre a expressão viva – como que o elemento dinâmico – das relações sociais. Não se apresenta como um princípio intelectual, em que a sociedade se racionaliza por fórmulas espectralizadas, sem a maleabilidade necessária para acompanhar e definir os vários fenómenos em que ela se movimenta e manifesta. Significa antes uma força de coordenação, de índole eminentemente positiva, que equilibra a sociedade, sem nunca a deter ou aprisionar.
Porque assim o entende e julga, Xavier Cordeiro não se submete à soberania metafísica do direito saído da Revolução. O seu tradicionalismo político liberta-o da ‘superstição do direito existente’, e condu-lo a uma compreensão orgânica, e nunca idealista, da sociedade; deste modo, Xavier Cordeiro reconhece que as instituições não se decretam, nem se substituem. Mas adaptam-se e reformam-se. A base de toda a legislação liberalista e revolucionária é o indivíduo. Porque os Vínculos, em relação ao indivíduo, no seu ponto de vista pessoal, não têm outra significação do que a de uma sobrevivência iníqua do passado, os Vínculos são abolidos e desacreditados ainda por cima! Xavier Cordeiro, em nome de um realismo social contra um subjetivismo jurídico, empreende a reabilitação do sistema vincular, e quem o leu, ou o ouviu, dirá por mim a galhardia e a convicção corajosa com que o levou a efeito!
Mas eu falava do conflito que parece existir, para as reflexões pouco habituadas a juízos profundos, entre as exigências inflexíveis da nossa época e a atmosfera confinada de museu com que se pretende revestir o nosso propósito do ressurgimento dos Vínculos. Por irónico que seja o aspeto que a objeção assuma, não ocultamos que ela é ainda assim a pior de resolver. E é a pior de resolver porque, repelindo liminarmente os apriorismos inertes dos programas políticos, o Integralismo Lusitano, se enuncia aspirações e constata realidades, não dispensa, por isso mesmo, o fator-experiência que só a ação governativa lhe poderá conferir. No entanto, com os dados concretos que noutros países lhe fornece a aplicação contemporânea de regimes similares, Xavier Cordeiro reduz a termos precisos a solução do problema. Numa síntese rápida estabelece as condições e os limites da vinculação naquela prudente relatividade em que se deve atualizar entre nós.
Mas nem só da vinculação propriamente dita Xavier Cordeiro se ocupou com a sua proficiência já consagrada. Ocupou-se igualmente das formas vinculares intermédias, como são o emprazamento e o casal de família. Não varia para eles a interpretação do problema. Xavier Cordeiro resolve-o uma alta penetração crítica, inutilizando, embora com bastante piedade, a bagagem sentimental de que se costumam socorrer os fracos contraditores da nossa defesa dos Vínculos.
Vem a propósito notar aqui que nós somos francamente contra a liberdade de testar. Sabemos que a Action française a conserva como a maneira mais eficaz e mais direta de se refazerem os velhos patrimónios familiares. Em França será talvez assim. Quanto a Portugal, é preciso não esquecermos que a liberdade de testar não se acha incluída na nossa herança consuetudinária. O comunitarismo social do nosso povo exclui por completo essa característica individualista, só própria dos povos anglo-germânicos. Introduzida entre nós, além de ser um exotismo a mais, depressa se volveria num motivo, não de recomposição, mas de absoluta ruína para os lares.
A cada instituição corresponde naturalmente o seu espírito, a sua moral. A liberdade de testar é-nos estrangeira por origem e por temperamento. Dada a condição afetiva e sugestionável da nossa psicologia, já se vê a que funestas consequências a liberdade de testar não nos arrastava. Não contemos apenas com as virtudes sociais da Grei! É imperioso, para que subsistam e se desenvolvam, instruir-nos com o exato conhecimento dos nossos defeitos.
De resto, que mais acrescentar sobre a esplêndida Memória de Xavier Cordeiro? Por pequena que seja a ação integralista, Xavier Cordeiro dá no seu trabalho a ideia justa do muito que amamos o nosso país e como, nesta hora de carnaval trágico, a flama da esperança nem um só instante deixou de arder no nosso coração. Ninguém é obrigado a vencer. Se com tanta fé e com tanto fervor nós não vencermos, ai dos outros, que não terão vencido também!
Mas mesmo no mais inconcebível dos desenlaces, mesmo numa subversão total do que é hoje para nós a existência querida da Pátria, nem mesmo assim o nosso esforço ficaria perdido! Nós seremos sempre a promessa de um futuro irredentismo e um dia há-de chegar em que não se distinguirá mais entre as razões do nosso tradicionalismo as razões da nacionalidade no seu direito a viver. Para esse dia caminhamos. E para que em tudo nos pertença a glória de o havermos preparado, guardemos connosco a exortação final de Adriano Xavier Cordeiro. «A Terra de Portugal é o sagrado património de avoenga da Família Portuguesa: conservemo-lo, inalienável, intangível e eterno, se quisermos que eterna seja também a nossa Pátria.»
[ negrito acrescentado ]
António Sardinha, in Ao ritmo da ampulheta - Crítica e doutrina, 1925.
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