1873 - Ramalho Ortigão e Eça de Queirós - "As ideias no parlamento e a imobilidade egipcia, etc"
Ora a representação nacional ha muito tempo que está sendo em Portugal uma farça ridicula para a sciencia e uma vergonha publica para o patriotismo. A camara é de uma ignorancia encyclopedica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se desaffronta,- o que prova que não tem sciencia e que parece não ter caracter.
AS FARPAS
- CHRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
2.º ANNO
Janeiro a Fevereiro de 1873
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo. - P. J. PROUDHON
SUMMARIO
As idéas no parlamento e a immobilidade egypcia. O discurso da corôa. Os partidos. As fórmas do governo. Governo livre e governo despotico. Republica ou monarchia? A nossa questão, e o nosso voto. Qual é o governo que nos espera. As maiorias e as opposições. (...) As conspirações, as revoltas e as opiniões do parlamento (...) Prova-se que a camara dos deputados não tem amolecimento cerebral. Uma figura de rhetorica. O ex-rei Amadeu e varios outros personagens historicos inclusivamente o sr. Arrobas, com uma palavra sobre as botas de s.ex.ª - (...) O redactor do Espectro e o ministro do reino. A inviolabilidade domestica. A calumnia. A publicidade - Joseph Prudhome e Pickuick.
Toda a animação parlamentar, toda a vida representativa no mez corrente se resumiu no seguinte: a discussão da resposta ao discurso da corôa.
Esta discussão partindo de um ponto - a approvação do projecto -, para findar exactamente no mesmo ponto de que partiu - a approvação do dito projecto -, é verdadeiramente a imagem constitucional da kneph dos egypcios, a velha serpente com o rabo na bocca, o symbolo desolador da immobilidade oriental.
Tanta palavra dispendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de agua desbaratados para se assentar nos termos em que o rei tem de cumprimentar o paiz e em que o paiz tem de responder aos cumprimentos do rei!
Como se, não havendo principios nenhuns de politica interna que affirmar, não havendo nenhuns factos de politica externa que expender, o que um rei tem que dizer ao povo e o que o povo tem que responder ao rei podesse, sem o mais criminoso abuso das prolixidades rhetoricas, alargar-se d'estes termos.
Discurso da corôa: «Meus senhores, Deus lhes dê muitos bons dias!»
Resposta ao discurso da corôa: «Senhor! Deus lhe dê os mesmos!»
Tudo mais é emphatico, é ôco, é ridiculo - e é immoral.
* * * *
Ha um mez inteiro que os srs. deputados, sob o pretexto de accordarem na collocação de um adverbio ou no significado de um adjectivo para a confecção de um periodo banal, se discutem a si proprios; chamam-se reciprocamente desordeiros, calumniadores e ineptos; e documentam e provam entre uns e outros, de partido para partido, que são effectivamente desordeiros, conspiradores, calumniadores e ineptos.
As galerias enchem-se. Enchem-se de uma multidão desoccupada e ociosa, que não vae á camara levada pelas curiosidades scientificas, nem pelos interesses patrioticos. Vae apenas disfructar os contendores, rir-se d'elles, apupal-os no fundo da sua consciencia, e - o que é peior que tudo - preverter-se e desmoralisar-se no contacto da corrupção. Vão vêr a maledicencia dilacerar as reputações, como as féras nos circos romanos dilaceravam os martyres, e aprender no exemplo dos novos gladiadores do decoro a desprezar a honra diante do insulto, assim como nas antigas luctas do gladio se aprendia a desprezar a vida diante da peleja.
Durante este mez as galerias do parlamento estiveram sempre cheias, segundo asseveram os jornaes. Encheram-as empregados publicos que desertaram as suas repartições, litteratos ambiciosos que abandonaram os seus livros, burguezes enfastiados que deixaram o seu trabalho, operarios em grèveque foram aprender a discursar nos seus comicios, pretendentes de empregos publicos, que foram examinar os pôdres por onde poderão romper os seus empenhos. E toda esta multidão perigosa, que precisaria de ouvir palavras de moralisação, de trabalho, de dignidade, assiste durante um mez inteiro aos exercicios de uma oratoria rasteira, sem elevação moral, sem correcção artistica, cheia de arrebatamentos estudados ao espelho, de improvisos ensaiados em familia, de coleras sobreposse, de indignações requentadas, de despeitos fingidos. Depois da lucta os athletas, com os colleirinhos abatidos e sujos pelas distillações do suor e das tinturas indeleveis, apertam-se entre si as suas pobres mãos inoffensivas e inuteis, e fazem-se gestos amigaveis, surriadas de bom humôr, piscam-se o olho, deitam-se a lingua de fóra, riem todos, e saem juntos de braço dado, amigos e inimigos, como velhos rabulas amaveis e cynicos, que vão comer juntos o jantar que ganharam descompondo-se em serviço da parte, que ficou na cadeia.
E eis ahi no mais alto das instituições a escola publica em que o povo tem de aprender a ser digno e honrado!
* * *
Tome-se sobre o discurso de cada deputado a somma das affirmativas e negativas que fizeram em todos os principios geraes da politica e da administração: vêr-se-ha pela exposição integral das verbas correspondentes ás opiniões de cada partido e de cada individuo, que todos affirmaram e que todos negaram exactamente as mesmas coisas.
Toda a questão é pessoal. Á porta os correios de secretaria, com os seus cavallos á rédea, esperam tranquillos. A divergencia versa sobre os nomes dos individuos atraz dos quaes esses correios teem de trotar d'ali para o Terreiro do Paço e do Terreiro do Paço para a Ajuda. Periclitam constantemente os abusos. É forçoso deslocal-os. Trata-se de saber de quem é a vez de os passear com uma pasta encarnada dentro de um coupé da Companhia.
Quantos insultos, quantos improperios, quantos copos de agua, quantos erros de grammatica se não poderiam poupar ao pudor do paiz, dando definitivamente á companhia das carroagens este simples recado:
«Os partidos são cinco - regeneradores, historicos, reformistas, avilistas e constituintes: que os _coupés_ do ministerio parem revesadamente de tres em tres mezes ás portas de cada um d'esses senhores, e quando o poder moderador quizer saber quem são os individuos que hão de levar-lhe o despacho em cada trimestre, que o poder moderador se digne de o mandar saber á inscripção patente na cocheira respectiva.»
Os srs. correios de secretaria seguiriam as carroagens ministeriaes, os srs. deputados votariam calados.
Um philosopho americano conta que nas ilhas Sandwich ha a superstição do que a força de um inimigo morto passa para aquelle que o venceu; em Portugal ha egual superstição com as successões do governo: a camara é sempre da opinião do que está no poder. Portanto, com a lei que propomos, acabariam as dissoluções e cessariam as discordias.
Pela primeira vez ouvimos n'esta legislatura lançar-se ao debate e discutir-se a palavra Republica. Vimos que a fórma do governo republicano tem no seio do parlamento defensores e adversarios, havendo todavia um ponto em que uns e outros se acham inteiramente concordes, e é: que o povo portuguez não está por emquanto nem bastante educado nem bastante instruido para poder sem grandes perigos acceitar a republica.
Pela nossa parte não somos monarchicos nem somos republicanos. A fórma constituitiva do poder não nos importa. O problema politico interessa-nos pouco. E n'este ponto achamo-nos inteiramente com o nosso tempo e com a sociedade actual. A questão grave que hoje preoccupa os povos não é de como se ha de distribuir o poder, é de como se ha de distribuir a riqueza. As classes que mais se agitam, as que por toda a parte amedrontam os manutensores da ordem, as que hão de revolver e fixar os destinos das sociedades futuras, não querem empolgar os symbolos do governo, querem simplesmente adquirir os instrumentos do trabalho; querem a terra e querem o capital. O problema moderno é o problema economico. Os reis estão sendo postos ou depostos por toda a parte sem perturbação e sem abalo. Porque? Porque ninguem se interessa em que elles se deixem ficar ou em que elles se vão embora. Voltaire defendia as monarchias com a razão de que preferia servir um leão que tivesse nascido mais forte que elle, a ser devorado por cem ratos da sua especie. Isto era no seculo XVIII, no tempo de Luiz XIV e de Frederico, em que nas monarchias havia o leão e não havia os ratos. No constitucionalismo moderno temos apenas os ratos que nos devoram. O leão é uma pacifica féra embalsamada, inoffensivo ornato de ètagére, que os ratos trazem comsigo debaixo do braço e que lhes serve apenas de pretexto para elles adoptarem esta fórma engenhosa e delicada de nos declararem que lhes appetece roer: - «Meus senhores, o leão pede viveres.»
Se a religião da liberdade, da egualdade e da fraternidade nos não obrigasse a considerar as sociedades e a respeital-as como fundamentalmente autonomas, isto é, independentes de todo o dominio, o governo que nós considerariamos o mais perfeito seria o que mais se aproximasse d'aquelle que até hoje tem dirigido os destinos da egreja catholica. O poder supremo nas mãos de um papa infallivel, arbitro absoluto da verdade e da justiça, que não póde enganar nem ser enganado; o dominio e o governo firmado na obediencia passiva de todos os subditos e na inclinação dada interiormente ás vontades, abrangendo toda a esphera da iniciativa humana desde os actos até os pensamentos; tendo por policia a inquisição, o mais completo e o mais perfeito de todos quantos tribunaes se teem creado para cohibir as infracções da lei, tribunal que ataca o mal no seu germen, dentro da consciencia, e não depois de já declarado em perturbações effectivas, de modo que nem no fundo mais recondito da alma é possivel um esconderijo para a anarchia!
Tal seria o bello ideal do governo, considerado como salva-guarda do socego e da ordem.
Hoje porém:
Como os governos não podem já ser considerados debaixo d'esse ponto de vista auctoritario e ordeiro dos partidos conservadores;
Como todas as sociedades tendem conjunctamente para se governarem a si mesmas;
Como em toda a Europa, excepto na Russia, as monarchias absolutas se transformaram em monarchias parlamentares, retomando assim os governados a maior parte dos poderes delegados nos governantes;
Como dentro em pouco tempo, precisamente, fatalmente, todos os povos impedirão que subsistam outros poderes que não sejam aquelles que por via da eleição representem a vontade popular:
Segue-se que a differença essencial das fórmas actuaes de governo não póde, como ainda ultimamente disse em um notavel livro o sr. Passy, considerar-se senão como unicamente dependente da maior ou menor parte de poder que ellas asseguram ao povo.
Vejamos pois agora qual é a differença que existe entre uma republica e uma monarchia parlamentar.
A republica é o governo do povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo por chefe do poder executivo - um presidente eleito.
A monarchia parlamentar, como ella existe em Portugal, é o governo do povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo por chefe do poder executivo - um rei hereditario.
O sr. Duvergier de Hauranne, em um estudo consagrado á apreciação da republica conservadora que actualmente existe em França, diz que uma monarchia constitucional, com um rei que não governa, com ministros responsaveis e uma camara electiva sujeita sempre aos riscos de uma dissolução, é um dos regimes parlamentares que mais garantias oferecem á liberdade. Todavia, observa ainda o publicista a quem nos referimos, para o estabelecimento da monarchia é preciso a dynastia, isto é: a tradição. Quando a dynastia cae, desapparecendo ou cortando-se a tradição como em França e em Hespanha, nada mais perigoso do que suscitar ruins ambições, chamando um principe para cabide de uma corôa.
N'este caso o unico systema que não offerece gravíssimos perigos e grandes complicações intestinas e internacionaes é a republica. Ter a monarchia com todos os foros democraticos e derribal-a por um escrupulo de nome é grande imprudencia. Não ter a monarchia e tentar reconstituil-a sobre a cabeça do primeiro forasteiro é falta de valor e de juizo para governar.
Nos livros mais recentes consagrados aos estudos politicos e á indagação das razões porque os povos perdem, conquistam ou conservam a liberdade, nas obras modernas de Lewis, Brougham, Lorenz-Sten, Glinka, Mill, Bagebot, Prévost-Paradol, não se acha differença entre republica e monarchia representativa.
A eleição ou a heriditariedade do chefe do poder executivo não alteram de nenhum modo as condições da compatibilidade da liberdade com a politica. A fórma do governo na egreja - o mais despotico governo de quantos se possam imaginar - é a fórma republicana. O papa é um presidente eleito.
O poder popular não periga na coexistencia dos reis. Era Roma o imperio funda-se esmagando os patricios. Na moderna Europa as realezas affirmam-se despedaçando as resistencias dos senhores feudaes.
Os soberanos procuram sempre na alliança do povo o appoio do mais forte.
Perante as hostilidades do clero e da nobreza Napoleão I dizia ameaçadoramente: «Se lhes solto o povo estracinho-os n'um abrir e fechar d'olhos.» Napoleão III contava nas suas confissões feitas no desterro que fôra sempre socialista. A Internacional tem origem em uma expedição de operarios mandados a Londres á custa do segundo imperio para estudarem na exposição internacional de 1862 os melhoramentos que a França poderia introduzir na organisação do trabalho.
A republica pela sua parte tem sobre a monarchia uma poderosa vantagem - a qual ordinariamente se lhe attribue como o seu maior defeito: - a republica suscita as grandes ambições, que o constitucionalismo restringe e até certo ponto avilta. Ora é exactamente nas grandes ambições que se geram as grandes capacidades.
Isto porém são caracteristicos especiaes que, reunidos a muitos outros que seria facil adduzir, podem em dadas circumstancias determinar a escolha em favor do regime monarchico ou do regime republicano. Com relação á liberdade os dois systemas não soffrem evidentemente distincção: um e outro affirmam um governo livre.
A differença que existe entre governos livres e governos que o não são, é:
Que em certos paizes a vontade que dirige os negocios publicos é em verdade a do soberano; n'outros paizes é a da nação.
Resta-nos ver em qual d'essas duas cathegorias nós nos achamos.
Portugal é indubitavelmente governado pelos seus eleitos. O rei não tem a minima ingerencia na direcção dos negocios. O unico acto de iniciativa pessoal que temos visto praticar ao soberano consiste exclusivamente em dar habitos de Christo a alguns cantores extrangeiros. Os cantores guardam d'estas distincções conferidas pela corôa uma saudosa lembrança.
Lemos, por exemplo, em um jornal de hoje que o baritono Cotogni mandara a Sua Magestade uma photographia, em que o artista conseguiu fazer reproduzir a sua pessoa na plenitude fascinadora de todos os seus meios physicos. Um habito de Christo que se dá, uma photographia com pretenções a gentil que se recebe, e estão quites a arte e a monarchia.
Ninguem dirá que por tão innocentes commercios de affeição el-rei manifeste o intuito partidario - de lançar-se nos braços de um valido. Os unicos convivas extra-officiaes do principe - os tenores e os baritonos de primo-cartello - estão fóra de toda e qualquer suspeita malevola que não seja - a de desafinarem.
Temos portanto que a mais perfeita soberania representativa na gerencia de todos os negocios do estado existe effectivamente desassombrada e livre sob a monarchia portugueza.
Se depois d'isto o deputado sr. Rodrigues de Freitas e os seus correligionarios politicos, bem como todos os demais srs. deputados, nos dizem que a republica - com ser o mais perfeito dos governos segundo uns, ou ser um imperfeito governo segundo outros - não póde por emquanto existir em Portugal, porque o povo carece ainda da instrucção precisa para tomar o governo de si mesmo, hão de permittir os illustres deputados que nós tiremos d'esse seu argumento todas as conclusões que elle encerra....
E que digamos a suas excellencias:
Que, se um povo carece de capacidade para sustentar uma republica, é egualmente incapaz de supportar um regime constitucional. Porque a verdade, que ninguem nos poderá contestar, é esta: que nós estamos sendo governados ha muitos annos, unica e exclusivamente, pelos poderes eleitos.
Ora, se o povo não póde exercer suffragio para a eleição do governo sob o regime republicano, como é que póde achar-se habilitado para eleger o governo sob o regime monarchico? Em um e outro caso temos exactamente o mesmo processo, a mesma operação electiva, os mesmos dados na constituição dos poderes, as mesmas consequencias no uso do mandato, os mesmos resultados no exercicio do governo. A grande responsabilidade eleitoral da delegação do poder é exactamente a mesma na republica e na monarchia parlamentar.
Falta-nos a capacidade intelectual para o governo electivo da republica?! Quem é então que tem a posse exclusiva d'essa capacidade no regime parlamentar da monarchia? Como é que, passando do systema monarchico para o systema republicano, nos desapparece ámanhã perante o exercicio do suffragio a capacidade que temos hoje perante o mesmo exercicio? Quem é que pensa entre a organisação parlamenlar do governo portuguez?
Segundo os srs. deputados democratas, alguns dos quaes confessam ter a republica pelo mais perfeito e mais cabal dos governos, quem hoje pensa por suas excellencias e pelo povo que os elegeu é sua magestade el-rei!
Pelo que suas excellencias nos dizem, o soberano não é o poder moderador, é o poder-pensante. Quando a corôa cahir ao rei, cae-lhes tambem a elles o cerebro. A camara electiva, a filha do povo, a representante dos nossos interesses e dos nossos direitos, a responsavel da força e da lei, assim o declara! Ella só é digna, só é autonoma, só é independente e pensante - emquanto houver um rei. No momento em que o monarcha descer do throno, ella será inepta. Animaes do Apocalypse, os srs. deputados só fallam agora pela sugestão divina imposta pelo sceptro. A tribuna, essa tribuna que ahi está, se um dia o rei lhe voltar as costas, recusará com pudor o copo d'agua oratorio, e pedirá--herva.
* * *
Será falso o argumento da incapacidade do paiz, com que os srs. deputados combatem a opportunidade da republica em Portugal? Não é. Se a camara que ahi temos diante dos nossos olhos é a expressão legitima do suffragio popular, o argumento é verdadeiro: o paiz é incapaz. Sómente as consequencias que esse argumento encerra não ferem sómente o direito á republica, ferem tambem o direito á liberdade. A logica não póde parar onde á casuistica dos rabulas apraz que ella pare: a logica ha de ir até onde o senso commum a possa acompanhar, e a logica leva o juizo, a boa fé e a verdade a declararem abertamente o seguinte: Se a camara electiva que acaba de occupar-se da discussão d'estes principios dá effectivamente a medida legal e authentica da moral, da virtude e da capacidade publica, então a questão do governo não póde versar entre uma republica e uma monarchia democratica e parlamentar. A questão é mais complexa e mais elevada. A questão, srs. deputados, é se vossas excellencias, teem ou não teem a capacidade precisa para serem os representantes de um povo independente. A questão é de eleição ou de não eleição; é de governo livre ou de governo despotico. Se os legitimos representantes do povo prestam, nós teremos a liberdade com qualquer dos dois governos livres - republica democratica ou monarchia parlamentar. Se os legitimos representantes do povo não prestam, teremos - a anarchia na republica, e teremos - a escravidão na monarchia.
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Ora a representação nacional ha muito tempo que está sendo em Portugal uma farça ridicula para a sciencia e uma vergonha publica para o patriotismo. A camara é de uma ignorancia encyclopedica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se desaffronta,- o que prova que não tem sciencia e que parece não ter caracter.
Poderiamos confirmar com muitos exemplos tirados dos ultimos debates parlamentares a verdade d'essa asserção, que poderá ser tida por arrojada, mas não por duvidosa. Não particularisamos esses factos porque elles envolvem nomes de homens, e nós, que não temos duvida em deixar cahir sobre as pessoas o ridiculo, temos repugnancia em deixar pesar sobre ellas a vergonha. A critica, se a levassemos até ahi, tornar-se-hia uma execução do alta justiça, porque o ridiculo lava-se na rehabilitação com que nos retemperam os actos sérios, a vergonha quando mancha o caracter faz num nodoa corrosiva e indelevel. As Farpas ferem apenas. O ferrete imprime-se com o ferro em brasa. Por essa razão preferimos adoptar n'este assumpto a generalidade impessoal.
Faltam á camara as idéas politicas e faltam-lhe os principios moraes.
D'aqui resulta uma perturbação insanavel, um mal sem cura. É a corrupção, é a gangrena, é a paralysação senil affectando o jogo de todo o machinismo constitucional.
Temos o socego interior e temos a paz no extrangeiro; gozamos da liberdade politica e da liberdade individual, e não obstante no paiz todo ha um surdo descontentamento geral.
Todos os espiritos que se applicam ao estudo dos caracteristicos que prenunciam as evoluções da liberdade, comprehendem, tanto em Portugal como já hoje fóra de Portugal, que está eminente sobre nós uma d'essas grandes transformações politicas que apparecem nos paizes livres sempre que todas as questões que serviam para delimitar o campo dos differentes partidos se acham liquidadas, e que o progresso não inspira a creação de novas questões que sirvam de base para novos partidos.
Em Portugal os partidos acabaram ha muitos annos. Não existem divergencias de opinião sobre qualquer principio capital que interesse o paiz inteiro. Como o interesse do paiz desappareceu, a urna fica entregue ao arbitrio da auctoridade, e os círculos eleitoraes convertem-se em burgos podres. Os regedores com os cabos de policia elegem a maioria, os grandes proprietarios com os seus caseiros e os seus amigos votam as opposições. A vontade popular é muda e passiva, o que quer dizer que as fomes intimas da vida nacional estão obstruidas ou seccas.
Os governos não se sustentam no poder porque faltando-lhes uma opposição perfeitamente e fortemente constituida e assignalada, como a que separa na Inglaterra os tories e os whigs, não podem tambem contar com uma maioria consistente e robusta. Para manter os apoios oscillantes o governo acode submissamente ás exigencias dos pequenos corrilhos, promette, desdiz, cede, transige, compra, troca, vende, intriga, e cae de fadiga, apupado e corrido.
Ha dez annos temos tido assim quarenta ministerios. Os ex-ministros constituem pequenas dynastias de pretendentes constantemente ávidos do poder. Estes pretendentes quando não teem forças necessarias para alcançar o governo procuram formar no paiz, por meio da sua influencia burocratica, o partido que não teem na camara, e distribuem pelos seus amigos os empregos publicos que arrancam ao gabinete ameaçando-o com crises de seis votos sempre dependentes do descontentamento ou da satisfação pessoal dos pequenos chefes dos pequenos bandos.
O paiz inteiro vive n'uma miseria baixa, n'uma pobresa degradante, sem a altivez, sem o brio dos pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem estendem a mão. Vejam-se no exercito os filhos do povo: nem a educação militar consegue dar-lhes pelo menos a attitude exterior da dignidade e da força, o passo firme, a cabeça alta, o porte determinado e energico que caracterisam logo no primeiro aspecto physico os fortes cidadãos dos paizes em que se sabe guardar e manter a liberdade!
A classe operaria faz grèves, no que está inteiramente no seu direito, mas faz tambem litteratura jornalistica e oratoria sentimental, - o que ridicularisa o trabalho, humilha a austeridade do direito e leza a legitimidade dos interesses, obrigando os obreiros -jornalistas e oradores - a pedirem mais descanços para discretearem, em vez de pedirem mais obra para fazerem.
O commercio está arruinado. A lavoura está decadente. A propriedade está hypothecada.
Só prosperam, só se procriam, só se reproduzem indefinidamente as instituições de jogo e de usura, as casas de penhores e os bancos!
Os bancos são os logares de perdição em que os paizes pobres e ambiciosos se arruinam trocando a sua pequena riqueza real por uma maior riqueza contingente e fictícia, abdicando o trabalho e creando o jogo, dando dinheiro e recebendo papeis.
A mocidade vive nas antecamaras do estado como os antigos poetas do seculo passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do estado. Os moços são bachareis e querem bacharelar ácerca da coisa publica e á custa da mesma coisa ácerca da qual bacharelam. Dizem-se republicanos, democratas, socialistas, fallam muito na organisação systematica do trabalho e nos destinos das classes laboriosas, mas não nos dão em si proprios o exemplo de que o primeiro dever de todo o cidadão que se quer prezar de democrata e de livre é elle proprio bastar para si mesmo, prover pela sua iniciativa a todas as suas necessidades, descentralisar-se, trabalhar só, viver de si, que é o unico meio de não ser explorado e de não explorar ninguem, affirmar-se finalmente na unica fórma da independencia poderosa e legitima, na unica dignidade verdadeira e segura - o trabalho pessoal e livre. A mocidade tem a mais elevada comprehensão dos destinos sociaes, da moral e da justiça. Unicamente a mocidade tem um defeito que ha de esterilisar a sua iniciativa: ella pensa, mas não trabalha. Assim, se pela sua razão ella caminha para a conquista ideal das coisas justas; pelas necessidades da vida ella fica fatalmente na orbita subalterna das simples coisas conquistadas. Antes de traçarmos o etinerario luminoso da nossa alma pelas espheras transcendentes, temos obrigação de aprender a sustentar a nossa besta na viagem. Proudhon tinha razão, mas tambem tinha um officio. E era depois de ganhar livremente o seu pão como typographo ou como caixeiro que elle ganhava livremente como philosopho e como critico as consciencias dos outros pela justiça.
* * *
(...)
Querem manter a ordem? Aqui teem um meio bem simples, bem pronto: Deixem immediatamente de manter os abusos.
Querem governar bem? Lembrem-se do que dizia Washington: A probidade é a melhor politica.
Sejam virtuosos os que não podem ser instruidos. A intelligencia só longamente se adquire, a virtude penetra-nos de pronto, porque a justiça é um axioma, é uma evidencia, não demanda estudos preleminares nem reflexões subsequentes, é o principio e é o fim de si mesma.
Catão, escrevendo a seu filho, definia assim o perfeito orador politico: Um homem de bem que sabe fallar. Ora quando se não possa ser inteiramente o ideal de Catão, ignore-se como se falla, mas saiba-se como se é homem de bem.
Ter, como alguns ou quasi todos os srs. deputados, uma opinião na camara e uma opinião differente nos corredores de S. Bento, ter ainda além d'isto uma opinião para o Chiado e outra para a cova em que se reune o partido, - isto não é digno nem honesto. Ter sobre um principio vital de governação ou de politica uma opinião firme, convicta, inabalavel, é possuir, ao mesmo tempo e por esse simples facto, a força com que essa opinião se deffende e se mantem. Não ter opinião ou ter uma opinião oscillante e mutavel é comprometter inteiramente os principios pela falta da virtude.
Porque sem a virtude não poderá nunca existir a democracia.
Em nenhum paiz do mundo os homens politicos são individualmente mais probos que em Portugal; em poucos paizes do mundo elles procedem publicamente de um modo mais adquado para deixar em duvida a consciencia que cada um tem do dever e da honra. Luiz Filippe era tambem um dos homens pessoalmente mais honrados que teem cingido uma corôa, e todavia poucos reis espalharam em volta do seu reinado mais elementos de corrupção. Foi d'esse bom homem que se creou a phrase proudhouniana de
que elle dominou pelo despreso, assim como dominaram - Cesar e Bonaparte pela admiração, Sylla e Robespierre pelo terror.
Triste reinado aquelle em que o socego e a paz publica se baseam no desdem publico! Debaixo d'essa ataraxia superficial do povo está a gangrena e a dissolução latente do estado.
Quer-se a virtude publica, a virtude official, a virtude parlamentar, a virtude de Montesquieu, que é a mola indispensavel de todo o estado popular, e que consiste resumidamente em preferir - o dever á conveniencia, o direito á força, a justiça á popularidade e ao exito.
De sciencia basta a precisa para se entender que o verdadeiro interesse de todos reside no respeito da justiça para cada um, e que é n'essa comprehensão e n'esse culto da justiça que verdadeiramente se baseia a liberdade.
Lincoln, o maior homem que tem produzido a democracia não tinha estudos nem letras. Tinha apenas a fé. Acreditava na immortalidade da sua alma, acreditava em Deus e acreditava na justiça - a imagem immortal da perfeição absoluta. E tão pouco bastou para que esse obscuro plebeu entrasse na gloria, assignalando-se immortalmente com os dois maiores actos que a homem algum foi ainda permittido commetter--dar a liberdade aos negros e dar a paz á America.
* * *
Leitor amigo, se queres sinceramente contribuir nos teus meios para fortificar a tua patria, dá-lhe modestamente, na pequena orbita da tua influencia, entre os teus parentes e os teus amigos, aquillo que ella mais precisa de ter para sua defesa dentro da casa de cada cidadão; não se trata da força do teu braço, trata-se da rectidão do teu juizo: sê prudente e justo.
No caminho em que nos puzeram aquelles por quem nos temos deixado conduzir nós não vamos livremente para a escolha da fórma de um governo livre; vamos submissamente para a sujeição voluntaria dos dominios despoticos. Para que esses poderes nos subjuguem, basta simplesmente que nos invada a anarchia que nos está batendo á porta. Na perturbação geral, no conflicto, no perigo da fazenda e da vida, o egoismo sacrificará sem nenhuma disputa a liberdade. Porque a liberdade, por mais bella que ella seja, é na existencia uma circumstancia; a ordem é a condição essencial - intrinseca - da vida, a garantia do trabalho e a segurança do pão. Quem poderá calcular o numero de liberdades que nós sacrificaremos á ordem no momento em que a desordem começar a facultar-nos o direito ao governo, com a suppressão do direito ao jantar?... É das profundidades demagogicas que saem sempre á periferia social os tyrannos. Já Aristoteles dizia que o despota começa no demagogo; assim nasceram Pisistrato em Athenas, Dinys em Siracusa, Theagenes em Megara.
O nosso profundo mal está na nossa profunda indifferença. Aos que ignoram os perigos d'esta enfermidade social lembraremos que quando Napoleão desembarcou no golpho Juan não foi a força dos que o defendiam que o reconduziu ao throno, foi a inercia dos que o não atacaram.
Ora as apathias, querido leitor sensato, curam-se pelos regimes constituintes. Os meios revulsivos aggravam a prostração e produzem o desfallecimento e a morte.
Quando o principio vital da auctoridade se acha ameaçado sob a sua forma politica - no governo -, a primeira obrigação do povo é manter esse principio sob a sua forma philosophica - na razão.
* * *
(...)
Foi submettido á votação da camara dos srs. deputados a seguinte moção de ordem apresentada pelo sr. Barros e Cunha, deputado por Silves, ao qual no passado numero das Farpas chamámos erradamente deputado por Tavira.
Que nos perdôe s.ex.ª - e Tavira!
Eis a moção:
«A camara dos deputados affirma que são inabalaveis no povo portuguez os sentimentos de amor ás instituições liberaes, de respeito e affeição á dynastia constitucional, e que a nação fará os ultimos sacrificios para manter a independencia do reino contra quaesquer perigos que possam ameaçal-a, e passa á ordem do dia.»
Procedendo-se em seguida a uma votação nominal disseram approvo todos os srs. deputados.
* * *
O sr. Barros e Cunha tinha motivado a sua moção com esta phrase:
«Parece-me conveniente que nos pontos da Europa aonde tenha chegado a noticia de que n'esta terra houve uma conspiração tremenda contra a sua independencia, possa haver a certeza de que a representação nacional está ao lado d'essa independencia, da ordem e da dynastia constitucional.»
Ora como o sr. Barros e Cunha entende e a camara approva que o simples juramento de fidelidade prestado pelos srs. deputados bem como a alta qualificação procedente do seu mandato não são bastante parte para garantir nos differentes pontos da Europa a incumplicidade de suas ex.'as nos crimes commettidos no paiz, achamos bom que o mesmo sr. Barros e Cunha repita e faça votar a sua moção a cada delicto novo que apparecer.
E só assim suas excellencias se poderão considerar regosijadoramente illibados.
* * *
Logo na sessão immediata áquella em que foi approvada a moção a que nos referimos, declarou o deputado sr. Francisco de Albuquerque «que tinha desapparecido das estações officiaes, sem que se podesse saber do seu destino o espolio de José Antonio, criado de servir, fallecido em Lisboa ha dois annos.»
Depois de tão grave accusação levantada no mesmo seio do parlamento, não tendo nem o sr. presidente nem o governo restituido immediatamente ao queixoso o espolio de José Antonio, ou nós não entendemos bem o espirito da moção do sr. Barros e Cunha ou era outra vez o momento de sua ex.ª illucidar os pontos da Europa sob a sua innocencia e a dos seus collegas, mandando para a mesa a seguinte moção:
«A camara dos deputados affirma que não foi ella que furtou o espolio do criado de servir José Antonio, porque ella tem muito menos amor aos espolios dos criados do que ás instituições liberaes, á monarchia e á independencia, e passa á ordem do dia.»
Porque o sr. Barros e Cunha abriu este precedente:
Que á dignidade da camara cumpre justificar-se perante certos pontos da Europa dos crimes que não praticou, assoar-se, e passar á ordem do dia.
* * *
Mais declarou o dito sr. Francisco de Albuquerque «que na estrada de Gouvêa a Mangualde falta a parte que se comprehende entre a ponte de Palhés e a villa de Mangualde.»
Projecto de moção offerecido ao sr. Barros e Cunha:
«A camara, tendo mostrado os forros das algibeiras e tendo-se desabotoado para evidenciar que se não apropriou da estada de Mangualde, passa á ordem do dia - e a abotoar-se.»
* * *
Entre as moções que propômos e aquella que o sr. Barros e Cunha adoptou ha apenas uma differença: é que as nossas, posto o principio de sua ex.ª, são logicas, são racionaes, baseam-se na verdade, referem-se a crimes cujos reus se não conhecem e em que a camara é innocente: por tanto a justificação é cabida. A do sr. Barros e Cunha refere-se a crimes, cujos cumplices estão processados - d'aqui, inutil - e affirma o que não é - pelo que: falsa. Logo é uma justificação absurda.
* * *
Affirma a dita moção o que não é: vamos demonstral-o. O sr. Barros e Cunha e a camara asseguram que são inabalaveis no povo portuguez os sentimentos de amor ás instituições, de respeito e affeição á dynastia.
No entanto por outro lado o mesmo sr. Barros e Cunha e a camara affirmam que o povo conspira e que suas excellencias mesmo teem conspirado - não certamente em favor das instituições vigentes nem da dynastia reinante.
O sr. Barros e Cunha disse textualmente, poucos dias depois da sua moção:
«Eu vou fazer uma confissão á camara; eu sinceramente acredito em tentativas permanentes contra a independencia do paiz, contra as instituições e contra a dynastia ... Esses perigos não posso occultar á camara que existem ... Extranho que o poder moderador não convocasse a camara ... pelo duplo perigo que podia correr a dynastia, a liberdade e as instituições.»
Ora é este paiz, em que - a dynastia, a liberdade e as instituições correm perigo, em que são permanentes as tentativas contra a independencia, contra as instituições e contra a monarchia, que a camara assegura ser inabalavel nos seus sentimentos de amor ás instituições, de respeito e affeição á dynastia!
O partido reformista affirma que quando era poder luctava contra conspirações continuadas.
O partido historico caiu victima de uma conspiração.
O partido regenerador abafa uma conspiração. O sr. Teixeira de Vasconcellos disse ha dias: «N'este ponto (as conspirações) chegou-se ao mais a que se podia chegar.»
Effectivamente, depois de tudo isto, chegou-se a este ponto: de todos os partidos se reunirem e votarem unanimemente - que ninguem conspira!
* * *
Sublime patria! vae, prosegue magestosa e olympica no teu destino luminoso! Nada mais te queremos. Detivemos-te apenas para isto, para te espetar, aqui assim, por cima, no alto da cuia, como um gancho, o sr.Barros e Cunha. Sobre a fronte das figuras immortaes costumam os artistas collocar uma estrella; sobre a tua cabeça, ó patria, o sr. Barros e Cunha, assim fixado como um symbolo, lembrará aos vindouros a pombinha branca, de assucar - tão casta! - das lampreias d'ovos.
* * *
(...)
A camara dos dignos deputados, não tendo tido em nenhuma questão politica interna nem uma theoria, nem uma idéa, nem um dito, nem um gesto sequer, que accusasse a intelligencia, o espirito, a penetração, a vivacidade, resolveu aproveitar um incidente da politica extrangeira para provar ao paiz que não estava no periodo imbecil dos amolecimentos de cerebro, e, referindo-se á abdicação do rei Amadeu, a camara, por meio de um esforço extraordinario, botou ao mundo - uma figura de rhetorica. Depois do quê, o mundo, sensibilisado com tamanho dispendio de força, teve pela sua parte vontade de botar á camara - uma funda.
* * *
Consta que todos os partidos se alliaram para tão alta manifestação patriotica. Todos entenderam que importava apoiar sem restricções o governo n'esta importantissima questão physiologica. Antes mesmo de entrar na grave questão da fazenda a camara achou pois indispensavel provar ao paiz ao cabo de um mez de trabalhos parlamentares este phenomeno previo: que ella não era demente. Produziram-se varios alvitres tendentes a dar ao publico o convencimento cabal d'essa verdade obscura. Occorreu: advinhar uma charada, conjugar um verbo, ouvir o sr. Melicio ácerca da immortalidade da alma ou obrigar o sr. Barros e Cunha em nome do credito das instituições a dizer a taboada.
Por fim preferiu-se na vasta região do saber humano o campo da rhetorica, e resolveu-se fazer estalar uma figura.
O dia do grande espectaculo, da terrivel prova chegou. As galerias encheram-se. O aspecto da camara era recolhido e solemne: ella estava sentada nos seus logares, tinha a mão mettida na abertura do collete e a barba feita. Havia um silencio palpitante e commovido. Então um sr. deputado, com voz pausada e firme disse:
«Sr. presidente chegou esta manhã a Lisboa, depois de ter espontaneamente e livremente abdicado a corôa do visinho reino, aquelle a quem verdadeiramente podemos chamar ...»
Era o momento! ia partir a figura! O orador deteve-se um instante, bamboou a cabeça, puxou o catarrho das commoções supremas, tomou na bocca um golo de agua, e fincando o queixo no peito recolheu-se por um momento com a figura e com o bochecho para dentro da sua gravata. A multidão immovel escutava. O silencio era tal que se ouvia crescerem os tortulhos na lama das botas do sr. Arrobas, repentinamente aquecidas por um raio de enthusiasmo fecundo e creador!
O orador, immergindo de dentro da gravata e proseguindo - «Aquelle a quem verdadeiramente podemos chamar»-- O sol no occaso! (Prolongados apoiados de todos os lados da camara e do banco dos srs. ministros.
(Vozes: Muito bem! muito bem!)
* * *
Tal foi a notavel figura oratoria que a camara resolveu dar á luz na presente legislatura como testemunho insuspeito e irrecusavel dos altos quilates do seu espirito e da comprehensão profunda em que ella se acha das terriveis e mysteriosas relações que podem prender no terreno da eloquencia parlamentar a queda dos reis e os phenomenos meteorologicos.
Sim, ó principe infeliz e sympathico, cavalleiro e bravo, que acabas de provar ao mundo que, a respeito da tua vida, sabes egualmente arriscal-a e dirigil-a; que allias singularmente o valor e o senso commum.... O valor com que entraste na Hispanha, alegre, destemida e vermelha, como a capa que palpita á viração do circo, encobrindo uma espada, no braço nervoso e astuto de um toureiro ... O senso commum com que finalmente trocaste a Hispanha irrequieta e fremente pelos tepidos vales da tua patria, nos suburbios tranquillos de Sorrento e de Almafi, á beira dos golphos innundados de azul ...
Sim, ó principe, aprende n'essa figura rhetorica que Portugal te envia, a affinidade estreita que une para identicos destinos os codigos das monarchias e as folhinhas de algibeira! Tu que abdicaste, o que és tu?
Escuta-o, ó principe! Tu és -- o sol no occaso. Teu augusto avô, que tambem abdicou, é o chefe d'essa dynastia planetaria; teu avô é Sol no occaso I ; tu és Sol no occaso II; teu filho primogenito é sua alteza Sol no occaso presumptivo. Que em sua altissima guarda vos tenham os deuses immortaes, os deuses - guarda-soes! Que tão augusta dynastia se prolongue por muitos e dilatados annos, até que a posteridade possa ainda reconhecer e honrar o mui alto o poderoso Sol no occaso XIX, por feliz antonomasia ditada pelo refrigerio dos povos O entre nuvens com brisa fresca!
* * *
Tal foi o effeito de religioso acatamento que a desencerração do tão vehemente quanto audacioso e brilhante tropo produziu no animo de toda a camara, que nenhum dos oradores que se occuparam no parlamento da ultima evolução politica da Hispanha tornou a dar ao rei abdicado outro nome que não fosse esse. Sómente: como a vivida imaginação, como a fervida phantasia peninsular de cada um, conseguiu retocar por variegadas côres proprias tão engenhosa imagem! Assim vemos que durante a sessão a que nos referimos, sua alteza o principe Amadeu foi consecutivamente modificado em sua nativa e originaria designação pelas maneiras seguintes:
Sol no occaso ... como ha bem pouco disse n'esta casa uma eloquente e inspirada voz!
Sol no occaso ... qual lhe chamou momentos ha no recinto d'esta erudicta assembléa, labio tão selecto como attico!
Sol no occaso ... só me é licito empregar a phrase penetrante que não ha muito ouvi cair ali assim da bocca do disserto orador, meu illustre amigo! (indicando o sr. Barros e Cunha).
Sol no occaso ... segundo calorosa e convictamente aqui tem sido dito por todas as boccas excepto pela do fecundo e espontaneo orador, meu immortal amigo, o sr. Jayme Moniz!
(O sr. Jayme Moniz erguendo-se, collocando uma mão sobre o coração e estendendo a outra energicamente no espaço, profere um inspirado monosylabo, que não foi ouvido na mesa dos tachigraphos).
Sol no occaso ... direi pela segunda vez, se a camara permitte que comecemos a repetir aquillo que todos e cada um dos oradores teem já ...
(Muitas vozes: Repita-se! repita-se! O sr. presidente: Deu a hora.
Vozes: Muito bem! muito bem! Todos os oradores se cumprimentam uns aos outros. O jubilo é geral. O sr. Barros e Cunha, dando para a meza alguns d'aquelles passos que antigamente eram um menuete da corte e que hoje são o andar de s.ex.ª, tira o Times do bolso e vão fallar, uma idéa porém lhe occorre, elle detem-se, toma rapidamente notas para uma interpellação; seus pequenos olhos, contentes por saberem fingir-se malignos, rebolem; e o ministerio, pallido, treme olhando Barros, emquanto sobre o craneo d'este, eburneo e lustroso como o castão de uma badine, os derradeiros raios do sol atravessando as gelosias desenham luminosamente - uma pauta. O sr. Arrobas, festivo, vae a pôr na cabeça a mesa da presidencia, julgando-a o seu chapeu. O sr. Lobo d'Avila, muito commovido chora no seio do seu ex-correligionario politico e sempre amigo fiel, Melicio - o fagueiro. E o sympathico sr. padre Boavida desapparece como um relampago, levado da sala em triumpho, ao collo de um desconhecido).
* * *
(...)
D'entre as palavras ultimamente proferidas nos debates parlamentares resalta com o relevo poderoso com que se accusam as fortes individualidades uma phrase singularmente cortante, rispida, sincera do ministro do reino.
O sr. Antonio Rodrigues Sampaio, offerecendo á camara, do seu logar de ministro da corôa um volume do Espectro, disse «que se honrava mais de ter feito aquelle livro do que de sentar-se n'aquelle logar, e que, se a camara achasse as duas coisas incompativeis, elle abandonaria a sua pasta para ir adoptar o seu livro.»
O sr. Sampaio, actual ministro do reino, tem sido ultimamente muito mais aggredido na camara e na imprensa pelo seu antigo denodo de democrata e pela sua verve de pamphletario, do que pelos seus erros e desmandos de membro do actual gabinete.
É facil guerra a que se faz a um escriptor no momento traiçoeiro em que elle não dispõe nem da sua liberdade nem da sua penna para as represalias terriveis do talento injuriado. Não ha nada mais commodo para as pessoas fracas ou ineptas do que acharem opportunidade de poderem determinar como um crime a iniciativa dos fortes. A incapacidade colloca-se assim na logica que leva a consideral-a--pelos effeitos passivos da sua inanidade - como uma especie de virtude.
O processo d'aquelle que por uma causa qualquer -boa ou má, justa ou iniqua - arriscou a sua vida em cima de uma barricada, não póde todavia ser instaurado assim, pelas toupeiras que estavam inuteis e tremulas no fundo dos seus buracos emquanto o accusado, combatendo, fazia estremecer o chão.
Elle injuriou a rainha? Pois seja assim. Injuriar uma rainha, quando ella tem na sua maxima força o poder e o mando, quando ella tem a ordem guardada pelas baionetas dos seus regimentos em armas, injurial-a em um papel publico, quando na praça publica estão carregadas as espingardas que cobriram a «lei das rolhas», injuriar, então, era servir uma idéa, era fazer uma resistencia e era cumprir um sacrificio.
Fallam-nos na honra inviolavel da mulher honrada. Mas perdão ... Quantas mulheres honradas teem sido diffamadas na impunidade das confidencias amigaveis, com a hypocrisia das reticencias, com a fatuidade dos sorrisos, com a malevolencia das allusões?
Quantas reputações puras teem alguns demolido pelos effeitos corrosivos de uma nodoa, que ficou para sempre indelevel, e que elles, a rir, entre amigos, fumando um carrajal, no Aterro ou no Chiado, cuspiram desenfadadamente sobre a honra de uma mulher que passava?!
Vamos, com franqueza, meus dignos, meus graves senhores: não é verdade que muitas vezes teem os senhores mesmos feito esta acção torpe e covarde, não declarando-a n'um livro, lançando-a na discussão e respondendo por ella, mas fazendo-a passar surdamente, como um boato de salão, como uma curiosidade galante, como uma chronica de moda, lançada de bocca em bocca, infamemente, a coberto da responsabilidade, da contestação, da policia correccional, do veredictum do publico, e das bengalas particulares?! Pois bem! é a isso que se chama diffamar. Isso é que é atacar e destruir o principio da inviolabilidade da honra domestica.
A publicidade é como a lança de Télepho que sarava as mesmas feridas que fazia. Se a senhora D. Maria II tem de passar á historia com o nome de virtuosa, a consagração d'esse epitheto provem-lhe da discussão publica da sua virtude.
Infelizmente a senhora D. Maria II não resumia na sua personalidade a reputação total das senhoras portuguesas e nem todas estas poderão como a victima do Espectro, sair gloriosamente da galeria das calumniadas!
As martyres da surda maledicencia obscura e irresponsavel essas é que ficam para sempre na suspeita ou na ignominia.
Preferir a paternidade de um pamphleto escripto com o desinteresse da paixão e do talento á triste gloria burgueza e constitucional de ministro portuguez é ter um sentimento elevado e é dar um exemplo justo.
Porque em verdade ser apenas um ministro - unico estado social que nos dispensa de sermos alguma outra coisa - não é propriamente um destino.
Para que uma existencia actue assignaladamente nas relações dos homens e marque o signal da sua passagem é preciso que ella se affirme eminentemente ou na justiça ou no sentimento ou na arte - pela coragem, pelo sacrificio ou pelo talento - que são as tres maximas constellações do trabalho, constituindo a familia, a obra ou o combate.
Aquelle que fez um livro, em que se debateram todas as idéas e todos os interesses do seu tempo e da sua sociedade, movendo os espiritos, inclinando as vontades, influindo nas consciencias, esse é o homem que viveu.
Ter gerido uma pasta no constitucionalismo portuguez é unicamente ter passado no mundo.
O governo em Portugal é apenas o capitolio das mediocridades venturosas - com um ganso, - o sr. Jayme Moniz.
AS FARPAS
- CHRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
2.º ANNO
Janeiro a Fevereiro de 1873
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo. - P. J. PROUDHON
SUMMARIO
As idéas no parlamento e a immobilidade egypcia. O discurso da corôa. Os partidos. As fórmas do governo. Governo livre e governo despotico. Republica ou monarchia? A nossa questão, e o nosso voto. Qual é o governo que nos espera. As maiorias e as opposições. (...) As conspirações, as revoltas e as opiniões do parlamento (...) Prova-se que a camara dos deputados não tem amolecimento cerebral. Uma figura de rhetorica. O ex-rei Amadeu e varios outros personagens historicos inclusivamente o sr. Arrobas, com uma palavra sobre as botas de s.ex.ª - (...) O redactor do Espectro e o ministro do reino. A inviolabilidade domestica. A calumnia. A publicidade - Joseph Prudhome e Pickuick.
Toda a animação parlamentar, toda a vida representativa no mez corrente se resumiu no seguinte: a discussão da resposta ao discurso da corôa.
Esta discussão partindo de um ponto - a approvação do projecto -, para findar exactamente no mesmo ponto de que partiu - a approvação do dito projecto -, é verdadeiramente a imagem constitucional da kneph dos egypcios, a velha serpente com o rabo na bocca, o symbolo desolador da immobilidade oriental.
Tanta palavra dispendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido, tantos suores, tantos gritos, tantos copos de agua desbaratados para se assentar nos termos em que o rei tem de cumprimentar o paiz e em que o paiz tem de responder aos cumprimentos do rei!
Como se, não havendo principios nenhuns de politica interna que affirmar, não havendo nenhuns factos de politica externa que expender, o que um rei tem que dizer ao povo e o que o povo tem que responder ao rei podesse, sem o mais criminoso abuso das prolixidades rhetoricas, alargar-se d'estes termos.
Discurso da corôa: «Meus senhores, Deus lhes dê muitos bons dias!»
Resposta ao discurso da corôa: «Senhor! Deus lhe dê os mesmos!»
Tudo mais é emphatico, é ôco, é ridiculo - e é immoral.
* * * *
Ha um mez inteiro que os srs. deputados, sob o pretexto de accordarem na collocação de um adverbio ou no significado de um adjectivo para a confecção de um periodo banal, se discutem a si proprios; chamam-se reciprocamente desordeiros, calumniadores e ineptos; e documentam e provam entre uns e outros, de partido para partido, que são effectivamente desordeiros, conspiradores, calumniadores e ineptos.
As galerias enchem-se. Enchem-se de uma multidão desoccupada e ociosa, que não vae á camara levada pelas curiosidades scientificas, nem pelos interesses patrioticos. Vae apenas disfructar os contendores, rir-se d'elles, apupal-os no fundo da sua consciencia, e - o que é peior que tudo - preverter-se e desmoralisar-se no contacto da corrupção. Vão vêr a maledicencia dilacerar as reputações, como as féras nos circos romanos dilaceravam os martyres, e aprender no exemplo dos novos gladiadores do decoro a desprezar a honra diante do insulto, assim como nas antigas luctas do gladio se aprendia a desprezar a vida diante da peleja.
Durante este mez as galerias do parlamento estiveram sempre cheias, segundo asseveram os jornaes. Encheram-as empregados publicos que desertaram as suas repartições, litteratos ambiciosos que abandonaram os seus livros, burguezes enfastiados que deixaram o seu trabalho, operarios em grèveque foram aprender a discursar nos seus comicios, pretendentes de empregos publicos, que foram examinar os pôdres por onde poderão romper os seus empenhos. E toda esta multidão perigosa, que precisaria de ouvir palavras de moralisação, de trabalho, de dignidade, assiste durante um mez inteiro aos exercicios de uma oratoria rasteira, sem elevação moral, sem correcção artistica, cheia de arrebatamentos estudados ao espelho, de improvisos ensaiados em familia, de coleras sobreposse, de indignações requentadas, de despeitos fingidos. Depois da lucta os athletas, com os colleirinhos abatidos e sujos pelas distillações do suor e das tinturas indeleveis, apertam-se entre si as suas pobres mãos inoffensivas e inuteis, e fazem-se gestos amigaveis, surriadas de bom humôr, piscam-se o olho, deitam-se a lingua de fóra, riem todos, e saem juntos de braço dado, amigos e inimigos, como velhos rabulas amaveis e cynicos, que vão comer juntos o jantar que ganharam descompondo-se em serviço da parte, que ficou na cadeia.
E eis ahi no mais alto das instituições a escola publica em que o povo tem de aprender a ser digno e honrado!
* * *
Tome-se sobre o discurso de cada deputado a somma das affirmativas e negativas que fizeram em todos os principios geraes da politica e da administração: vêr-se-ha pela exposição integral das verbas correspondentes ás opiniões de cada partido e de cada individuo, que todos affirmaram e que todos negaram exactamente as mesmas coisas.
Toda a questão é pessoal. Á porta os correios de secretaria, com os seus cavallos á rédea, esperam tranquillos. A divergencia versa sobre os nomes dos individuos atraz dos quaes esses correios teem de trotar d'ali para o Terreiro do Paço e do Terreiro do Paço para a Ajuda. Periclitam constantemente os abusos. É forçoso deslocal-os. Trata-se de saber de quem é a vez de os passear com uma pasta encarnada dentro de um coupé da Companhia.
Quantos insultos, quantos improperios, quantos copos de agua, quantos erros de grammatica se não poderiam poupar ao pudor do paiz, dando definitivamente á companhia das carroagens este simples recado:
«Os partidos são cinco - regeneradores, historicos, reformistas, avilistas e constituintes: que os _coupés_ do ministerio parem revesadamente de tres em tres mezes ás portas de cada um d'esses senhores, e quando o poder moderador quizer saber quem são os individuos que hão de levar-lhe o despacho em cada trimestre, que o poder moderador se digne de o mandar saber á inscripção patente na cocheira respectiva.»
Os srs. correios de secretaria seguiriam as carroagens ministeriaes, os srs. deputados votariam calados.
Um philosopho americano conta que nas ilhas Sandwich ha a superstição do que a força de um inimigo morto passa para aquelle que o venceu; em Portugal ha egual superstição com as successões do governo: a camara é sempre da opinião do que está no poder. Portanto, com a lei que propomos, acabariam as dissoluções e cessariam as discordias.
Pela primeira vez ouvimos n'esta legislatura lançar-se ao debate e discutir-se a palavra Republica. Vimos que a fórma do governo republicano tem no seio do parlamento defensores e adversarios, havendo todavia um ponto em que uns e outros se acham inteiramente concordes, e é: que o povo portuguez não está por emquanto nem bastante educado nem bastante instruido para poder sem grandes perigos acceitar a republica.
Pela nossa parte não somos monarchicos nem somos republicanos. A fórma constituitiva do poder não nos importa. O problema politico interessa-nos pouco. E n'este ponto achamo-nos inteiramente com o nosso tempo e com a sociedade actual. A questão grave que hoje preoccupa os povos não é de como se ha de distribuir o poder, é de como se ha de distribuir a riqueza. As classes que mais se agitam, as que por toda a parte amedrontam os manutensores da ordem, as que hão de revolver e fixar os destinos das sociedades futuras, não querem empolgar os symbolos do governo, querem simplesmente adquirir os instrumentos do trabalho; querem a terra e querem o capital. O problema moderno é o problema economico. Os reis estão sendo postos ou depostos por toda a parte sem perturbação e sem abalo. Porque? Porque ninguem se interessa em que elles se deixem ficar ou em que elles se vão embora. Voltaire defendia as monarchias com a razão de que preferia servir um leão que tivesse nascido mais forte que elle, a ser devorado por cem ratos da sua especie. Isto era no seculo XVIII, no tempo de Luiz XIV e de Frederico, em que nas monarchias havia o leão e não havia os ratos. No constitucionalismo moderno temos apenas os ratos que nos devoram. O leão é uma pacifica féra embalsamada, inoffensivo ornato de ètagére, que os ratos trazem comsigo debaixo do braço e que lhes serve apenas de pretexto para elles adoptarem esta fórma engenhosa e delicada de nos declararem que lhes appetece roer: - «Meus senhores, o leão pede viveres.»
Se a religião da liberdade, da egualdade e da fraternidade nos não obrigasse a considerar as sociedades e a respeital-as como fundamentalmente autonomas, isto é, independentes de todo o dominio, o governo que nós considerariamos o mais perfeito seria o que mais se aproximasse d'aquelle que até hoje tem dirigido os destinos da egreja catholica. O poder supremo nas mãos de um papa infallivel, arbitro absoluto da verdade e da justiça, que não póde enganar nem ser enganado; o dominio e o governo firmado na obediencia passiva de todos os subditos e na inclinação dada interiormente ás vontades, abrangendo toda a esphera da iniciativa humana desde os actos até os pensamentos; tendo por policia a inquisição, o mais completo e o mais perfeito de todos quantos tribunaes se teem creado para cohibir as infracções da lei, tribunal que ataca o mal no seu germen, dentro da consciencia, e não depois de já declarado em perturbações effectivas, de modo que nem no fundo mais recondito da alma é possivel um esconderijo para a anarchia!
Tal seria o bello ideal do governo, considerado como salva-guarda do socego e da ordem.
Hoje porém:
Como os governos não podem já ser considerados debaixo d'esse ponto de vista auctoritario e ordeiro dos partidos conservadores;
Como todas as sociedades tendem conjunctamente para se governarem a si mesmas;
Como em toda a Europa, excepto na Russia, as monarchias absolutas se transformaram em monarchias parlamentares, retomando assim os governados a maior parte dos poderes delegados nos governantes;
Como dentro em pouco tempo, precisamente, fatalmente, todos os povos impedirão que subsistam outros poderes que não sejam aquelles que por via da eleição representem a vontade popular:
Segue-se que a differença essencial das fórmas actuaes de governo não póde, como ainda ultimamente disse em um notavel livro o sr. Passy, considerar-se senão como unicamente dependente da maior ou menor parte de poder que ellas asseguram ao povo.
Vejamos pois agora qual é a differença que existe entre uma republica e uma monarchia parlamentar.
A republica é o governo do povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo por chefe do poder executivo - um presidente eleito.
A monarchia parlamentar, como ella existe em Portugal, é o governo do povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo por chefe do poder executivo - um rei hereditario.
O sr. Duvergier de Hauranne, em um estudo consagrado á apreciação da republica conservadora que actualmente existe em França, diz que uma monarchia constitucional, com um rei que não governa, com ministros responsaveis e uma camara electiva sujeita sempre aos riscos de uma dissolução, é um dos regimes parlamentares que mais garantias oferecem á liberdade. Todavia, observa ainda o publicista a quem nos referimos, para o estabelecimento da monarchia é preciso a dynastia, isto é: a tradição. Quando a dynastia cae, desapparecendo ou cortando-se a tradição como em França e em Hespanha, nada mais perigoso do que suscitar ruins ambições, chamando um principe para cabide de uma corôa.
N'este caso o unico systema que não offerece gravíssimos perigos e grandes complicações intestinas e internacionaes é a republica. Ter a monarchia com todos os foros democraticos e derribal-a por um escrupulo de nome é grande imprudencia. Não ter a monarchia e tentar reconstituil-a sobre a cabeça do primeiro forasteiro é falta de valor e de juizo para governar.
Nos livros mais recentes consagrados aos estudos politicos e á indagação das razões porque os povos perdem, conquistam ou conservam a liberdade, nas obras modernas de Lewis, Brougham, Lorenz-Sten, Glinka, Mill, Bagebot, Prévost-Paradol, não se acha differença entre republica e monarchia representativa.
A eleição ou a heriditariedade do chefe do poder executivo não alteram de nenhum modo as condições da compatibilidade da liberdade com a politica. A fórma do governo na egreja - o mais despotico governo de quantos se possam imaginar - é a fórma republicana. O papa é um presidente eleito.
O poder popular não periga na coexistencia dos reis. Era Roma o imperio funda-se esmagando os patricios. Na moderna Europa as realezas affirmam-se despedaçando as resistencias dos senhores feudaes.
Os soberanos procuram sempre na alliança do povo o appoio do mais forte.
Perante as hostilidades do clero e da nobreza Napoleão I dizia ameaçadoramente: «Se lhes solto o povo estracinho-os n'um abrir e fechar d'olhos.» Napoleão III contava nas suas confissões feitas no desterro que fôra sempre socialista. A Internacional tem origem em uma expedição de operarios mandados a Londres á custa do segundo imperio para estudarem na exposição internacional de 1862 os melhoramentos que a França poderia introduzir na organisação do trabalho.
A republica pela sua parte tem sobre a monarchia uma poderosa vantagem - a qual ordinariamente se lhe attribue como o seu maior defeito: - a republica suscita as grandes ambições, que o constitucionalismo restringe e até certo ponto avilta. Ora é exactamente nas grandes ambições que se geram as grandes capacidades.
Isto porém são caracteristicos especiaes que, reunidos a muitos outros que seria facil adduzir, podem em dadas circumstancias determinar a escolha em favor do regime monarchico ou do regime republicano. Com relação á liberdade os dois systemas não soffrem evidentemente distincção: um e outro affirmam um governo livre.
A differença que existe entre governos livres e governos que o não são, é:
Que em certos paizes a vontade que dirige os negocios publicos é em verdade a do soberano; n'outros paizes é a da nação.
Resta-nos ver em qual d'essas duas cathegorias nós nos achamos.
Portugal é indubitavelmente governado pelos seus eleitos. O rei não tem a minima ingerencia na direcção dos negocios. O unico acto de iniciativa pessoal que temos visto praticar ao soberano consiste exclusivamente em dar habitos de Christo a alguns cantores extrangeiros. Os cantores guardam d'estas distincções conferidas pela corôa uma saudosa lembrança.
Lemos, por exemplo, em um jornal de hoje que o baritono Cotogni mandara a Sua Magestade uma photographia, em que o artista conseguiu fazer reproduzir a sua pessoa na plenitude fascinadora de todos os seus meios physicos. Um habito de Christo que se dá, uma photographia com pretenções a gentil que se recebe, e estão quites a arte e a monarchia.
Ninguem dirá que por tão innocentes commercios de affeição el-rei manifeste o intuito partidario - de lançar-se nos braços de um valido. Os unicos convivas extra-officiaes do principe - os tenores e os baritonos de primo-cartello - estão fóra de toda e qualquer suspeita malevola que não seja - a de desafinarem.
Temos portanto que a mais perfeita soberania representativa na gerencia de todos os negocios do estado existe effectivamente desassombrada e livre sob a monarchia portugueza.
Se depois d'isto o deputado sr. Rodrigues de Freitas e os seus correligionarios politicos, bem como todos os demais srs. deputados, nos dizem que a republica - com ser o mais perfeito dos governos segundo uns, ou ser um imperfeito governo segundo outros - não póde por emquanto existir em Portugal, porque o povo carece ainda da instrucção precisa para tomar o governo de si mesmo, hão de permittir os illustres deputados que nós tiremos d'esse seu argumento todas as conclusões que elle encerra....
E que digamos a suas excellencias:
Que, se um povo carece de capacidade para sustentar uma republica, é egualmente incapaz de supportar um regime constitucional. Porque a verdade, que ninguem nos poderá contestar, é esta: que nós estamos sendo governados ha muitos annos, unica e exclusivamente, pelos poderes eleitos.
Ora, se o povo não póde exercer suffragio para a eleição do governo sob o regime republicano, como é que póde achar-se habilitado para eleger o governo sob o regime monarchico? Em um e outro caso temos exactamente o mesmo processo, a mesma operação electiva, os mesmos dados na constituição dos poderes, as mesmas consequencias no uso do mandato, os mesmos resultados no exercicio do governo. A grande responsabilidade eleitoral da delegação do poder é exactamente a mesma na republica e na monarchia parlamentar.
Falta-nos a capacidade intelectual para o governo electivo da republica?! Quem é então que tem a posse exclusiva d'essa capacidade no regime parlamentar da monarchia? Como é que, passando do systema monarchico para o systema republicano, nos desapparece ámanhã perante o exercicio do suffragio a capacidade que temos hoje perante o mesmo exercicio? Quem é que pensa entre a organisação parlamenlar do governo portuguez?
Segundo os srs. deputados democratas, alguns dos quaes confessam ter a republica pelo mais perfeito e mais cabal dos governos, quem hoje pensa por suas excellencias e pelo povo que os elegeu é sua magestade el-rei!
Pelo que suas excellencias nos dizem, o soberano não é o poder moderador, é o poder-pensante. Quando a corôa cahir ao rei, cae-lhes tambem a elles o cerebro. A camara electiva, a filha do povo, a representante dos nossos interesses e dos nossos direitos, a responsavel da força e da lei, assim o declara! Ella só é digna, só é autonoma, só é independente e pensante - emquanto houver um rei. No momento em que o monarcha descer do throno, ella será inepta. Animaes do Apocalypse, os srs. deputados só fallam agora pela sugestão divina imposta pelo sceptro. A tribuna, essa tribuna que ahi está, se um dia o rei lhe voltar as costas, recusará com pudor o copo d'agua oratorio, e pedirá--herva.
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Será falso o argumento da incapacidade do paiz, com que os srs. deputados combatem a opportunidade da republica em Portugal? Não é. Se a camara que ahi temos diante dos nossos olhos é a expressão legitima do suffragio popular, o argumento é verdadeiro: o paiz é incapaz. Sómente as consequencias que esse argumento encerra não ferem sómente o direito á republica, ferem tambem o direito á liberdade. A logica não póde parar onde á casuistica dos rabulas apraz que ella pare: a logica ha de ir até onde o senso commum a possa acompanhar, e a logica leva o juizo, a boa fé e a verdade a declararem abertamente o seguinte: Se a camara electiva que acaba de occupar-se da discussão d'estes principios dá effectivamente a medida legal e authentica da moral, da virtude e da capacidade publica, então a questão do governo não póde versar entre uma republica e uma monarchia democratica e parlamentar. A questão é mais complexa e mais elevada. A questão, srs. deputados, é se vossas excellencias, teem ou não teem a capacidade precisa para serem os representantes de um povo independente. A questão é de eleição ou de não eleição; é de governo livre ou de governo despotico. Se os legitimos representantes do povo prestam, nós teremos a liberdade com qualquer dos dois governos livres - republica democratica ou monarchia parlamentar. Se os legitimos representantes do povo não prestam, teremos - a anarchia na republica, e teremos - a escravidão na monarchia.
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Ora a representação nacional ha muito tempo que está sendo em Portugal uma farça ridicula para a sciencia e uma vergonha publica para o patriotismo. A camara é de uma ignorancia encyclopedica. Erra e insulta, e não se esclarece nem se desaffronta,- o que prova que não tem sciencia e que parece não ter caracter.
Poderiamos confirmar com muitos exemplos tirados dos ultimos debates parlamentares a verdade d'essa asserção, que poderá ser tida por arrojada, mas não por duvidosa. Não particularisamos esses factos porque elles envolvem nomes de homens, e nós, que não temos duvida em deixar cahir sobre as pessoas o ridiculo, temos repugnancia em deixar pesar sobre ellas a vergonha. A critica, se a levassemos até ahi, tornar-se-hia uma execução do alta justiça, porque o ridiculo lava-se na rehabilitação com que nos retemperam os actos sérios, a vergonha quando mancha o caracter faz num nodoa corrosiva e indelevel. As Farpas ferem apenas. O ferrete imprime-se com o ferro em brasa. Por essa razão preferimos adoptar n'este assumpto a generalidade impessoal.
Faltam á camara as idéas politicas e faltam-lhe os principios moraes.
D'aqui resulta uma perturbação insanavel, um mal sem cura. É a corrupção, é a gangrena, é a paralysação senil affectando o jogo de todo o machinismo constitucional.
Temos o socego interior e temos a paz no extrangeiro; gozamos da liberdade politica e da liberdade individual, e não obstante no paiz todo ha um surdo descontentamento geral.
Todos os espiritos que se applicam ao estudo dos caracteristicos que prenunciam as evoluções da liberdade, comprehendem, tanto em Portugal como já hoje fóra de Portugal, que está eminente sobre nós uma d'essas grandes transformações politicas que apparecem nos paizes livres sempre que todas as questões que serviam para delimitar o campo dos differentes partidos se acham liquidadas, e que o progresso não inspira a creação de novas questões que sirvam de base para novos partidos.
Em Portugal os partidos acabaram ha muitos annos. Não existem divergencias de opinião sobre qualquer principio capital que interesse o paiz inteiro. Como o interesse do paiz desappareceu, a urna fica entregue ao arbitrio da auctoridade, e os círculos eleitoraes convertem-se em burgos podres. Os regedores com os cabos de policia elegem a maioria, os grandes proprietarios com os seus caseiros e os seus amigos votam as opposições. A vontade popular é muda e passiva, o que quer dizer que as fomes intimas da vida nacional estão obstruidas ou seccas.
Os governos não se sustentam no poder porque faltando-lhes uma opposição perfeitamente e fortemente constituida e assignalada, como a que separa na Inglaterra os tories e os whigs, não podem tambem contar com uma maioria consistente e robusta. Para manter os apoios oscillantes o governo acode submissamente ás exigencias dos pequenos corrilhos, promette, desdiz, cede, transige, compra, troca, vende, intriga, e cae de fadiga, apupado e corrido.
Ha dez annos temos tido assim quarenta ministerios. Os ex-ministros constituem pequenas dynastias de pretendentes constantemente ávidos do poder. Estes pretendentes quando não teem forças necessarias para alcançar o governo procuram formar no paiz, por meio da sua influencia burocratica, o partido que não teem na camara, e distribuem pelos seus amigos os empregos publicos que arrancam ao gabinete ameaçando-o com crises de seis votos sempre dependentes do descontentamento ou da satisfação pessoal dos pequenos chefes dos pequenos bandos.
O paiz inteiro vive n'uma miseria baixa, n'uma pobresa degradante, sem a altivez, sem o brio dos pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem estendem a mão. Vejam-se no exercito os filhos do povo: nem a educação militar consegue dar-lhes pelo menos a attitude exterior da dignidade e da força, o passo firme, a cabeça alta, o porte determinado e energico que caracterisam logo no primeiro aspecto physico os fortes cidadãos dos paizes em que se sabe guardar e manter a liberdade!
A classe operaria faz grèves, no que está inteiramente no seu direito, mas faz tambem litteratura jornalistica e oratoria sentimental, - o que ridicularisa o trabalho, humilha a austeridade do direito e leza a legitimidade dos interesses, obrigando os obreiros -jornalistas e oradores - a pedirem mais descanços para discretearem, em vez de pedirem mais obra para fazerem.
O commercio está arruinado. A lavoura está decadente. A propriedade está hypothecada.
Só prosperam, só se procriam, só se reproduzem indefinidamente as instituições de jogo e de usura, as casas de penhores e os bancos!
Os bancos são os logares de perdição em que os paizes pobres e ambiciosos se arruinam trocando a sua pequena riqueza real por uma maior riqueza contingente e fictícia, abdicando o trabalho e creando o jogo, dando dinheiro e recebendo papeis.
A mocidade vive nas antecamaras do estado como os antigos poetas do seculo passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do estado. Os moços são bachareis e querem bacharelar ácerca da coisa publica e á custa da mesma coisa ácerca da qual bacharelam. Dizem-se republicanos, democratas, socialistas, fallam muito na organisação systematica do trabalho e nos destinos das classes laboriosas, mas não nos dão em si proprios o exemplo de que o primeiro dever de todo o cidadão que se quer prezar de democrata e de livre é elle proprio bastar para si mesmo, prover pela sua iniciativa a todas as suas necessidades, descentralisar-se, trabalhar só, viver de si, que é o unico meio de não ser explorado e de não explorar ninguem, affirmar-se finalmente na unica fórma da independencia poderosa e legitima, na unica dignidade verdadeira e segura - o trabalho pessoal e livre. A mocidade tem a mais elevada comprehensão dos destinos sociaes, da moral e da justiça. Unicamente a mocidade tem um defeito que ha de esterilisar a sua iniciativa: ella pensa, mas não trabalha. Assim, se pela sua razão ella caminha para a conquista ideal das coisas justas; pelas necessidades da vida ella fica fatalmente na orbita subalterna das simples coisas conquistadas. Antes de traçarmos o etinerario luminoso da nossa alma pelas espheras transcendentes, temos obrigação de aprender a sustentar a nossa besta na viagem. Proudhon tinha razão, mas tambem tinha um officio. E era depois de ganhar livremente o seu pão como typographo ou como caixeiro que elle ganhava livremente como philosopho e como critico as consciencias dos outros pela justiça.
* * *
(...)
Querem manter a ordem? Aqui teem um meio bem simples, bem pronto: Deixem immediatamente de manter os abusos.
Querem governar bem? Lembrem-se do que dizia Washington: A probidade é a melhor politica.
Sejam virtuosos os que não podem ser instruidos. A intelligencia só longamente se adquire, a virtude penetra-nos de pronto, porque a justiça é um axioma, é uma evidencia, não demanda estudos preleminares nem reflexões subsequentes, é o principio e é o fim de si mesma.
Catão, escrevendo a seu filho, definia assim o perfeito orador politico: Um homem de bem que sabe fallar. Ora quando se não possa ser inteiramente o ideal de Catão, ignore-se como se falla, mas saiba-se como se é homem de bem.
Ter, como alguns ou quasi todos os srs. deputados, uma opinião na camara e uma opinião differente nos corredores de S. Bento, ter ainda além d'isto uma opinião para o Chiado e outra para a cova em que se reune o partido, - isto não é digno nem honesto. Ter sobre um principio vital de governação ou de politica uma opinião firme, convicta, inabalavel, é possuir, ao mesmo tempo e por esse simples facto, a força com que essa opinião se deffende e se mantem. Não ter opinião ou ter uma opinião oscillante e mutavel é comprometter inteiramente os principios pela falta da virtude.
Porque sem a virtude não poderá nunca existir a democracia.
Em nenhum paiz do mundo os homens politicos são individualmente mais probos que em Portugal; em poucos paizes do mundo elles procedem publicamente de um modo mais adquado para deixar em duvida a consciencia que cada um tem do dever e da honra. Luiz Filippe era tambem um dos homens pessoalmente mais honrados que teem cingido uma corôa, e todavia poucos reis espalharam em volta do seu reinado mais elementos de corrupção. Foi d'esse bom homem que se creou a phrase proudhouniana de
que elle dominou pelo despreso, assim como dominaram - Cesar e Bonaparte pela admiração, Sylla e Robespierre pelo terror.
Triste reinado aquelle em que o socego e a paz publica se baseam no desdem publico! Debaixo d'essa ataraxia superficial do povo está a gangrena e a dissolução latente do estado.
Quer-se a virtude publica, a virtude official, a virtude parlamentar, a virtude de Montesquieu, que é a mola indispensavel de todo o estado popular, e que consiste resumidamente em preferir - o dever á conveniencia, o direito á força, a justiça á popularidade e ao exito.
De sciencia basta a precisa para se entender que o verdadeiro interesse de todos reside no respeito da justiça para cada um, e que é n'essa comprehensão e n'esse culto da justiça que verdadeiramente se baseia a liberdade.
Lincoln, o maior homem que tem produzido a democracia não tinha estudos nem letras. Tinha apenas a fé. Acreditava na immortalidade da sua alma, acreditava em Deus e acreditava na justiça - a imagem immortal da perfeição absoluta. E tão pouco bastou para que esse obscuro plebeu entrasse na gloria, assignalando-se immortalmente com os dois maiores actos que a homem algum foi ainda permittido commetter--dar a liberdade aos negros e dar a paz á America.
* * *
Leitor amigo, se queres sinceramente contribuir nos teus meios para fortificar a tua patria, dá-lhe modestamente, na pequena orbita da tua influencia, entre os teus parentes e os teus amigos, aquillo que ella mais precisa de ter para sua defesa dentro da casa de cada cidadão; não se trata da força do teu braço, trata-se da rectidão do teu juizo: sê prudente e justo.
No caminho em que nos puzeram aquelles por quem nos temos deixado conduzir nós não vamos livremente para a escolha da fórma de um governo livre; vamos submissamente para a sujeição voluntaria dos dominios despoticos. Para que esses poderes nos subjuguem, basta simplesmente que nos invada a anarchia que nos está batendo á porta. Na perturbação geral, no conflicto, no perigo da fazenda e da vida, o egoismo sacrificará sem nenhuma disputa a liberdade. Porque a liberdade, por mais bella que ella seja, é na existencia uma circumstancia; a ordem é a condição essencial - intrinseca - da vida, a garantia do trabalho e a segurança do pão. Quem poderá calcular o numero de liberdades que nós sacrificaremos á ordem no momento em que a desordem começar a facultar-nos o direito ao governo, com a suppressão do direito ao jantar?... É das profundidades demagogicas que saem sempre á periferia social os tyrannos. Já Aristoteles dizia que o despota começa no demagogo; assim nasceram Pisistrato em Athenas, Dinys em Siracusa, Theagenes em Megara.
O nosso profundo mal está na nossa profunda indifferença. Aos que ignoram os perigos d'esta enfermidade social lembraremos que quando Napoleão desembarcou no golpho Juan não foi a força dos que o defendiam que o reconduziu ao throno, foi a inercia dos que o não atacaram.
Ora as apathias, querido leitor sensato, curam-se pelos regimes constituintes. Os meios revulsivos aggravam a prostração e produzem o desfallecimento e a morte.
Quando o principio vital da auctoridade se acha ameaçado sob a sua forma politica - no governo -, a primeira obrigação do povo é manter esse principio sob a sua forma philosophica - na razão.
* * *
(...)
Foi submettido á votação da camara dos srs. deputados a seguinte moção de ordem apresentada pelo sr. Barros e Cunha, deputado por Silves, ao qual no passado numero das Farpas chamámos erradamente deputado por Tavira.
Que nos perdôe s.ex.ª - e Tavira!
Eis a moção:
«A camara dos deputados affirma que são inabalaveis no povo portuguez os sentimentos de amor ás instituições liberaes, de respeito e affeição á dynastia constitucional, e que a nação fará os ultimos sacrificios para manter a independencia do reino contra quaesquer perigos que possam ameaçal-a, e passa á ordem do dia.»
Procedendo-se em seguida a uma votação nominal disseram approvo todos os srs. deputados.
* * *
O sr. Barros e Cunha tinha motivado a sua moção com esta phrase:
«Parece-me conveniente que nos pontos da Europa aonde tenha chegado a noticia de que n'esta terra houve uma conspiração tremenda contra a sua independencia, possa haver a certeza de que a representação nacional está ao lado d'essa independencia, da ordem e da dynastia constitucional.»
Ora como o sr. Barros e Cunha entende e a camara approva que o simples juramento de fidelidade prestado pelos srs. deputados bem como a alta qualificação procedente do seu mandato não são bastante parte para garantir nos differentes pontos da Europa a incumplicidade de suas ex.'as nos crimes commettidos no paiz, achamos bom que o mesmo sr. Barros e Cunha repita e faça votar a sua moção a cada delicto novo que apparecer.
E só assim suas excellencias se poderão considerar regosijadoramente illibados.
* * *
Logo na sessão immediata áquella em que foi approvada a moção a que nos referimos, declarou o deputado sr. Francisco de Albuquerque «que tinha desapparecido das estações officiaes, sem que se podesse saber do seu destino o espolio de José Antonio, criado de servir, fallecido em Lisboa ha dois annos.»
Depois de tão grave accusação levantada no mesmo seio do parlamento, não tendo nem o sr. presidente nem o governo restituido immediatamente ao queixoso o espolio de José Antonio, ou nós não entendemos bem o espirito da moção do sr. Barros e Cunha ou era outra vez o momento de sua ex.ª illucidar os pontos da Europa sob a sua innocencia e a dos seus collegas, mandando para a mesa a seguinte moção:
«A camara dos deputados affirma que não foi ella que furtou o espolio do criado de servir José Antonio, porque ella tem muito menos amor aos espolios dos criados do que ás instituições liberaes, á monarchia e á independencia, e passa á ordem do dia.»
Porque o sr. Barros e Cunha abriu este precedente:
Que á dignidade da camara cumpre justificar-se perante certos pontos da Europa dos crimes que não praticou, assoar-se, e passar á ordem do dia.
* * *
Mais declarou o dito sr. Francisco de Albuquerque «que na estrada de Gouvêa a Mangualde falta a parte que se comprehende entre a ponte de Palhés e a villa de Mangualde.»
Projecto de moção offerecido ao sr. Barros e Cunha:
«A camara, tendo mostrado os forros das algibeiras e tendo-se desabotoado para evidenciar que se não apropriou da estada de Mangualde, passa á ordem do dia - e a abotoar-se.»
* * *
Entre as moções que propômos e aquella que o sr. Barros e Cunha adoptou ha apenas uma differença: é que as nossas, posto o principio de sua ex.ª, são logicas, são racionaes, baseam-se na verdade, referem-se a crimes cujos reus se não conhecem e em que a camara é innocente: por tanto a justificação é cabida. A do sr. Barros e Cunha refere-se a crimes, cujos cumplices estão processados - d'aqui, inutil - e affirma o que não é - pelo que: falsa. Logo é uma justificação absurda.
* * *
Affirma a dita moção o que não é: vamos demonstral-o. O sr. Barros e Cunha e a camara asseguram que são inabalaveis no povo portuguez os sentimentos de amor ás instituições, de respeito e affeição á dynastia.
No entanto por outro lado o mesmo sr. Barros e Cunha e a camara affirmam que o povo conspira e que suas excellencias mesmo teem conspirado - não certamente em favor das instituições vigentes nem da dynastia reinante.
O sr. Barros e Cunha disse textualmente, poucos dias depois da sua moção:
«Eu vou fazer uma confissão á camara; eu sinceramente acredito em tentativas permanentes contra a independencia do paiz, contra as instituições e contra a dynastia ... Esses perigos não posso occultar á camara que existem ... Extranho que o poder moderador não convocasse a camara ... pelo duplo perigo que podia correr a dynastia, a liberdade e as instituições.»
Ora é este paiz, em que - a dynastia, a liberdade e as instituições correm perigo, em que são permanentes as tentativas contra a independencia, contra as instituições e contra a monarchia, que a camara assegura ser inabalavel nos seus sentimentos de amor ás instituições, de respeito e affeição á dynastia!
O partido reformista affirma que quando era poder luctava contra conspirações continuadas.
O partido historico caiu victima de uma conspiração.
O partido regenerador abafa uma conspiração. O sr. Teixeira de Vasconcellos disse ha dias: «N'este ponto (as conspirações) chegou-se ao mais a que se podia chegar.»
Effectivamente, depois de tudo isto, chegou-se a este ponto: de todos os partidos se reunirem e votarem unanimemente - que ninguem conspira!
* * *
Sublime patria! vae, prosegue magestosa e olympica no teu destino luminoso! Nada mais te queremos. Detivemos-te apenas para isto, para te espetar, aqui assim, por cima, no alto da cuia, como um gancho, o sr.Barros e Cunha. Sobre a fronte das figuras immortaes costumam os artistas collocar uma estrella; sobre a tua cabeça, ó patria, o sr. Barros e Cunha, assim fixado como um symbolo, lembrará aos vindouros a pombinha branca, de assucar - tão casta! - das lampreias d'ovos.
* * *
(...)
A camara dos dignos deputados, não tendo tido em nenhuma questão politica interna nem uma theoria, nem uma idéa, nem um dito, nem um gesto sequer, que accusasse a intelligencia, o espirito, a penetração, a vivacidade, resolveu aproveitar um incidente da politica extrangeira para provar ao paiz que não estava no periodo imbecil dos amolecimentos de cerebro, e, referindo-se á abdicação do rei Amadeu, a camara, por meio de um esforço extraordinario, botou ao mundo - uma figura de rhetorica. Depois do quê, o mundo, sensibilisado com tamanho dispendio de força, teve pela sua parte vontade de botar á camara - uma funda.
* * *
Consta que todos os partidos se alliaram para tão alta manifestação patriotica. Todos entenderam que importava apoiar sem restricções o governo n'esta importantissima questão physiologica. Antes mesmo de entrar na grave questão da fazenda a camara achou pois indispensavel provar ao paiz ao cabo de um mez de trabalhos parlamentares este phenomeno previo: que ella não era demente. Produziram-se varios alvitres tendentes a dar ao publico o convencimento cabal d'essa verdade obscura. Occorreu: advinhar uma charada, conjugar um verbo, ouvir o sr. Melicio ácerca da immortalidade da alma ou obrigar o sr. Barros e Cunha em nome do credito das instituições a dizer a taboada.
Por fim preferiu-se na vasta região do saber humano o campo da rhetorica, e resolveu-se fazer estalar uma figura.
O dia do grande espectaculo, da terrivel prova chegou. As galerias encheram-se. O aspecto da camara era recolhido e solemne: ella estava sentada nos seus logares, tinha a mão mettida na abertura do collete e a barba feita. Havia um silencio palpitante e commovido. Então um sr. deputado, com voz pausada e firme disse:
«Sr. presidente chegou esta manhã a Lisboa, depois de ter espontaneamente e livremente abdicado a corôa do visinho reino, aquelle a quem verdadeiramente podemos chamar ...»
Era o momento! ia partir a figura! O orador deteve-se um instante, bamboou a cabeça, puxou o catarrho das commoções supremas, tomou na bocca um golo de agua, e fincando o queixo no peito recolheu-se por um momento com a figura e com o bochecho para dentro da sua gravata. A multidão immovel escutava. O silencio era tal que se ouvia crescerem os tortulhos na lama das botas do sr. Arrobas, repentinamente aquecidas por um raio de enthusiasmo fecundo e creador!
O orador, immergindo de dentro da gravata e proseguindo - «Aquelle a quem verdadeiramente podemos chamar»-- O sol no occaso! (Prolongados apoiados de todos os lados da camara e do banco dos srs. ministros.
(Vozes: Muito bem! muito bem!)
* * *
Tal foi a notavel figura oratoria que a camara resolveu dar á luz na presente legislatura como testemunho insuspeito e irrecusavel dos altos quilates do seu espirito e da comprehensão profunda em que ella se acha das terriveis e mysteriosas relações que podem prender no terreno da eloquencia parlamentar a queda dos reis e os phenomenos meteorologicos.
Sim, ó principe infeliz e sympathico, cavalleiro e bravo, que acabas de provar ao mundo que, a respeito da tua vida, sabes egualmente arriscal-a e dirigil-a; que allias singularmente o valor e o senso commum.... O valor com que entraste na Hispanha, alegre, destemida e vermelha, como a capa que palpita á viração do circo, encobrindo uma espada, no braço nervoso e astuto de um toureiro ... O senso commum com que finalmente trocaste a Hispanha irrequieta e fremente pelos tepidos vales da tua patria, nos suburbios tranquillos de Sorrento e de Almafi, á beira dos golphos innundados de azul ...
Sim, ó principe, aprende n'essa figura rhetorica que Portugal te envia, a affinidade estreita que une para identicos destinos os codigos das monarchias e as folhinhas de algibeira! Tu que abdicaste, o que és tu?
Escuta-o, ó principe! Tu és -- o sol no occaso. Teu augusto avô, que tambem abdicou, é o chefe d'essa dynastia planetaria; teu avô é Sol no occaso I ; tu és Sol no occaso II; teu filho primogenito é sua alteza Sol no occaso presumptivo. Que em sua altissima guarda vos tenham os deuses immortaes, os deuses - guarda-soes! Que tão augusta dynastia se prolongue por muitos e dilatados annos, até que a posteridade possa ainda reconhecer e honrar o mui alto o poderoso Sol no occaso XIX, por feliz antonomasia ditada pelo refrigerio dos povos O entre nuvens com brisa fresca!
* * *
Tal foi o effeito de religioso acatamento que a desencerração do tão vehemente quanto audacioso e brilhante tropo produziu no animo de toda a camara, que nenhum dos oradores que se occuparam no parlamento da ultima evolução politica da Hispanha tornou a dar ao rei abdicado outro nome que não fosse esse. Sómente: como a vivida imaginação, como a fervida phantasia peninsular de cada um, conseguiu retocar por variegadas côres proprias tão engenhosa imagem! Assim vemos que durante a sessão a que nos referimos, sua alteza o principe Amadeu foi consecutivamente modificado em sua nativa e originaria designação pelas maneiras seguintes:
Sol no occaso ... como ha bem pouco disse n'esta casa uma eloquente e inspirada voz!
Sol no occaso ... qual lhe chamou momentos ha no recinto d'esta erudicta assembléa, labio tão selecto como attico!
Sol no occaso ... só me é licito empregar a phrase penetrante que não ha muito ouvi cair ali assim da bocca do disserto orador, meu illustre amigo! (indicando o sr. Barros e Cunha).
Sol no occaso ... segundo calorosa e convictamente aqui tem sido dito por todas as boccas excepto pela do fecundo e espontaneo orador, meu immortal amigo, o sr. Jayme Moniz!
(O sr. Jayme Moniz erguendo-se, collocando uma mão sobre o coração e estendendo a outra energicamente no espaço, profere um inspirado monosylabo, que não foi ouvido na mesa dos tachigraphos).
Sol no occaso ... direi pela segunda vez, se a camara permitte que comecemos a repetir aquillo que todos e cada um dos oradores teem já ...
(Muitas vozes: Repita-se! repita-se! O sr. presidente: Deu a hora.
Vozes: Muito bem! muito bem! Todos os oradores se cumprimentam uns aos outros. O jubilo é geral. O sr. Barros e Cunha, dando para a meza alguns d'aquelles passos que antigamente eram um menuete da corte e que hoje são o andar de s.ex.ª, tira o Times do bolso e vão fallar, uma idéa porém lhe occorre, elle detem-se, toma rapidamente notas para uma interpellação; seus pequenos olhos, contentes por saberem fingir-se malignos, rebolem; e o ministerio, pallido, treme olhando Barros, emquanto sobre o craneo d'este, eburneo e lustroso como o castão de uma badine, os derradeiros raios do sol atravessando as gelosias desenham luminosamente - uma pauta. O sr. Arrobas, festivo, vae a pôr na cabeça a mesa da presidencia, julgando-a o seu chapeu. O sr. Lobo d'Avila, muito commovido chora no seio do seu ex-correligionario politico e sempre amigo fiel, Melicio - o fagueiro. E o sympathico sr. padre Boavida desapparece como um relampago, levado da sala em triumpho, ao collo de um desconhecido).
* * *
(...)
D'entre as palavras ultimamente proferidas nos debates parlamentares resalta com o relevo poderoso com que se accusam as fortes individualidades uma phrase singularmente cortante, rispida, sincera do ministro do reino.
O sr. Antonio Rodrigues Sampaio, offerecendo á camara, do seu logar de ministro da corôa um volume do Espectro, disse «que se honrava mais de ter feito aquelle livro do que de sentar-se n'aquelle logar, e que, se a camara achasse as duas coisas incompativeis, elle abandonaria a sua pasta para ir adoptar o seu livro.»
O sr. Sampaio, actual ministro do reino, tem sido ultimamente muito mais aggredido na camara e na imprensa pelo seu antigo denodo de democrata e pela sua verve de pamphletario, do que pelos seus erros e desmandos de membro do actual gabinete.
É facil guerra a que se faz a um escriptor no momento traiçoeiro em que elle não dispõe nem da sua liberdade nem da sua penna para as represalias terriveis do talento injuriado. Não ha nada mais commodo para as pessoas fracas ou ineptas do que acharem opportunidade de poderem determinar como um crime a iniciativa dos fortes. A incapacidade colloca-se assim na logica que leva a consideral-a--pelos effeitos passivos da sua inanidade - como uma especie de virtude.
O processo d'aquelle que por uma causa qualquer -boa ou má, justa ou iniqua - arriscou a sua vida em cima de uma barricada, não póde todavia ser instaurado assim, pelas toupeiras que estavam inuteis e tremulas no fundo dos seus buracos emquanto o accusado, combatendo, fazia estremecer o chão.
Elle injuriou a rainha? Pois seja assim. Injuriar uma rainha, quando ella tem na sua maxima força o poder e o mando, quando ella tem a ordem guardada pelas baionetas dos seus regimentos em armas, injurial-a em um papel publico, quando na praça publica estão carregadas as espingardas que cobriram a «lei das rolhas», injuriar, então, era servir uma idéa, era fazer uma resistencia e era cumprir um sacrificio.
Fallam-nos na honra inviolavel da mulher honrada. Mas perdão ... Quantas mulheres honradas teem sido diffamadas na impunidade das confidencias amigaveis, com a hypocrisia das reticencias, com a fatuidade dos sorrisos, com a malevolencia das allusões?
Quantas reputações puras teem alguns demolido pelos effeitos corrosivos de uma nodoa, que ficou para sempre indelevel, e que elles, a rir, entre amigos, fumando um carrajal, no Aterro ou no Chiado, cuspiram desenfadadamente sobre a honra de uma mulher que passava?!
Vamos, com franqueza, meus dignos, meus graves senhores: não é verdade que muitas vezes teem os senhores mesmos feito esta acção torpe e covarde, não declarando-a n'um livro, lançando-a na discussão e respondendo por ella, mas fazendo-a passar surdamente, como um boato de salão, como uma curiosidade galante, como uma chronica de moda, lançada de bocca em bocca, infamemente, a coberto da responsabilidade, da contestação, da policia correccional, do veredictum do publico, e das bengalas particulares?! Pois bem! é a isso que se chama diffamar. Isso é que é atacar e destruir o principio da inviolabilidade da honra domestica.
A publicidade é como a lança de Télepho que sarava as mesmas feridas que fazia. Se a senhora D. Maria II tem de passar á historia com o nome de virtuosa, a consagração d'esse epitheto provem-lhe da discussão publica da sua virtude.
Infelizmente a senhora D. Maria II não resumia na sua personalidade a reputação total das senhoras portuguesas e nem todas estas poderão como a victima do Espectro, sair gloriosamente da galeria das calumniadas!
As martyres da surda maledicencia obscura e irresponsavel essas é que ficam para sempre na suspeita ou na ignominia.
Preferir a paternidade de um pamphleto escripto com o desinteresse da paixão e do talento á triste gloria burgueza e constitucional de ministro portuguez é ter um sentimento elevado e é dar um exemplo justo.
Porque em verdade ser apenas um ministro - unico estado social que nos dispensa de sermos alguma outra coisa - não é propriamente um destino.
Para que uma existencia actue assignaladamente nas relações dos homens e marque o signal da sua passagem é preciso que ella se affirme eminentemente ou na justiça ou no sentimento ou na arte - pela coragem, pelo sacrificio ou pelo talento - que são as tres maximas constellações do trabalho, constituindo a familia, a obra ou o combate.
Aquelle que fez um livro, em que se debateram todas as idéas e todos os interesses do seu tempo e da sua sociedade, movendo os espiritos, inclinando as vontades, influindo nas consciencias, esse é o homem que viveu.
Ter gerido uma pasta no constitucionalismo portuguez é unicamente ter passado no mundo.
O governo em Portugal é apenas o capitolio das mediocridades venturosas - com um ganso, - o sr. Jayme Moniz.