Poder Pessoal e Poder Absoluto
António Sardinha
Não precisamos de aprender em Charles Maurras o que os nossos mestres da Contra-Revolução nos ensinam em estilo soante e bem castiço.
A Liberdade falou! Falou a opinião monárquico-constitucional e no aplauso que revestiu de foros de acontecimento a minguada brochura do senhor conselheiro Aires de Ornelas sobre as doutrinas políticas de Charles Maurras, nós, os trabalhadores do Integralismo Lusitano, já sabemos o que será para connosco o dia de amanhã. Não importa! Dentro da nossa gaveta guarda-se, com números e factos, a folha-corrida da Liberdade em Portugal. Pertence ao público no dia imediato ao da volta de El-Rei o Senhor D. Manuel II. Por agora, quando a Liberdade fala, limitamo-nos a sorrir.
Pois é assim: - a Liberdade falou! O senhor conselheiro Aires de Ornelas não hesita em considerar a Carta, - a sempre saudosa Carta! - como a restauradora da nossa tradição social, interrompida pelos algebrismos pombalinos. Eu saúdo e respeito no ilustre colonialista uma das individualidades do regime caído mais abertas às grandes marchas do pensamento contemporâneo. Por isso mesmo me dói que da sua pena escorresse uma conclusão menos verdadeira. É certo que o Marquês, montando entre nós o estadismo teórico do século XVIII, acabou por desfibrar as prestantes molduras municipais e corporativas da Raça. Mas, se a Carta é a continuadora da obra nefasta, como é que ela podia reparar-lhe os efeitos de morte? O senhor conselheiro Aires de Ornelas, valendo-se de documentação que não produz e que eu ignoro, entende, porém, o contrário. E porque reabilita o papel miserável que o Brasil nos mandou no bolso dum diplomata britânico, a Liberdade fala, a Liberdade exulta, a Liberdade é toda ela uma festa pegada.
A Liberdade! A Liberdade! Oh, como eu me divirto, quando a vejo, chorosa, lamentar os desperdícios e a crapulagem desta república que seria de ópera-bufa, se laivos de sangue lhe não conferissem linhas híbridas de tragicomédia. Eles são os senhores do Parlamento enchendo-se à barba-longa com a dotaçãozinha do estilo - são os escândalos do Ródão e da Panasqueira, é a gulodice cínica com que se deixa retasar o nosso vasto morgadio ultramarino e se reparte entre os da mordomia a riqueza pátria posta a saque. E a Liberdade troveja, a Liberdade indigna-se! Não se recorda já que os «regeneradores» de 1822 (assim se crismavam os pedicuros que trasladaram para vernáculo, mal e coxamente, a constituição espanhola de Cádis!), nos custavam mais catorze tostões e tanto por dia que esses de agora, visto receberem do tesouro exaurido quatro mil-e-oitocentos réis bem pagos e bem redondinhos. Quando da América nos chegavam os primeiros rumores de rebeldia, parece-me que às câmaras em sessão o grave incidente não mereceu mais que a gracinha dum qualquer eminentíssimo anónimo, Adeus senhor Brasil, passe por lá muito bem! - e a assembleia dobrou-se toda risonha com o espírito do colega. E eu já não lembro à Liberdade o que houve por Angola, o que houve pelas outras colónias. Até as andaram oferecendo pelo estrangeiro, ao depois, a quem mais desse. Oh, meu Deus, como a Liberdade está desmemoriada!
A Liberdade! A Liberdade! Não nos esquecemos ainda que ao ministério que instalou a Regência em Lisboa, de seguida a Évora-Monte, lhe chamaram ... — os senhores bem sabem o que lhe chamaram! Lezírias, bens da Coroa, das ordens militares, - nada escapou a um devorismo épico de aventureiros com fome larga. Matámos o frade, mas inventámos o barão! - clamaria mais tarde Garrett, arrependido das cavalhadas da mocidade. Quarenta milhões de cruzados é a estimativa aproximada de Luz Soriano, tanto nos levou a Liberdade quando, logo de entrada, sem mais cerimónia, nos fez presente da conta. Não se liberta debalde um povo! E as dívidas do exílio, as raivas da intriga e do despeito? Se a vez aparecia, tocava a fartar. Era uma predestinação, viera-lhe de nascença! Se os revolucionários do Porto, com o patriarca Fernandes Tomás à cabeça, tinham despejado os cofres públicos na vitoriosa jornada por aí abaixo, à cata da corte! Se os 7.500 bravos do Mindelo não haviam desembarcado no Mindelo, afinal, mas numa praiazinha apagada que os pescadores da costa, em reminiscência de recuadas piratarias, nomeavam simplesmente dos ladrões! Era ou não era uma predestinação? Ah, a Liberdade, a Liberdade!
Insurge-se ela porque se provoca a benevolência susceptível das Chancelarias, porque se estadeiam imagens em almoeda pela rua e se atiram prelados para o desterro com brutalidade. Não pensaram os de 1820 em abalar fronteiras fora, a combater a Santa Aliança? Não vaguearam em carroças pelos bairros alfacinhas, em 22, os símbolos religiosos arrancados aos conventos? A alegoria da Fé que encimava no Rossio o palácio da Inquisição, não se passeou às costas de galegos, com archotadas e gentalha em apupos? Quanto a prelados, o arcebispo de Braga, octogenário e sem sair do quarto, foi mandado barbaramente para o Buçaco, o Patriarca e o Dom Prior-Mor de Cristo, expatriados, e os titulares das mais dioceses metidos quase todos em reclusão conventual.
Em 1808 os franceses, rapinando as alfaias eclesiásticas, respeitaram no entanto as urnas sagradas e as custódias. Mas os grandes filhos da Liberdade, com o serem da terra, portaram-se com outro desembaraço: - arrancaram aos santos os resplendores, as pedras preciosas aos vasos litúrgicos, deixando-os na expressão mais irredutível e por mercê especial ainda assim. Ah, a Liberdade, a Liberdade!
Vão para as galerias de S. Bento umas figuras de esgoto e penitenciária cobrir de vaias ignóbeis os poucos que no vocabulário tatuado encontram por engano uns restos de palavras que digam ordem. Há agressões, matam o tenente Soares ou o Ramiro Pinto. E a Liberdade veste-se de crepes, a Liberdade, de luto pesado, protesta, declama como Jeremias! Que querem? Já se sumiram há muito os «gritadores» que pejavam as câmaras de 22 e as seguintes, - aqueles mesmos que espancaram José Acúrcio das Neves e impunham silêncio à meia dúzia de criaturas que lá dentro se aprumavam com honestidade e independência. Com os anos, a Liberdade, coitada!, não se recorda do cadáver do conde de Basto, desenterrado em Coimbra pelas tropas constitucionais, em que a canalha das tabernas de Londres se entremeava com a matulagem arrepanhada no refugo da nossa sociedade - e por entre imprecações e horrores despedaçado de encontro às pedras da calçada. A Liberdade! A Liberdade!
Que pompas de linguagem a não dignificam em atitudes de pai-nobre, quando, a propósito da amnistia recente, se revolta contra a traição sem nome que persegue com sanha danada os encarcerados de ontem. Ah, como o tempo apaga até os espinhos da consciência! E os valentes de Évora-Monte que, supondo-se ao abrigo de uma convenção soleníssima, se viam atacados em Lisboa por mangas compactas de assassinos que os iam esperar ao Terreiro do Paço e nos quais sem dificuldades se reconheceriam os avós de quanto assalariado corria a maltratar os presos monárquicos de ultimamente? A Liberdade! A Liberdade! Se a república não é mais que a sua filha querida, com muito mimo nada e baptizada na insubordinação dos exemplos familiares! Não foi o Imperador apedrejado ao tornar da récita de gala em S. Carlos, quando se comemorava o triunfo definitivo da Carta? Não se tratara antes a rainha D. Carlota Joaquina de ex-cidadã rainha e se condenava odiosamente a sair do Reino só por não prestar juramento à constituição de 1822? Se a Liberdade não passava da máscara da Maçonaria, - da Maçonaria que se adiantara a receber Junot em Sacavém e o solicitara com ardoroso empenho para o trono português!
Valeu-se a calculada perfídia da querela dinástica e do sentimentalismo romântico. D. Pedro, dominado pelo figurino emancipador de Lafayette e Bolivar, tornou-se-lhe depressa o instrumento cego. Assentaram-se os arraiais com calma, sapando-se devagar os pilares da Monarquia. A república viria na cauda do cortejo, - escalada a esfera da governança, o descrédito e a persistência concluíam a empresa.
José Acúrcio das Neves é que profetizou o desastre que hoje nos carrega de dúvidas sombrias. Orando como procurador de Lisboa nas Cortes Gerais de 1828, bem alto a sua voz previra o desenlace inevitável do ludíbrio liberalengo. "Proclamadores sempiternos dos direitos do Povo, e da Representação Nacional", dissera ele respondendo à preposição do Bispo de Viseu, "logo que o povo manifesta os seus desejos por aclamações espontâneas, tratam de o sufocar, e sujeitar a seus caprichos. Logo que se cogita de reunir a legitima Representação Nacional, segundo as Leis, e usos da Monarquia, não há meio que não empreguem para obstar a esta reunião, como fizeram em 1820. Invocam hoje a Carta, como naquele tempo invocaram as cortes, e afectarão chorar a perda das nossas antigas Instituições, porque lhes serviria de degrau para proclamarem amanhã a Republica, como então proclamarão a soberania do Povo". Concordam agora que a Liberdade se mira na república, seu retrato vivo, não é assim? Tinha razão o bom desembargador que na história da economia nacional ocupa um lugar de relevo!
Pois a Liberdade falou. E falou com motivo no opúsculo do senhor conselheiro Aires de Ornelas, muito assustada não voltasse o Absolutismo com o seu acompanhamento de forcas e polés. Se em Portugal houvesse uma cultura média, não correria o Integralismo Lusitano o risco de lhe emaranharem as intenções. Assim, o poder pessoal inculca-se por poder absoluto. E, previdente, a Liberdade insinua o equívoco, desenrola-o, acarinha-o, enredando-nos mansamente nuns adjectivos lisonjeiros, numas falinhas brancas de perceptora adocicada.
Nós percebemos! O que a Liberdade quer, no fim de contas, é parlamento. O País que se confesse, o Rei que se entretenha com a lista civil. Eleições! Eleições! Os votos é que mandam, as urnas são soberanas. E eu entoo o responso célebre de Gobineau,— não sei de requisitório mais completo e mais oportuno. "Les libéraux tuèrent successivement toutes les royautés constitutionelles qu'on leur a confiées, - escreve o pontífice dos misticismos étnicos num livro póstumo [La Troisième République française et ce qu'elle vaut, Paris, Plon-Nourrit, 1907]. Autant on leurs en donnerait, autant ils en tueraient. Mais ils n'ont pas céssé un seul jour d'être enchantés d'eux mêmes, et leur confiance est à l'abri de tous les petits malheurs. Leur grande affaire c'est d'avoir des Chambres. Le reste doit être tenu por secondaire; Roi légitime, Roi par accident. Empereur, Republique, tout va, pourvu qu'ils aient des Chambres". Reconhece-se a mágoa íntima da Liberdade. Rói-a a nostalgia surda de S. Bento com as interpelações ruidosas e a vaga esperança duma pasta no futuro. É o arrivismo, por consequência, - de novo a instabilidade do Estado. Por isso a Liberdade se extenua, recompondo a antiquada oratória com juras fatais e prometimentos de aparato.
Maurras trazia-a em pesadelo. Não dormia, não sossegava. Pela boca de um pedantocrata entre os pedantocratas, descaíra em asseverar que lá pela teoria sempre merecera mais a república do que a Realeza. Com sorrisos desmaiados e cumprimentos contrafeitos, achando que excedera a risca, a Liberdade recolheu-se, depois da peregrina afirmação. E se porventura desconfiava que a instávamos deliberadamente, a Liberdade diluía-se em apropósitos de circunstância, esquivava-se a uma postura terminante. Hoje a Liberdade já se decide, é já outra, por dentro e por fora, com a brochura do senhor conselheiro Aires de Ornelas. "A Carta é nossa; conservemos o que é nosso". E a Liberdade fala, a Liberdade exulta, a Liberdade já não é Liberdade, é toda ela uma festa pegada!
A Carta, nossa! A Carta, reparadora da nossa tradição orgânica! É a tese do senhor conselheiro Aires de Ornelas, que a considera como um protesto das franquias particularistas da Raça contra o cesarismo administrativo do Marquês. Os meus estudos ensinam-me, bem opostamente, que nesse sentido se alguma coisa existe em Portugal, é a ignorada, mas formidável lei de 4 de Junho de 1824.
Pombal decretara apócrifa e sediciosa a doutrina do Dr. Francisco Vaz de Gouveia, por intermédio do Desembargo do Paço. Era o direito público que, dimanado da sociologia tomista, informava a construção filosófica da nossa Monarquia. Consignado pela texto falso de Almacave, viera a influir nos Estados de 1641 e o tratadista, expurgado pelos capelos josefinos, pertencia a uma fileira de autores notabilíssimos que, à roda da Feliz Aclamação, se revelaram com saber e com consciência. É a eles que nós vamos pedir as razões seculares da nossa Monarquia que, para se autorizar com as formas intelectuais, não carece em nada dos exotismos que a cada hora se nos alvitram num decalque passivo de quantas alíneas se inserem nos programas da Action Française.
Em João Pinto Ribeiro já se desfiam com transparência os fundamentos municipalistas da nossa Realeza, que não é a realeza majestática do Rei-Sol, avocando a si a existência inteira do Estado, mas a realeza paternal de D. João II, inscrevendo-se pela Grei. É a Monarquia moderada, repousando-se na diferenciação regionalista e técnica (Concelhos e Corporações) e efectivando a unificação ao alto, pelo exercício forte das prerrogativas régias. É a Monarquia pura ou de poder pessoal, que consiste na limitação da actividade do Estado ao que lhe é próprio e constitui a sua função específica: - defesa externa, equilíbrio concentrador, representação dos interesses gerais no interesse superior do grupo que coincide com o interesse privado do dinasta.
Não se identifique Monarquia de poder pessoal com Monarquia absoluta. Lá onde a Monarquia de poder pessoal se orbita num mandato restrito, mas categórico e preciso, o Absolutismo, pelo contrário, enfraquece-se e torna-se inane pela hipertrofia que o constrange a invadir atribuições alheias, a envolver os pluralismos abundantes da sociedade numa apertada contenção burocrática. O Estado é um órgão, a sociedade, um organismo. A sociedade é anterior, o Estado surge apenas como um elemento de duração e continuidade, rematando a jornada ascendente de outros núcleos já de natureza hierárquica. A interpenetração dos vários egoísmos sociais num acordo perpétuo de tendências e finalidade, é que assinala o conteúdo exacto do Estado. É o Estado que deve servir a sociedade, não é a sociedade que deve servir o Estado. Nas monarquias de poder pessoal, o Estado confina-se na observância meticulosa das funções que lhe são próprias, não as exagera, nem desvirtua. É normal e coerente consigo mesmo. Nas monarquias absolutas, percursoras do estadismo moderno, o Estado perverte-se, é uma tumescência patológica. Nas monarquias de poder pessoal, desembaraçando-se o Rei das gestões partidárias e parlamentares, restitui-se idoneidade e suficiência ao agente duma necessidade determinada e circunscrita, que de outro modo se não satisfaz, com perturbação gravíssima para o agregado. Nas monarquias absolutas, que andam logicamente substituídas pelos sistemas mistos e pelas democracias políticas, a confusão das competências debilita o trabalho coesivo do Estado e provoca o sequestro das diversas energias institucionais e económicas, nas malhas duma fiscalização extreme e artificial.
Ao Município o que é do Município, à Província o que é da Província, ao Estado o que é da Nação, - eis o catecismo da Monarquia pura ou de poder pessoal. Já não sucede assim com as monarquias absolutas e com as monarquias ditas liberais. Ultrapassam os domínios da acção respectiva e engendram a sufocação e a desordem no aglomerado, simultâneamente congestionado e paralítico. Ao menos, no Absolutismo a responsabilidade corporiza-se ainda num, com vida e figura humana. Desmoronado ele, tudo se repõe na justa medida. Mas nas situações baptizadas de representativas ou parlamentares, o mito da Vontade Nacional inventa a tirania absurda das clientelas e abastece com o mais abusivo anonimato, o incomensurável polvo da centralização, em que o mal se padece, mas não se individualiza. É o Estado todo poderoso, metafísico, impessoal.
Para que um país se julgue livre e em autonomia se governe e cuide, é imperioso reduzir ao mínimo a interferência do Estado no curso ordinário da sociedade. Só a monarquia, mas a monarquia de poder pessoal, praticando as qualidades características da Realeza, é que nos desenvencilha, duma vez para sempre, dos profissionais estanhados da Salvação Pública. Expulse-se o Estado dos relativismos demográficos, que ele, geométrico, rectilíneo, pretende uniformizar rigidamente, e a espontaneidade administrativa há-de florir na maior plenitude do espírito regionalista. Arranquem-se à garra sôfrega do Estado as múltiplas modalidades associativas, que ele atrofia na mais cerrada das regulamentações, e o difícil problema obreiro assume de pronto a equação procurada. O que se volve em lei inadiável, é a imediata devolução dessa força extravasada às molduras correspondentes, o que só se obterá pela estabilização indiscutível do Poder na posse duma família que o conduza em bem hereditário.
Desde que Marcel Sembat soltou do campo radical o famoso conselho, - Faites un roi, sinon faites la paix, conselho que na conjuntura presente a França vai aceitar à certa, eu não conheço reabilitação mais estrondosa da Monarquia que a contida no último livro do sindicalista Édouard Berth, Les méfaits des intellectuels (Marcel Rivière, 1914). Ai se proclama a virtude mantenedora da Realeza como o único meio de se viabilizar a liberdade, pela inserção de cada valor colectivo nos quadros que por índole e destino lhe hajam de caber. É a destrinça das funções específicas do Estado, localizando-se no terreno legítimo pela custódia da Terra e pelo decoro da Pátria.
Faites un roi...- ouçamos a voz insuspeita. É que no exame de consciência em que se empenha o pragmatismo admirável da nossa era, está-se recuperando agora o sentido oculto das coisas, - uma regra de beleza moral amanhece pelo mundo, descobrindo de novo as eternas verdades obliteradas. Pela Inteligência, e segundo os bons preceitos positivistas, desentulhara Charles Maurras o caminho perdido da velha experiência dos povos. O apelo às potências insofismáveis do sentimento aquece de frémitos divinatórios o intuitivismo de Bergson. E é a filosofia económica de Sorel e Berth que encerra o ciclo revisionista pela apologia da Disciplina e da Tradição. Em nome da Disciplina e da Tradição se bate a Europa em peso, revigorando o instinto imortal do Sangue e o aprendizado maravilhoso do Sacrifício. Da guerra fratricida vai surgir aquela paz que se apoia nas conquistas supremas do Esforço. A Fé renascerá nas virtudes ancestrais da Obediência e da Dedicação. Soa o derradeiro momento da mentira revolucionária, - a democracia, em toda a banda no crepúsculo, não tarda a enclavinhar-se no vasquejo final. Faites un roi... E são os avançados da grande caravana que lançam o grito reconciliatório. A serpente simbólica, recurvando-se, recurvando-se, enrola-se em anel, toca uma ponta com a outra, como nos ritos herméticos. A catástrofe tremenda leva-nos direitos a Deus,- a espada prelimina o triunfo da Cruz. No alto da colina romana o Homem-Branco reza. Não será o Homem-Branco o ramo de oliveira que os tempos nos promete! Oh, irmãos, faites un roi! As instituições do Passado não são boas por serem antigas, mas são antigas por serem boas, - já enunciava o senhor de Bonald. Chega o castigo do longo e criminoso desvio. A hora da expiação, ó irmãos, faites un roi! A herança do Condestabre revive no Exilado de Richmond, n’Ele reaparece a majestade esvaída da Coroa, protegendo os Lares e os Altares, os Sepulcros e os Berços. Nos liberi sumus, Rex noster liber est et manus nostrae nos liberaverunt! Recobre-se a fereza do brado heróico de outrora. Recita-nos o dia que vem uma apocalipse de espanto e hecatombe. Para que a tropelada dos cavaleiros inimigos nos não enterre com a Pátria, morra-se com honra, gritando o dever, para que a Pátria, livre, nos enterre a nós.
II
Ao que nos trouxeram os frutos enganadores da Liberdade! Eu comparo-os àqueles que o melancólico René foi achar nas ribeiras do Mar do Sal. Vistosos, coloridos, convidando o apetite, por dentro só eram cinza desfeita, - uma poalha delida que abalava em farelos. Guardavam consigo um germe de morte, como seus parentes chegados, os pomos maléficos da Revolução. A Liberdade de 1830 é a capa doirada com que se disfarçam e se tornam terrivelmente perigosos. E no momento em que a Europa se depara, face a face, com a presença austera da História, a Liberdade fala, a Liberdade exulta, a Liberdade quer parlamentos. A Monarquia do poder pessoal assusta-a - a Monarquia que vai provar-se na guerra que avança e que é o fiel da balança de amanhã no congresso internacional das Pazes. Mas as garantias individuais? - declama a Liberdade, ansiando pelo Homem dos Imortais Princípios, sem se lembrar de que o Homem não existe, que só existem homens.
As garantias individuais! E em que é que a Liberdade as assegura, abandonando o cidadão das apóstrofes tribunícias aos atropelos oligárquicos dos clans? Na verificação dum mal irremediável, o parlamentarismo declina, condena-se irremivelmente. Os votos unânimes sobem para a intervenção pessoal, convença-se disso a Liberdade. Não vemos nós do lado de lá do Oceano o presidente Wilson apresentar-se ao Congresso e declarar num livro, célebre ele também (La nouvelle liberté. Tradução francesa. Paris, 1913) que o chefe do Estado não é uma sombra, uma abstracção, um mestre de cerimónias, como clamara Casimiro Périer ao demitir-se? No intenso movimento de opinião que antecedeu a escolha de Raymond Poincaré para a suprema magistratura do seu país, o publicista Henry Leyret (Le President de la République. Armand Colin, 1913) interpretava bem o sentir geral quando se pronunciava pelo acesso de um presidente que, usando com vigor dos seus direitos, não se dirigisse nem em parasita nem em paralítico. Até as próprias repúblicas se lançam para a ponderação centrípeta de um só, que se volva de mandalete dos partidos em fiscal atento e independente das direcções governativas!
A letra expressa dos códigos muda-se, todavia, em palavra morta, em cláusula caduca, tanto nos Estados-Unidos, onde o veto se inclui na constituição, como em França, com as atribuições reais que revestem a presidência. Em vão Woodrow Wilson apela para o povo. O Congresso continua sendo a presa dos trusts que por intermédio dos bosses assoldam e ilaqueiam o Legislativo. Não obstante os acentuados merecimentos que lhe imprimem uma fisionomia contornada, Raymond Poincaré é hoje um simples detido dos radicais, o poincarisme faliu na impossibilidade congénita da república se reconciliar com as tendências históricas da nacionalidade. O que se deduz de aqui, como o mais ressaltante dos corolários, é que os dois poderes não coexistem em equilíbrio em nenhuma parte. Um subordina fatalmente o outro, cabendo a sujeição ao que devera ser autónomo e inalterável.
Eis o que sucede em repúblicas, sim! mas em repúblicas cuja constituição concede iniciativa ao chefe do Estado. O que faria em Portugal com o rei fainéant, com o rei que reina mas não governa? Os resultados andam na lembrança de quantos somos. A difamação cobriu a Dinastia, os partidos constitucionais esfalfaram-se nas pasquinadas mais violentas contra a Coroa. A república agora não é senão o gesto deles, atirando a pedrada com ar menos composto. Governar é aguentar-se no poder! - ditava Guizot aos burgueses de Julho, aos entusiastas do Cartismo, de pupila revirada e pantalona batida. Governar é aguentar-se no poder - e Lafayette primava com os barões da Finança, crescendo para o comando da sociedade. Não foi outra a máxima da nossa monarquia constitucional, para que em tudo se ajustasse com a estereotipia gaulesa. Percorram-se-lhe as longas memórias em que o embuste se casa com o peculato, e ver-se-á o conselho cínico de Guizot campando em mestre, desde a estreia do ministério dos ladrões aos trinta dinheiros do senhor Teixeira de Sousa. E ainda a Liberdade pretende trajar de pessoa séria! Se o Marquês introduzira o estadismo abstracto dos doutores protestantes, a Carta não se escusou a receber-lhe a herança, aguçando a estrangulação burocrática e pondo como dogma a omnipotência do Estado, não já encarnada na personalidade do Rei, mas, o que era pior! diluída na mesma que a delegava por via da urna.
A estrutura agrícola e comunitária do País sofreu um abalo de terramoto quando Pombal lhe quis impor, a vivo custo, o molde capitalista e industrial. Foi uma tentativa desastrada que se remediou um tanto com o bom senso do reinado imediato, graças à influência dos fisiocratas da Academia nos recintos da governação. Mousinho da Silveira retoma, porém, a lição suspensa do ditador, proíbe-se em nome da Liberdade a organização colectiva do Trabalho, e depois com a abolição dos vínculos e o critério desarreigante das leis da desamortização, empurra-se Portugal para uma desgraçada senda de individualismo económico, cujas consequências eu me abstenho de enumerar por serem do alcance de todos. A Carta, restauradora da nossa tradição! Com franqueza declaro que não sei a que luzes inéditas o senhor conselheiro Aires de Ornelas recorre para emitir um parecer tão arrojado como insubsistente! Pois se a Carta não ia além duma mistura da constituição portuguesa de 1822 com umas variantes pedidas à constituição francesa de 3 de Setembro de 1791. Cotejem-se os originais. A cópia é tão servil, tão despreocupada, que eu não invoco mais elementos concretos para contestar a engenhosa tese. Acreditem que me dá que pensar a Carta, restauradora da tradição nacional! A constituição de 22 já em si não passava dum decalque arrastadíssimo da espanhola de 1812. Com semelhantes antecedentes, por que milagre a Carta se transfigurara nessa operária afanosa do bem-estar de Portugal? É um enigma tão profundo, tão cerrado, como os mistérios tremendíssimos de Eleusis! Oh, a lei de 4 de Junho de 1824, mais velha que a Carta dois anos, é que merece o nosso respeito, é que se deve saudar como uma data de resgate que os destinos, infelizmente, não deixavam cumprir!
Eu me explico. Derribada em Vila-Franca a situação de abuso que cavalgara o reino em peso e que tinha coacto D. João VI pela ameaça permanente dos clubes secretos - oh, Liberdade, os carbonários descendem de longe ! - procurámos revalidar as nossas antigas instituições, para em harmonia com elas se acudir às tendências indebeláveis da época. A lei de 4 de Junho de 1824 surge do sensatíssimo propósito com fim à promoção da felicidade pública, não por caminhos novos, incertos, e perigosos, conforme a própria letra; «nem por meio de reformas precipitadas e destrutivas, as quais conduzem facilmente à mais fatal subversão, como a experiência tinha desgraçadamente mostrado; mas por caminhos já conhecidos, e trilhados, e por melhoramentos progressivos na administração do Estado».
De facto, o ressurgimento da alma concelhia que se opera à roda de 1828, é animado pelo bafejo largo daquele admirável impulso. Portugal, terra-planada a pausa dos séculos, conseguia reencontrar-se com as seivas adormecidas do seu génio de maravilha. É uma solução espontânea a que a Raça se dispõe a trazer aos embates turbulentos do «coração-sensivel». «Nada de câmaras à Francesa, ou à Inglesa, nada de macaquices - bradaria o furibundo Fr. Fortunato de S. Boaventura no arrevesado Mastigóforo, Tudo à Portuguesa».
Ora a genealogia da Carta não corresponde aos desejos da Nação que se sentia com recursos para resolver a querela dos Ultras com os Regeneradores. Bentham mandara uns bilhetinhos para o Brasil, o Grande Oriente transigiu um pouco, e lá se assentou, consoante o modelo imperial, numa câmara alta com pares em vez de senadores, à moda da Restauração. Como ficávamos fora da formidável síntese política do legislador de 24!
Há-de inserir-se aqui o ignorado diploma. Não tornarão a acusar-nos de imitadores da Action Française, - estejam certos disso! É pertença do nosso velho direito público o património de ideias que o Integralismo defende. Não foram importadas como as aquisições constitucionalistas, que são traduções mal limadas das ideologias perplexas dum Benjamin Constant desse Benjamin Constant que se estadeava em busto nas Constituintes de 22, ó querida Liberdade, que bastante te anojaste quando o feu Mr. Jaurès tomou cadeira entre os comparsas da outra - da novíssima de 1911! Não precisamos de aprender em Charles Maurras o que os nossos mestres da Contra-Revolução nos ensinam em estilo soante e bem castiço. Um senhor Alpoim que para aí ejacula lugares-comuns e subserviências sórdidas, é que vai arrepanhar em Michelet, relegado há muito para o in pace da trapalhada inútil, a erudição folhetinesca de jornaleiro obsequioso de quem lhe quiser pagar. Se os mais espertos vêem ainda em Michelet, como é que o grosso da récua nos há-de entender?
Admitia a lei de 4 de Junho de 1824 a representação dos vários interesses regionais e profissionais, porque aceitava a linhagem orgânica dos nossos três Estados. Preparava-se o regresso ao determinismo histórico da Grei. E assim o movimento que se adjectiva de absolutista com Senhor Rei D. Miguel é que, em verdade, traduzia a reacção dos povos contra o excessivo centralismo pombalino. Devolviamo-nos à Monarquia das Cortes Gerais e da Casa dos Vinte-e-Quatro, - à Realeza paternal dos Concelhos e das Corporações. Absolutismo equivale em tal altura a anti-parlamentarismo. Com a rubrica do caluniado D. João VI, a referida lei de 1824 lá assevera que só em cabeças desvairadas, e corrompidas demora que a expressão de Rei absoluto que por êste modo governa os seus Povos possa ter outra inteligência, que não seja a que sempre teve de Rei independente e que não reconhece superior sobre a terra. Justamente se define a nossa Monarquia como uma "monarquia moderada por leis sábias... segundo as quais se administra a Justiça, segura-se a cada um o seu direito, castigam-se os crimes, e se decidem os pleitos entre os indivíduos de todas as classes, por meio dos Ministros, e Tribunais em que se apura a verdade, e a justiça, e se aplica a Lei..." Aonde é que se descobrem vestígios do quero, posso e mando transitado em julgado? O quero, posso e mando do juízo corrente é a Pombal que cabe, - ao Pombal do poder certo, plenário e absoluto, com que reforçava inalteravelmente os formulários oficiais do Estado.
A condenação da obra revolucionária inscreve-se na lei de 24 com uma passagem que é memorável. Não são diversos os ditames da demopsicologia quando nos elucida acerca da mentalidade jacobina, nem com outros motivos a nossa inteligência nos atira para o bom combate. «...Não pode ser útil a uma nação aquela forma de govêrno, que não tiver a maior conformidade com o seu carácter, educação, e antigos usos, e será sumamente arriscada, e quási sempre impraticável a tentativa de a introduzir, e de querer reduzir a um costume geral os costumes particulares das nações...» Impressiona o realismo persuasivo desta observação. Ele é o indicio claro da consciência e do tino que presidiam às nossas lutas instauradoras. A insídia maçónica é que embrulhou em nódoas infamantes a renascença pátria que, extraindo as raízes da curiosidade naturalista dos académicos do século XVIII, nos criou com lentidões reparadoras a temperatura apta ao florescimento dos nossos recursos nativos. Resistimos com sete-fôlego à saraivada grossa das invasões. Na crise, o povo enrijou-se e o consórcio da Nacionalidade com o Estado estabeleceu as primeiras bases. Na paz e na guerra, D. João VI é um nome cuja reabilitação encarna uma das obrigações mais inadiáveis do Integralismo Lusitano. Significa a reserva prudente, salvando-nos pela retirada para o Brasil da vergonha suprema de um rei francês, ao mesmo tempo que nos acautela o futuro com alterações reflectidas no nosso sistema económico e administrativo, transtornado de todo pelos apriorismos unilaterais do Marquês. A Marinha de Guerra subiu em peritos e vasos, subiu em rendas expansão o comércio nacional. Premedita-se a revisão dos forais, facilita-se o acesso da justiça, a agricultura prospera, prosperam as finanças públicas, - das medidas de higiene às de assistência, do ensino profissional à desoneração da propriedade, as atenções continuadas da Coroa desenvolvem-se em providências que são um testemunho vivo da honrada vontade que as inspirava. Veio a influência estrangeirista sacudir de tumultos o nosso lento rejuvenescer. Tão entranhado se mostrava ele, que a carta de lei de 4 de Junho remata-lhe as jornadas tateantes com a compreensão construtiva da estrutura e preferências da Nacionalidade. Por isso Évora-Monte não é uma alva, - é antes um epílogo prematuro e funesto.
Era a Monarquia pura de Quatrocentos o caminho de novo retomado. Estão à vista a índole e a capacidade dessa Monarquia. Os seus teóricos não lhe apontam outro fundamento que não seja o da utilidade colectiva,— a utilidade colectiva é em José Acúrcio das Neves, em Faustino José da Madre de Deus, em José Agostinho de Macedo, em Gouveia e tantos mais, a razão principal e eficiente da Soberania. Já o fora em Francisco Vaz de Gouveia, condenado cem anos depois de morto, pela jurisprudência pombalina. O Marquês anatematizava assim a tradição representativa da Raça, expulsando os jesuítas que a preconizavam através dos ensinos de São Tomás e dando como exclusivo título do poder real a hereditariedade pura e simples. Recuava-se para a concepção germânica da Realeza e o estadista que não fazia mais que pôr em cópia os modelos barrocos de Catarina da Rússia e de José II, é agora o grande epónimo que se reverencia como precursor da soberania do Povo! Pelo contrário, a lei de 24, repelindo os males que tem resultado sempre da introdução de inovações fundadas em teorias vãs, e de constituições compiladas precipitadamente, e de ordinário rejeitadas pela experiência, restaurava as extintas Cortes Gerais com a declaração formal de que existia nas mesmas Cortes uma verdadeira representação Nacional, em que o Povo é representado por seus Procuradores : - o clero, e nobreza, por aqueles de seus Membros que nela têm voto». Não me dirão agora como é que a Carta reatara a sequência da nossa linha institucional?!
O senhor conselheiro Aires de Ornelas reputa-a, sem dúvida, como descendente directa das velhas Cortes Gerais. Sem repetir as fontes exóticas que conformaram a Carta, contento-me em afirmar que o senhor conselheiro Aires de Ornelas incorre no engano de José Liberato Freire de Carvalho (Ensaio histórico-político sobre a Constituição e o Governo do Reino de Portugal. Paris, 1830), que se socorreu de tão contraditória origem para a justificação dos seus passionalismos constitucionais. Esquece-se o senhor conselheiro Aires de Ornelas de que o mandato das nossas antigas Cortes se cingia em vigorosos termos imperativos e que se apoiava em ordens ou classes com destino à vigilância e à defesa dos interesses comuns. Apenas em matéria tributária e em questões externas, de alienação de território, de guerra ou de paz, de escolha sucessorial, etc., é que possuíam voto deliberativo. Em tudo o mais, apresentavam seus capítulos que o Rei deferia ou não, mantendo-se eles no estricto campo de consulta ou de parecer. A base da representação revela-se-nos, portanto, pluralista, conta-se por grupos e não por cabeças, ao passo que a representação fixada pela Carta assenta exclusivamente no indivíduo alegórico do catecismo gaulês e não determina limites aos deputados, porque são a soberania em exercício.
Não se confunda soberania nacional com utilidade colectiva. São conceitos diversos que não se sinonimizam. A soberania nacional advém-nos com as melancolias do Ermo, é filha das exaltações ideológicas do Coração sensível. A utilidade colectiva informa e ilumina toda a nossa doutrina monárquica, lá desde os tempos remotos do Regente, pelo menos. Pela soberania nacional, o Rei é como um acto de corpo presente, atribuindo aparências a um sofisma sem nome; pela utilidade colectiva, o Rei é soberano, como garantia que é dessa mesma utilidade. A diferença reside toda neste ponto. A nossa Monarquia, como monarquia concreta de poder pessoal, é uma monarquia com razão na Grei, não foi mais que uma judicatura inviolável do bem comum.
Pola ley e pola grey! - se batera aquele alto monarca que lhe encarnou o espírito, como nenhum outro. Pola grey! — jurava o príncipe D. Teodósio ao juiz do povo, quando o convocou a palácio para lhe dizer por quem seria. A Realeza e os Concelhos ajudam-se, completam-se, marcam um pacto eterno desde a hora em que, à sombra da azinheira sagrada da Raça, as beetrias da Reconquista elegeram um príncipe para seu regedor vitalício. Mantenha-vos Deus, Senhor! - saudavam os de algum dia à passagem da mulinha empenachada do Rei, como de homens bons para homem bom. Os do Suajo sentaram-se em cima dos grossos capotes enrolados quando por cortesia El-Rei mandou que tomassem assento na sala despida de tamboretes. Guarda-se em mais de uma anedota o carácter familiar da antiga Monarquia. Pastor não mercenário, - eis como em cortes os lavradores do Reino trataram o Rei duma vez. Não se daria em forma mais ingénua e mais incisiva a teoria do egoísmo privado do dinasta ao serviço da utilidade geral dos Povos! Que claro que olhava um nosso praxista, ao escrever que, enquanto o sistema representativo se achara nos bosques (alusão às assembleias primitivas dos germanos e celtas), a Monarquia não se achou,- estava connosco na casa paterna!
Não é pois a monarquia da Carta, a monarquia gloriosa da Raça - a Monarquia que emancipava os vilões dos concelhos, chamando-lhes cidadãos nas Cortes de Elvas de 1361 e que não consentia com D. Afonso II que se executasse sentença de morte sem que corressem primeiro vinte dias sobre ela. A Monarquia das Cortes Gerais, realizava o conceito exacto da Liberdade, porque «un pays n'est pas libre, comenta Babeau (La Province sous l'ancien régime), par cela qu'il ne paye pas de impots, car, à ce titre, il n'y aurait pas de pays libre, mais un pays est libre, lorsque le principe de l'impôt accepté, il le vote et en a le contrôle. Não continham alcance diverso as passadas reuniões dos Três Estados do Reino. Funcionavam em soberanos quando decidiam matéria tributária. Com a monarquia da Carta, porém, enunciada em tiradas estridentes uma liberdade de aclimatação, os povos viram-se coartados do seu legítimo direito. Luz Soriano jogou a vida pela Carta, é por isso mesmo um depoente insuspeito. Escrevia ele já em 1858 num opúsculo notável, - Utopias desmascaradas do sistema liberal em Portugal, que «o parlamento, devendo ser o fiscal da bolsa do povo, é o que pela sua parte está sempre pronto para sancionar todos os desvarios financeiros dos ministros, aditando-lhes até outros de novo. A natural consequência de tudo isto, prossegue em outra passagem, é ser a nação vitima expiatória das espoliações, e vexames, que os diferentes partidos lhe têm querido fazer por motivos de interesse, e capricho particular, ou seja dos ministros, ou dos deputados, sem ao menos lhe ser dado apelar para o poder da coroa, como nos antigos tempos». O que era feito da recusa viril dos Povos, - do Senão, não! enérgico de outrora? Afogara-o a Carta em ondas largas de liberalismo.
A monarquia da Carta é assim a realeza à bon marché do sarcasmo doloroso de Balzac,— é a monarquia bastarda e cosmopolita, sobrepondo a ilusória vontade da Nação, interpretada pelas urnas, à intervenção sequestrada do Rei. O Padre António Vieira, pregando uma vez do Bom Ladrão na Misericórdia de Lisboa, dissera que «nem os Reys podem hir ao Paraizo sem levar consigo os ladroens, nem os ladroens podem hir ao inferno sem levar consigo os Reys». Se eu houvera de ditar o epitáfio dos nossos oitenta anos de constitucionalismo torpe, iria pedir ao grande jesuíta a sua máxima profunda. Ela castiga a miséria moral de um ludibrio que, sem elevação nem chama generosa, está inteirinho e direito, de corpo e alma, na frase cínica de Guizot.
Hurrah por Doni Marii! - estrugiram os ecos da costa, ao desembarcar a expedição de D. Pedro. Com o sintoma da mentira que nos ganhava, os mercenários de Shavu e de Hodges atingiam o solo português bem antes de o tocarem os poucos naturais que vinham com eles. E ainda nós teremos de genuflectir à Carta que Francisco Alves, um brasileiro, redigiu e que Stuart trouxera no bolso, depois de pagar a preço de oiro as influências afectivas do Imperador? Oh, a Carta é o fermento nefasto do Absolutismo, assumindo a maioridade e dissimulando-se em sorrisos refalsados! Ruim versão de mal assimiladas ideologias, a ênfase teórica de Pombal prepara-a de longe, abre-lhe as portas de par em par. Transpõe-se depressa a distância que separa uma da outra. A hirta monarquia josefina é o Estado omnipotente, consubstanciando-se na pessoa do monarca e volvendo-se este em exclusivo eixo da sociedade por obra e graça duma inversão doentia. A contrafacção monárquica da Carta são os defeitos do cesarismo anterior, agravados pela irresponsabilidade em que se dilui a noção de Soberania.
Se a diferença não consegue vincar-se, eu acrescentarei que a monarquia de poder pessoal, intensificando a autoridade do Rei adentro da actividade própria, fica abonada ao longo da nossa história por episódios de um sabor singularíssimo. Enquanto Pombal centraliza e detém o agregado num hiato permanente, sem admitir a mais leve iniciativa particularista, com a Monarquia pura, nós sabemos a resposta da Casa dos Vinte-e-Quatro ao emissário de D. Pedro II, por se entremeter a Coroa nas decisões dos mesteres: - Esta casa é de vinte-e-quatro e não cabem cá vinte-e-cinco!
A encarnação vigorosa desse tipo perfeito de governo é D. João II. Não se conglobe o autoritarismo do varão insigne de Quatrocentos com a ditadura impertigada do Marquês. O Marquês sujeita Justiças, Concelhos e Corporações à acção discricionária do Estado. D. João II distingue com presentes de valia os magistrados que sentenciaram contra ele em certa causa. Um houve até que em linguagem desimpedida lhe bradou que fosse servido ir-se da casa da audiência, para que não se viesse a murmurar que o Rei influíra no ânimo dos julgadores com a sua presença ali. É a apetecida independência do poder judicial, que desde que se formulou nos códigos nunca mais teve vida que prestasse.
O Rei era, com efeito soberano, mas a soberania advinha-lhe das funções que desempenhava, como ponderador supremo dos vários egoísmos colectivos, colocados em acordo perpétuo. Ouçamos um tratadista: «Assim como pelo direito Romano a entrega era quem ratificava os contratos, da mesma sorte na Monarquia Portuguesa o juramento do Rei he o que lhe imprime, para assim dizer, o caracter da Soberania. He por isso que o Rei presta o juramento antes que o Povo preste o outro, pelo qual promete obediência, e fidelidade ao Rei, este juramento, que o Povo Português dá, logo que o Rei dá o seu, chama-se de Preito, e Homenagem, isto he de Pacto, e Obediência, porque este he o acto visível, pelo qual o Povo declara a ratificação do pacto fundamental, e o reconhecimento da pessoa, pelo qual as Leis dão o direito de possuir o Throno. Dado este juramento, o Rei he soberano; e então o Povo vem prestar-lhe depois homenagem, e obediencia pelo Juramento de Preito, e Homenagem». Já o secretário de Estado Pedro Vieira da Silva observara a D. Afonso VI «que ainda que os Reinos pertencessem por direito de
sucessão aos soberanos, eles não podiam tomar posse do governo sem terem cumprido primeiro por um acto público as antigas leis e cerimónias da nação, pois a autoridade não se comunicava senão em virtude de semelhante acto que lhe servia de titulo para presentes e vindouros».
Cuido que as transcrições esclarecem com relevo, a inconversibilidade que vai da Soberania, delegada ao Rei por um mandato precário, à soberania plena e válida que se exerce em nome do bem comum. Nas solenidades da aclamação, com o recebimento dos selos do Estado, os nossos Reis obrigavam-se a proteger os povos, que lhe tributavam vassalagem, de seguida. Por alvará de 9 de Setembro de 1647, D. João IV ordenou que antes de alguém ser levantado como Rei de Portugal, jurasse primeiro guardar os privilégios, liberdades e franquezas dos nossos povos. Da interpenetração pacífica e constante dos vários interesses públicos, resulta o interesse soberano. É soberana a entidade que o significa e viabiliza, como no último número da Nação Portuguesao meu amigo e camarada José Pequito Rebelo acentua nitidamente. Pela competência da sua profissão, (oficio, expressavam-se os de ontem), o Rei conhece do supremo interesse em árbitro supremo. O supremo interesse é a defesa da terra, o arranjo financeiro, o prestígio externo. São para tais efeitos os povos ouvidos, como membros duma sociedade em que Rei e súbditos entretecem um corpo uno. São ouvidos apenas. Trata-se, porém, de interesses e não do interesse dos interesses que a Pátria simboliza. Logo os Povos decidem, porque têm idoneidade para isso.
É o regime da capacidade especializada. E note-se que a designação das velhas pragmáticas não é Povo, mas sim Povos, afiançando um reconhecimento instintivo das tantíssimas modalidades regionais e económicas de que um país se compõe. Não fala a lei de 4 de Junho no perigo que há em pretender reduzir a um costume geral os costumes particulares das nações? Oh , o Povo das apóstrofes grandiloquentes é uma encomenda recentíssima da Liberdade!
Como não há povo, e sim povos, também só há liberdades, e não Liberdade. A Liberdade abstracta dos princípios, arruinou-nos a Pátria, proclamou a república. É a Liberdade da Carta. As liberdades de lei de 4 de Junho, são as liberdades dos Concelhos, as liberdades de sempre, clamorando-se em Cortes, efectuando-se na prática. A hierarquia não se subvertia, como agora, por virtude dos direitos políticos do cidadão. A ordem social mantinha-se arrumada, o arrivismo ignorava-se. Dos capítulos das vilas nas assembleias dos Três Estados eu arranco dois excertos ao acaso. Um comprova o sentido de escalonação e probidade que preocupava em Quatrocentos os bons procuradores municipais. O outro é a condenação insofismável do sufrágio com toda a sua máquina viciosa a descoberto.
Nas Côrtes de Évora (1481-82 ) reclamaram os povos a D. João II que os mesteres não ocupassem a governança das vilas. Fundamentavam-se em «aristotilles», asseverando "que os grandes devem seer propostos aos meãos e eles aos baxos e assi que os maiores na Republica devem reger e governar e os meãos obedecer e ajudar e os mais baixos trabalhar e servir". "Reconhecida cousa - oh, que epígrafe candente para os espectáculos de hoje! - que os popullares não conhecem que cousa he politica nem sabem que cousa he homrra nem quando deve a homrra preceder o preveito nem podem distinguir antre as virtudes moraees soomete como homees atonitos cum tumultos e vozes vãas dam clamores de ora escolherem e ora imgeitarem e segundo que aas vozes amdam assi amdam e pois vosa reall Senhoria reconhece todo bem commum e todo virtuoso viver e bom reger e governar de vosos regnos cidades e villas deles com quall justiça com quall igoaleza com quall rezam pode comsentir que os bõos antiigos cidadãos e aquelles que grandemente conhecem e comservã voso serviço aiam de padecer sob a fraqueza e mimgoa pinuria e proveza do entender dos prebeos dos mesteres" [ Visconde de Santarém, Memória para a História e Teoria das Côrtes Gerais ].
É uma invectiva de vexame o grito que se eleva do fundo das fossas a azorragar a cobardia sem têrmos do minuto que corre. Na oratória bárbara dos mandatários dos Concelhos, ficou exarada há quinhentos anos toda u m a doutrina de ordem e selecção. «Os maiores na Republica devem reger e governar e os meãos obedecer e ajudar... Não renasce a experiência obliterada dos Avós na observação positivista dum Gustave Le Bon ? «L'élite d'un peuple crée ses progrés, les individus moyens font sa force, - destaco eu do breviário, - Aphorismes, em que o ilustre sociólogo condensa as ideias madres do seu pensamento. Veremos como as gentes de Elvas se lhe antecipavam, à data de 1498 , no repúdio terminante do sufrágio:
«...Item Senhor. Nesta Villa se custuma huma muj desordenada cousa a muj danosa ao bem commum a quall he quando sse fazem alguns apontamentos em camara pera fazerem emliçam dos officiaes do Concelho ou fazerem outra alguma cousa que compre aproll da dita villa assy os grandes fidalgos cavalleiros e escudeiros como todo ho outro pouoo dam vozes na dita camara e tanto val a voz do mais pequeno como a do mais grande. E taaes ha hy dos grandes que nos ditos ajuntamentos levam comsygo seus creados e apanigados e outros acostados, e os provocam a dar as ditas vozes como elles querem pello qual muitos homees sam metidos nos pellouros dos ditos officios que nam sam pera reger a villa e os que pera isso sam ficam defora e assy a villa he sempre mal Regida e governada, pedimos a uossa alteza que alguums uns nom sejam Reçebidos a dar voz saalvo os fidalgos cavalleiros escudeiros no que Vossa alteza no fará merçee.
«Outro ssy Senhor, pellas muitas afeiçooens que nesta Villa ha em ho tomar das vozes as emliçooens se fazem como non devem e a governança da Villa cahe em homeens que non sam autos nem pertencentes pera o dito cargo. E sse hy ouvesse Regedores perpetuus homees fidalgos e escudeiros homrrados a Villa serja mjlhor Regida pedimos a uossa alteza que sse enforme de dezaseis homees autos e pertencentes de booa conciencia e viuer e mais sem afeiçam a saber oito fidalgos e cavalleiros e outros tantos escudeiros homrrados e os faça Regedores perpetuus e cadanno sirvam quatro dos ditos dezasseis a saber dous fidalgos ou caualleiros e outros dous escudeiros no que Senhor Recebemos merçee» [Visconde de Santarém. Obra citada].
Assim as liberdades se protegiam por via da força centrípeta da Autoridade. Não admira, por conseguinte, que as Cortes Gerais, realizado um movimento de concentração real à roda de D. João II, se continuassem a congregar com o acatamento dos monarcas subsequentes. Depois de antanho, é que a soberania dos interesses, como fulcro do nosso direito político, assume as mais vigorosas linhas da sua fisionomia. Cortadas as arrogâncias jurisdicionais dos donatários, o Rei ao alto é bem o pastor não mercenário que em amor e cautela, conduz os povos. O egoísmo individual coincide com a conveniência colectiva. As Cortes Gerais asseguram a concordância. De modo que, quando a urgência não se compadece com a chamada dos procuradores municipais e surge a necessidade de se obterem novas prestações pecuniárias, o Rei que declara a guerra e fiscaliza a justiça, não ordena no entanto a capitação. Mandam-se enviados às câmaras principais do Reino e roga-se-lhe o aprazimento, sem o qual o tributo não chega a decretar-se. Évora negou-o duma ocasião a D. Manuel I. O vereador João Mendes Cecioso dá o exemplo, esquivando-se a aprovar o projecto do Rei, que era não sei que derrama sobre a colheita. Instado e ameaçado por D. Manuel, as palavras que o cidadão eborense lhe tornou, apregoam ainda agora nobreza e aprumo pelas crónicas fora. «Eu, Senhor, com quinhentos cruzados que tenho de renda, não necessito das vossas mercês, e como vos conheço por justo, não temo as vossas ameaças. Fazei, porém, o que quiserdes, que eu não mudarei de ditame, nem deixarei de dizer sempre, que quem vos dá esses conselhos é inimigo da patria, da honra, da consciencia e da alma!»
Era como se falava no tempo das liberdades. Como se fala no tempo da Liberdade, de maiúscula decorativa e arengas tronitroantes, que no-lo contem mais de sete décadas de parlamentarismo sem brio!
As garantias individuais! E em que é que a Liberdade as assegura, abandonando o cidadão das apóstrofes tribunícias aos atropelos oligárquicos dos clans? Na verificação dum mal irremediável, o parlamentarismo declina, condena-se irremivelmente. Os votos unânimes sobem para a intervenção pessoal, convença-se disso a Liberdade. Não vemos nós do lado de lá do Oceano o presidente Wilson apresentar-se ao Congresso e declarar num livro, célebre ele também (La nouvelle liberté. Tradução francesa. Paris, 1913) que o chefe do Estado não é uma sombra, uma abstracção, um mestre de cerimónias, como clamara Casimiro Périer ao demitir-se? No intenso movimento de opinião que antecedeu a escolha de Raymond Poincaré para a suprema magistratura do seu país, o publicista Henry Leyret (Le President de la République. Armand Colin, 1913) interpretava bem o sentir geral quando se pronunciava pelo acesso de um presidente que, usando com vigor dos seus direitos, não se dirigisse nem em parasita nem em paralítico. Até as próprias repúblicas se lançam para a ponderação centrípeta de um só, que se volva de mandalete dos partidos em fiscal atento e independente das direcções governativas!
A letra expressa dos códigos muda-se, todavia, em palavra morta, em cláusula caduca, tanto nos Estados-Unidos, onde o veto se inclui na constituição, como em França, com as atribuições reais que revestem a presidência. Em vão Woodrow Wilson apela para o povo. O Congresso continua sendo a presa dos trusts que por intermédio dos bosses assoldam e ilaqueiam o Legislativo. Não obstante os acentuados merecimentos que lhe imprimem uma fisionomia contornada, Raymond Poincaré é hoje um simples detido dos radicais, o poincarisme faliu na impossibilidade congénita da república se reconciliar com as tendências históricas da nacionalidade. O que se deduz de aqui, como o mais ressaltante dos corolários, é que os dois poderes não coexistem em equilíbrio em nenhuma parte. Um subordina fatalmente o outro, cabendo a sujeição ao que devera ser autónomo e inalterável.
Eis o que sucede em repúblicas, sim! mas em repúblicas cuja constituição concede iniciativa ao chefe do Estado. O que faria em Portugal com o rei fainéant, com o rei que reina mas não governa? Os resultados andam na lembrança de quantos somos. A difamação cobriu a Dinastia, os partidos constitucionais esfalfaram-se nas pasquinadas mais violentas contra a Coroa. A república agora não é senão o gesto deles, atirando a pedrada com ar menos composto. Governar é aguentar-se no poder! - ditava Guizot aos burgueses de Julho, aos entusiastas do Cartismo, de pupila revirada e pantalona batida. Governar é aguentar-se no poder - e Lafayette primava com os barões da Finança, crescendo para o comando da sociedade. Não foi outra a máxima da nossa monarquia constitucional, para que em tudo se ajustasse com a estereotipia gaulesa. Percorram-se-lhe as longas memórias em que o embuste se casa com o peculato, e ver-se-á o conselho cínico de Guizot campando em mestre, desde a estreia do ministério dos ladrões aos trinta dinheiros do senhor Teixeira de Sousa. E ainda a Liberdade pretende trajar de pessoa séria! Se o Marquês introduzira o estadismo abstracto dos doutores protestantes, a Carta não se escusou a receber-lhe a herança, aguçando a estrangulação burocrática e pondo como dogma a omnipotência do Estado, não já encarnada na personalidade do Rei, mas, o que era pior! diluída na mesma que a delegava por via da urna.
A estrutura agrícola e comunitária do País sofreu um abalo de terramoto quando Pombal lhe quis impor, a vivo custo, o molde capitalista e industrial. Foi uma tentativa desastrada que se remediou um tanto com o bom senso do reinado imediato, graças à influência dos fisiocratas da Academia nos recintos da governação. Mousinho da Silveira retoma, porém, a lição suspensa do ditador, proíbe-se em nome da Liberdade a organização colectiva do Trabalho, e depois com a abolição dos vínculos e o critério desarreigante das leis da desamortização, empurra-se Portugal para uma desgraçada senda de individualismo económico, cujas consequências eu me abstenho de enumerar por serem do alcance de todos. A Carta, restauradora da nossa tradição! Com franqueza declaro que não sei a que luzes inéditas o senhor conselheiro Aires de Ornelas recorre para emitir um parecer tão arrojado como insubsistente! Pois se a Carta não ia além duma mistura da constituição portuguesa de 1822 com umas variantes pedidas à constituição francesa de 3 de Setembro de 1791. Cotejem-se os originais. A cópia é tão servil, tão despreocupada, que eu não invoco mais elementos concretos para contestar a engenhosa tese. Acreditem que me dá que pensar a Carta, restauradora da tradição nacional! A constituição de 22 já em si não passava dum decalque arrastadíssimo da espanhola de 1812. Com semelhantes antecedentes, por que milagre a Carta se transfigurara nessa operária afanosa do bem-estar de Portugal? É um enigma tão profundo, tão cerrado, como os mistérios tremendíssimos de Eleusis! Oh, a lei de 4 de Junho de 1824, mais velha que a Carta dois anos, é que merece o nosso respeito, é que se deve saudar como uma data de resgate que os destinos, infelizmente, não deixavam cumprir!
Eu me explico. Derribada em Vila-Franca a situação de abuso que cavalgara o reino em peso e que tinha coacto D. João VI pela ameaça permanente dos clubes secretos - oh, Liberdade, os carbonários descendem de longe ! - procurámos revalidar as nossas antigas instituições, para em harmonia com elas se acudir às tendências indebeláveis da época. A lei de 4 de Junho de 1824 surge do sensatíssimo propósito com fim à promoção da felicidade pública, não por caminhos novos, incertos, e perigosos, conforme a própria letra; «nem por meio de reformas precipitadas e destrutivas, as quais conduzem facilmente à mais fatal subversão, como a experiência tinha desgraçadamente mostrado; mas por caminhos já conhecidos, e trilhados, e por melhoramentos progressivos na administração do Estado».
De facto, o ressurgimento da alma concelhia que se opera à roda de 1828, é animado pelo bafejo largo daquele admirável impulso. Portugal, terra-planada a pausa dos séculos, conseguia reencontrar-se com as seivas adormecidas do seu génio de maravilha. É uma solução espontânea a que a Raça se dispõe a trazer aos embates turbulentos do «coração-sensivel». «Nada de câmaras à Francesa, ou à Inglesa, nada de macaquices - bradaria o furibundo Fr. Fortunato de S. Boaventura no arrevesado Mastigóforo, Tudo à Portuguesa».
Ora a genealogia da Carta não corresponde aos desejos da Nação que se sentia com recursos para resolver a querela dos Ultras com os Regeneradores. Bentham mandara uns bilhetinhos para o Brasil, o Grande Oriente transigiu um pouco, e lá se assentou, consoante o modelo imperial, numa câmara alta com pares em vez de senadores, à moda da Restauração. Como ficávamos fora da formidável síntese política do legislador de 24!
Há-de inserir-se aqui o ignorado diploma. Não tornarão a acusar-nos de imitadores da Action Française, - estejam certos disso! É pertença do nosso velho direito público o património de ideias que o Integralismo defende. Não foram importadas como as aquisições constitucionalistas, que são traduções mal limadas das ideologias perplexas dum Benjamin Constant desse Benjamin Constant que se estadeava em busto nas Constituintes de 22, ó querida Liberdade, que bastante te anojaste quando o feu Mr. Jaurès tomou cadeira entre os comparsas da outra - da novíssima de 1911! Não precisamos de aprender em Charles Maurras o que os nossos mestres da Contra-Revolução nos ensinam em estilo soante e bem castiço. Um senhor Alpoim que para aí ejacula lugares-comuns e subserviências sórdidas, é que vai arrepanhar em Michelet, relegado há muito para o in pace da trapalhada inútil, a erudição folhetinesca de jornaleiro obsequioso de quem lhe quiser pagar. Se os mais espertos vêem ainda em Michelet, como é que o grosso da récua nos há-de entender?
Admitia a lei de 4 de Junho de 1824 a representação dos vários interesses regionais e profissionais, porque aceitava a linhagem orgânica dos nossos três Estados. Preparava-se o regresso ao determinismo histórico da Grei. E assim o movimento que se adjectiva de absolutista com Senhor Rei D. Miguel é que, em verdade, traduzia a reacção dos povos contra o excessivo centralismo pombalino. Devolviamo-nos à Monarquia das Cortes Gerais e da Casa dos Vinte-e-Quatro, - à Realeza paternal dos Concelhos e das Corporações. Absolutismo equivale em tal altura a anti-parlamentarismo. Com a rubrica do caluniado D. João VI, a referida lei de 1824 lá assevera que só em cabeças desvairadas, e corrompidas demora que a expressão de Rei absoluto que por êste modo governa os seus Povos possa ter outra inteligência, que não seja a que sempre teve de Rei independente e que não reconhece superior sobre a terra. Justamente se define a nossa Monarquia como uma "monarquia moderada por leis sábias... segundo as quais se administra a Justiça, segura-se a cada um o seu direito, castigam-se os crimes, e se decidem os pleitos entre os indivíduos de todas as classes, por meio dos Ministros, e Tribunais em que se apura a verdade, e a justiça, e se aplica a Lei..." Aonde é que se descobrem vestígios do quero, posso e mando transitado em julgado? O quero, posso e mando do juízo corrente é a Pombal que cabe, - ao Pombal do poder certo, plenário e absoluto, com que reforçava inalteravelmente os formulários oficiais do Estado.
A condenação da obra revolucionária inscreve-se na lei de 24 com uma passagem que é memorável. Não são diversos os ditames da demopsicologia quando nos elucida acerca da mentalidade jacobina, nem com outros motivos a nossa inteligência nos atira para o bom combate. «...Não pode ser útil a uma nação aquela forma de govêrno, que não tiver a maior conformidade com o seu carácter, educação, e antigos usos, e será sumamente arriscada, e quási sempre impraticável a tentativa de a introduzir, e de querer reduzir a um costume geral os costumes particulares das nações...» Impressiona o realismo persuasivo desta observação. Ele é o indicio claro da consciência e do tino que presidiam às nossas lutas instauradoras. A insídia maçónica é que embrulhou em nódoas infamantes a renascença pátria que, extraindo as raízes da curiosidade naturalista dos académicos do século XVIII, nos criou com lentidões reparadoras a temperatura apta ao florescimento dos nossos recursos nativos. Resistimos com sete-fôlego à saraivada grossa das invasões. Na crise, o povo enrijou-se e o consórcio da Nacionalidade com o Estado estabeleceu as primeiras bases. Na paz e na guerra, D. João VI é um nome cuja reabilitação encarna uma das obrigações mais inadiáveis do Integralismo Lusitano. Significa a reserva prudente, salvando-nos pela retirada para o Brasil da vergonha suprema de um rei francês, ao mesmo tempo que nos acautela o futuro com alterações reflectidas no nosso sistema económico e administrativo, transtornado de todo pelos apriorismos unilaterais do Marquês. A Marinha de Guerra subiu em peritos e vasos, subiu em rendas expansão o comércio nacional. Premedita-se a revisão dos forais, facilita-se o acesso da justiça, a agricultura prospera, prosperam as finanças públicas, - das medidas de higiene às de assistência, do ensino profissional à desoneração da propriedade, as atenções continuadas da Coroa desenvolvem-se em providências que são um testemunho vivo da honrada vontade que as inspirava. Veio a influência estrangeirista sacudir de tumultos o nosso lento rejuvenescer. Tão entranhado se mostrava ele, que a carta de lei de 4 de Junho remata-lhe as jornadas tateantes com a compreensão construtiva da estrutura e preferências da Nacionalidade. Por isso Évora-Monte não é uma alva, - é antes um epílogo prematuro e funesto.
Era a Monarquia pura de Quatrocentos o caminho de novo retomado. Estão à vista a índole e a capacidade dessa Monarquia. Os seus teóricos não lhe apontam outro fundamento que não seja o da utilidade colectiva,— a utilidade colectiva é em José Acúrcio das Neves, em Faustino José da Madre de Deus, em José Agostinho de Macedo, em Gouveia e tantos mais, a razão principal e eficiente da Soberania. Já o fora em Francisco Vaz de Gouveia, condenado cem anos depois de morto, pela jurisprudência pombalina. O Marquês anatematizava assim a tradição representativa da Raça, expulsando os jesuítas que a preconizavam através dos ensinos de São Tomás e dando como exclusivo título do poder real a hereditariedade pura e simples. Recuava-se para a concepção germânica da Realeza e o estadista que não fazia mais que pôr em cópia os modelos barrocos de Catarina da Rússia e de José II, é agora o grande epónimo que se reverencia como precursor da soberania do Povo! Pelo contrário, a lei de 24, repelindo os males que tem resultado sempre da introdução de inovações fundadas em teorias vãs, e de constituições compiladas precipitadamente, e de ordinário rejeitadas pela experiência, restaurava as extintas Cortes Gerais com a declaração formal de que existia nas mesmas Cortes uma verdadeira representação Nacional, em que o Povo é representado por seus Procuradores : - o clero, e nobreza, por aqueles de seus Membros que nela têm voto». Não me dirão agora como é que a Carta reatara a sequência da nossa linha institucional?!
O senhor conselheiro Aires de Ornelas reputa-a, sem dúvida, como descendente directa das velhas Cortes Gerais. Sem repetir as fontes exóticas que conformaram a Carta, contento-me em afirmar que o senhor conselheiro Aires de Ornelas incorre no engano de José Liberato Freire de Carvalho (Ensaio histórico-político sobre a Constituição e o Governo do Reino de Portugal. Paris, 1830), que se socorreu de tão contraditória origem para a justificação dos seus passionalismos constitucionais. Esquece-se o senhor conselheiro Aires de Ornelas de que o mandato das nossas antigas Cortes se cingia em vigorosos termos imperativos e que se apoiava em ordens ou classes com destino à vigilância e à defesa dos interesses comuns. Apenas em matéria tributária e em questões externas, de alienação de território, de guerra ou de paz, de escolha sucessorial, etc., é que possuíam voto deliberativo. Em tudo o mais, apresentavam seus capítulos que o Rei deferia ou não, mantendo-se eles no estricto campo de consulta ou de parecer. A base da representação revela-se-nos, portanto, pluralista, conta-se por grupos e não por cabeças, ao passo que a representação fixada pela Carta assenta exclusivamente no indivíduo alegórico do catecismo gaulês e não determina limites aos deputados, porque são a soberania em exercício.
Não se confunda soberania nacional com utilidade colectiva. São conceitos diversos que não se sinonimizam. A soberania nacional advém-nos com as melancolias do Ermo, é filha das exaltações ideológicas do Coração sensível. A utilidade colectiva informa e ilumina toda a nossa doutrina monárquica, lá desde os tempos remotos do Regente, pelo menos. Pela soberania nacional, o Rei é como um acto de corpo presente, atribuindo aparências a um sofisma sem nome; pela utilidade colectiva, o Rei é soberano, como garantia que é dessa mesma utilidade. A diferença reside toda neste ponto. A nossa Monarquia, como monarquia concreta de poder pessoal, é uma monarquia com razão na Grei, não foi mais que uma judicatura inviolável do bem comum.
Pola ley e pola grey! - se batera aquele alto monarca que lhe encarnou o espírito, como nenhum outro. Pola grey! — jurava o príncipe D. Teodósio ao juiz do povo, quando o convocou a palácio para lhe dizer por quem seria. A Realeza e os Concelhos ajudam-se, completam-se, marcam um pacto eterno desde a hora em que, à sombra da azinheira sagrada da Raça, as beetrias da Reconquista elegeram um príncipe para seu regedor vitalício. Mantenha-vos Deus, Senhor! - saudavam os de algum dia à passagem da mulinha empenachada do Rei, como de homens bons para homem bom. Os do Suajo sentaram-se em cima dos grossos capotes enrolados quando por cortesia El-Rei mandou que tomassem assento na sala despida de tamboretes. Guarda-se em mais de uma anedota o carácter familiar da antiga Monarquia. Pastor não mercenário, - eis como em cortes os lavradores do Reino trataram o Rei duma vez. Não se daria em forma mais ingénua e mais incisiva a teoria do egoísmo privado do dinasta ao serviço da utilidade geral dos Povos! Que claro que olhava um nosso praxista, ao escrever que, enquanto o sistema representativo se achara nos bosques (alusão às assembleias primitivas dos germanos e celtas), a Monarquia não se achou,- estava connosco na casa paterna!
Não é pois a monarquia da Carta, a monarquia gloriosa da Raça - a Monarquia que emancipava os vilões dos concelhos, chamando-lhes cidadãos nas Cortes de Elvas de 1361 e que não consentia com D. Afonso II que se executasse sentença de morte sem que corressem primeiro vinte dias sobre ela. A Monarquia das Cortes Gerais, realizava o conceito exacto da Liberdade, porque «un pays n'est pas libre, comenta Babeau (La Province sous l'ancien régime), par cela qu'il ne paye pas de impots, car, à ce titre, il n'y aurait pas de pays libre, mais un pays est libre, lorsque le principe de l'impôt accepté, il le vote et en a le contrôle. Não continham alcance diverso as passadas reuniões dos Três Estados do Reino. Funcionavam em soberanos quando decidiam matéria tributária. Com a monarquia da Carta, porém, enunciada em tiradas estridentes uma liberdade de aclimatação, os povos viram-se coartados do seu legítimo direito. Luz Soriano jogou a vida pela Carta, é por isso mesmo um depoente insuspeito. Escrevia ele já em 1858 num opúsculo notável, - Utopias desmascaradas do sistema liberal em Portugal, que «o parlamento, devendo ser o fiscal da bolsa do povo, é o que pela sua parte está sempre pronto para sancionar todos os desvarios financeiros dos ministros, aditando-lhes até outros de novo. A natural consequência de tudo isto, prossegue em outra passagem, é ser a nação vitima expiatória das espoliações, e vexames, que os diferentes partidos lhe têm querido fazer por motivos de interesse, e capricho particular, ou seja dos ministros, ou dos deputados, sem ao menos lhe ser dado apelar para o poder da coroa, como nos antigos tempos». O que era feito da recusa viril dos Povos, - do Senão, não! enérgico de outrora? Afogara-o a Carta em ondas largas de liberalismo.
A monarquia da Carta é assim a realeza à bon marché do sarcasmo doloroso de Balzac,— é a monarquia bastarda e cosmopolita, sobrepondo a ilusória vontade da Nação, interpretada pelas urnas, à intervenção sequestrada do Rei. O Padre António Vieira, pregando uma vez do Bom Ladrão na Misericórdia de Lisboa, dissera que «nem os Reys podem hir ao Paraizo sem levar consigo os ladroens, nem os ladroens podem hir ao inferno sem levar consigo os Reys». Se eu houvera de ditar o epitáfio dos nossos oitenta anos de constitucionalismo torpe, iria pedir ao grande jesuíta a sua máxima profunda. Ela castiga a miséria moral de um ludibrio que, sem elevação nem chama generosa, está inteirinho e direito, de corpo e alma, na frase cínica de Guizot.
Hurrah por Doni Marii! - estrugiram os ecos da costa, ao desembarcar a expedição de D. Pedro. Com o sintoma da mentira que nos ganhava, os mercenários de Shavu e de Hodges atingiam o solo português bem antes de o tocarem os poucos naturais que vinham com eles. E ainda nós teremos de genuflectir à Carta que Francisco Alves, um brasileiro, redigiu e que Stuart trouxera no bolso, depois de pagar a preço de oiro as influências afectivas do Imperador? Oh, a Carta é o fermento nefasto do Absolutismo, assumindo a maioridade e dissimulando-se em sorrisos refalsados! Ruim versão de mal assimiladas ideologias, a ênfase teórica de Pombal prepara-a de longe, abre-lhe as portas de par em par. Transpõe-se depressa a distância que separa uma da outra. A hirta monarquia josefina é o Estado omnipotente, consubstanciando-se na pessoa do monarca e volvendo-se este em exclusivo eixo da sociedade por obra e graça duma inversão doentia. A contrafacção monárquica da Carta são os defeitos do cesarismo anterior, agravados pela irresponsabilidade em que se dilui a noção de Soberania.
Se a diferença não consegue vincar-se, eu acrescentarei que a monarquia de poder pessoal, intensificando a autoridade do Rei adentro da actividade própria, fica abonada ao longo da nossa história por episódios de um sabor singularíssimo. Enquanto Pombal centraliza e detém o agregado num hiato permanente, sem admitir a mais leve iniciativa particularista, com a Monarquia pura, nós sabemos a resposta da Casa dos Vinte-e-Quatro ao emissário de D. Pedro II, por se entremeter a Coroa nas decisões dos mesteres: - Esta casa é de vinte-e-quatro e não cabem cá vinte-e-cinco!
A encarnação vigorosa desse tipo perfeito de governo é D. João II. Não se conglobe o autoritarismo do varão insigne de Quatrocentos com a ditadura impertigada do Marquês. O Marquês sujeita Justiças, Concelhos e Corporações à acção discricionária do Estado. D. João II distingue com presentes de valia os magistrados que sentenciaram contra ele em certa causa. Um houve até que em linguagem desimpedida lhe bradou que fosse servido ir-se da casa da audiência, para que não se viesse a murmurar que o Rei influíra no ânimo dos julgadores com a sua presença ali. É a apetecida independência do poder judicial, que desde que se formulou nos códigos nunca mais teve vida que prestasse.
O Rei era, com efeito soberano, mas a soberania advinha-lhe das funções que desempenhava, como ponderador supremo dos vários egoísmos colectivos, colocados em acordo perpétuo. Ouçamos um tratadista: «Assim como pelo direito Romano a entrega era quem ratificava os contratos, da mesma sorte na Monarquia Portuguesa o juramento do Rei he o que lhe imprime, para assim dizer, o caracter da Soberania. He por isso que o Rei presta o juramento antes que o Povo preste o outro, pelo qual promete obediência, e fidelidade ao Rei, este juramento, que o Povo Português dá, logo que o Rei dá o seu, chama-se de Preito, e Homenagem, isto he de Pacto, e Obediência, porque este he o acto visível, pelo qual o Povo declara a ratificação do pacto fundamental, e o reconhecimento da pessoa, pelo qual as Leis dão o direito de possuir o Throno. Dado este juramento, o Rei he soberano; e então o Povo vem prestar-lhe depois homenagem, e obediencia pelo Juramento de Preito, e Homenagem». Já o secretário de Estado Pedro Vieira da Silva observara a D. Afonso VI «que ainda que os Reinos pertencessem por direito de
sucessão aos soberanos, eles não podiam tomar posse do governo sem terem cumprido primeiro por um acto público as antigas leis e cerimónias da nação, pois a autoridade não se comunicava senão em virtude de semelhante acto que lhe servia de titulo para presentes e vindouros».
Cuido que as transcrições esclarecem com relevo, a inconversibilidade que vai da Soberania, delegada ao Rei por um mandato precário, à soberania plena e válida que se exerce em nome do bem comum. Nas solenidades da aclamação, com o recebimento dos selos do Estado, os nossos Reis obrigavam-se a proteger os povos, que lhe tributavam vassalagem, de seguida. Por alvará de 9 de Setembro de 1647, D. João IV ordenou que antes de alguém ser levantado como Rei de Portugal, jurasse primeiro guardar os privilégios, liberdades e franquezas dos nossos povos. Da interpenetração pacífica e constante dos vários interesses públicos, resulta o interesse soberano. É soberana a entidade que o significa e viabiliza, como no último número da Nação Portuguesao meu amigo e camarada José Pequito Rebelo acentua nitidamente. Pela competência da sua profissão, (oficio, expressavam-se os de ontem), o Rei conhece do supremo interesse em árbitro supremo. O supremo interesse é a defesa da terra, o arranjo financeiro, o prestígio externo. São para tais efeitos os povos ouvidos, como membros duma sociedade em que Rei e súbditos entretecem um corpo uno. São ouvidos apenas. Trata-se, porém, de interesses e não do interesse dos interesses que a Pátria simboliza. Logo os Povos decidem, porque têm idoneidade para isso.
É o regime da capacidade especializada. E note-se que a designação das velhas pragmáticas não é Povo, mas sim Povos, afiançando um reconhecimento instintivo das tantíssimas modalidades regionais e económicas de que um país se compõe. Não fala a lei de 4 de Junho no perigo que há em pretender reduzir a um costume geral os costumes particulares das nações? Oh , o Povo das apóstrofes grandiloquentes é uma encomenda recentíssima da Liberdade!
Como não há povo, e sim povos, também só há liberdades, e não Liberdade. A Liberdade abstracta dos princípios, arruinou-nos a Pátria, proclamou a república. É a Liberdade da Carta. As liberdades de lei de 4 de Junho, são as liberdades dos Concelhos, as liberdades de sempre, clamorando-se em Cortes, efectuando-se na prática. A hierarquia não se subvertia, como agora, por virtude dos direitos políticos do cidadão. A ordem social mantinha-se arrumada, o arrivismo ignorava-se. Dos capítulos das vilas nas assembleias dos Três Estados eu arranco dois excertos ao acaso. Um comprova o sentido de escalonação e probidade que preocupava em Quatrocentos os bons procuradores municipais. O outro é a condenação insofismável do sufrágio com toda a sua máquina viciosa a descoberto.
Nas Côrtes de Évora (1481-82 ) reclamaram os povos a D. João II que os mesteres não ocupassem a governança das vilas. Fundamentavam-se em «aristotilles», asseverando "que os grandes devem seer propostos aos meãos e eles aos baxos e assi que os maiores na Republica devem reger e governar e os meãos obedecer e ajudar e os mais baixos trabalhar e servir". "Reconhecida cousa - oh, que epígrafe candente para os espectáculos de hoje! - que os popullares não conhecem que cousa he politica nem sabem que cousa he homrra nem quando deve a homrra preceder o preveito nem podem distinguir antre as virtudes moraees soomete como homees atonitos cum tumultos e vozes vãas dam clamores de ora escolherem e ora imgeitarem e segundo que aas vozes amdam assi amdam e pois vosa reall Senhoria reconhece todo bem commum e todo virtuoso viver e bom reger e governar de vosos regnos cidades e villas deles com quall justiça com quall igoaleza com quall rezam pode comsentir que os bõos antiigos cidadãos e aquelles que grandemente conhecem e comservã voso serviço aiam de padecer sob a fraqueza e mimgoa pinuria e proveza do entender dos prebeos dos mesteres" [ Visconde de Santarém, Memória para a História e Teoria das Côrtes Gerais ].
É uma invectiva de vexame o grito que se eleva do fundo das fossas a azorragar a cobardia sem têrmos do minuto que corre. Na oratória bárbara dos mandatários dos Concelhos, ficou exarada há quinhentos anos toda u m a doutrina de ordem e selecção. «Os maiores na Republica devem reger e governar e os meãos obedecer e ajudar... Não renasce a experiência obliterada dos Avós na observação positivista dum Gustave Le Bon ? «L'élite d'un peuple crée ses progrés, les individus moyens font sa force, - destaco eu do breviário, - Aphorismes, em que o ilustre sociólogo condensa as ideias madres do seu pensamento. Veremos como as gentes de Elvas se lhe antecipavam, à data de 1498 , no repúdio terminante do sufrágio:
«...Item Senhor. Nesta Villa se custuma huma muj desordenada cousa a muj danosa ao bem commum a quall he quando sse fazem alguns apontamentos em camara pera fazerem emliçam dos officiaes do Concelho ou fazerem outra alguma cousa que compre aproll da dita villa assy os grandes fidalgos cavalleiros e escudeiros como todo ho outro pouoo dam vozes na dita camara e tanto val a voz do mais pequeno como a do mais grande. E taaes ha hy dos grandes que nos ditos ajuntamentos levam comsygo seus creados e apanigados e outros acostados, e os provocam a dar as ditas vozes como elles querem pello qual muitos homees sam metidos nos pellouros dos ditos officios que nam sam pera reger a villa e os que pera isso sam ficam defora e assy a villa he sempre mal Regida e governada, pedimos a uossa alteza que alguums uns nom sejam Reçebidos a dar voz saalvo os fidalgos cavalleiros escudeiros no que Vossa alteza no fará merçee.
«Outro ssy Senhor, pellas muitas afeiçooens que nesta Villa ha em ho tomar das vozes as emliçooens se fazem como non devem e a governança da Villa cahe em homeens que non sam autos nem pertencentes pera o dito cargo. E sse hy ouvesse Regedores perpetuus homees fidalgos e escudeiros homrrados a Villa serja mjlhor Regida pedimos a uossa alteza que sse enforme de dezaseis homees autos e pertencentes de booa conciencia e viuer e mais sem afeiçam a saber oito fidalgos e cavalleiros e outros tantos escudeiros homrrados e os faça Regedores perpetuus e cadanno sirvam quatro dos ditos dezasseis a saber dous fidalgos ou caualleiros e outros dous escudeiros no que Senhor Recebemos merçee» [Visconde de Santarém. Obra citada].
Assim as liberdades se protegiam por via da força centrípeta da Autoridade. Não admira, por conseguinte, que as Cortes Gerais, realizado um movimento de concentração real à roda de D. João II, se continuassem a congregar com o acatamento dos monarcas subsequentes. Depois de antanho, é que a soberania dos interesses, como fulcro do nosso direito político, assume as mais vigorosas linhas da sua fisionomia. Cortadas as arrogâncias jurisdicionais dos donatários, o Rei ao alto é bem o pastor não mercenário que em amor e cautela, conduz os povos. O egoísmo individual coincide com a conveniência colectiva. As Cortes Gerais asseguram a concordância. De modo que, quando a urgência não se compadece com a chamada dos procuradores municipais e surge a necessidade de se obterem novas prestações pecuniárias, o Rei que declara a guerra e fiscaliza a justiça, não ordena no entanto a capitação. Mandam-se enviados às câmaras principais do Reino e roga-se-lhe o aprazimento, sem o qual o tributo não chega a decretar-se. Évora negou-o duma ocasião a D. Manuel I. O vereador João Mendes Cecioso dá o exemplo, esquivando-se a aprovar o projecto do Rei, que era não sei que derrama sobre a colheita. Instado e ameaçado por D. Manuel, as palavras que o cidadão eborense lhe tornou, apregoam ainda agora nobreza e aprumo pelas crónicas fora. «Eu, Senhor, com quinhentos cruzados que tenho de renda, não necessito das vossas mercês, e como vos conheço por justo, não temo as vossas ameaças. Fazei, porém, o que quiserdes, que eu não mudarei de ditame, nem deixarei de dizer sempre, que quem vos dá esses conselhos é inimigo da patria, da honra, da consciencia e da alma!»
Era como se falava no tempo das liberdades. Como se fala no tempo da Liberdade, de maiúscula decorativa e arengas tronitroantes, que no-lo contem mais de sete décadas de parlamentarismo sem brio!
III
É esta concepção realista da Monarquia que inspira os nossos escritores de Seiscentos. O usurpador espoliava os Povos, levantava impostos sem os ouvir, depredava-lhes o território, abandonava-os a enxovalhos e a agressões. A utilidade colectiva impunha concomitantemente, como motivo de salvação, a revolta contra o tirano. Eis como se explica e compreende o direito de insurreição reconhecido por São Tomás aos vassalos. Somente em casos de apelo último, por interesse dos interesses comuns, o acto revolucionário se prescreve como meio legal. Exceptuada essa circunstância, a soberania, que o Rei personifica, transmite-se e perdura, não se rescindindo por virtude das paixões o título legitimo que a confere. É que a soberania não é uma derivação exclusiva dos cidadãos existentes, nem um exclusivo apanágio do rei que governa. A soberania é um pacto das gerações que passaram com uma determinada família. Não se anula caprichosamente porque não se restringe a um dado momento, mas antes abrange o grupo tomado como um todo inalterável, no espaço e no tempo. O Rei, jurando guardar os foros do Reino, ratifica a responsabilidade assumida por seus Maiores para que impere e seja soberano. Os Povos, prestando-lhe preito de seguida, confirmam a vigência do contrato pela manutenção do consenso recíproco. Ao indivíduo átomo sobrepõe-se, portanto, em toda a correspondência das classes, o composto-familia. É o Ser Social de São Tomás, - é a solidariedade entre os vivos e os mortos da admirável síntese comteana.
Creio estabelecida a distância que separa a nossa Monarquia orgânica da monarquia invertebrada da Carta. Creio suficientemente demonstrado o antagonismo irredutível dos dois termos, Poder pessoal e Poder absoluto. Com as homenagens vivas do meu respeito, é uma anotação que o senhor conselheiro Aires de Ornelas consentirá que eu adicione às páginas finais do seu recente opúsculo. Bem ao contrário de quanto lá se consigna, a Carta é a herdeira mais que habilitada do estadismo confrangedor do Marquês. A Monarquia tradicional, que é a Monarquia pura ou moderada, aonde palpita bem moça ainda, é na memorável lei de 24. Esse diploma, sim, que pretendia valorizar a tradição perdida! É a ele que se há-de devolver o País,— é ele que o Integralismo Lusitano invoca por pergaminho de honra. A Liberdade, se o meditar no sossego da consciência, verá como são bem miseráveis as suas garantias individuais, o seu teorismo de plágio e de ida e volta! Perca-se embora em divagações anacrónicas, teime baldadamente em tecer de novo o equívoco, mas não emita a Liberdade opiniões levianas, aprenda a respeitar o sentido da época que já é outra. Discorra dos Direitos do Homem, mais do refervido acompanhamento retórico, mas não se ria quando a geração que sobe, se manifesta com desassombro, nem apadrinhe de paradoxo o espírito contra-revolucionário que é hoje uma regra poderosa de inteligência e actividade! Mais que os destroços desta mísera e mesquinha república, não se esqueça a Liberdade que temos a reparar os desvarios cometidos por ela em oitenta décadas de renúncia e sossobramento. Ela com boas frases iludiu-nos. Ao menos a república desentramelou a voz avinhada e soube prevenir-nos a horas!
«Nós queremos um Rei sem alcunha! gritavam os povos à roda de 1823, quando lhes falavam em rei constitucional. Queremos hum Rei que tenha huma existencia propria, hum principio activo, que sem dependencia de outrem anime, e vivifique o Estado; que não reparta com outrem os atributos essenciais da soberania, nem por outrem possa ser embaraçado de fazer todo o bem possivel aos seus vassallos... interpretava o grande José Acúrcio das Neves [Cartas de um português aos seus concidadãos, Lisboa, 1822], quarenta-e-cinco anos antes de Charles Maurras nascer na Provença, - na Provença da mula do Papa e do moinho de Daudet, que depois do Reino dos Céus e em seguida ao Reino de Portugal, é o mais lindo reino que Nosso Senhor ainda criou.
Não queremos um Rei com alcunha! - gritam também os moços portugueses quando a Carta, pura e simples, se prepara para o regresso. E pode acreditar a Liberdade, lá o saberá à sua hora ! -
que não somos nós, no cabo, quem grita, - é Portugal inteiro que grita connosco!
Julho de 1914.
[negritos acrescentados]
Creio estabelecida a distância que separa a nossa Monarquia orgânica da monarquia invertebrada da Carta. Creio suficientemente demonstrado o antagonismo irredutível dos dois termos, Poder pessoal e Poder absoluto. Com as homenagens vivas do meu respeito, é uma anotação que o senhor conselheiro Aires de Ornelas consentirá que eu adicione às páginas finais do seu recente opúsculo. Bem ao contrário de quanto lá se consigna, a Carta é a herdeira mais que habilitada do estadismo confrangedor do Marquês. A Monarquia tradicional, que é a Monarquia pura ou moderada, aonde palpita bem moça ainda, é na memorável lei de 24. Esse diploma, sim, que pretendia valorizar a tradição perdida! É a ele que se há-de devolver o País,— é ele que o Integralismo Lusitano invoca por pergaminho de honra. A Liberdade, se o meditar no sossego da consciência, verá como são bem miseráveis as suas garantias individuais, o seu teorismo de plágio e de ida e volta! Perca-se embora em divagações anacrónicas, teime baldadamente em tecer de novo o equívoco, mas não emita a Liberdade opiniões levianas, aprenda a respeitar o sentido da época que já é outra. Discorra dos Direitos do Homem, mais do refervido acompanhamento retórico, mas não se ria quando a geração que sobe, se manifesta com desassombro, nem apadrinhe de paradoxo o espírito contra-revolucionário que é hoje uma regra poderosa de inteligência e actividade! Mais que os destroços desta mísera e mesquinha república, não se esqueça a Liberdade que temos a reparar os desvarios cometidos por ela em oitenta décadas de renúncia e sossobramento. Ela com boas frases iludiu-nos. Ao menos a república desentramelou a voz avinhada e soube prevenir-nos a horas!
«Nós queremos um Rei sem alcunha! gritavam os povos à roda de 1823, quando lhes falavam em rei constitucional. Queremos hum Rei que tenha huma existencia propria, hum principio activo, que sem dependencia de outrem anime, e vivifique o Estado; que não reparta com outrem os atributos essenciais da soberania, nem por outrem possa ser embaraçado de fazer todo o bem possivel aos seus vassallos... interpretava o grande José Acúrcio das Neves [Cartas de um português aos seus concidadãos, Lisboa, 1822], quarenta-e-cinco anos antes de Charles Maurras nascer na Provença, - na Provença da mula do Papa e do moinho de Daudet, que depois do Reino dos Céus e em seguida ao Reino de Portugal, é o mais lindo reino que Nosso Senhor ainda criou.
Não queremos um Rei com alcunha! - gritam também os moços portugueses quando a Carta, pura e simples, se prepara para o regresso. E pode acreditar a Liberdade, lá o saberá à sua hora ! -
que não somos nós, no cabo, quem grita, - é Portugal inteiro que grita connosco!
Julho de 1914.
[negritos acrescentados]
[António Sardinha, "Poder Pessoal e Poder Absoluto" in Glossário dos Tempos, Porto, 1942, pp. 9-50.]