O testamento de Garrett
Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.
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Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo.
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Garrett indigna-se contra o malvado espírito de simetria, que na sua fúria uniformizadora obrigava os governos constitucionais a “cortar a cabeça à noiva e os pés à mula”
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Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo.
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Garrett indigna-se contra o malvado espírito de simetria, que na sua fúria uniformizadora obrigava os governos constitucionais a “cortar a cabeça à noiva e os pés à mula”
António Sardinha
Na sessão de 21 de Janeiro de 1854 Garrett pedia a palavra para apresentar à Câmara dos Pares dois projetos de lei. A menos dum ano da sua morte, o emigrado da Terceira, que tão de perto colaborara com Mouzinho na reforma administrativa do País e que andara de arma ao ombro no cerco do Porto, depois de ter rilhado por três vezes o pão áspero do exílio, ia dizer-nos ali, no próprio seio da Soberania Nacional, toda a sementeira de desastres que fora para a Pátria a aventura doida dos argonautas do Mindelo. Ele, o "Divino" dos outeiros universitários de Coimbra mais da intemperança lírica da época, não descrera ainda da Liberdade com maiúscula solene. Mas a Liberdade, à vista dos homens e dos acontecimentos, não era para ele mais de que um mito vazio, desfazendo-se em cinza e nada, sempre que considerava Portugal inteiro tornado na "parte do lobo" para os devoristas famosos do Constitucionalismo.
De Herculano, sabíamos nós como a desilusão o roera cruelmente, atirando-o para as solidões de Vale de Lobos a plantar oliveiras, quando no ermitério da Ajuda já se não sentiam os passos discretos de El-Rei D. Pedro V e cá fora, nos bazares impudicos da Regeneração, o ultra-romantismo político crescia e alastrava, tirado pelo prestigio perdulário de Fontes. Mais cedo atingido pela morte, de Garrett, porém, não haviam chegado até nós as belas afirmações de protesto em que o Poeta se resgata das culpas sinceras da mocidade e dobra a defuntos irreparavelmente sobre a mentira sem nome que levava perdidos os destinos de Portugal. É Garrett assim um dos mestres mais ilustres do Integralismo Lusitano. Ele representa o espírito novo que, contagiado pela sedução infinita das ideias francesas, não deixou em todo o caso extinguir-se-lhe nas veias a voz ancestral do sangue, mais forte, afinal, no cair das últimas folhas, que o veneno de encanto em que a alma se lhe embebera durante o bater alto das paixões. As feiras cosmopolitas que a sua sandália de peregrino por largos anos pisou, não puderam vencer o fundo bom de criança que as toadas da velha Brígida tinham embalado entre cortejos de Reis e ladainhas de Santos. Tão dentro que a poesia suspensa do Lago falasse ao enlevo de Garrett, com o Ermo e o Luar espectralizando perspetivas ossianescas e ruínas melancólicas, mais duradoura seria a lição duma aia sumida num sumido solar da província que quantas literaturas de fama enchiam por então as estradas do mundo.
Por lá bebera Garrett o ópio das mil e uma utopias em que o culto frenético da Humanidade jurara tomar posse dos corações mais sensíveis do que nunca. Mas a quinta do Sardão, com um bocado familiar de horizonte bem nosso, - bem garrettiano, não se esquecera de todo na emoção do Poeta. Com o sentimento vivo das coisas da infância, morava o sentimento do Povo. É o sentimento do Povo que salva Garrett, - que não consente que Garrett se suma no mesmo purgatório sem remédio em que desapareceram tantíssimos varões assinalados, cujos nomes só por sarcasmo cobrem ainda as laudas poluídas da nossa miserável história oficial!
“Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito, - escrevia ele numa passagem que me apraz destacar para prova plena do que assevero. - Creio isto firmemente. Mas ainda espero melhor, todavia, porque o povo, o povo, está são: os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo. Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a poesia do povo. Nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos às aspirações sublimes do senso-íntimo que despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados materiais, insignificantes e imperfeitos: enquanto ele, aquele, senso-intimo do povo, vem da razão divina, e procede de síntese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem”. Povo, aclaro eu agora, valendo como nação, como raça, não como aglomerado inorgânico, - Panem et circenses! - a quem a mais estulta das metafisicas houvesse de conferir predicados inexcedíveis de capacidade diretiva. Garrett bem o sabia. E ao traçar com pulso firme os períodos transcritos, que extraordinário avanço Garrett não obtinha sobre a mentalidade do seu tempo, enumerando como valor primacial na existência das coletividades as criações indiscutíveis do subconsciente delas - isto numa era em que a superstição legislativa se arvorava em norma exclusiva de administração e governo! É já o anúncio de uma política histórica de factos sobrepondo-se a uma política abstrata de princípios. Garrett dar-lhe-ia quási fórmula filosófica nas derradeiras lanças quebradas em favor da quimera por que jogara a vida aos vinte anos. Desanimado de todo, já com os pés para a cova, só lhe faltou a coragem dos homens de ideias, que é dizer: Enganei-me! quando sinceramente se enganam.
Foi assim pelo sentimento do Povo que Garrett chegou à compreensão do Romanceiro. Quando a nós, integralistas, nos não ligasse a Garrett mais nenhum parentesco, o Romanceiro bastava para o absolver das cavalhadas loucas de um temperamento que ardia, que ardia insaciavelmente, e insaciavelmente se abandonara ao primeiro grande sonho em que a imaginação fácil um dia se lhe abrasou. Garrett padeceu em grau subido a hipertrofia idílica da Liberdade. É pela Liberdade que faz morrer outra vez Catão. É pela Liberdade que declama assoprados tropos à memória do "patriota" Fernandes Tomás e se deixa ir, como se não fora Garrett, pela oratória infinita dos Regeneradores de 1820, não obstante ser sobrinho de bispo e primo, não atino por que partes, do glorioso São Gonçalo de Amarante. Mas, já que se não preveniu contra a ideologia traiçoeira dos homens do 24 de Agosto, não o confundamos ao menos com os habilidosos do verbo revolucionário, a quem a marca maçónica lançou nas vielas escuras do Liberalismo. Garrett bem os condenou e em termos que correspondem à maior das exautorações.
Eu não desfiarei aqui a biografia de Garrett. Basta que assinale, como ponto essencial para o meu propósito, o ingresso do Poeta no parlamento, depois daquela infeliz missão diplomática na Bélgica. É nas Cortes que Garrett, dispondo de apreciáveis dotes de serenidade e elegância de palavra, fulmina os legistas e argentários sem vergonha que, à sombra larga da Carta, constituíram o célebre ministério, chamado dos Ladrões, e com o qual se estreou para o País a vitória tristemente memorável do Imperador D. Pedro. “Foram eles, sim, senhor presidente, e suas absurdas e falsas reformas que nos trouxeram a este estado, - acusaria Garrett, discursando na Câmara baixa em sessão de 31 de Março de 1837. Foram eles que desmoralizaram de todo o país, que o deslocaram e revolucionaram. E porque nós viemos agora, e nos cabe sentar sobre as ruínas que eles amontoaram, porque foi nossa triste sorte que a nação nos desse o mandato (tão difícil que toca no impossível) de vir calmar o abismo que eles cavaram, a nós é que nos chamaram revolucionários, a nós e à nação é que querem lançar o cargo dos males que nos fizeram!
"Porque nos fadou a desgraça a vir representar um país alevantado, desorganizado, e mais exausto que uma planície de África depois de devorada por uma nuvem de gafanhotos; porque assim coube àqueles infelizes ministros tomar debaixo de tão furioso temporal o leme desmantelado do Estado: são aqueles que por sua perversa fatuidade o suscitaram quem os vem acusar de má navegação!
"Nós, senhor presidente, que ainda no que erramos estamos errando de seus erros que nos pecados que cometemos por seus pecados estamos pecando!"
Vê-se que Garrett aderira à revolução de 36, da mesma forma que aderiria lá para diante ao movimento da Regeneração, que de algum modo inspirou. As oscilações que lhe acidentam a carreira pública não significam, porém, a versatilidade dum qualquer ambicioso. Tanto que, instado por mais duma ocasião para entrar nos conselhos da Coroa, só no fim dos seus dias é que passou pela Secretaria dos Estrangeiros, e quási de fugida. As preferências contraditórias que a política de Garrett nos oferece, são antes a prova evidente da desilusão profundíssima que o ia ganhando. Ele não descrera da Liberdade nem da obra do Dador que no discurso de 37 revestia das honras hiperbólicas de segundo fundador da Monarquia Portuguesa. À maneira que todas as experiências do Constitucionalismo falhavam nos mesmos resultados deploráveis, eis porque ele, o sincero, o poeta, o doutrinário, - como os raposas do parlamento o designavam em risinhos de sátira coxa, - se atirava sem hesitações ao encontro das tentativas bem intencionadas, que porventura procurassem ainda um saneamento, um motivo de forte esperança no futuro, tão negro para quem o olhasse com alma de patriotismo,- tão carregadinho das piores interrogações!
Epilogadas nas comezainas fabulosas do ministério de 34 as marchas duras do cerco do Porto, Garrett, mal se desenham as iras honestas de Passos Manuel, não oculta a sua simpatia pela revolta que vai erguer às cadeiras da governança o tribuno de Bouças. Está de regresso a ideologia de 20, mas com peitos honrados servindo-a desta feita. Passos Manuel leva consigo Sá da Bandeira e Vieira de Castro. É trigo sem joio, - é a farinha pura do Constitucionalismo. Na pasta do Reino figurará António Fernandes Coelho, segundo avô materno do meu camarada e amigo Alberto de Monsaraz. Ministro aos trinta anos, António Fernandes Coelho retira-se para sempre das intrigas do Terreiro do Paço, tão cedo a Carta se restaura e o gesto generoso dos utopistas de 36 se perde na soma considerável dos esforços abortados.
Nós hoje, já com perspetiva histórica e munidos de um longo ensinamento, como é o destas oito inqualificáveis décadas de baixa perversão monárquica, não nos surpreendemos em nada com os frutos recolhidos pela Constituição de 38. No entanto, para os devotos incorrigíveis do Coração sensível, que imaginavam na monarquia liberalista a melhor das repúblicas, a ficção podia mais que a realidade. Nas derrotas sucessivas do mito fascinante, por que nossos avós arriscaram a segurança e os bens, quando não conheceram o cárcere e até a forca, nunca por um minuto sequer os assaltou a suspeita de que se ele seria apenas uma mentira pérfida, tecida com arte em efeitos sublimes de Quintiliano. Não! A dúvida não nascera para aconselhar um bocadinho de bom-senso aos entusiastas da drogaria gaulesa, a quem nós temos de agradecer os males presentes e os que por desgraça estejam ainda para surgir nesta verdadeira rua de amargura em que se anda jogando o destino querido da Pátria. Para 1830 a Liberdade era como que de direito divino. Aceitava-se em dogma – como dogma se impunha sob pena de excomunhão maior. Conceber-se-ia mais facilmente e sem menos assomos de cólera a agonia irreparável de Portugal, que a bancarrota do regime bastardo a que o estrangeiro do interior constrangia o Portugal-autóctone, para nos deixar, ao cabo, numa devastação só própria dos desertos de África, na imagem rigorosíssima de Garrett. Os homens, e não o sistema, lhes davam a explicação de tantos desastres, crescendo sempre numa proporção assustadora. Não é outro o desalento moral que se recolhe da correspondência de António Fernandes Coelho, que pelo porte e pela sinceridade se torna digno de que lhe guardemos a memória com respeito.
Nós, os de hoje, não medimos os revolucionários de 36 pelo critério inexorável que arruma nas vizinhanças da ignomínia os políticos sem pudor que eles pretenderam derrubar. Se a Liberdade foi liberdade em terras de Portugal, à revolução de Setembro se agradeça o único impulso honrado que a quis tornar, não num monopólio farisaico de partido, mas no governo imparcial e independente de uma nacionalidade reconciliada consigo mesma. Eu reconheço a demasiada boa fé do propósito. Contudo, não me esquivo a venerá-lo, como amostra rara de convicções e de energia numa situação que, emergida de vergonhas sem conto, na maior das vergonhas haveria de morrer. Tão insuspeito eu sou que meu bisavô, o físico-mor Lourenço Félix Sardinha, esteve preso por liberal durante mais de dois anos no castelo de São Jorge. Na defesa de Marvão destacou-se um outro parente meu, o tenente Plácido de Almeida Barradas, que, pelos seus serviços à Rainha e à Carta, morreu com a Torre e Espada ao peito.
Muitos mais do meu sangue sofreram as consequências do seu entusiasmo liberalista. Se eu tive até uma velha tia que foi as delícias da minha meninice e que em honra da senhora D. Maria II se chamava Maria da Glória! O que a tia Glória não sabia dos miguelistas, - que horrores, que barbaridades sem perdão! Oh, mas quando o exército fiel entrou em Lisboa! E na memória baila-me agora a evocação duma ordenança em carreira doida pelas ruas da cidade, levando a notícia lá acima ao Castelo. Por isso a minha educação sentimental se fez sob o culto romântico do Constitucionalismo, praticado em nossa casa como tradição familiar.
Chegado à idade de pensar por mim, desembaracei-me dos prejuízos do leite e da escola. Embora não seja legitimista pelo único motivo do interesse nacional, eu convenho hoje que o Povo era de D. Miguel, que D. Miguel se investira legalmente da Realeza, que o desgraçado Príncipe em nada representa o Absolutismo e que só a intervenção estrangeira, - repare-se bem! - expulsou dum país que se identificava de toda a alma com a figura nobilíssima desse rei extraordinário. Consigno estas observações exatamente para sublinhar o relativo valor moral da revolução de Setembro.
Não acabou ainda a lenda do terror miguelista. É cultivada apaixonadamente com pompas de fraseologia, ensopada em requintes de morticínio. O que é, meus senhores, o tal juízo reto da história! Anda, porém, publicado o número das execuções realizadas com D. Miguel e o número sensivelmente dobrado dos assassinatos cometidos a frio nas pessoas dos seus afetos, depois de um ato soleníssimo, como deveria ser a convenção de Évora-Monte. Dê-mos um pouco a palavra a outrem, para se concluir com mais segurança de opinião. “As tropas desarmadas, e realistas indefesos, que recolhiam para suas casas ao abrigo duma solene convenção, garantida por três potências, que vieram desarmá-los, encontraram as estradas cobertas de assalariados para os matar, roubar e espancar” — conta um publicista de inclinações republicanas, Joaquim Lopes Carreira de Melo, no opúsculo A legitimidade ou a soberania nacional, saído a lume em 1871. “As cenas dolorosas que se presenciaram, debaixo do poder do governo caído sob o peso do anátema de absoluto, tirânico e desumano, comparadas com as que nesta época se passavam, sob um regime a que chamavam constitucional e liberal, estavam muito abaixo do que atualmente se passava, do que já havia acontecido na Terceira, no Porto, em Lisboa, agora em Montemor-o-Novo, Santarém, Lisboa, e outros pontos do reino, onde imperava o punhal, e a metralha dos bacamartes. A Beira tremia debaixo do peso dos celerados de Midões e Vila Nova de Foz Côa. Assim a convenção e amnistia do regente, dada debaixo da proteção da quádrupla aliança, começou logo a ser sofismada: até depois disse em Cortes o ministro Agostinho José Freire que nunca houve intenção de cumprir as suas estipulações. E na verdade, porque os próprios ministros expediram portarias a mandar prender indivíduos que descansavam ao abrigo de tão solene tratado. Os prefeitos, subprefeitos e provedores, levando o seu zelo muito além do ministério, prendiam em grande escala, e deportavam ainda em maior número. Indivíduos de ambos os sexos, e alguns filhos de família, e que nada tinham influído na política, não escaparam a esse furor vingativo das novas autoridades. Estas fechavam os olhos aos assassinatos e roubos, que se cometiam a toda a hora, e por horríveis modos. Os muitos atos intoleráveis, que algumas autoridades do governo caído, deixaram praticar por alguns dos seus subalternos ou denunciantes, davam pretexto para tão bárbaros excessos; porém, quem procurar bem conhecer as causas a fundo, achará em grande parte agora nos perseguidores, os mesmos indivíduos que o foram no passado governo. Alguns até estavam presos por seus excessos, e disseram quando lhes foram abertas as portas das prisões, onde deviam jazer, por bem da sociedade, que ali estavam pela sua adesão à rainha e à Carta! Desgraçada seria a causa, que precisasse de tais defensores! A odiosa e absurda lei das indemnizações pôs-se em prática, e um grande número de causas desta ordem começaram a ser tratadas contra os vencidos. Outros, ainda desprezadores de tal lei, empregando a força e o terror, se apossavam dos bens sem formalidade alguma jurídica. Algumas autoridades houve que empregaram um zelo brutal na expulsão dos frades, fazendo pressão até sobre os objetos do seu particular uso, por ocasião de serem expulsos de suas casas, que lhes foram arrebatadas pelo governo, assim como todos os seus bens, havendo muitos adquiridos com obrigações pias e onerosas de doações particulares. Comovia ver tanta desgraça, e esta comoção chegava a muitos dos que, da melhor boa-fé, defenderam as novas instituições. O governo fazendo por toda a parte uma receita na venda do rico espólio e propriedades das ordens religiosas, militares, da casa do Infantado, das rainhas, etc., nem por isso se via nele disposições de com tão numerosas quantias se pagar o papel-moeda, que fora extinto pelo regente, assim como diminuir a dívida pública, em grande parte feita para organizar a expedição, e sustentar a luta contra o Senhor D. Miguel.
"Os indivíduos do partido da oposição liberal continuavam a acusar o governo dos males passados e presentes, e diziam que era preciso guerrear o ministério nas próximas eleições de deputados. Os do partido vencido, esses emigravam em grande parte, muitos para o norte da Espanha a continuar a guerra; os que estavam no reino não tomavam parte em coisas públicas, porque o seu terror era muito grande."
Embora a economia do presente estudo seja alterada por uma transcrição tamanha, numa hora em que a imprensa monárquico-liberal se contorce em maldições contra a oligarquia jacobina, é preciso que se saiba que há um crime enormíssimo a expiar perante Deus e que por mais que a República tenha agredido e profanado as razões inalienáveis da coletividade, ainda nem por sombras atingiu a folha corrida do Constitucionalismo. E pensavam ali os de O Nacional, com o seu cortejo de inválidos desfilando no famoso inquérito, que isto de se restaurar a Monarquia, não passaria nunca de uma reposição pura e simples de aquilo que estava! Não desapareceram da história as nódoas de sangue com que a enxovalharam os vendilhões do Mindelo.
Um rei de partido não pode voltar mais a Portugal. Voltará o Senhor D. Manuel II como depositário do direito pátrio à independência, jamais como um símbolo irresponsável, a cujo encosto continuem a medrar as sub-mediocridades doiradas que o abandonaram miseravelmente à sua sorte nos areais da Ericeira.
Ora a situação apontada no excerto de Carreira de Melo, prolongou-se em Portugal até à revolução de Setembro. Logo que a constituição de 22 foi proclamada, respirou-se mais à vontade, os próprios miguelistas conheceram já outro desafogo. O povo matou Agostinho José́ Freire, o que no parlamento cinicamente declarava que nunca existira intenção de se cumprir o ato de Évora-Monte. Deixaram-lhe o cadáver exposto às vaias da gente miúda, colocando-lhe por escárnio uma tigela sobre a barriga, como que a implorar a caridade para se lhe fazer o enterro. Soara a vez do castigo! Os barões devoristas bateram as asas, as urnas, quando se efetuaram as eleições, viram-se concorridas pelos próprios realistas, restituídos enfim aos direitos de cidade. Eis porque Garrett, sendo um sincero, enfileirou ao lado dos simpáticos declamadores de 36.
Cheio de dedicação e fé ingénua, como eles, seguiu-os na sorte, embora os não acompanhasse na renúncia. Persistiu, teimou. Todo o seu empenho era aliar a Liberdade, a tal da letra maiúscula! - com o problema da Ordem, sempre prejudicado, cada vez mais preso de interrogações custosas. “É obrigação de consciência para quem levanta o grito de liberdade num povo, achar as regras, indicar os fins, aparelhar os meios dessa liberdade, para que ela se não precipite na anarquia, - escrevia Garrett em introdução ao Romanceiro. “Não basta concitar os ânimos contra a usurpação e o despotismo; destruído ele é preciso pôr a lei no seu lugar. E a lei não há-de vir de fora; das crenças, das recordações, das necessidades do país deve sair, para ser a sua lei natural e não substituir uma usurpação a outra usurpação”. É que Garrett trabalhou até fechar os olhos por incorporar o Constitucionalismo na continuidade da nossa tradição histórica. Foi-se-lhe a vida na tarefa insana, mais insana que a das Danaides, enchendo o tonel sem fundo! Psicologicamente, o caso de Garrett não é um caso isolado, - é antes um caso dos nossos dias. Garrett, por inteligência e por temperamento, queria curar o defeito insanável do sistema constitucional pelo emprego justo das nossas antigas instituições. Não querem hoje os chamados republicanos conservadores, se porventura ainda os há depois da demonstração Pimenta de Castro, curar a incapacidade ingénita da república com o tornarem-na tanto quanto possível uma monarquia, sem nunca chegar a sê-lo?!
Um sentimentalismo inexplicável lhes impede a visão perfeita das circunstâncias. Recebem a república como se fora de direito divino, e nessa função mística a julgam a mais completa forma de governo. Não se lembram que Renan disse de uma vez que a democracia se comparava a certo princípio estratégico de que aplicado durante quase um século a todas as hipóteses de guerra, não se houvesse revelado senão numa fonte constante de derrotas e mais derrotas. Efetivamente, a amplitude da experiência democrática não nos permite mais dúvidas a respeito das suas probabilidades construtivas, por muito que alguns teóricos de ópera-bufa se extenuem a asseverar que sim, que a evolução dos povos tende para a democracia, como para um remate natural e lógico. Os acontecimentos de todos os dias são-lhes, porém, contrários. O princípio continua a manifestar-se um agente mortífero de desagregação. Atidos a uma superstição da sua juventude, é para lamentar que em Portugal o não reconheçam um restrito número de cérebros aproveitáveis, de cuja energia honrada bastante teríamos a recolher, se os não impossibilitasse de uma ação política e imediata, isso que em boa linguagem se intitula ainda o culto fiel do Ideal.
Garrett, mais atrás, não se interpreta na maneira dupla de revolucionário e de tradicionalista porque se nos apresenta, senão como uma vítima imolada à observância romântica do Ideal, que se revestia para ele do prestígio religioso dum evangelho de redenção. Acresce que Garrett não passava, quanto a mim, dum equivocado, como equivocado se nos mostra nas Constituintes de 22 o deputado Bento Pereira do Carmo. Eu me esclareço. O absolutismo pombalino introduzira abusos realmente sem perdão na monarquia temperada da Raça. A congestão enormíssima, engendrada pelo Estado centralista do Marquês, agravou-se em males quase irreparáveis pelos desastres e mais alterações que acidentaram o reinado de D. Maria I e a regência do Príncipe do Brasil. Do abatimento profundo em que caíramos, veio o desejo de nos salvarmos, se acaso o sonâmbulo acordasse ainda a tempo. Coincide esta ânsia notável de resgate com as cavalhadas napoleónicas e com os primeiros anúncios de Liberalismo, aparecidos no coice da invasão. A Maçonaria, já instalada em Portugal, aproveita com a arte de sempre as aspirações isoladas e canaliza-as segundo os seus desígnios ocultos. E assim, quando unicamente se pensava num regresso prudente às nossas velhas liberdades, à bela tradição representativa da Grei, surge-nos, como de uma caixa de surpresas, a outra, — a Liberdade de extração gaulesa, com um grande olho simbólico por marca da fábrica. Nas Cortes de 21 a 22, nós topámos por via de semelhante engano figuras como Álvaro Póvoas e José Ribeiro Saraiva.
O embuste não tardou, todavia, a denunciar-se por si. Mas nem todos se lhe eximiram à rede, persuadidos de que a soberania do povo não viera de fora, pois que a tínhamos em nossa casa nos tempos felizes das Cortes Gerais e do "Se não, não!" enérgico dos conselheiros de El-Rei D. Afonso IV. Eu cito, a propósito, o discurso pronunciado por Bento Pereira do Carmo acerca das bases da Constituição, por ser mais que explícito a tal respeito. Anos rodados, José Liberato Freire de Carvalho pretendia justificar com os mesmos motivos a razão do movimento constitucionalista. Veja-se o livro - Ensaio histórico-político sobre a constituição e o governo do reino de Portugal, devido à pena do ex-frade crúzio. Os Três Estados são ali convocados a testemunho como sendo entre nós a raiz secular da aclimatação parlamentarista, que em vez duma novidade, se volvia deste modo num direito velhíssimo de que a Nação se encontrava esbulhada. É curioso que num opúsculo anónimo do Conde do Funchal, intitulado Notas ao pretendido manifesto da nação portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, em Londres, com data de 1821, se o conceito da soberania popular se rejeita, afirma-se em todo o caso a ideia duma Carta outorgada, conforme o espírito livre dos foros e franquias do Reino. O pensamento do autor acentua-se com mais nitidez num segundo opúsculo - Introdução às notas suprimidas em 1821 ou raciocínio sobre o estado presente e futuro da Monarquia Portuguesa. E há bem pouco o equívoco prevalecia ainda no Senhor Conselheiro Aires de Ornelas, um dos melhores amigos do Integralismo Lusitano, como se infere da brochura publicada por Sua Excelência acerca de Charles Maurras. Não admira, por isso, que o nosso Garrett fosse com a mais nobre das intenções um equivocado pura e simplesmente.
Seria alongar-me em demasia se sublinhasse agora as diferenças que separam por natureza a nossa gloriosa Monarquia representativa da monarquia bastarda da Carta. Basta que se frise um ponto essencialíssimo: é que a representação importada - com os entusiasmos políticos do Romantismo assenta toda, como se sabe, no cidadão abstrato dos Imortais Princípios, enquanto a representação por meio da qual as Cortes Gerais funcionavam era de estrutura pluralista, visto provir das classes. A primeira define-se pelo direito, sempre transitório e anárquico, do indivíduo. Define-se a outra pelo direito mais duradoiro e mais sagrado do agrupamento. De sorte que a representação constitucional gera a instabilidade, a incerteza, a confusão, a incompetência. Segura e bem concreta, a representação orgânica dos Municípios e das Corporações, garantia a continuidade necessária à marcha do Estado, satisfazendo conjuntamente os verdadeiros interesses sociais, pois que sobrepunha o zelo pelo bem comum, traduzido no mandato imperativo dos procuradores eleitos, às conveniências privadas de qualquer partido ou camarilha. Tínhamos assim dum lado a conceção que S. Tomás traçara da Realeza, com base na sua doutrina do Ser-Social. Do outro, saltava-nos Jean-Jacques Rousseau com os solilóquios apaixonados do Ermo, vertendo para a ótima prosa literária do Contrato, o seu roubo descaradíssimo à obra de Ulrici Huberi, De jure civitatis.
Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence. É que não há ideias avançadas, nem ideias atrasadas, por muito que custe aos fetichistas do Progresso Indefinido. O que há são ideias positivas e ideias negativas. A verdade política caracteriza-se assim por não ser nem um invento de hoje, nem uma mezinha de ontem: - é uma verdade de sempre, como de sempre é a verdade astronómica ou a verdade matemática, como de sempre são as leis fixas que regulam o jogo dos fenómenos físicos ou o equilíbrio das forças que a mecânica equaciona. Não se trata, por consequência, de regressão, no sentido escuro da palavra, o espetáculo que estamos presenciando no mundo culto, com a sua volta consciente aos grandes quadros tradicionais, tecidos, sem dúvida, por uma longa e bem provada experiência histórica. O que se verifica é que a sociedade, cansada de desordem, farta de desarranjo nos seus valores produtivos, decide-se enfim a não querer morrer. A guerra atual as gerações futuras a bem-dirão como um benefício de Deus. A energia ancestral desperta das nascentes entulhadas do ser. A Espada triunfará, para que os povos tornem à disciplina que os fez fortes e os levou às jornadas maiores da Civilização. Se a Espada se exceder na lei com que talhar a parte de Breno, lembremo-nos de Santo Agostinho, morrendo aos poucos, com o seu povo cercado pelo exército bárbaro. Non tollit Gothus quod Christus custodit, dizia o Santo aos que lhe pediam consolo entre os cuidados na agonia. A nossa derrota será, latinos, a nossa salvação! Mais alto que os planos estratégicos e que as ambições dos príncipes, reside o juízo imperscrutável de Deus. Suponho que a teologia se não opõe à sentença popular, segundo a qual Deus escreve direito por linhas tortas. Francófilo que me mostrei já em público, eu desejo agora veementemente a vitória da Alemanha. Só pela vitória dos Impérios Centrais nós teremos, com a derrota da Maçonaria, o restabelecimento da ordem legítima que permitirá à França ressarcir-se, a nós outros curar-nos. Cartago começa então a afundar-se no seu rochedo do Mar da Mancha. Os rapazes do inquérito de Agathon não venceriam, se o cavaleiro inimigo não arrastasse até à última das vergonhas a terra de S. Luís. Lá estariam os senhores do radicalismo para se enfeitarem, com o poder, com os loiros colhidos nas linhas pátrias invadidas. Unida a alma nacional pela comoção energética da mais dolorosa das catástrofes, a alma nacional se recobrará, expulsando na hora do ajuste de contas o estrangeiro do interior que abriu as portas ao do exterior. E quanto ao resto, - e quanto ao resto - non tollit Gothus quod Christus custodit! De cima do Vaticano a Igreja Católica vai salvar mais uma vez a civilização ocidental.
Eis porque a guerra atual significa um bem extraordinário para o futuro das Nacionalidades. As pátrias deixam de se entender como uma combinação fortuita de circunstâncias, do tremendo conflito sai bem acreditada a diferença eterna da Raça. Todos os elementos criadores do Passado encontram a mais estrondosa reabilitação. Demonstra-se com armas na mão que não há ideias avançadas, nem ideias atrasadas - insisto. Há ideias que dão a vida, como há idéias que dão a morte. As ideias por que os homens morrem são aquelas que dão a vida, como são as que dão a morte aquelas por que os homens vivem.
A resistência espantosa da Alemanha é para nós, integralistas, a mais clara confirmação de quanto vale para o vigor de um povo a posse intacta das instituições hereditárias do seu génio. Nós conversaremos um dia, a propósito do germanofilismo de certos monárquicos constitucionais, que apostam e batem as palmas pela Alemanha, mas que não aprendem a ver que é na limitação inteligente do parlamentarismo que se baseia todo esse admirável esforço. Os nossos monárquicos-constitucionais. Onde é que estás tu, António Denis da Cruz e Silva?!
II
Mas eu ia falando de Garrett e do equívoco padecido por ele na apreciação dos dois sistemas representativos, o da novidade e o de sempre. Garrett possuía em alto grau o instinto histórico. Essa qualidade o guardou de ir aos exageros do revolucionarismo lírico de 1820. O que vibrava nele era a indignação de uma alma quente, de mistura com os arrebatamentos fáceis de uma índole fundamentalmente literária. Na decadência em que nos subvertemos, as acusações gerais convergiam para a deficiência da nossa organização política. Daí o equívoco de Garrett. Tomou por absolutismo puro tudo quanto existia e perdurava no vasto sistema das instituições tradicionais. Não distinguiu entre o artifício centralista introduzido pelo Marquês e aquilo que representava uma aquisição proveitosa do nosso génio coletivo.
Uns de boa fé, outros de peito insidioso, votaram-se à demolição, de machado erguido. No meio termo, sem desdenharem as reformas justas, ficaram os Legitimistas. Com a legitimidade do princípio dinástico, guardaram consigo a legitimidade da herança nacional. Uma velha calúnia insiste ainda em os considerar como partidários do absolutismo. Nada menos certo! Os legitimistas, pelo contrário, exprimiram com o movimento que vai da carta de lei de 4 de Junho de 1824 às Cortes Gerais de 28, uma reacção profunda e bem consciente contra os excessos governativos do Estado pombalino. Ribeiro Saraiva, um dos seus doutrinários mais esclarecidos, em versos sem trambelho, mas verdadeiros, observaria a este respeito, discreteando do Marquês:
"E afagando perverso Jansenismo,
Desdenha a lusa antiga liberdade,
Às portas abre a louco despotismo."
Ora a lusa liberdade, inspira todo o período agitadíssimo do Portugal-Corcunda, que mais não desejava senão reconciliar-se consigo mesmo, com a marcha natural das suas naturais aspirações. Garrett parte também daí para os torneios de entusiasmo que dão com ele na emigração. Bem mais sensatos e mais dentro da alma nacional, os miguelistas agarram-se ao nobilíssimo Non possumus! que hoje os torna de uma viva atualidade para o pensamento contemporâneo, enquanto os inovadores que os acoimaram de góticos em nome da excelência dos Princípios não passam já de um arcaísmo de baixa espécie, refugiado nas piores camadas da inteligência e da acção. Desiludida de endeixas pérfidas, com as lições da história mais da realidade, a geração presente faz enfim justiça aos partidários do Príncipe proscrito, porque entende como eles que les institutions politiques ne sont jamais l'œuvre de la volonté d'un homme, na frase sólida de Fustel de Coulanges.
Sentia-o Garrett igualmente quando já na maturidade do seu espírito, denunciava a insânia varrida que sujeitara Portugal a uma série desastrosa de reformas, em que de novo nada havia, em que tudo o que havia era de França. Oiçamo-lo. "Reformadores ignorantes, não sabem dizer senão, como os energúmenos de Barras e Robespierre: Abaixo! Tira-se da máquina velha e ronceira uma roda essencial: o destruidor não sabia manejar senão o machado que arromba, não o instrumento delicado que constrói; a máquina não anda outro remédio brutal: tirar-lhe as rodas. Assim se reformou esta desgraçada terra a machado!" Garrett falava então acerca do nosso património ultramarino. É interessante continuar a escutá-lo: "Não contentes de revolver até aos fundamentos a desgraçada pátria com inovações incoerentes, repugnantes umas às outras e em quási tudo absurdas, sem consultar nossos usos, nossas práticas, nenhuma razão de conveniência, foram ainda atirar com todo esse montão de absurdos para além-mar, onde se tornaram dobrados, onde se multiplicaram ao infinito pela infinita variedade de obstáculos, de repugnâncias, de impraticabilidades locais que encontraram, e que em toda a sua vaidosa e doutrinária cegueira desprezaram aqueles orgulhosos Licurgos!" E logo a seguir: "Pois é duro dizê-lo; mas o mesmo nos há-de suceder se loucamente nos pusermos a legislar para aquelas remotas regiões, querendo doutrinariamente forçar localidades, circunstâncias, hábitos, modos de ser que ignoramos, a entrar a martelo dentro dos quadros arbitrários, que nossas teorias de cá decretam, como se nós fôssemos o Criador que disse: Faça-se! Como se nós pudéramos, mesquinhas criaturas, fazer mais do que reconhecer os factos como eles são, e modificá-los até onde eles podem ir. Felizes e magníficos legisladores, se ainda isto soubermos fazer!"
"Pois o mesmo, repito, nos há-de suceder com esse resto de possessões ultramarinas, se em vez de lhe acudirmos já, prontamente, com remédio, nos pusermos descansadamente a esmiuçar e apurar graves delicadezas de princípios de governação e regime, como em 1822 se fêz, que enquanto as Cortes decretavam nas Necessidades apuradas regras de governo, os brasileiros faziam na América regras a seu modo ou acabavam com todas". Oh! as "graves delicadezas de princípios!" Oh! as "apuradas regras de governo!" Garrett as satiriza e as increpa como ninguém, duvidando já da divindade dos novos ídolos, alarmado com o espetáculo de derrocada que os seus olhos passeiam doloridamente. É um cair tempestuoso de folhas. Garrett ainda quer crer, protesta esperanças vãs, como a enganar-se a si próprio. No entanto, com ressalva sempre para a Liberdade, de maiúscula solene, lastima que às mãos do governo representativo se perdesse o que o despotismo mais absurdo não chegara a perder nunca! E com a mais vasta visão da política colonial, Garrett põe o dedo num dos maiores ridículos do Constitucionalismo, qual foi o de chamar gentios de Angola e de Timor no mesmo pé que os cidadãos da metrópole ao banquete eleitoral dos Direitos do Homem e da Soberania do Povo!
"As nossas antigas colónias tinham um sistema de legislação antiga, obra de séculos, e só as ordenações dos senhores reis D. Manuel e D. Sebastião para a Índia tinham quási tanto que estudar como as nossas ordenações do reino... as legislações da primeira ditadura aplicaram indistintamente a todos aqueles países, tão diversos dos nossos, tão diversos entre si, o mesmo sistema de administração e regimento que já para nós era inconsiderado. Mas aqui o remédio era possível (às vezes) onde o mal bradava muito e lá se resolvia o governo a acudir-lhe, e estava perto. No Ultramar, como ainda agora disse, todo o mal chegava, nenhum remédio podia chegar.
"Veio a segunda ditadura, remediou em grande parte os remédios da primeira, retrogradou (como devia) a muitos dos antigos métodos especiais e da legislação local daquelas terras. Mas todo este direito anda por cá flutuante e vago; como não será ele por lá! Que fatal não pode ser àqueles estabelecimentos, cujo estado é já lamentoso, que fatal lhes não será que agora lhes apareça por lá um novo regime e sistema que amanhã nós declaremos nulo e revoguemos! Que será se o governador ido nesta monção começar a estabelecer o regimento da província, e ainda no princípio, rodeado ainda das terríveis dificuldades primeiras, na próxima monção lhe arrebentar outro governador com outro sistema e outras instruções; e que nada chegue a arreigar onde semelhantes plantas tanto custam sempre a aclimatar?"
Garrett tocava magistralmente no sofisma que a lento e lento nos ia arruinando. Não contentes em desenraizarem o País com modas abstratas de reformadores de pacotilha, os barões assinalados da Liberdade submetiam os nossos domínios ultramarinos a uma falsa geografia legislativa em que tudo, - promontório e ilha, serrania e vale, se confundia e misturava na mentalidade simplista dos donos do Terreiro do Paço. Éramos bem uma pátria regenerada a machado! Como o Criador, - Fiat! - improvisamos condições de meio, o Passado foi menos que uma tábua-rasa, o amor da novidade levou-nos de mãos atadas ao capricho tumultuário de qualquer ministério de acaso. A instabilidade governativa, lançando as relações sociais num interinato constante, já a Garrett não escapara nesse formidável discurso de 37. Valeu-lhe por tantos motivos o epiteto de reacionário, com que abundantemente, e em mais de uma circunstância, Garrett seria cumprimentado. Aceita-o o Poeta com desassombro.
E tal como um integralista neste ano V da República, e depois da sua segunda proclamação pelo Sr. Leote do Rêgo, é com um rasgo de energia moral, cheio do maior aprumo de inteligência, que Garrett a si mesmo se classifica de retrógrado. "Sou retrógrado cronológica e não metodicamente, exclamava ele, queixando das alterações que lhe introduziam nos discursos ao serem publicados na folha oficial. Talvez que os senhores encarregados da desfiguração, não entendam isto, e, nesse caso, ou alterem como é seu costume, ou perguntem a quem lho explique. Sou, pois, cronologicamente retrógrado, porque os que tudo deslocaram em Portugal fizeram-no por um movimento extemporâneo, e antecipado, e eu desejo retrogradar com o país ao ponto justo e razoável onde eles o deviam deixar. Não o faço metodicamente, porque em tudo quanto sem perigo podemos adiantar, não ponho limites ao movimento". E Garrett apressava-se a esclarecer: Tomara que chegássemos até à perfetibilidade, em que, todavia, não creio!
Na verdade, só por um espantoso avanço sobre si mesmo é que Garrett se qualificava assim, em desprezo supremo pelas pomposamente chamadas luzes do século. Havia, porém, em Garrett, com um profundo sentido da nossa tradição, um como que instinto da ordem antiga, traçada e robustecida pela longa experiência do povo português. À maneira que o convívio dos factos o avisava dos erros criminosos das quadrilhas liberalistas, Garrett assistia dentro de si ao renascimento do Portugal histórico que o Portugal da Carta desfizera. São notáveis a este propósito as apreciações de família.
A família, com o irmão Alexandre por porta-voz na sua qualidade de primogénito, mantivera-se fiel ao princípio legitimista, praticando a observância rigorosa da educação católica recebida do tio bispo. Compreende-se o desgosto que lhe não causariam as ideias revolucionárias do João Baptista. Mas a mágoa, longamente amassada, transforma-se um belo dia num começo de esperança, tão cedo Garrett se manifesta no parlamento em desacordo com a marcha das coisas públicas. Surge a perspetiva mal imaginada duma conversão. Os Garrett nas suas ingenuidades genealógicas, parece que se tinham por parentes de São Gonçalo de Amarante. Faria o milagre o primo São Gonçalo?
Vão, com efeito, ao extremo os entusiasmos familiares quando Garrett, falando acerca dos nossos negócios eclesiásticos, se pronuncia na Câmara contra os governadores postos pelo ministério à frente de algumas dioceses, e em manifesto atropelo pelos direitos dos respetivos prelados. É o caso da rotura com a Corte de Roma e da conhecida agitação religiosa nas nossas províncias do Norte. Chega a notícia da atitude de Garrett ao recatado cantinho dos seus. A tia D. Colecta Cândida, o Padre José Custódio, a boa Rosa de Lima, erguem as mãos ao Céu e agradecem ao Senhor o não se irem deste mísero mundo sem verem o João entrado no verdadeiro caminho. O mano Alexandre é o emissário de todos esses santos júbilos numa carta de nada mais, nada menos, que de onze páginas em quarto grande. Conta-no-lo o minucioso Gomes de Amorim, que se apressa a comentar, abespinhado: — "João devia ficar pouco lisonjeado com o triunfo". Contudo, não escondo o alvoroço que a posição inesperada de Garrett no parlamento ocasionara, não só no seio da família, mas até nos próprios arraiais miguelistas. "O partido oposto à liberdade, - continua com engraçado azedume o seu biógrafo - julgou ter feito a conquista de Garrett para as suas fileiras e houve parabéns entre os mais conspícuos dos seus membros pela suposta aquisição de tão grande caudilho". Por Gomes de Amorim sabemos do contentamento de Alexandre Garrett. Os correligionários, Alexandre era, como se disse, legitimista, afiançavam que nunca nas câmaras se ouvira um discurso como êsse. A tia D. Colecta não podia falar de João sem romper logo em lágrimas de alegria. Recordava-se a pobre senhora da profecia feita no convento a uma velha parenta professa por uma freira, sua amiga. "Ainda se admirariam todos de ver o que sairia de ti!" exclamava o mano Alexandre, referindo-se à promessa da santinha. E Alexandre desfazia-se em minudências da festa íntima que tomava a família inteira. "A tua Rosa de Lima, esta diz coisas que ao mesmo tempo fazem chorar e rir". Quanto a ele, irmão mais velho e sempre fiel aos seus princípios, escusado seria pensar como o novo aspeto de João o enchia de profundo contentamento. "Sim, eu me glorio de ser teu irmão, os teus louvores aprecio como próprios, ajudo, acrescento, lembro novos motivos para seres louvado aos que por toda a parte e como à porfia se empenham em te exaltar, em te bem-dizer. Mas glorio-me no Senhor, em cuja misericórdia tenho uma grande confiança, que fêz, e fará de ti, um vaso de eleição". E Alexandre rematava, aludindo ao exemplo de São Paulo, perseguidor da Igreja de Cristo, ao depois rendido à comunidade dos crentes: - "Seja pois este glorioso apóstolo o protótipo à vida que ainda te resta, já que o foi da tua conversão". As primas por outro lado, e Garrett tinha-as lindíssimas, - mandavam-lhe também epístolas exultatórias, insistindo na profecia da freira, D. Rosa chamada, a qual, ao constarem-lhe as leviandades políticas de Garrett, afirmava inalteravelmente: "Deixem-no lá, que eu fico por fiadora dele".
Não sei o que Garrett julgaria dos aplausos da família. Gomes de Amorim sai de lança em riste pela pureza das convicções liberalistas de João e assevera categoricamente que não existia razão para supor Garrett inclinado ao Legitimismo. É caso para reservas, no entanto. Sem dúvida que Garrett não se dispunha a ingressar nas fileiras do Príncipe proscrito. Mas a desilusão que lhe trabalhava o espírito conduzia-o naturalmente ao encontro duma política histórica, integralista, diríamos hoje, - toda ela apoiada nos factos, sem o reconhecimento da qual Garrett entendia que o País, traído e espoliado pelas mais impudicas clientelas, deslizaria de rápido para uma agonia sem remédio. Daí o equívoco da família que, leal ao Monarca deposto pelos efeitos da Quádrupla Aliança, o era mais por um enraizamento do Portugal velho do que talvez por preferências de índole meramente dinástica. D. Miguel valia pelas instituições tradicionais da Raça com os seus foros e as suas franquias contra a nação importada nas bagagens de Palmela e com os argonautas do Mindelo (da Praia dos Ladrões, - é mais exato) por servidores bem difíceis de remunerar. De modo que a convergência de Garrett para as inclinações seculares da Nacionalidade, numa adivinhação inteligente de que energias e os destinos de um povo dependem mais do respeito do seu determinismo hereditário que da excelência teórica dos Princípios, coincidia à maravilha com a noção da ordem antiga que se não obliterara ainda de todo nos sentimentos calmos da parentela.
Eu não ignoro que Garrett se agarrava quanto podia ao sonho querido da sua mocidade. Mas a evidência dos acontecimentos vencia-lhe o otimismo obstinado. E a prova é que Garrett morreu convencido de que o seu esforço fora mais que vão, fora criminoso. É que a estreita mentalidade romântica não lhe empanou a admirável compreensão das coisas. Garrett nascera temperado pela disciplina saudável das letras clássicas. Não explico doutra forma, senão pelo senso realista da educação que recebera do humanismo terso do tio bispo, a forte reacção intelectual que pôs Garrett em avanço sobre a sua época e sobre si mesmo. É donde provém a condenação inexorável que o Constitucionalismo lhe arrancou quási às vésperas de morrer, na célebre sessão de 21 de Janeiro de 1854.
III
Nessa sessão Garrett apresentou à Câmara dos Pares um projecto de lei sobre conventos de freiras e um relatório, com as respectivas bases, sôbre a reforma administrativa. Pronunciando-se pela readmissão das ordens religiosas para o sexo feminino, Garrett, diante duma maioria eivada dos piores prejuízos morais, não hesitou em se confessar coram populo, batendo convicto com as mãos ambas no peito. "É a missão das revoluções destruir; é a lei, é a precisão perpétua e periódica destes cometas do sistema social: não edificam, nem criam, nem reformam. Mas a sociedade é imortal, as leis e as condições da sua existência eternas, e mais tarde ou mais cedo, das ruínas necessárias de uma revolução, ressurgem os princípios indestrutíveis para remodelar o que é essencial à vida de cada sociedade segundo o seu modo de ser". E em considerações que eu acho inútil transcrever, recomendando, todavia, a ponderação delas, Garrett entrava de pronto na apologia franca dos institutos monásticos .
Nós sabemos como Garrett nas Viagens na minha terra tratara os frades. Numa hora em que o nosso passado religioso se inculca como um passado de torpezas e obscurantismo, bom é que avivemos, para edificação das gentes, o testemunho insuspeito de Garrett. Escutemo-lo:
"Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.
"No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.
"Nas cidades , aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecos de carapinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia - cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.
"Nos campos o efeito era ainda maior: eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel já não é o mesmo.
"Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade, que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram.
"É muito mais poético o frade que o barão.
"Frade era, até certo ponto, Dom Quixote da sociedade velha.
"O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova.
... ... ... ... ... ... ...
"O barão é pois usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário.
"Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo.
"Este é o barão verdadeiro e puro sangue; o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui se não trata.
"Ora sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século, nem nós os compreendemos a eles...
"Por isso brigamos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandamos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fêz outra. O barão mordeu no frade, devorou-o... e escouceou-nos a nós depois.
... ... ... ... ... ... ... ... ...
"Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.
"São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbus da sociedade actual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio no Judeu Errante que precisa refeito.
"Ora o frade foi quem errou primeiro em não nos compreender a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações; como que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo não lhe servia nem o servia.
"Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor.
"Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há-de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades, ou com barões, ou com pedreiros livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas enfim é u m a necessidade.
"Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e aproveitar.
"O progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
"Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudade dos frades, não dos frades que foram, mas dos que podiam ser.
"E sei que não me enganam poesias: que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves.
"E sei que não me namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é.
"Não senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós, e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de "requiem" para nos dizer missa, e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade, - porque não há de outra de cá".
Assim pensava Garrett, ainda antes de experimentar o travo das últimas desilusões. Cria ainda no Progresso com P grande e não desesperava talvez de conciliar a Liberdade com a ordem - "duas divindades que se devem venerar no mesmo altar", dizia êle. Mas onde Garrett é admirável é ao traçar a figura de Fr. Denis.
Nas considerações que acompanham esse profundo retrato psicológico, Garrett revela-se-nos como em nenhuma outra parte um precursor da nova corrente de ideias que hoje se desenha nos horizontes de Portugal por meio da acção benéfica da mocidade.
"Tal era Frei Denis, observa o poeta , - homem de princípios austeros, de crenças rígidas e de uma lógica inflexível e teimosa: lógica porém que rejeitava toda a análise, e que, forte nas grandes verdades intelectuais e morais em que fixara o seu espírito, descia delas com o tremendo peso duma síntese aspérrima e opressora que esmagava todo o argumento, destruía todo o raciocínio que se lhe punha diante.
"Condillac chamou à síntese método de trevas: Frei Denis ria-se de Condillac... e eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.
"O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o aborrecer: mas as teorias filosóficas dos liberais, escarnecia-as como absurdas, rejeitava-as como perversoras de toda a ideia sã, de todo o sentimento justo, de toda a bondade praticável. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer forma, não havia mais leis que as do Decálogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho, dizia ele. Reforçá-las é supérfluo, melhorá-las impossível, desviar delas monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangélica, que é o estado monástico, há regras para todos ali; e não falta senão observá-las.
... ... ... ... ... ...
"Segundo os seus princípios, poder de homem sobre homem, era usurpação sempre e em qualquer modo que fosse constituído. Todo o poder estava em Deus que o delegara ao pai sôbre o filho, daí a o chefe da família sobre a família, daí a um desses sobre todo o Estado; mas para o reger segundo o Evangelho e em toda a austeridade republicana dos primitivos princípios cristãos. "Assim fora ungido Saúl, e nele todos os reis da terra - sem o que não eram reis.
"Tudo o mais, anarquia, usurpação, tirania, - pecado, absurdo insustentável e impossível.
"E sobre isto também não disputava, que não concebia: era dogma.
"Nas aplicações, sim, questionava, ou antes, arguia, com a sua lógica de ferro. As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os poupava mais do que aos novos. A tirania dos reis, a cobiça e a soberba dos grandes, a corrupção e a ignorância dos sacerdotes, nunca houve tribuno popular que as açoitasse mais sem dó nem caridade.
"O princípio, porém, da monarquia antiga, defendia-o, já se vê, por verdadeiro, embora fossem mentirosos e hipócritas os que o invocavam.
"Quanto às doutrinas constitucionais, não as entendia, e protestava que os seus mais zelosos apóstolos as não entendiam tão-pouco: não tinham senso-comum, eram abstracções de escola.
"Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.
"O chamado liberalismo, esse entendia ele. Reduz-se, dizia, a duas coisas: duvidar e destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim; é uma seita toda material, em que a carne domina e o espírito serve; tem uma força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tísico; a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as forças vão-se, e a morte é mais certa. «Dos grandes e eternos princípios da Igualdade e d a Liberdade dizia: Em eles os praticando deveras, os liberais, faço-me eu liberal também. Mas não há perigo: se os não entendem! Para entender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na igualdade é preciso ter o Evangelho no coração."
O carinho com que Garrett vinca as linhas dominantes do carácter de Frei Denis, faz-nos supor que o Poeta se reconhecia no frade das Viagens na minha terra. Não consistia noutra coisa o legitimismo de Garrett. Garrett resignava-se à aceitação consciente das normas que regem as sociedades e sem o respeito das quais tudo se resolve em poeira de morte, numa confusão irremediável. Passara-lhe o alvoroço da mocidade, ao ver desfeitos em cinza os frutos doirados da árvore da Liberdade. Se os frutos dessa árvore se pareciam com os que Chateaubriand apanhara nas orlas do Mar do Sal! A tia Dona Colecta ganhara, pois, a partida. É que a excelente senhora estava, afinal, mais perto da verdade que o abespinhado Gomes de Amorim, cheio das teias-de-aranha da metafísica revolucionária, despido por isso mesmo da intuição sentimental que em Dona Colecta Cândida supria as vistas largas da cultura. No outro mundo, lá na Morada Eterna em que os Mortos se reúnem na Paz, Dona Colecta Cândida, o Padre Custódio, a Rosa de Lima e a freira da profecia poderiam, enfim, render graças ao Senhor pela claridade que ia tornando João Baptista um verdadeiro "vaso de eleição"!
Nós vimos, com efeito, como Garrett no esbôço que traça de Frei Denis, sabe distinguir a essência da monarquia pura, da natureza viciosa da monarquia absoluta, não colaborando, portanto, na calúnia inadmissível que tinge a realeza de D. Miguel das tintas carregadas de um despotismo de drama em cinco actos, com seu prólogo e seu epílogo. Gomes de Amorim não há dúvida que jurava falso, quando imaginava Garrett irreconciliável com “o partido oposto à liberdade”. João Baptista merecia a confiança da freira que ficara por ele! É ouvi-lo mais tarde, muito depois das Viagens na minha terra, defendendo na memorável sessão de Janeiro de 1854, a profissão religiosa para o sexo feminino:
"Todos os maternais desvelos que a Religião e a sociedade prometem e devem aos que não têm mãe, aos que não têm família, aos deserdados desde a nascença, ou aos órfãos pelo vício e pelo crime, às vítimas da infelicidade, aos sequestrados pelas inevitáveis desigualdades sociais, todos precisam do sacerdócio feminino para se cumprirem.
"As antigas rodas e as novas creches, as gafarias, os hospitais, as albergarias e hospícios de nossos maiores, os asilos da infância e da mendicidade, as casas pias e os recolhimentos noturnos, tudo o que a piedosa linguagem do Evangelho chama obras da misericórdia e a faustosa língua dos filósofos diz filantropia, quanto pede a Religião cristã e quanto exige o Socialismo, o que reclama aquele em nome de Deus e este em nome dos homens, precisa do ministério das mulheres para se poder cabalmente praticar.
"As freiras são pois também uma necessidade social, - continua Garrett; cuidados mercenários não podem fazer o que a dedicação religiosa alcança. Por toda a Europa que se discorra e se compare o estado de quaisquer dois estabelecimentos paralelos, um cuidado por mulheres religiosas, outro pela mais zelosa inspecção oficial, achar-se-á pelo testemunho unânime de toda a gente, ainda a suspeita, quanto é verdade o que afirmo."
E Garrett alarga-se em reflexões que eu gostaria de submeter à apreciação do Sr. Teófilo Braga, cujo farisaísmo sem linha o levou a falsificar a individualidade bem nítida do Poeta, a ponto de no-la servir quase como um próximo parente desta república miserável que nasceu bastarda e com as piores pechas da hereditariedade. Às freiras pertence a maternidade social, afirmava Garrett de pés para a cova, num brado de alma que o nobilita perante os juízos futuros. Derrubou-se, saqueou-se, no fundo dos conventos, tiritando de frio e fome, há velhas que rezam ainda, que rezam sempre, que não deixam nunca de rezar. Fundiram-se os vasos sagrados no bezerro-de-oiro execrando do materialismo. Pois bem: arrependamo-nos, como homens de consciência!" E o orador, dando o exemplo, termina por propor ao Parlamento que fosse autorizado o governo "a permitir a admissão ao noviciado e profissão em todos os mosteiros e conventos do sexo feminino, cuja instituição tenha actualmente, ou venha a ter por objecto a educação de meninos, a educação e instrução primária de crianças de ambos os sexos, ou tratar de hospitais, asilos, prisões e casas pias similares".
Mas nesse dia inolvidável Garrett não deixaria reabilitada a sua acção política somente no campo religioso. Trazendo juntamente à Câmara com o projeto de lei sobre os institutos monásticos as bases duma saudável organização administrativa, Garrett penitenciava-se em público das reformas insensatas da Terceira, em que tão grande parte lhe coubera como colaborador assíduo da obra nefasta de Mousinho:
"A administração em Portugal, como desde a remota origem deste povo se afeiçoou com as leis e hábitos romanos, com os hábitos e instituições da Idade Média, assenta num princípio que ninguém por largos anos se lembrara jamais de revocar em dúvida nem de discutir sequer embora se sofismasse muitas vezes e é que o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus. Ajunte-se a este princípio o que lhe adicionou depois a monarquia, a bem da ordem e da harmonia geral dos interesses públicos, o qual é que a autoridade central tem direito e obrigação de velar por que os interesses das localidades se não choquem e contrariem em prejuízo comum: e temos concentrados nestes dois, todos os mandamentos da lei na nossa existência social.
"Abusando umas vezes, retificando outras, assim vemos na nossa história administrativa a autoridade delegada pelo poder central do Estado nos Corregedores, nos Juízes de Fora e nos Provedores, posta de equilíbrio e de fiel de balança à autoridade delegada pelo povo aos seus vereadores e juízes.
"Se é permitida a expressão, direi que a nossa administração pública se criou e fundou pelo método natural ou analítico, enquanto o sistema imperial francês é todo sintético. Portugal, assim como ainda hoje a Inglaterra, a Holanda, a Bélgica e a melhor parte da Alemanha, países todos municipais, professa e crê que o direito de se administrar a si próprio pertence ao povo; assim como o direito de vedar que a administração popular de uma localidade lese a outra, ou outras, ou todo do país, pertence à autoridade central: em melhor e mais certo rigor de expressão constitucional, à Coroa, primeiro fiel e primeira garantia de todas as liberdades."
Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo.
"A legislação francesa, - prossegue ele - assenta no princípio oposto, que eu não duvido qualificar de falso, de que o direito de administração pertence à autoridade central, e que os povos, quando muito, só podem ser ouvidos e consultados sobre as suas necessidades, desejos e contribuições.
"Eis aqui, Senhores, porque, adotando-se um sistema, partindo-se de um princípio que não é falso, como eu para mim o tenho, em toda e qualquer forma de governo, para Portugal é errado, cujos hábitos, cujas tradições, cuja história, cujo amor próprio mesmo contraria e comprime, e que, demais a mais, é diametralmente oposto e estrepitosamente dissonante ao Governo representativo”.
Garrett ressalva ainda a sua quimera. Mas depressa, com nobre sinceridade, declarava em alto e bom som que a esse vício radical acrescera uma funesta circunstância. Foi a de se torcer e de se elevar até ao absurdo um sistema administrativo, já de si tão antagónico com as tendências e os interesses colectivos. De onde concluir Garrett que proviera “a principal e mais poderosa causa das desordens, anarquias, irregularidades, prepotências, desperdícios e opressões de que Portugal tem sido vítima nestes vinte anos de tergiversações, de apalpadelas políticas e governamentais”.
Mais uma vez Garrett insiste no equívoco deplorável que lhe entortava sempre a visão profundíssima. Confunde o regime parlamentar com o regime representativo, que, apoiado um no individualismo abstrato dos Direitos do Homem, o outro na concepção antiga das ordens ou corpos do Estado, se excluem irremediavelmente por condições especiais de natureza e funcionamento. Em compensação, a frase "apalpadelas políticas e governamentais" é definitiva. Marca como um ferro em brasa, toda a incrível literatura legislativa da monarquia constitucional; em cujo ventre, é sabido, que durante mais de sessenta anos de incompetência e de desorganização se andou gerando a bela república com que os destinos nos presentearam numa bela manhãzinha de Outubro.
Muito mais haveria a transcrever do relatório de Garrett. Não me o consente o espaço deste estudo, já mais extenso do que seria para desejar. No entanto, dêem-me licença que eu recorte ainda mais algumas passagens do famoso documento. Talvez, afinal, fosse melhor copiar tudo, tão actual, tão rico de sentido e de verdade se nos manifesta o extraordinário espírito de Garrett! Assim, numa lição formidável para os que professam ainda a superstição do prestígio intangível da Lei, Garrett diz-nos: - “Sendo uma organização administrativa tão absurda, que é a mesma para o continente e para os arquipélagos das nossas ilhas, separados entre si por largos e tempestuosos mares, que é a mesma para uma capital como Lisboa, e para uma vilazinha de trinta fogos”. Para os que alcandoram às supremas cumeadas do capitólio a obra antinacional de Mouzinho da Silveira, previne-nos Garrett: “...Senhores, são passados mais de vinte anos de experiências infelizes, de tentativas malogradas, e seria a maior de todas as vergonhas se nos envergonhássemos agora de confessar que erramos, que erramos muitas vezes, e que tanto mais erramos quanto mais tentamos dissimular o primeiro erro”. Para os que se defendem na sua insânia de facciosos como contado e recontado estribilho de que para trás não se anda! Garrett observa-nos:- “Não venha o funesto sofisma do medo do passado impedir-nos de voltar ao que havia de bom, e de justo e de livre - que era muito,- nas instituições de nossos maiores”. E, finalmente, para quem nos cuide a nós, integralistas, muito dispostos a ressuscitar neste século vigésimo do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo a monarquia quatrocentista de El-Rei D. João II, é ainda e sempre Garrett que nos antecipa e fixa o nosso pensamento ao encerrar o seu notabilíssimo relatório: “Nem tão-pouco eu venho - faltar ao respeito à lei do Estado que, débil trabalhador, ajudei a plantar, fraco soldado, gastei a vida a defender,- a esta Câmara, a mim mesmo e à memória honrada e gloriosa dos que ressuscitaram entre nós a liberdade, propondo-vos que voltemos às instituições municipais da Idade Média, que o feudalismo inquinou em muita parte e em que o despotismo infiltrou depois a sua corrupção.
Não, Senhores, não são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juízes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos: são algumas poucas e simples bases de reforma, e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem para que, em harmonia e conformidade com elas, seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...”.
Não foi, porém, na sessão de 21 de Janeiro que Garrett lavrou as suas disposições finais. Ele entra nos umbrais da história com o formidável libelo pronunciado em resposta ao Discurso da Coroa, nas sessões seguintes de 10 de Fevereiro e de 5 de Março, acerca da nossa administração pública e do nosso Padroado no Oriente. As instituições tradicionais da Pátria são aí resgatadas do largo descrédito a que as haviam remetido as oratórias salivosas dos homens da Liberdade.
“Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação, - clamaria então Garrett, - a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com a minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, dessas imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimentado de teorias que, basta serem tantas e tão encontradas, para nenhuma se poder realizar."
Em seguida a um mea culpa tão retumbante em que fica definitivamente condenada toda a obra legislativa do Liberalismo, Garrett, mais uma vez ainda com os sãos princípios, não tardava a asseverar que desde que "a governação do Estado não assente sobre uma recta e regular administração municipal e provincial, como a pede a índole do país, e os seus costumes, as suas tradições, as suas necessidades e circunstâncias, nada pode melhorar e prosperar, - nada pode existir verdadeira e solidamente". E logo adiante o Poeta insiste nos seus propósitos descentralizadores: - "A administração propriamente dita, não pode em nenhum país, e não digo só nos países constitucionais, em todos, não pode ser senão a combinação dos esforços espontâneos dos povos com a direcção do governo central.
"Sobre esta dupla base repousa toda a administração, - volta de novo Garrett a recordá-lo. “Mas a nossa é toda imposta, toda de compressão, toda sintética. Não se analisam as forças públicas, decretam-se. Não se examina o que há e pode haver, para se regular e dirigir pela lei. Não, Senhores; a lei é que ordena o que há e o que não há-de haver. A autoridade pública determina e decide dogmaticamente o que os cidadãos possuem, a instrução que têm, os filhos que geraram, as circunscrições territoriais a que pertencem, sem lhe importar que a natureza, o clima, as circunstâncias pessoais ou locais desmintam as suas decisões, ou zombem delas”. E para isto, para estas liberdades, se implantou em Portugal a Liberdade da Carta!
Garrett indigna-se contra o malvado espírito de simetria, que na sua fúria uniformizadora obrigava os governos constitucionais a “cortar a cabeça à noiva e os pés à mula”, exprimia-se ele com um raro e pitoresco vigor, contanto que vingasse a “sublime teoria que despreza todos os factos”. Não há subterfúgio que lhe impeça o desassombro da linguagem, nem terror humano que haja de evitar que ele chame a um gato uma gata! Perante a imoralidade que se apossara dos selos do Estado, Garrett não duvida exclamar: “Devemos confessar que, neste ponto ao menos, o governo absoluto era menos arbitrário que nós, nós que, diante da liberdade e das tábuas da Lei que pusemos no altar, estamos sacrilegamente sacrificando ao bezerro de ouro do arbítrio, cegos por nossas paixões e interesses. Não valia a pena sair do Egito para isto, de vogar tantos anos pelo deserto e de passar o Mar Vermelho de tão sanguinolentas guerras civis”.
O que não tínhamos ainda para recordar! Porém, os Discursos Parlamentares aí estão a dizer mais do que no presente estudo se diz e merecem bem que os meditemos como o sinal poderoso da conversão de Garrett. Pregunta-se, no entanto: — mas sentiria deveras Garrett a falência do Constitucionalismo, convencer-se-ia, realmente, de que só se batera por uma mentira criminosa? Por bastante que pese aos últimos corifeus do sofisma rendido em 5 de Outubro pela mais vergonhosa das abdicações, eu asseguro que sim. Lembram-se do capítulo final das Viagens na minha terra? Garrett encontra-se com Frei Denis e dialogam os dois a propósito de Carlos.
... ... ... ...
“- Mas Carlos?
- Carlos é barão: — não lhe disse já?….
- Não sabe o que é ser barão?
- Oh, se sei! Tão poucos temos nós!
- Pois barão é o sucedâneo dos ...
- Dos frades.... Ruim substituição!
- Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.
- E que lhe pareceu?
- Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa, nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.
- Erramos ambos.
- Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: - mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser não sei. Deus proverá.”
... ... ... ...
Já num capítulo anterior, visitando São Francisco de Santarém, Garrett patenteara bem a repulsa da sua inteligência mais da sua sensibilidade pelo sistema de pegada desnacionalização que tomara conta de nós. "Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abalando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais polido e mais respeitado desses jazigos antiquíssimos; os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os", - comenta Garrett passeando-se em pleno vandalismo. “Levantaram as lajes dos sepulcros, e ao som da corneta militar acordaram os mortos de séculos, cuidando ouvir a trombeta final...
"Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.
“Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram, Portugal... que te envileceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua história!...
"Eheu , eheu , Portugal!"
"Eheu, eheu, Portugal!" - E enquanto o voluntário académico do cerco do Porto deplora o dia da ira que se vem aproximando para a Nacionalidade, atendamos nós um pouco a dois testemunhos interessantíssimos que, produzidos ambos do campo legitimista, projetam sobre o problema da conversão de Garrett uma claridade decisiva. Em nota ao livro de versos, Selecta, e a páginas 194, narra-nos Pereira da Cunha o seu último encontro com Garrett. Foi no Chiado, à porta do Marrare de polimento. "Prostrava-o já a doença, a que, afinal, sucumbiu; porém forcejava ainda por se mostrar animado, e sempre irrepreensível no seu traje. O fraque, o chapéu branco, as luvas, a badine, tinha tudo o verniz parisiense. Era o seu fraco, coitado! e não o perdoou a detracção.
“Ele avistou-me de longe; acenou-me com a mão, e veio logo falar-me com o agrado do costume, dizendo-me, sem mais preâmbulos:
- Vai, esta noite, ao concerto?
- Trazia essa tenção - respondi eu.
- Pois então, iremos juntos. Venha agora tomar neve.
Entramos num gabinete, à direita do café. Estavam só uns holandeses bochechudos, rubicundos, dos que Filinto Elísio designava por «batatas ambulantes», mas isso não obstou a podermos julgar-nos à vontade, conversando por mais de meia hora.
Sendo tão assídua e íntima a minha convivência com Garrett, nunca ele me tocava no que causava as nossas discordâncias no terreno político. Fê-lo nessa ocasião. Acertamos de falar sobre não sei que sucesso, que vinha nos diários da manhã, indicado como escândalo, e daí o incitamento, que o foi levando a explicar-se.
Começou a deplorar a crescente corrupção, que já ia dominando as camadas sociais, e amortecendo todos os impulsos, de natureza elevada; previu, com a sua lucidez, aonde isso chegaria, e talvez numa época mais próxima do que ninguém supusesse; e dando, depois, à voz uma inflexão singular, que eu nunca lhe tinha ouvido, rematou pela forma, que se segue: "Eu estou desenganado. Isto saiu-me o contrário do que se me afigurava. Os entusiasmos apagaram-se; e essa íntima cartada já eu a dei sem furor.
Havia aqui, bem se vê, uma alusão muito clara ao tempo em que foi ministro; e por isso reproduzo, com fiel exatidão, as palavras do poeta. São textuais; assevero-o. Eu fiquei silencioso. Não deixou de admirar-me e a inesperada expansão, bem que, há muito, m e parecesse que naquele grande espírito se andava a operar uma mudança sobre o seu modo de ver os fenómenos morais, que se iam manifestando .
E devia ser assim. Quem amou sempre a verdade em todas as coisas de arte, não podia deixar de procurá-la nos sistemas filosóficos."
Eis a parte principal do depoimento de Pereira da Cunha. Não se atreve, contudo, Pereira da Cunha a admitir a hipótese de que Garrett modificasse tanto as suas opiniões em política a ponto de repelir por completo a ficção por que se batera. Mais categórico, Ribeiro Saraiva conta-nos os motivos sentimentais que impediram Garrett de gritar abertamente à posteridade: - “Enganei-me!” como o tribuno de Paul Bourget. No livro Algumas horas na minha livraria, o general Martins de Carvalho insere a páginas 189 e seguinte, uma curiosíssima carta que seu pai, o velho jornalista conimbricense, recebera de António Ribeiro Saraiva por ocasião do Centenário de Camões. “Nos escritos de Garrett não é difícil encontrar passagens no mesmo tom, em que ele desse testemunho análogo ao sobredito de Castilho, quanto às belezas e grandezas que em Portugal entraram pela “Praia dos Ladrões”" — escreve o antigo diplomata de D. Miguel I.
"A um íntimo Amigo meu, que num verão, alguns anos antes do falecimento do meu talentoso condiscípulo, com ele habitou nas Praias a mesma casa, dizia este, prossegue Ribeiro Saraiva, ao ler alguns dos meus papéis, onde eu combatia o sistema que nos trouxe a desordem, baixeza e actual insignificância europeia : — "Oh! quanto melhor eu podia expor, demonstrar tudo isto!" - E ao dizer-lhe o meu Amigo: - "E porque não adere V. ao sistema causa que assim confessa preferível?» A isto Garrett, depois de um momento de hesitação e silêncio, respondeu com certa energia despeitosa:
"Não. Fizeram que perdesse a minha Filha que eu idolatrava. E mudou de conversação."
A freira da profecia não se enganara, não! João Baptista, metido ao bom caminho, ainda haveria de dar muito que falar de si! Reunido à tia Colecta, ao Padre José Custódio, à velha Rosa de Lima, Garrett é bem nosso, - de nós outros que, sacrificando à causa quási perdida da Pátria, as aspirações doiradas da mocidade, por muitos que já sejamos, mal chegamos ainda para reparar os estragos duma utopia que em setenta anos de diabo à solta colocou Portugal mesmo à beira do abismo. Garrett, sempre vivo na penetração superior do seu génio, é mais um esforço que nós recolhemos para estes trabalhos mitológicos de querermos alimpar as cavalariças de Augias.
Entre os grandes pensadores que no princípio do século passado resistiram imperturbáveis ao contágio venenoso da ideologia revolucionária, e a linda ala de namorados que hoje surge para os embates da formidável batalha pela Ordem que o mundo inteiro está travando, Garrett representa, com as correções amargas da experiência, a transição de uma fase para outra, da fase teológica para a fase positivista, com passagem na metafísica estouvada do seu liberalismo romântico. Ele é nosso, como o é Herculano, como o é Ramalho, como o é Eça de Queiroz. A monarquia da Carta, que nós, os novos, não deixaremos ressuscitar para que a república se não proclame outra vez, o que é que lhe fica? Ficam-lhe os insignes aventureiros com que a Monarquia brindou as altas direcções governativas da Nação, incarnados maravilhosamente em Silva Carvalho e Costa Cabral. Pode a monarquia da Carta condecorar-se ainda com a canonização do traidor Gomes Freire e com os serviços do Imperador D. Pedro, oferecendo ao estrangeiro a quem mais desse, o nosso património colonial. Nós, os integralistas, que guardamos connosco a alma intacta da Grei, nada pretendemos do Portugal nascido na “Praia dos Ladrões”, a não ser o ensinamento profundo que para nós significa toda a ópera-bufa da Liberdade.
E não nos acusem de miguelistas! Somos tão miguelistas, como somos manuelistas. Monárquicos por doutrina, a monarquia vale para nós por virtude própria, independentemente da figura que a significa. Não vivemos como certos monárquicos constitucionais à espera que o povo se eduque para então ser digno da república. O nosso legitimismo é, por isso, o legitimismo de Garrett. Repousa na legitimidade do interesse nacional e faz do seu programa de governo, uma simples aplicação da política histórica da Nacionalidade. Marchamos sobre factos, não obedecemos a abstrações algébricas.
Durante a Maria da Fonte, o povo português ergueu-se como um só homem a bater-se pelas leis velhas. Se leis velhas levam ao Miguelismo, - se o Miguelismo é o depositário das instituições hereditárias da Raça, é porque se teimou em se tornar o Senhor D. Manuel II, não o rei de Portugal inteiro, mas o rei dum partido apenas. É a conclusão que se tira do desgraçado inquérito de O Nacional. Tenhamos, porém, confiança na nossa estrela. Os conselheiros que regressaram ao buraco tão depressa se convenceram de que o ministério Pimenta de Castro os não repunha na carreira corrida da abertura das Cortes e das receções em palácio, hão-de espavorir-se da mesma maneira quando se convençam de que a juventude monárquica do nosso pobre país os considera a eles mais responsáveis nas desgraças da Pátria que aos onagros empenachados que em 5 de Outubro nos arremataram por sua conta.
E não brademos, Eheu ! Eheu! sobre Portugal. Portadores que somos do dia de amanhã, não olvidemos que Garrett dissera um dia que Portugal era um reino de milagre. É um milagre permanente a nossa história, comparada com a nossa pequenez. É o mito sempre moço do milagre de Ourique, que Alexandre Herculano não compreendeu, mas que é preciso interpretar como a ideia-força a que a Nacionalidade recorre nas horas maiores do desfalecimento. É necessário voltar por consciência a esse estado de espírito coletivo que o milagre de Ourique eternizou em linhas vigorosas de religião patriótica. Não vemos nós hoje a França socorrer-se da divisa iluminada de Clóvis, - Gesta Dei per Francos, sagrar-se a Alemanha com a aptidão teórica do homem loiro para o comando exclusivo do Orbe?
Sem um poder místico que unifique, as sociedades não perduram. O milagre de Ourique, foi para nós o sentido oculto de uma vocação imortal a cumprir, foi uma finalidade que nos comunicou segurança e altivez nas grandes jornadas da nossa história. Desde que o mito esmoreceu nos horizontes da vida portuguesa, nunca mais arrancamos jornada direita, nem soubemos que destino realizar. A nossa história tornou-se então, na frase incisiva de alguém, uma história de ocasiões perdidas. O que é a miséria presente explica-se bem pela ausência duma fé, duma crença, que nos estimule as vontades e obtenha assim a vontade que a Nação não possui.
Destituídos dela, seremos até à consumação dos séculos a proeza da jacobinagem. Porque a jacobinagem dispõe de uma fé, dispõe duma crença, embora negativa, embora invertida. Num meio em que a incapacidade conservadora se acha mais que provada, é o suficiente para vencer e para nos tratar como a gentio sem preço nem estimação. Convençam-se que, sem uma doutrina, a nossa vitória é impossível. Se nós, meus senhores, continuamos sendo ainda a desordem! Apenas pelo regresso às virtudes obliteradas da Nacionalidade nos resgataremos. A Restauração nada será, se não for uma instauração. Para isso o Rei é ainda o menos. Sendo o remate do edifício e o órgão essencial à sua duração, de pouco serve se o edifício se não alevantar, se não se modificarem de raiz os nossos costumes. É o ponto em que a gente moça de Portugal insiste principalmente, não é outro o fim que condiciona a sua fidelidade ao Senhor D. Manuel II. Vimos de mais longe que o desembarque no Mindelo e seguimos para mais largo que a volta pura e simples de Acácio. Eis porque, prevenidos do valor dos mitos, apesar de não termos em política outra inspiração que não seja a dos factos, nós desejamos conferir ao movimento integralista, no seu aspeto sentimental e psicológico o carácter dum bandarrismo inteligente. É nossa a filosofia da Esperança, com um subido teórico no Padre António Vieira. Se Georges Sorel, o filósofo moderno que achou a influência decisiva dos mitos nos movimentos sociais, conhecesse a História do Futuro do glorioso jesuíta, com certeza que a utilizava como uma das melhores claridades que a sua tese poderia receber. Neste propósito, não nos é indiferente mais uma vez o pensamento de Garrett.
Garrett é um professor de energia nacional, — filho pródigo arrependido, mais o amamos pelo muito que errou e pela sinceridade com que se arrependeu. De pés para a cova, faz o seu testamento nas memoráveis sessões de 54. Quiseram as circunstâncias que os integralistas, recolhendo-lhe a herança, se vejam agora tornados os testamenteiros do altíssimo Poeta. Portugal é um reino de milagre - anunciava ele, confiando na nossa sorte. É imperioso o regresso ao estado de espírito coletivo que o milagre de Ourique significa, - pregamos nós. E Garrett antecipa-se a justificar-nos, com palavras cunhadas em ouro de boa marca, não se lembrasse a gargalhada indígena de ressuscitar em nós, com música de Ciríaco Cardoso, o tipo sempre vivo do boticário do Altinho. "Foi assim pequena e cheia de mistérios a Terra dos Helenos, foram assim todas as terras e nações pequenas que deram grande brado no mundo. E porquê? Porque o homem não vive só de pão, nem as nações vivem só de dinheiro, só de força bruta, só de braços e de pernas. Pela cabeça e pelo coração hão-de viver. A imaginação e o sentimento são elementos de vida, também são essenciais como os outros, e mais indispensáveis às organizações sociais menos robustas. Assim como o homem de menos força física pode ser superior ao gigante pelo espírito que o eleva, assim a nação menor arrosta com o grande império. É David em frente de Golias, mas a pedra da funda pode sair com fé. Tirai-lhe a fé, o colosso ri-se do anão".
Seja a fé a nossa espada. Aceite-se o legado de Garrett, de quem somos herdeiros universais.
"Quando todas as armas se nos quebram nas mãos, não nos resta senão a fé para vencermos!" exclamava o ano passado o Cardeal Mercier durante a lenta crucificação da Bélgica. Também nós, os integralistas, não temos mais que a fé para triunfar!
Não nos esquecemos que duma vez, sete homens subiram a encosta de Montmartre e fizeram no cimo da colina profissão de obediência a um deles. Em menos dm século a Companhia de Jesus sustinha o avanço do Protestantismo, disciplinava a mentalidade latina e, atravessando os mares, ia civilizar a Índia e as Américas. Tanto pudera a fé desses sete homens! Nós não temos nem o Protestantismo que combater, nem a Latinidade que disciplinar. Somos já no ano V da república, muito mais que sete. Portugal não se compra nem com as Índias nem com as Américas. Basta, pois, que tenhamos fé, para que tenhamos vontade. Ter vontade num povo que a não tem, é ser senhor em breve dos sorrisos difíceis da vitória. A vitória é feminina, rende-se aos audazes que a procuram. Ora o varão forte foi sempre o que teve mais fé. Ter fé é levantar montanhas,- rezam as Escrituras. Não custa tanto a levantar Portugal do sonambulismo em que caíu.
É de incertezas o momento que corre? É que Deus apaga quando quere construir, - já dizia da Revolução, Joseph de Maistre. Talvez que nas derrotas sobre derrotas em que parecemos ir a pique, Deus esteja apagando para construir connosco alguma coisa de mais sólido e de melhor.
Tenhamos fé. Não é Portugal um reino de milagre, segundo Garrett, nosso mestre? Se o é, porque não havemos de acreditar no milagre de Ourique?
1915.
(negritos acrescentados)
[Este texto foi escrito e publicado em 1915. Portugal só entraria na Grande Guerra, em 1916, produzindo-se então a transformação do Integralismo Lusitano de movimento de ideias em organização política, apresentando em Abril de 1916 o primeiro Manifesto da Junta Central do Integralismo Lusitano]
Na sessão de 21 de Janeiro de 1854 Garrett pedia a palavra para apresentar à Câmara dos Pares dois projetos de lei. A menos dum ano da sua morte, o emigrado da Terceira, que tão de perto colaborara com Mouzinho na reforma administrativa do País e que andara de arma ao ombro no cerco do Porto, depois de ter rilhado por três vezes o pão áspero do exílio, ia dizer-nos ali, no próprio seio da Soberania Nacional, toda a sementeira de desastres que fora para a Pátria a aventura doida dos argonautas do Mindelo. Ele, o "Divino" dos outeiros universitários de Coimbra mais da intemperança lírica da época, não descrera ainda da Liberdade com maiúscula solene. Mas a Liberdade, à vista dos homens e dos acontecimentos, não era para ele mais de que um mito vazio, desfazendo-se em cinza e nada, sempre que considerava Portugal inteiro tornado na "parte do lobo" para os devoristas famosos do Constitucionalismo.
De Herculano, sabíamos nós como a desilusão o roera cruelmente, atirando-o para as solidões de Vale de Lobos a plantar oliveiras, quando no ermitério da Ajuda já se não sentiam os passos discretos de El-Rei D. Pedro V e cá fora, nos bazares impudicos da Regeneração, o ultra-romantismo político crescia e alastrava, tirado pelo prestigio perdulário de Fontes. Mais cedo atingido pela morte, de Garrett, porém, não haviam chegado até nós as belas afirmações de protesto em que o Poeta se resgata das culpas sinceras da mocidade e dobra a defuntos irreparavelmente sobre a mentira sem nome que levava perdidos os destinos de Portugal. É Garrett assim um dos mestres mais ilustres do Integralismo Lusitano. Ele representa o espírito novo que, contagiado pela sedução infinita das ideias francesas, não deixou em todo o caso extinguir-se-lhe nas veias a voz ancestral do sangue, mais forte, afinal, no cair das últimas folhas, que o veneno de encanto em que a alma se lhe embebera durante o bater alto das paixões. As feiras cosmopolitas que a sua sandália de peregrino por largos anos pisou, não puderam vencer o fundo bom de criança que as toadas da velha Brígida tinham embalado entre cortejos de Reis e ladainhas de Santos. Tão dentro que a poesia suspensa do Lago falasse ao enlevo de Garrett, com o Ermo e o Luar espectralizando perspetivas ossianescas e ruínas melancólicas, mais duradoura seria a lição duma aia sumida num sumido solar da província que quantas literaturas de fama enchiam por então as estradas do mundo.
Por lá bebera Garrett o ópio das mil e uma utopias em que o culto frenético da Humanidade jurara tomar posse dos corações mais sensíveis do que nunca. Mas a quinta do Sardão, com um bocado familiar de horizonte bem nosso, - bem garrettiano, não se esquecera de todo na emoção do Poeta. Com o sentimento vivo das coisas da infância, morava o sentimento do Povo. É o sentimento do Povo que salva Garrett, - que não consente que Garrett se suma no mesmo purgatório sem remédio em que desapareceram tantíssimos varões assinalados, cujos nomes só por sarcasmo cobrem ainda as laudas poluídas da nossa miserável história oficial!
“Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito, - escrevia ele numa passagem que me apraz destacar para prova plena do que assevero. - Creio isto firmemente. Mas ainda espero melhor, todavia, porque o povo, o povo, está são: os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo. Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a poesia do povo. Nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos às aspirações sublimes do senso-íntimo que despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados materiais, insignificantes e imperfeitos: enquanto ele, aquele, senso-intimo do povo, vem da razão divina, e procede de síntese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem”. Povo, aclaro eu agora, valendo como nação, como raça, não como aglomerado inorgânico, - Panem et circenses! - a quem a mais estulta das metafisicas houvesse de conferir predicados inexcedíveis de capacidade diretiva. Garrett bem o sabia. E ao traçar com pulso firme os períodos transcritos, que extraordinário avanço Garrett não obtinha sobre a mentalidade do seu tempo, enumerando como valor primacial na existência das coletividades as criações indiscutíveis do subconsciente delas - isto numa era em que a superstição legislativa se arvorava em norma exclusiva de administração e governo! É já o anúncio de uma política histórica de factos sobrepondo-se a uma política abstrata de princípios. Garrett dar-lhe-ia quási fórmula filosófica nas derradeiras lanças quebradas em favor da quimera por que jogara a vida aos vinte anos. Desanimado de todo, já com os pés para a cova, só lhe faltou a coragem dos homens de ideias, que é dizer: Enganei-me! quando sinceramente se enganam.
Foi assim pelo sentimento do Povo que Garrett chegou à compreensão do Romanceiro. Quando a nós, integralistas, nos não ligasse a Garrett mais nenhum parentesco, o Romanceiro bastava para o absolver das cavalhadas loucas de um temperamento que ardia, que ardia insaciavelmente, e insaciavelmente se abandonara ao primeiro grande sonho em que a imaginação fácil um dia se lhe abrasou. Garrett padeceu em grau subido a hipertrofia idílica da Liberdade. É pela Liberdade que faz morrer outra vez Catão. É pela Liberdade que declama assoprados tropos à memória do "patriota" Fernandes Tomás e se deixa ir, como se não fora Garrett, pela oratória infinita dos Regeneradores de 1820, não obstante ser sobrinho de bispo e primo, não atino por que partes, do glorioso São Gonçalo de Amarante. Mas, já que se não preveniu contra a ideologia traiçoeira dos homens do 24 de Agosto, não o confundamos ao menos com os habilidosos do verbo revolucionário, a quem a marca maçónica lançou nas vielas escuras do Liberalismo. Garrett bem os condenou e em termos que correspondem à maior das exautorações.
Eu não desfiarei aqui a biografia de Garrett. Basta que assinale, como ponto essencial para o meu propósito, o ingresso do Poeta no parlamento, depois daquela infeliz missão diplomática na Bélgica. É nas Cortes que Garrett, dispondo de apreciáveis dotes de serenidade e elegância de palavra, fulmina os legistas e argentários sem vergonha que, à sombra larga da Carta, constituíram o célebre ministério, chamado dos Ladrões, e com o qual se estreou para o País a vitória tristemente memorável do Imperador D. Pedro. “Foram eles, sim, senhor presidente, e suas absurdas e falsas reformas que nos trouxeram a este estado, - acusaria Garrett, discursando na Câmara baixa em sessão de 31 de Março de 1837. Foram eles que desmoralizaram de todo o país, que o deslocaram e revolucionaram. E porque nós viemos agora, e nos cabe sentar sobre as ruínas que eles amontoaram, porque foi nossa triste sorte que a nação nos desse o mandato (tão difícil que toca no impossível) de vir calmar o abismo que eles cavaram, a nós é que nos chamaram revolucionários, a nós e à nação é que querem lançar o cargo dos males que nos fizeram!
"Porque nos fadou a desgraça a vir representar um país alevantado, desorganizado, e mais exausto que uma planície de África depois de devorada por uma nuvem de gafanhotos; porque assim coube àqueles infelizes ministros tomar debaixo de tão furioso temporal o leme desmantelado do Estado: são aqueles que por sua perversa fatuidade o suscitaram quem os vem acusar de má navegação!
"Nós, senhor presidente, que ainda no que erramos estamos errando de seus erros que nos pecados que cometemos por seus pecados estamos pecando!"
Vê-se que Garrett aderira à revolução de 36, da mesma forma que aderiria lá para diante ao movimento da Regeneração, que de algum modo inspirou. As oscilações que lhe acidentam a carreira pública não significam, porém, a versatilidade dum qualquer ambicioso. Tanto que, instado por mais duma ocasião para entrar nos conselhos da Coroa, só no fim dos seus dias é que passou pela Secretaria dos Estrangeiros, e quási de fugida. As preferências contraditórias que a política de Garrett nos oferece, são antes a prova evidente da desilusão profundíssima que o ia ganhando. Ele não descrera da Liberdade nem da obra do Dador que no discurso de 37 revestia das honras hiperbólicas de segundo fundador da Monarquia Portuguesa. À maneira que todas as experiências do Constitucionalismo falhavam nos mesmos resultados deploráveis, eis porque ele, o sincero, o poeta, o doutrinário, - como os raposas do parlamento o designavam em risinhos de sátira coxa, - se atirava sem hesitações ao encontro das tentativas bem intencionadas, que porventura procurassem ainda um saneamento, um motivo de forte esperança no futuro, tão negro para quem o olhasse com alma de patriotismo,- tão carregadinho das piores interrogações!
Epilogadas nas comezainas fabulosas do ministério de 34 as marchas duras do cerco do Porto, Garrett, mal se desenham as iras honestas de Passos Manuel, não oculta a sua simpatia pela revolta que vai erguer às cadeiras da governança o tribuno de Bouças. Está de regresso a ideologia de 20, mas com peitos honrados servindo-a desta feita. Passos Manuel leva consigo Sá da Bandeira e Vieira de Castro. É trigo sem joio, - é a farinha pura do Constitucionalismo. Na pasta do Reino figurará António Fernandes Coelho, segundo avô materno do meu camarada e amigo Alberto de Monsaraz. Ministro aos trinta anos, António Fernandes Coelho retira-se para sempre das intrigas do Terreiro do Paço, tão cedo a Carta se restaura e o gesto generoso dos utopistas de 36 se perde na soma considerável dos esforços abortados.
Nós hoje, já com perspetiva histórica e munidos de um longo ensinamento, como é o destas oito inqualificáveis décadas de baixa perversão monárquica, não nos surpreendemos em nada com os frutos recolhidos pela Constituição de 38. No entanto, para os devotos incorrigíveis do Coração sensível, que imaginavam na monarquia liberalista a melhor das repúblicas, a ficção podia mais que a realidade. Nas derrotas sucessivas do mito fascinante, por que nossos avós arriscaram a segurança e os bens, quando não conheceram o cárcere e até a forca, nunca por um minuto sequer os assaltou a suspeita de que se ele seria apenas uma mentira pérfida, tecida com arte em efeitos sublimes de Quintiliano. Não! A dúvida não nascera para aconselhar um bocadinho de bom-senso aos entusiastas da drogaria gaulesa, a quem nós temos de agradecer os males presentes e os que por desgraça estejam ainda para surgir nesta verdadeira rua de amargura em que se anda jogando o destino querido da Pátria. Para 1830 a Liberdade era como que de direito divino. Aceitava-se em dogma – como dogma se impunha sob pena de excomunhão maior. Conceber-se-ia mais facilmente e sem menos assomos de cólera a agonia irreparável de Portugal, que a bancarrota do regime bastardo a que o estrangeiro do interior constrangia o Portugal-autóctone, para nos deixar, ao cabo, numa devastação só própria dos desertos de África, na imagem rigorosíssima de Garrett. Os homens, e não o sistema, lhes davam a explicação de tantos desastres, crescendo sempre numa proporção assustadora. Não é outro o desalento moral que se recolhe da correspondência de António Fernandes Coelho, que pelo porte e pela sinceridade se torna digno de que lhe guardemos a memória com respeito.
Nós, os de hoje, não medimos os revolucionários de 36 pelo critério inexorável que arruma nas vizinhanças da ignomínia os políticos sem pudor que eles pretenderam derrubar. Se a Liberdade foi liberdade em terras de Portugal, à revolução de Setembro se agradeça o único impulso honrado que a quis tornar, não num monopólio farisaico de partido, mas no governo imparcial e independente de uma nacionalidade reconciliada consigo mesma. Eu reconheço a demasiada boa fé do propósito. Contudo, não me esquivo a venerá-lo, como amostra rara de convicções e de energia numa situação que, emergida de vergonhas sem conto, na maior das vergonhas haveria de morrer. Tão insuspeito eu sou que meu bisavô, o físico-mor Lourenço Félix Sardinha, esteve preso por liberal durante mais de dois anos no castelo de São Jorge. Na defesa de Marvão destacou-se um outro parente meu, o tenente Plácido de Almeida Barradas, que, pelos seus serviços à Rainha e à Carta, morreu com a Torre e Espada ao peito.
Muitos mais do meu sangue sofreram as consequências do seu entusiasmo liberalista. Se eu tive até uma velha tia que foi as delícias da minha meninice e que em honra da senhora D. Maria II se chamava Maria da Glória! O que a tia Glória não sabia dos miguelistas, - que horrores, que barbaridades sem perdão! Oh, mas quando o exército fiel entrou em Lisboa! E na memória baila-me agora a evocação duma ordenança em carreira doida pelas ruas da cidade, levando a notícia lá acima ao Castelo. Por isso a minha educação sentimental se fez sob o culto romântico do Constitucionalismo, praticado em nossa casa como tradição familiar.
Chegado à idade de pensar por mim, desembaracei-me dos prejuízos do leite e da escola. Embora não seja legitimista pelo único motivo do interesse nacional, eu convenho hoje que o Povo era de D. Miguel, que D. Miguel se investira legalmente da Realeza, que o desgraçado Príncipe em nada representa o Absolutismo e que só a intervenção estrangeira, - repare-se bem! - expulsou dum país que se identificava de toda a alma com a figura nobilíssima desse rei extraordinário. Consigno estas observações exatamente para sublinhar o relativo valor moral da revolução de Setembro.
Não acabou ainda a lenda do terror miguelista. É cultivada apaixonadamente com pompas de fraseologia, ensopada em requintes de morticínio. O que é, meus senhores, o tal juízo reto da história! Anda, porém, publicado o número das execuções realizadas com D. Miguel e o número sensivelmente dobrado dos assassinatos cometidos a frio nas pessoas dos seus afetos, depois de um ato soleníssimo, como deveria ser a convenção de Évora-Monte. Dê-mos um pouco a palavra a outrem, para se concluir com mais segurança de opinião. “As tropas desarmadas, e realistas indefesos, que recolhiam para suas casas ao abrigo duma solene convenção, garantida por três potências, que vieram desarmá-los, encontraram as estradas cobertas de assalariados para os matar, roubar e espancar” — conta um publicista de inclinações republicanas, Joaquim Lopes Carreira de Melo, no opúsculo A legitimidade ou a soberania nacional, saído a lume em 1871. “As cenas dolorosas que se presenciaram, debaixo do poder do governo caído sob o peso do anátema de absoluto, tirânico e desumano, comparadas com as que nesta época se passavam, sob um regime a que chamavam constitucional e liberal, estavam muito abaixo do que atualmente se passava, do que já havia acontecido na Terceira, no Porto, em Lisboa, agora em Montemor-o-Novo, Santarém, Lisboa, e outros pontos do reino, onde imperava o punhal, e a metralha dos bacamartes. A Beira tremia debaixo do peso dos celerados de Midões e Vila Nova de Foz Côa. Assim a convenção e amnistia do regente, dada debaixo da proteção da quádrupla aliança, começou logo a ser sofismada: até depois disse em Cortes o ministro Agostinho José Freire que nunca houve intenção de cumprir as suas estipulações. E na verdade, porque os próprios ministros expediram portarias a mandar prender indivíduos que descansavam ao abrigo de tão solene tratado. Os prefeitos, subprefeitos e provedores, levando o seu zelo muito além do ministério, prendiam em grande escala, e deportavam ainda em maior número. Indivíduos de ambos os sexos, e alguns filhos de família, e que nada tinham influído na política, não escaparam a esse furor vingativo das novas autoridades. Estas fechavam os olhos aos assassinatos e roubos, que se cometiam a toda a hora, e por horríveis modos. Os muitos atos intoleráveis, que algumas autoridades do governo caído, deixaram praticar por alguns dos seus subalternos ou denunciantes, davam pretexto para tão bárbaros excessos; porém, quem procurar bem conhecer as causas a fundo, achará em grande parte agora nos perseguidores, os mesmos indivíduos que o foram no passado governo. Alguns até estavam presos por seus excessos, e disseram quando lhes foram abertas as portas das prisões, onde deviam jazer, por bem da sociedade, que ali estavam pela sua adesão à rainha e à Carta! Desgraçada seria a causa, que precisasse de tais defensores! A odiosa e absurda lei das indemnizações pôs-se em prática, e um grande número de causas desta ordem começaram a ser tratadas contra os vencidos. Outros, ainda desprezadores de tal lei, empregando a força e o terror, se apossavam dos bens sem formalidade alguma jurídica. Algumas autoridades houve que empregaram um zelo brutal na expulsão dos frades, fazendo pressão até sobre os objetos do seu particular uso, por ocasião de serem expulsos de suas casas, que lhes foram arrebatadas pelo governo, assim como todos os seus bens, havendo muitos adquiridos com obrigações pias e onerosas de doações particulares. Comovia ver tanta desgraça, e esta comoção chegava a muitos dos que, da melhor boa-fé, defenderam as novas instituições. O governo fazendo por toda a parte uma receita na venda do rico espólio e propriedades das ordens religiosas, militares, da casa do Infantado, das rainhas, etc., nem por isso se via nele disposições de com tão numerosas quantias se pagar o papel-moeda, que fora extinto pelo regente, assim como diminuir a dívida pública, em grande parte feita para organizar a expedição, e sustentar a luta contra o Senhor D. Miguel.
"Os indivíduos do partido da oposição liberal continuavam a acusar o governo dos males passados e presentes, e diziam que era preciso guerrear o ministério nas próximas eleições de deputados. Os do partido vencido, esses emigravam em grande parte, muitos para o norte da Espanha a continuar a guerra; os que estavam no reino não tomavam parte em coisas públicas, porque o seu terror era muito grande."
Embora a economia do presente estudo seja alterada por uma transcrição tamanha, numa hora em que a imprensa monárquico-liberal se contorce em maldições contra a oligarquia jacobina, é preciso que se saiba que há um crime enormíssimo a expiar perante Deus e que por mais que a República tenha agredido e profanado as razões inalienáveis da coletividade, ainda nem por sombras atingiu a folha corrida do Constitucionalismo. E pensavam ali os de O Nacional, com o seu cortejo de inválidos desfilando no famoso inquérito, que isto de se restaurar a Monarquia, não passaria nunca de uma reposição pura e simples de aquilo que estava! Não desapareceram da história as nódoas de sangue com que a enxovalharam os vendilhões do Mindelo.
Um rei de partido não pode voltar mais a Portugal. Voltará o Senhor D. Manuel II como depositário do direito pátrio à independência, jamais como um símbolo irresponsável, a cujo encosto continuem a medrar as sub-mediocridades doiradas que o abandonaram miseravelmente à sua sorte nos areais da Ericeira.
Ora a situação apontada no excerto de Carreira de Melo, prolongou-se em Portugal até à revolução de Setembro. Logo que a constituição de 22 foi proclamada, respirou-se mais à vontade, os próprios miguelistas conheceram já outro desafogo. O povo matou Agostinho José́ Freire, o que no parlamento cinicamente declarava que nunca existira intenção de se cumprir o ato de Évora-Monte. Deixaram-lhe o cadáver exposto às vaias da gente miúda, colocando-lhe por escárnio uma tigela sobre a barriga, como que a implorar a caridade para se lhe fazer o enterro. Soara a vez do castigo! Os barões devoristas bateram as asas, as urnas, quando se efetuaram as eleições, viram-se concorridas pelos próprios realistas, restituídos enfim aos direitos de cidade. Eis porque Garrett, sendo um sincero, enfileirou ao lado dos simpáticos declamadores de 36.
Cheio de dedicação e fé ingénua, como eles, seguiu-os na sorte, embora os não acompanhasse na renúncia. Persistiu, teimou. Todo o seu empenho era aliar a Liberdade, a tal da letra maiúscula! - com o problema da Ordem, sempre prejudicado, cada vez mais preso de interrogações custosas. “É obrigação de consciência para quem levanta o grito de liberdade num povo, achar as regras, indicar os fins, aparelhar os meios dessa liberdade, para que ela se não precipite na anarquia, - escrevia Garrett em introdução ao Romanceiro. “Não basta concitar os ânimos contra a usurpação e o despotismo; destruído ele é preciso pôr a lei no seu lugar. E a lei não há-de vir de fora; das crenças, das recordações, das necessidades do país deve sair, para ser a sua lei natural e não substituir uma usurpação a outra usurpação”. É que Garrett trabalhou até fechar os olhos por incorporar o Constitucionalismo na continuidade da nossa tradição histórica. Foi-se-lhe a vida na tarefa insana, mais insana que a das Danaides, enchendo o tonel sem fundo! Psicologicamente, o caso de Garrett não é um caso isolado, - é antes um caso dos nossos dias. Garrett, por inteligência e por temperamento, queria curar o defeito insanável do sistema constitucional pelo emprego justo das nossas antigas instituições. Não querem hoje os chamados republicanos conservadores, se porventura ainda os há depois da demonstração Pimenta de Castro, curar a incapacidade ingénita da república com o tornarem-na tanto quanto possível uma monarquia, sem nunca chegar a sê-lo?!
Um sentimentalismo inexplicável lhes impede a visão perfeita das circunstâncias. Recebem a república como se fora de direito divino, e nessa função mística a julgam a mais completa forma de governo. Não se lembram que Renan disse de uma vez que a democracia se comparava a certo princípio estratégico de que aplicado durante quase um século a todas as hipóteses de guerra, não se houvesse revelado senão numa fonte constante de derrotas e mais derrotas. Efetivamente, a amplitude da experiência democrática não nos permite mais dúvidas a respeito das suas probabilidades construtivas, por muito que alguns teóricos de ópera-bufa se extenuem a asseverar que sim, que a evolução dos povos tende para a democracia, como para um remate natural e lógico. Os acontecimentos de todos os dias são-lhes, porém, contrários. O princípio continua a manifestar-se um agente mortífero de desagregação. Atidos a uma superstição da sua juventude, é para lamentar que em Portugal o não reconheçam um restrito número de cérebros aproveitáveis, de cuja energia honrada bastante teríamos a recolher, se os não impossibilitasse de uma ação política e imediata, isso que em boa linguagem se intitula ainda o culto fiel do Ideal.
Garrett, mais atrás, não se interpreta na maneira dupla de revolucionário e de tradicionalista porque se nos apresenta, senão como uma vítima imolada à observância romântica do Ideal, que se revestia para ele do prestígio religioso dum evangelho de redenção. Acresce que Garrett não passava, quanto a mim, dum equivocado, como equivocado se nos mostra nas Constituintes de 22 o deputado Bento Pereira do Carmo. Eu me esclareço. O absolutismo pombalino introduzira abusos realmente sem perdão na monarquia temperada da Raça. A congestão enormíssima, engendrada pelo Estado centralista do Marquês, agravou-se em males quase irreparáveis pelos desastres e mais alterações que acidentaram o reinado de D. Maria I e a regência do Príncipe do Brasil. Do abatimento profundo em que caíramos, veio o desejo de nos salvarmos, se acaso o sonâmbulo acordasse ainda a tempo. Coincide esta ânsia notável de resgate com as cavalhadas napoleónicas e com os primeiros anúncios de Liberalismo, aparecidos no coice da invasão. A Maçonaria, já instalada em Portugal, aproveita com a arte de sempre as aspirações isoladas e canaliza-as segundo os seus desígnios ocultos. E assim, quando unicamente se pensava num regresso prudente às nossas velhas liberdades, à bela tradição representativa da Grei, surge-nos, como de uma caixa de surpresas, a outra, — a Liberdade de extração gaulesa, com um grande olho simbólico por marca da fábrica. Nas Cortes de 21 a 22, nós topámos por via de semelhante engano figuras como Álvaro Póvoas e José Ribeiro Saraiva.
O embuste não tardou, todavia, a denunciar-se por si. Mas nem todos se lhe eximiram à rede, persuadidos de que a soberania do povo não viera de fora, pois que a tínhamos em nossa casa nos tempos felizes das Cortes Gerais e do "Se não, não!" enérgico dos conselheiros de El-Rei D. Afonso IV. Eu cito, a propósito, o discurso pronunciado por Bento Pereira do Carmo acerca das bases da Constituição, por ser mais que explícito a tal respeito. Anos rodados, José Liberato Freire de Carvalho pretendia justificar com os mesmos motivos a razão do movimento constitucionalista. Veja-se o livro - Ensaio histórico-político sobre a constituição e o governo do reino de Portugal, devido à pena do ex-frade crúzio. Os Três Estados são ali convocados a testemunho como sendo entre nós a raiz secular da aclimatação parlamentarista, que em vez duma novidade, se volvia deste modo num direito velhíssimo de que a Nação se encontrava esbulhada. É curioso que num opúsculo anónimo do Conde do Funchal, intitulado Notas ao pretendido manifesto da nação portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, em Londres, com data de 1821, se o conceito da soberania popular se rejeita, afirma-se em todo o caso a ideia duma Carta outorgada, conforme o espírito livre dos foros e franquias do Reino. O pensamento do autor acentua-se com mais nitidez num segundo opúsculo - Introdução às notas suprimidas em 1821 ou raciocínio sobre o estado presente e futuro da Monarquia Portuguesa. E há bem pouco o equívoco prevalecia ainda no Senhor Conselheiro Aires de Ornelas, um dos melhores amigos do Integralismo Lusitano, como se infere da brochura publicada por Sua Excelência acerca de Charles Maurras. Não admira, por isso, que o nosso Garrett fosse com a mais nobre das intenções um equivocado pura e simplesmente.
Seria alongar-me em demasia se sublinhasse agora as diferenças que separam por natureza a nossa gloriosa Monarquia representativa da monarquia bastarda da Carta. Basta que se frise um ponto essencialíssimo: é que a representação importada - com os entusiasmos políticos do Romantismo assenta toda, como se sabe, no cidadão abstrato dos Imortais Princípios, enquanto a representação por meio da qual as Cortes Gerais funcionavam era de estrutura pluralista, visto provir das classes. A primeira define-se pelo direito, sempre transitório e anárquico, do indivíduo. Define-se a outra pelo direito mais duradoiro e mais sagrado do agrupamento. De sorte que a representação constitucional gera a instabilidade, a incerteza, a confusão, a incompetência. Segura e bem concreta, a representação orgânica dos Municípios e das Corporações, garantia a continuidade necessária à marcha do Estado, satisfazendo conjuntamente os verdadeiros interesses sociais, pois que sobrepunha o zelo pelo bem comum, traduzido no mandato imperativo dos procuradores eleitos, às conveniências privadas de qualquer partido ou camarilha. Tínhamos assim dum lado a conceção que S. Tomás traçara da Realeza, com base na sua doutrina do Ser-Social. Do outro, saltava-nos Jean-Jacques Rousseau com os solilóquios apaixonados do Ermo, vertendo para a ótima prosa literária do Contrato, o seu roubo descaradíssimo à obra de Ulrici Huberi, De jure civitatis.
Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence. É que não há ideias avançadas, nem ideias atrasadas, por muito que custe aos fetichistas do Progresso Indefinido. O que há são ideias positivas e ideias negativas. A verdade política caracteriza-se assim por não ser nem um invento de hoje, nem uma mezinha de ontem: - é uma verdade de sempre, como de sempre é a verdade astronómica ou a verdade matemática, como de sempre são as leis fixas que regulam o jogo dos fenómenos físicos ou o equilíbrio das forças que a mecânica equaciona. Não se trata, por consequência, de regressão, no sentido escuro da palavra, o espetáculo que estamos presenciando no mundo culto, com a sua volta consciente aos grandes quadros tradicionais, tecidos, sem dúvida, por uma longa e bem provada experiência histórica. O que se verifica é que a sociedade, cansada de desordem, farta de desarranjo nos seus valores produtivos, decide-se enfim a não querer morrer. A guerra atual as gerações futuras a bem-dirão como um benefício de Deus. A energia ancestral desperta das nascentes entulhadas do ser. A Espada triunfará, para que os povos tornem à disciplina que os fez fortes e os levou às jornadas maiores da Civilização. Se a Espada se exceder na lei com que talhar a parte de Breno, lembremo-nos de Santo Agostinho, morrendo aos poucos, com o seu povo cercado pelo exército bárbaro. Non tollit Gothus quod Christus custodit, dizia o Santo aos que lhe pediam consolo entre os cuidados na agonia. A nossa derrota será, latinos, a nossa salvação! Mais alto que os planos estratégicos e que as ambições dos príncipes, reside o juízo imperscrutável de Deus. Suponho que a teologia se não opõe à sentença popular, segundo a qual Deus escreve direito por linhas tortas. Francófilo que me mostrei já em público, eu desejo agora veementemente a vitória da Alemanha. Só pela vitória dos Impérios Centrais nós teremos, com a derrota da Maçonaria, o restabelecimento da ordem legítima que permitirá à França ressarcir-se, a nós outros curar-nos. Cartago começa então a afundar-se no seu rochedo do Mar da Mancha. Os rapazes do inquérito de Agathon não venceriam, se o cavaleiro inimigo não arrastasse até à última das vergonhas a terra de S. Luís. Lá estariam os senhores do radicalismo para se enfeitarem, com o poder, com os loiros colhidos nas linhas pátrias invadidas. Unida a alma nacional pela comoção energética da mais dolorosa das catástrofes, a alma nacional se recobrará, expulsando na hora do ajuste de contas o estrangeiro do interior que abriu as portas ao do exterior. E quanto ao resto, - e quanto ao resto - non tollit Gothus quod Christus custodit! De cima do Vaticano a Igreja Católica vai salvar mais uma vez a civilização ocidental.
Eis porque a guerra atual significa um bem extraordinário para o futuro das Nacionalidades. As pátrias deixam de se entender como uma combinação fortuita de circunstâncias, do tremendo conflito sai bem acreditada a diferença eterna da Raça. Todos os elementos criadores do Passado encontram a mais estrondosa reabilitação. Demonstra-se com armas na mão que não há ideias avançadas, nem ideias atrasadas - insisto. Há ideias que dão a vida, como há idéias que dão a morte. As ideias por que os homens morrem são aquelas que dão a vida, como são as que dão a morte aquelas por que os homens vivem.
A resistência espantosa da Alemanha é para nós, integralistas, a mais clara confirmação de quanto vale para o vigor de um povo a posse intacta das instituições hereditárias do seu génio. Nós conversaremos um dia, a propósito do germanofilismo de certos monárquicos constitucionais, que apostam e batem as palmas pela Alemanha, mas que não aprendem a ver que é na limitação inteligente do parlamentarismo que se baseia todo esse admirável esforço. Os nossos monárquicos-constitucionais. Onde é que estás tu, António Denis da Cruz e Silva?!
II
Mas eu ia falando de Garrett e do equívoco padecido por ele na apreciação dos dois sistemas representativos, o da novidade e o de sempre. Garrett possuía em alto grau o instinto histórico. Essa qualidade o guardou de ir aos exageros do revolucionarismo lírico de 1820. O que vibrava nele era a indignação de uma alma quente, de mistura com os arrebatamentos fáceis de uma índole fundamentalmente literária. Na decadência em que nos subvertemos, as acusações gerais convergiam para a deficiência da nossa organização política. Daí o equívoco de Garrett. Tomou por absolutismo puro tudo quanto existia e perdurava no vasto sistema das instituições tradicionais. Não distinguiu entre o artifício centralista introduzido pelo Marquês e aquilo que representava uma aquisição proveitosa do nosso génio coletivo.
Uns de boa fé, outros de peito insidioso, votaram-se à demolição, de machado erguido. No meio termo, sem desdenharem as reformas justas, ficaram os Legitimistas. Com a legitimidade do princípio dinástico, guardaram consigo a legitimidade da herança nacional. Uma velha calúnia insiste ainda em os considerar como partidários do absolutismo. Nada menos certo! Os legitimistas, pelo contrário, exprimiram com o movimento que vai da carta de lei de 4 de Junho de 1824 às Cortes Gerais de 28, uma reacção profunda e bem consciente contra os excessos governativos do Estado pombalino. Ribeiro Saraiva, um dos seus doutrinários mais esclarecidos, em versos sem trambelho, mas verdadeiros, observaria a este respeito, discreteando do Marquês:
"E afagando perverso Jansenismo,
Desdenha a lusa antiga liberdade,
Às portas abre a louco despotismo."
Ora a lusa liberdade, inspira todo o período agitadíssimo do Portugal-Corcunda, que mais não desejava senão reconciliar-se consigo mesmo, com a marcha natural das suas naturais aspirações. Garrett parte também daí para os torneios de entusiasmo que dão com ele na emigração. Bem mais sensatos e mais dentro da alma nacional, os miguelistas agarram-se ao nobilíssimo Non possumus! que hoje os torna de uma viva atualidade para o pensamento contemporâneo, enquanto os inovadores que os acoimaram de góticos em nome da excelência dos Princípios não passam já de um arcaísmo de baixa espécie, refugiado nas piores camadas da inteligência e da acção. Desiludida de endeixas pérfidas, com as lições da história mais da realidade, a geração presente faz enfim justiça aos partidários do Príncipe proscrito, porque entende como eles que les institutions politiques ne sont jamais l'œuvre de la volonté d'un homme, na frase sólida de Fustel de Coulanges.
Sentia-o Garrett igualmente quando já na maturidade do seu espírito, denunciava a insânia varrida que sujeitara Portugal a uma série desastrosa de reformas, em que de novo nada havia, em que tudo o que havia era de França. Oiçamo-lo. "Reformadores ignorantes, não sabem dizer senão, como os energúmenos de Barras e Robespierre: Abaixo! Tira-se da máquina velha e ronceira uma roda essencial: o destruidor não sabia manejar senão o machado que arromba, não o instrumento delicado que constrói; a máquina não anda outro remédio brutal: tirar-lhe as rodas. Assim se reformou esta desgraçada terra a machado!" Garrett falava então acerca do nosso património ultramarino. É interessante continuar a escutá-lo: "Não contentes de revolver até aos fundamentos a desgraçada pátria com inovações incoerentes, repugnantes umas às outras e em quási tudo absurdas, sem consultar nossos usos, nossas práticas, nenhuma razão de conveniência, foram ainda atirar com todo esse montão de absurdos para além-mar, onde se tornaram dobrados, onde se multiplicaram ao infinito pela infinita variedade de obstáculos, de repugnâncias, de impraticabilidades locais que encontraram, e que em toda a sua vaidosa e doutrinária cegueira desprezaram aqueles orgulhosos Licurgos!" E logo a seguir: "Pois é duro dizê-lo; mas o mesmo nos há-de suceder se loucamente nos pusermos a legislar para aquelas remotas regiões, querendo doutrinariamente forçar localidades, circunstâncias, hábitos, modos de ser que ignoramos, a entrar a martelo dentro dos quadros arbitrários, que nossas teorias de cá decretam, como se nós fôssemos o Criador que disse: Faça-se! Como se nós pudéramos, mesquinhas criaturas, fazer mais do que reconhecer os factos como eles são, e modificá-los até onde eles podem ir. Felizes e magníficos legisladores, se ainda isto soubermos fazer!"
"Pois o mesmo, repito, nos há-de suceder com esse resto de possessões ultramarinas, se em vez de lhe acudirmos já, prontamente, com remédio, nos pusermos descansadamente a esmiuçar e apurar graves delicadezas de princípios de governação e regime, como em 1822 se fêz, que enquanto as Cortes decretavam nas Necessidades apuradas regras de governo, os brasileiros faziam na América regras a seu modo ou acabavam com todas". Oh! as "graves delicadezas de princípios!" Oh! as "apuradas regras de governo!" Garrett as satiriza e as increpa como ninguém, duvidando já da divindade dos novos ídolos, alarmado com o espetáculo de derrocada que os seus olhos passeiam doloridamente. É um cair tempestuoso de folhas. Garrett ainda quer crer, protesta esperanças vãs, como a enganar-se a si próprio. No entanto, com ressalva sempre para a Liberdade, de maiúscula solene, lastima que às mãos do governo representativo se perdesse o que o despotismo mais absurdo não chegara a perder nunca! E com a mais vasta visão da política colonial, Garrett põe o dedo num dos maiores ridículos do Constitucionalismo, qual foi o de chamar gentios de Angola e de Timor no mesmo pé que os cidadãos da metrópole ao banquete eleitoral dos Direitos do Homem e da Soberania do Povo!
"As nossas antigas colónias tinham um sistema de legislação antiga, obra de séculos, e só as ordenações dos senhores reis D. Manuel e D. Sebastião para a Índia tinham quási tanto que estudar como as nossas ordenações do reino... as legislações da primeira ditadura aplicaram indistintamente a todos aqueles países, tão diversos dos nossos, tão diversos entre si, o mesmo sistema de administração e regimento que já para nós era inconsiderado. Mas aqui o remédio era possível (às vezes) onde o mal bradava muito e lá se resolvia o governo a acudir-lhe, e estava perto. No Ultramar, como ainda agora disse, todo o mal chegava, nenhum remédio podia chegar.
"Veio a segunda ditadura, remediou em grande parte os remédios da primeira, retrogradou (como devia) a muitos dos antigos métodos especiais e da legislação local daquelas terras. Mas todo este direito anda por cá flutuante e vago; como não será ele por lá! Que fatal não pode ser àqueles estabelecimentos, cujo estado é já lamentoso, que fatal lhes não será que agora lhes apareça por lá um novo regime e sistema que amanhã nós declaremos nulo e revoguemos! Que será se o governador ido nesta monção começar a estabelecer o regimento da província, e ainda no princípio, rodeado ainda das terríveis dificuldades primeiras, na próxima monção lhe arrebentar outro governador com outro sistema e outras instruções; e que nada chegue a arreigar onde semelhantes plantas tanto custam sempre a aclimatar?"
Garrett tocava magistralmente no sofisma que a lento e lento nos ia arruinando. Não contentes em desenraizarem o País com modas abstratas de reformadores de pacotilha, os barões assinalados da Liberdade submetiam os nossos domínios ultramarinos a uma falsa geografia legislativa em que tudo, - promontório e ilha, serrania e vale, se confundia e misturava na mentalidade simplista dos donos do Terreiro do Paço. Éramos bem uma pátria regenerada a machado! Como o Criador, - Fiat! - improvisamos condições de meio, o Passado foi menos que uma tábua-rasa, o amor da novidade levou-nos de mãos atadas ao capricho tumultuário de qualquer ministério de acaso. A instabilidade governativa, lançando as relações sociais num interinato constante, já a Garrett não escapara nesse formidável discurso de 37. Valeu-lhe por tantos motivos o epiteto de reacionário, com que abundantemente, e em mais de uma circunstância, Garrett seria cumprimentado. Aceita-o o Poeta com desassombro.
E tal como um integralista neste ano V da República, e depois da sua segunda proclamação pelo Sr. Leote do Rêgo, é com um rasgo de energia moral, cheio do maior aprumo de inteligência, que Garrett a si mesmo se classifica de retrógrado. "Sou retrógrado cronológica e não metodicamente, exclamava ele, queixando das alterações que lhe introduziam nos discursos ao serem publicados na folha oficial. Talvez que os senhores encarregados da desfiguração, não entendam isto, e, nesse caso, ou alterem como é seu costume, ou perguntem a quem lho explique. Sou, pois, cronologicamente retrógrado, porque os que tudo deslocaram em Portugal fizeram-no por um movimento extemporâneo, e antecipado, e eu desejo retrogradar com o país ao ponto justo e razoável onde eles o deviam deixar. Não o faço metodicamente, porque em tudo quanto sem perigo podemos adiantar, não ponho limites ao movimento". E Garrett apressava-se a esclarecer: Tomara que chegássemos até à perfetibilidade, em que, todavia, não creio!
Na verdade, só por um espantoso avanço sobre si mesmo é que Garrett se qualificava assim, em desprezo supremo pelas pomposamente chamadas luzes do século. Havia, porém, em Garrett, com um profundo sentido da nossa tradição, um como que instinto da ordem antiga, traçada e robustecida pela longa experiência do povo português. À maneira que o convívio dos factos o avisava dos erros criminosos das quadrilhas liberalistas, Garrett assistia dentro de si ao renascimento do Portugal histórico que o Portugal da Carta desfizera. São notáveis a este propósito as apreciações de família.
A família, com o irmão Alexandre por porta-voz na sua qualidade de primogénito, mantivera-se fiel ao princípio legitimista, praticando a observância rigorosa da educação católica recebida do tio bispo. Compreende-se o desgosto que lhe não causariam as ideias revolucionárias do João Baptista. Mas a mágoa, longamente amassada, transforma-se um belo dia num começo de esperança, tão cedo Garrett se manifesta no parlamento em desacordo com a marcha das coisas públicas. Surge a perspetiva mal imaginada duma conversão. Os Garrett nas suas ingenuidades genealógicas, parece que se tinham por parentes de São Gonçalo de Amarante. Faria o milagre o primo São Gonçalo?
Vão, com efeito, ao extremo os entusiasmos familiares quando Garrett, falando acerca dos nossos negócios eclesiásticos, se pronuncia na Câmara contra os governadores postos pelo ministério à frente de algumas dioceses, e em manifesto atropelo pelos direitos dos respetivos prelados. É o caso da rotura com a Corte de Roma e da conhecida agitação religiosa nas nossas províncias do Norte. Chega a notícia da atitude de Garrett ao recatado cantinho dos seus. A tia D. Colecta Cândida, o Padre José Custódio, a boa Rosa de Lima, erguem as mãos ao Céu e agradecem ao Senhor o não se irem deste mísero mundo sem verem o João entrado no verdadeiro caminho. O mano Alexandre é o emissário de todos esses santos júbilos numa carta de nada mais, nada menos, que de onze páginas em quarto grande. Conta-no-lo o minucioso Gomes de Amorim, que se apressa a comentar, abespinhado: — "João devia ficar pouco lisonjeado com o triunfo". Contudo, não escondo o alvoroço que a posição inesperada de Garrett no parlamento ocasionara, não só no seio da família, mas até nos próprios arraiais miguelistas. "O partido oposto à liberdade, - continua com engraçado azedume o seu biógrafo - julgou ter feito a conquista de Garrett para as suas fileiras e houve parabéns entre os mais conspícuos dos seus membros pela suposta aquisição de tão grande caudilho". Por Gomes de Amorim sabemos do contentamento de Alexandre Garrett. Os correligionários, Alexandre era, como se disse, legitimista, afiançavam que nunca nas câmaras se ouvira um discurso como êsse. A tia D. Colecta não podia falar de João sem romper logo em lágrimas de alegria. Recordava-se a pobre senhora da profecia feita no convento a uma velha parenta professa por uma freira, sua amiga. "Ainda se admirariam todos de ver o que sairia de ti!" exclamava o mano Alexandre, referindo-se à promessa da santinha. E Alexandre desfazia-se em minudências da festa íntima que tomava a família inteira. "A tua Rosa de Lima, esta diz coisas que ao mesmo tempo fazem chorar e rir". Quanto a ele, irmão mais velho e sempre fiel aos seus princípios, escusado seria pensar como o novo aspeto de João o enchia de profundo contentamento. "Sim, eu me glorio de ser teu irmão, os teus louvores aprecio como próprios, ajudo, acrescento, lembro novos motivos para seres louvado aos que por toda a parte e como à porfia se empenham em te exaltar, em te bem-dizer. Mas glorio-me no Senhor, em cuja misericórdia tenho uma grande confiança, que fêz, e fará de ti, um vaso de eleição". E Alexandre rematava, aludindo ao exemplo de São Paulo, perseguidor da Igreja de Cristo, ao depois rendido à comunidade dos crentes: - "Seja pois este glorioso apóstolo o protótipo à vida que ainda te resta, já que o foi da tua conversão". As primas por outro lado, e Garrett tinha-as lindíssimas, - mandavam-lhe também epístolas exultatórias, insistindo na profecia da freira, D. Rosa chamada, a qual, ao constarem-lhe as leviandades políticas de Garrett, afirmava inalteravelmente: "Deixem-no lá, que eu fico por fiadora dele".
Não sei o que Garrett julgaria dos aplausos da família. Gomes de Amorim sai de lança em riste pela pureza das convicções liberalistas de João e assevera categoricamente que não existia razão para supor Garrett inclinado ao Legitimismo. É caso para reservas, no entanto. Sem dúvida que Garrett não se dispunha a ingressar nas fileiras do Príncipe proscrito. Mas a desilusão que lhe trabalhava o espírito conduzia-o naturalmente ao encontro duma política histórica, integralista, diríamos hoje, - toda ela apoiada nos factos, sem o reconhecimento da qual Garrett entendia que o País, traído e espoliado pelas mais impudicas clientelas, deslizaria de rápido para uma agonia sem remédio. Daí o equívoco da família que, leal ao Monarca deposto pelos efeitos da Quádrupla Aliança, o era mais por um enraizamento do Portugal velho do que talvez por preferências de índole meramente dinástica. D. Miguel valia pelas instituições tradicionais da Raça com os seus foros e as suas franquias contra a nação importada nas bagagens de Palmela e com os argonautas do Mindelo (da Praia dos Ladrões, - é mais exato) por servidores bem difíceis de remunerar. De modo que a convergência de Garrett para as inclinações seculares da Nacionalidade, numa adivinhação inteligente de que energias e os destinos de um povo dependem mais do respeito do seu determinismo hereditário que da excelência teórica dos Princípios, coincidia à maravilha com a noção da ordem antiga que se não obliterara ainda de todo nos sentimentos calmos da parentela.
Eu não ignoro que Garrett se agarrava quanto podia ao sonho querido da sua mocidade. Mas a evidência dos acontecimentos vencia-lhe o otimismo obstinado. E a prova é que Garrett morreu convencido de que o seu esforço fora mais que vão, fora criminoso. É que a estreita mentalidade romântica não lhe empanou a admirável compreensão das coisas. Garrett nascera temperado pela disciplina saudável das letras clássicas. Não explico doutra forma, senão pelo senso realista da educação que recebera do humanismo terso do tio bispo, a forte reacção intelectual que pôs Garrett em avanço sobre a sua época e sobre si mesmo. É donde provém a condenação inexorável que o Constitucionalismo lhe arrancou quási às vésperas de morrer, na célebre sessão de 21 de Janeiro de 1854.
III
Nessa sessão Garrett apresentou à Câmara dos Pares um projecto de lei sobre conventos de freiras e um relatório, com as respectivas bases, sôbre a reforma administrativa. Pronunciando-se pela readmissão das ordens religiosas para o sexo feminino, Garrett, diante duma maioria eivada dos piores prejuízos morais, não hesitou em se confessar coram populo, batendo convicto com as mãos ambas no peito. "É a missão das revoluções destruir; é a lei, é a precisão perpétua e periódica destes cometas do sistema social: não edificam, nem criam, nem reformam. Mas a sociedade é imortal, as leis e as condições da sua existência eternas, e mais tarde ou mais cedo, das ruínas necessárias de uma revolução, ressurgem os princípios indestrutíveis para remodelar o que é essencial à vida de cada sociedade segundo o seu modo de ser". E em considerações que eu acho inútil transcrever, recomendando, todavia, a ponderação delas, Garrett entrava de pronto na apologia franca dos institutos monásticos .
Nós sabemos como Garrett nas Viagens na minha terra tratara os frades. Numa hora em que o nosso passado religioso se inculca como um passado de torpezas e obscurantismo, bom é que avivemos, para edificação das gentes, o testemunho insuspeito de Garrett. Escutemo-lo:
"Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.
"No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.
"Nas cidades , aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecos de carapinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia - cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.
"Nos campos o efeito era ainda maior: eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel já não é o mesmo.
"Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade, que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram.
"É muito mais poético o frade que o barão.
"Frade era, até certo ponto, Dom Quixote da sociedade velha.
"O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova.
... ... ... ... ... ... ...
"O barão é pois usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário.
"Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo.
"Este é o barão verdadeiro e puro sangue; o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui se não trata.
"Ora sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século, nem nós os compreendemos a eles...
"Por isso brigamos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandamos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fêz outra. O barão mordeu no frade, devorou-o... e escouceou-nos a nós depois.
... ... ... ... ... ... ... ... ...
"Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.
"São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbus da sociedade actual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio no Judeu Errante que precisa refeito.
"Ora o frade foi quem errou primeiro em não nos compreender a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações; como que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo não lhe servia nem o servia.
"Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor.
"Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há-de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades, ou com barões, ou com pedreiros livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas enfim é u m a necessidade.
"Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e aproveitar.
"O progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
"Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudade dos frades, não dos frades que foram, mas dos que podiam ser.
"E sei que não me enganam poesias: que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves.
"E sei que não me namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é.
"Não senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós, e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de "requiem" para nos dizer missa, e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade, - porque não há de outra de cá".
Assim pensava Garrett, ainda antes de experimentar o travo das últimas desilusões. Cria ainda no Progresso com P grande e não desesperava talvez de conciliar a Liberdade com a ordem - "duas divindades que se devem venerar no mesmo altar", dizia êle. Mas onde Garrett é admirável é ao traçar a figura de Fr. Denis.
Nas considerações que acompanham esse profundo retrato psicológico, Garrett revela-se-nos como em nenhuma outra parte um precursor da nova corrente de ideias que hoje se desenha nos horizontes de Portugal por meio da acção benéfica da mocidade.
"Tal era Frei Denis, observa o poeta , - homem de princípios austeros, de crenças rígidas e de uma lógica inflexível e teimosa: lógica porém que rejeitava toda a análise, e que, forte nas grandes verdades intelectuais e morais em que fixara o seu espírito, descia delas com o tremendo peso duma síntese aspérrima e opressora que esmagava todo o argumento, destruía todo o raciocínio que se lhe punha diante.
"Condillac chamou à síntese método de trevas: Frei Denis ria-se de Condillac... e eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.
"O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o aborrecer: mas as teorias filosóficas dos liberais, escarnecia-as como absurdas, rejeitava-as como perversoras de toda a ideia sã, de todo o sentimento justo, de toda a bondade praticável. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer forma, não havia mais leis que as do Decálogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho, dizia ele. Reforçá-las é supérfluo, melhorá-las impossível, desviar delas monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangélica, que é o estado monástico, há regras para todos ali; e não falta senão observá-las.
... ... ... ... ... ...
"Segundo os seus princípios, poder de homem sobre homem, era usurpação sempre e em qualquer modo que fosse constituído. Todo o poder estava em Deus que o delegara ao pai sôbre o filho, daí a o chefe da família sobre a família, daí a um desses sobre todo o Estado; mas para o reger segundo o Evangelho e em toda a austeridade republicana dos primitivos princípios cristãos. "Assim fora ungido Saúl, e nele todos os reis da terra - sem o que não eram reis.
"Tudo o mais, anarquia, usurpação, tirania, - pecado, absurdo insustentável e impossível.
"E sobre isto também não disputava, que não concebia: era dogma.
"Nas aplicações, sim, questionava, ou antes, arguia, com a sua lógica de ferro. As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os poupava mais do que aos novos. A tirania dos reis, a cobiça e a soberba dos grandes, a corrupção e a ignorância dos sacerdotes, nunca houve tribuno popular que as açoitasse mais sem dó nem caridade.
"O princípio, porém, da monarquia antiga, defendia-o, já se vê, por verdadeiro, embora fossem mentirosos e hipócritas os que o invocavam.
"Quanto às doutrinas constitucionais, não as entendia, e protestava que os seus mais zelosos apóstolos as não entendiam tão-pouco: não tinham senso-comum, eram abstracções de escola.
"Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.
"O chamado liberalismo, esse entendia ele. Reduz-se, dizia, a duas coisas: duvidar e destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim; é uma seita toda material, em que a carne domina e o espírito serve; tem uma força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tísico; a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as forças vão-se, e a morte é mais certa. «Dos grandes e eternos princípios da Igualdade e d a Liberdade dizia: Em eles os praticando deveras, os liberais, faço-me eu liberal também. Mas não há perigo: se os não entendem! Para entender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na igualdade é preciso ter o Evangelho no coração."
O carinho com que Garrett vinca as linhas dominantes do carácter de Frei Denis, faz-nos supor que o Poeta se reconhecia no frade das Viagens na minha terra. Não consistia noutra coisa o legitimismo de Garrett. Garrett resignava-se à aceitação consciente das normas que regem as sociedades e sem o respeito das quais tudo se resolve em poeira de morte, numa confusão irremediável. Passara-lhe o alvoroço da mocidade, ao ver desfeitos em cinza os frutos doirados da árvore da Liberdade. Se os frutos dessa árvore se pareciam com os que Chateaubriand apanhara nas orlas do Mar do Sal! A tia Dona Colecta ganhara, pois, a partida. É que a excelente senhora estava, afinal, mais perto da verdade que o abespinhado Gomes de Amorim, cheio das teias-de-aranha da metafísica revolucionária, despido por isso mesmo da intuição sentimental que em Dona Colecta Cândida supria as vistas largas da cultura. No outro mundo, lá na Morada Eterna em que os Mortos se reúnem na Paz, Dona Colecta Cândida, o Padre Custódio, a Rosa de Lima e a freira da profecia poderiam, enfim, render graças ao Senhor pela claridade que ia tornando João Baptista um verdadeiro "vaso de eleição"!
Nós vimos, com efeito, como Garrett no esbôço que traça de Frei Denis, sabe distinguir a essência da monarquia pura, da natureza viciosa da monarquia absoluta, não colaborando, portanto, na calúnia inadmissível que tinge a realeza de D. Miguel das tintas carregadas de um despotismo de drama em cinco actos, com seu prólogo e seu epílogo. Gomes de Amorim não há dúvida que jurava falso, quando imaginava Garrett irreconciliável com “o partido oposto à liberdade”. João Baptista merecia a confiança da freira que ficara por ele! É ouvi-lo mais tarde, muito depois das Viagens na minha terra, defendendo na memorável sessão de Janeiro de 1854, a profissão religiosa para o sexo feminino:
"Todos os maternais desvelos que a Religião e a sociedade prometem e devem aos que não têm mãe, aos que não têm família, aos deserdados desde a nascença, ou aos órfãos pelo vício e pelo crime, às vítimas da infelicidade, aos sequestrados pelas inevitáveis desigualdades sociais, todos precisam do sacerdócio feminino para se cumprirem.
"As antigas rodas e as novas creches, as gafarias, os hospitais, as albergarias e hospícios de nossos maiores, os asilos da infância e da mendicidade, as casas pias e os recolhimentos noturnos, tudo o que a piedosa linguagem do Evangelho chama obras da misericórdia e a faustosa língua dos filósofos diz filantropia, quanto pede a Religião cristã e quanto exige o Socialismo, o que reclama aquele em nome de Deus e este em nome dos homens, precisa do ministério das mulheres para se poder cabalmente praticar.
"As freiras são pois também uma necessidade social, - continua Garrett; cuidados mercenários não podem fazer o que a dedicação religiosa alcança. Por toda a Europa que se discorra e se compare o estado de quaisquer dois estabelecimentos paralelos, um cuidado por mulheres religiosas, outro pela mais zelosa inspecção oficial, achar-se-á pelo testemunho unânime de toda a gente, ainda a suspeita, quanto é verdade o que afirmo."
E Garrett alarga-se em reflexões que eu gostaria de submeter à apreciação do Sr. Teófilo Braga, cujo farisaísmo sem linha o levou a falsificar a individualidade bem nítida do Poeta, a ponto de no-la servir quase como um próximo parente desta república miserável que nasceu bastarda e com as piores pechas da hereditariedade. Às freiras pertence a maternidade social, afirmava Garrett de pés para a cova, num brado de alma que o nobilita perante os juízos futuros. Derrubou-se, saqueou-se, no fundo dos conventos, tiritando de frio e fome, há velhas que rezam ainda, que rezam sempre, que não deixam nunca de rezar. Fundiram-se os vasos sagrados no bezerro-de-oiro execrando do materialismo. Pois bem: arrependamo-nos, como homens de consciência!" E o orador, dando o exemplo, termina por propor ao Parlamento que fosse autorizado o governo "a permitir a admissão ao noviciado e profissão em todos os mosteiros e conventos do sexo feminino, cuja instituição tenha actualmente, ou venha a ter por objecto a educação de meninos, a educação e instrução primária de crianças de ambos os sexos, ou tratar de hospitais, asilos, prisões e casas pias similares".
Mas nesse dia inolvidável Garrett não deixaria reabilitada a sua acção política somente no campo religioso. Trazendo juntamente à Câmara com o projeto de lei sobre os institutos monásticos as bases duma saudável organização administrativa, Garrett penitenciava-se em público das reformas insensatas da Terceira, em que tão grande parte lhe coubera como colaborador assíduo da obra nefasta de Mousinho:
"A administração em Portugal, como desde a remota origem deste povo se afeiçoou com as leis e hábitos romanos, com os hábitos e instituições da Idade Média, assenta num princípio que ninguém por largos anos se lembrara jamais de revocar em dúvida nem de discutir sequer embora se sofismasse muitas vezes e é que o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus. Ajunte-se a este princípio o que lhe adicionou depois a monarquia, a bem da ordem e da harmonia geral dos interesses públicos, o qual é que a autoridade central tem direito e obrigação de velar por que os interesses das localidades se não choquem e contrariem em prejuízo comum: e temos concentrados nestes dois, todos os mandamentos da lei na nossa existência social.
"Abusando umas vezes, retificando outras, assim vemos na nossa história administrativa a autoridade delegada pelo poder central do Estado nos Corregedores, nos Juízes de Fora e nos Provedores, posta de equilíbrio e de fiel de balança à autoridade delegada pelo povo aos seus vereadores e juízes.
"Se é permitida a expressão, direi que a nossa administração pública se criou e fundou pelo método natural ou analítico, enquanto o sistema imperial francês é todo sintético. Portugal, assim como ainda hoje a Inglaterra, a Holanda, a Bélgica e a melhor parte da Alemanha, países todos municipais, professa e crê que o direito de se administrar a si próprio pertence ao povo; assim como o direito de vedar que a administração popular de uma localidade lese a outra, ou outras, ou todo do país, pertence à autoridade central: em melhor e mais certo rigor de expressão constitucional, à Coroa, primeiro fiel e primeira garantia de todas as liberdades."
Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo.
"A legislação francesa, - prossegue ele - assenta no princípio oposto, que eu não duvido qualificar de falso, de que o direito de administração pertence à autoridade central, e que os povos, quando muito, só podem ser ouvidos e consultados sobre as suas necessidades, desejos e contribuições.
"Eis aqui, Senhores, porque, adotando-se um sistema, partindo-se de um princípio que não é falso, como eu para mim o tenho, em toda e qualquer forma de governo, para Portugal é errado, cujos hábitos, cujas tradições, cuja história, cujo amor próprio mesmo contraria e comprime, e que, demais a mais, é diametralmente oposto e estrepitosamente dissonante ao Governo representativo”.
Garrett ressalva ainda a sua quimera. Mas depressa, com nobre sinceridade, declarava em alto e bom som que a esse vício radical acrescera uma funesta circunstância. Foi a de se torcer e de se elevar até ao absurdo um sistema administrativo, já de si tão antagónico com as tendências e os interesses colectivos. De onde concluir Garrett que proviera “a principal e mais poderosa causa das desordens, anarquias, irregularidades, prepotências, desperdícios e opressões de que Portugal tem sido vítima nestes vinte anos de tergiversações, de apalpadelas políticas e governamentais”.
Mais uma vez Garrett insiste no equívoco deplorável que lhe entortava sempre a visão profundíssima. Confunde o regime parlamentar com o regime representativo, que, apoiado um no individualismo abstrato dos Direitos do Homem, o outro na concepção antiga das ordens ou corpos do Estado, se excluem irremediavelmente por condições especiais de natureza e funcionamento. Em compensação, a frase "apalpadelas políticas e governamentais" é definitiva. Marca como um ferro em brasa, toda a incrível literatura legislativa da monarquia constitucional; em cujo ventre, é sabido, que durante mais de sessenta anos de incompetência e de desorganização se andou gerando a bela república com que os destinos nos presentearam numa bela manhãzinha de Outubro.
Muito mais haveria a transcrever do relatório de Garrett. Não me o consente o espaço deste estudo, já mais extenso do que seria para desejar. No entanto, dêem-me licença que eu recorte ainda mais algumas passagens do famoso documento. Talvez, afinal, fosse melhor copiar tudo, tão actual, tão rico de sentido e de verdade se nos manifesta o extraordinário espírito de Garrett! Assim, numa lição formidável para os que professam ainda a superstição do prestígio intangível da Lei, Garrett diz-nos: - “Sendo uma organização administrativa tão absurda, que é a mesma para o continente e para os arquipélagos das nossas ilhas, separados entre si por largos e tempestuosos mares, que é a mesma para uma capital como Lisboa, e para uma vilazinha de trinta fogos”. Para os que alcandoram às supremas cumeadas do capitólio a obra antinacional de Mouzinho da Silveira, previne-nos Garrett: “...Senhores, são passados mais de vinte anos de experiências infelizes, de tentativas malogradas, e seria a maior de todas as vergonhas se nos envergonhássemos agora de confessar que erramos, que erramos muitas vezes, e que tanto mais erramos quanto mais tentamos dissimular o primeiro erro”. Para os que se defendem na sua insânia de facciosos como contado e recontado estribilho de que para trás não se anda! Garrett observa-nos:- “Não venha o funesto sofisma do medo do passado impedir-nos de voltar ao que havia de bom, e de justo e de livre - que era muito,- nas instituições de nossos maiores”. E, finalmente, para quem nos cuide a nós, integralistas, muito dispostos a ressuscitar neste século vigésimo do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo a monarquia quatrocentista de El-Rei D. João II, é ainda e sempre Garrett que nos antecipa e fixa o nosso pensamento ao encerrar o seu notabilíssimo relatório: “Nem tão-pouco eu venho - faltar ao respeito à lei do Estado que, débil trabalhador, ajudei a plantar, fraco soldado, gastei a vida a defender,- a esta Câmara, a mim mesmo e à memória honrada e gloriosa dos que ressuscitaram entre nós a liberdade, propondo-vos que voltemos às instituições municipais da Idade Média, que o feudalismo inquinou em muita parte e em que o despotismo infiltrou depois a sua corrupção.
Não, Senhores, não são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juízes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos: são algumas poucas e simples bases de reforma, e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem para que, em harmonia e conformidade com elas, seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...”.
Não foi, porém, na sessão de 21 de Janeiro que Garrett lavrou as suas disposições finais. Ele entra nos umbrais da história com o formidável libelo pronunciado em resposta ao Discurso da Coroa, nas sessões seguintes de 10 de Fevereiro e de 5 de Março, acerca da nossa administração pública e do nosso Padroado no Oriente. As instituições tradicionais da Pátria são aí resgatadas do largo descrédito a que as haviam remetido as oratórias salivosas dos homens da Liberdade.
“Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação, - clamaria então Garrett, - a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com a minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, dessas imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimentado de teorias que, basta serem tantas e tão encontradas, para nenhuma se poder realizar."
Em seguida a um mea culpa tão retumbante em que fica definitivamente condenada toda a obra legislativa do Liberalismo, Garrett, mais uma vez ainda com os sãos princípios, não tardava a asseverar que desde que "a governação do Estado não assente sobre uma recta e regular administração municipal e provincial, como a pede a índole do país, e os seus costumes, as suas tradições, as suas necessidades e circunstâncias, nada pode melhorar e prosperar, - nada pode existir verdadeira e solidamente". E logo adiante o Poeta insiste nos seus propósitos descentralizadores: - "A administração propriamente dita, não pode em nenhum país, e não digo só nos países constitucionais, em todos, não pode ser senão a combinação dos esforços espontâneos dos povos com a direcção do governo central.
"Sobre esta dupla base repousa toda a administração, - volta de novo Garrett a recordá-lo. “Mas a nossa é toda imposta, toda de compressão, toda sintética. Não se analisam as forças públicas, decretam-se. Não se examina o que há e pode haver, para se regular e dirigir pela lei. Não, Senhores; a lei é que ordena o que há e o que não há-de haver. A autoridade pública determina e decide dogmaticamente o que os cidadãos possuem, a instrução que têm, os filhos que geraram, as circunscrições territoriais a que pertencem, sem lhe importar que a natureza, o clima, as circunstâncias pessoais ou locais desmintam as suas decisões, ou zombem delas”. E para isto, para estas liberdades, se implantou em Portugal a Liberdade da Carta!
Garrett indigna-se contra o malvado espírito de simetria, que na sua fúria uniformizadora obrigava os governos constitucionais a “cortar a cabeça à noiva e os pés à mula”, exprimia-se ele com um raro e pitoresco vigor, contanto que vingasse a “sublime teoria que despreza todos os factos”. Não há subterfúgio que lhe impeça o desassombro da linguagem, nem terror humano que haja de evitar que ele chame a um gato uma gata! Perante a imoralidade que se apossara dos selos do Estado, Garrett não duvida exclamar: “Devemos confessar que, neste ponto ao menos, o governo absoluto era menos arbitrário que nós, nós que, diante da liberdade e das tábuas da Lei que pusemos no altar, estamos sacrilegamente sacrificando ao bezerro de ouro do arbítrio, cegos por nossas paixões e interesses. Não valia a pena sair do Egito para isto, de vogar tantos anos pelo deserto e de passar o Mar Vermelho de tão sanguinolentas guerras civis”.
O que não tínhamos ainda para recordar! Porém, os Discursos Parlamentares aí estão a dizer mais do que no presente estudo se diz e merecem bem que os meditemos como o sinal poderoso da conversão de Garrett. Pregunta-se, no entanto: — mas sentiria deveras Garrett a falência do Constitucionalismo, convencer-se-ia, realmente, de que só se batera por uma mentira criminosa? Por bastante que pese aos últimos corifeus do sofisma rendido em 5 de Outubro pela mais vergonhosa das abdicações, eu asseguro que sim. Lembram-se do capítulo final das Viagens na minha terra? Garrett encontra-se com Frei Denis e dialogam os dois a propósito de Carlos.
... ... ... ...
“- Mas Carlos?
- Carlos é barão: — não lhe disse já?….
- Não sabe o que é ser barão?
- Oh, se sei! Tão poucos temos nós!
- Pois barão é o sucedâneo dos ...
- Dos frades.... Ruim substituição!
- Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.
- E que lhe pareceu?
- Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa, nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.
- Erramos ambos.
- Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: - mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser não sei. Deus proverá.”
... ... ... ...
Já num capítulo anterior, visitando São Francisco de Santarém, Garrett patenteara bem a repulsa da sua inteligência mais da sua sensibilidade pelo sistema de pegada desnacionalização que tomara conta de nós. "Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abalando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais polido e mais respeitado desses jazigos antiquíssimos; os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os", - comenta Garrett passeando-se em pleno vandalismo. “Levantaram as lajes dos sepulcros, e ao som da corneta militar acordaram os mortos de séculos, cuidando ouvir a trombeta final...
"Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.
“Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram, Portugal... que te envileceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua história!...
"Eheu , eheu , Portugal!"
"Eheu, eheu, Portugal!" - E enquanto o voluntário académico do cerco do Porto deplora o dia da ira que se vem aproximando para a Nacionalidade, atendamos nós um pouco a dois testemunhos interessantíssimos que, produzidos ambos do campo legitimista, projetam sobre o problema da conversão de Garrett uma claridade decisiva. Em nota ao livro de versos, Selecta, e a páginas 194, narra-nos Pereira da Cunha o seu último encontro com Garrett. Foi no Chiado, à porta do Marrare de polimento. "Prostrava-o já a doença, a que, afinal, sucumbiu; porém forcejava ainda por se mostrar animado, e sempre irrepreensível no seu traje. O fraque, o chapéu branco, as luvas, a badine, tinha tudo o verniz parisiense. Era o seu fraco, coitado! e não o perdoou a detracção.
“Ele avistou-me de longe; acenou-me com a mão, e veio logo falar-me com o agrado do costume, dizendo-me, sem mais preâmbulos:
- Vai, esta noite, ao concerto?
- Trazia essa tenção - respondi eu.
- Pois então, iremos juntos. Venha agora tomar neve.
Entramos num gabinete, à direita do café. Estavam só uns holandeses bochechudos, rubicundos, dos que Filinto Elísio designava por «batatas ambulantes», mas isso não obstou a podermos julgar-nos à vontade, conversando por mais de meia hora.
Sendo tão assídua e íntima a minha convivência com Garrett, nunca ele me tocava no que causava as nossas discordâncias no terreno político. Fê-lo nessa ocasião. Acertamos de falar sobre não sei que sucesso, que vinha nos diários da manhã, indicado como escândalo, e daí o incitamento, que o foi levando a explicar-se.
Começou a deplorar a crescente corrupção, que já ia dominando as camadas sociais, e amortecendo todos os impulsos, de natureza elevada; previu, com a sua lucidez, aonde isso chegaria, e talvez numa época mais próxima do que ninguém supusesse; e dando, depois, à voz uma inflexão singular, que eu nunca lhe tinha ouvido, rematou pela forma, que se segue: "Eu estou desenganado. Isto saiu-me o contrário do que se me afigurava. Os entusiasmos apagaram-se; e essa íntima cartada já eu a dei sem furor.
Havia aqui, bem se vê, uma alusão muito clara ao tempo em que foi ministro; e por isso reproduzo, com fiel exatidão, as palavras do poeta. São textuais; assevero-o. Eu fiquei silencioso. Não deixou de admirar-me e a inesperada expansão, bem que, há muito, m e parecesse que naquele grande espírito se andava a operar uma mudança sobre o seu modo de ver os fenómenos morais, que se iam manifestando .
E devia ser assim. Quem amou sempre a verdade em todas as coisas de arte, não podia deixar de procurá-la nos sistemas filosóficos."
Eis a parte principal do depoimento de Pereira da Cunha. Não se atreve, contudo, Pereira da Cunha a admitir a hipótese de que Garrett modificasse tanto as suas opiniões em política a ponto de repelir por completo a ficção por que se batera. Mais categórico, Ribeiro Saraiva conta-nos os motivos sentimentais que impediram Garrett de gritar abertamente à posteridade: - “Enganei-me!” como o tribuno de Paul Bourget. No livro Algumas horas na minha livraria, o general Martins de Carvalho insere a páginas 189 e seguinte, uma curiosíssima carta que seu pai, o velho jornalista conimbricense, recebera de António Ribeiro Saraiva por ocasião do Centenário de Camões. “Nos escritos de Garrett não é difícil encontrar passagens no mesmo tom, em que ele desse testemunho análogo ao sobredito de Castilho, quanto às belezas e grandezas que em Portugal entraram pela “Praia dos Ladrões”" — escreve o antigo diplomata de D. Miguel I.
"A um íntimo Amigo meu, que num verão, alguns anos antes do falecimento do meu talentoso condiscípulo, com ele habitou nas Praias a mesma casa, dizia este, prossegue Ribeiro Saraiva, ao ler alguns dos meus papéis, onde eu combatia o sistema que nos trouxe a desordem, baixeza e actual insignificância europeia : — "Oh! quanto melhor eu podia expor, demonstrar tudo isto!" - E ao dizer-lhe o meu Amigo: - "E porque não adere V. ao sistema causa que assim confessa preferível?» A isto Garrett, depois de um momento de hesitação e silêncio, respondeu com certa energia despeitosa:
"Não. Fizeram que perdesse a minha Filha que eu idolatrava. E mudou de conversação."
A freira da profecia não se enganara, não! João Baptista, metido ao bom caminho, ainda haveria de dar muito que falar de si! Reunido à tia Colecta, ao Padre José Custódio, à velha Rosa de Lima, Garrett é bem nosso, - de nós outros que, sacrificando à causa quási perdida da Pátria, as aspirações doiradas da mocidade, por muitos que já sejamos, mal chegamos ainda para reparar os estragos duma utopia que em setenta anos de diabo à solta colocou Portugal mesmo à beira do abismo. Garrett, sempre vivo na penetração superior do seu génio, é mais um esforço que nós recolhemos para estes trabalhos mitológicos de querermos alimpar as cavalariças de Augias.
Entre os grandes pensadores que no princípio do século passado resistiram imperturbáveis ao contágio venenoso da ideologia revolucionária, e a linda ala de namorados que hoje surge para os embates da formidável batalha pela Ordem que o mundo inteiro está travando, Garrett representa, com as correções amargas da experiência, a transição de uma fase para outra, da fase teológica para a fase positivista, com passagem na metafísica estouvada do seu liberalismo romântico. Ele é nosso, como o é Herculano, como o é Ramalho, como o é Eça de Queiroz. A monarquia da Carta, que nós, os novos, não deixaremos ressuscitar para que a república se não proclame outra vez, o que é que lhe fica? Ficam-lhe os insignes aventureiros com que a Monarquia brindou as altas direcções governativas da Nação, incarnados maravilhosamente em Silva Carvalho e Costa Cabral. Pode a monarquia da Carta condecorar-se ainda com a canonização do traidor Gomes Freire e com os serviços do Imperador D. Pedro, oferecendo ao estrangeiro a quem mais desse, o nosso património colonial. Nós, os integralistas, que guardamos connosco a alma intacta da Grei, nada pretendemos do Portugal nascido na “Praia dos Ladrões”, a não ser o ensinamento profundo que para nós significa toda a ópera-bufa da Liberdade.
E não nos acusem de miguelistas! Somos tão miguelistas, como somos manuelistas. Monárquicos por doutrina, a monarquia vale para nós por virtude própria, independentemente da figura que a significa. Não vivemos como certos monárquicos constitucionais à espera que o povo se eduque para então ser digno da república. O nosso legitimismo é, por isso, o legitimismo de Garrett. Repousa na legitimidade do interesse nacional e faz do seu programa de governo, uma simples aplicação da política histórica da Nacionalidade. Marchamos sobre factos, não obedecemos a abstrações algébricas.
Durante a Maria da Fonte, o povo português ergueu-se como um só homem a bater-se pelas leis velhas. Se leis velhas levam ao Miguelismo, - se o Miguelismo é o depositário das instituições hereditárias da Raça, é porque se teimou em se tornar o Senhor D. Manuel II, não o rei de Portugal inteiro, mas o rei dum partido apenas. É a conclusão que se tira do desgraçado inquérito de O Nacional. Tenhamos, porém, confiança na nossa estrela. Os conselheiros que regressaram ao buraco tão depressa se convenceram de que o ministério Pimenta de Castro os não repunha na carreira corrida da abertura das Cortes e das receções em palácio, hão-de espavorir-se da mesma maneira quando se convençam de que a juventude monárquica do nosso pobre país os considera a eles mais responsáveis nas desgraças da Pátria que aos onagros empenachados que em 5 de Outubro nos arremataram por sua conta.
E não brademos, Eheu ! Eheu! sobre Portugal. Portadores que somos do dia de amanhã, não olvidemos que Garrett dissera um dia que Portugal era um reino de milagre. É um milagre permanente a nossa história, comparada com a nossa pequenez. É o mito sempre moço do milagre de Ourique, que Alexandre Herculano não compreendeu, mas que é preciso interpretar como a ideia-força a que a Nacionalidade recorre nas horas maiores do desfalecimento. É necessário voltar por consciência a esse estado de espírito coletivo que o milagre de Ourique eternizou em linhas vigorosas de religião patriótica. Não vemos nós hoje a França socorrer-se da divisa iluminada de Clóvis, - Gesta Dei per Francos, sagrar-se a Alemanha com a aptidão teórica do homem loiro para o comando exclusivo do Orbe?
Sem um poder místico que unifique, as sociedades não perduram. O milagre de Ourique, foi para nós o sentido oculto de uma vocação imortal a cumprir, foi uma finalidade que nos comunicou segurança e altivez nas grandes jornadas da nossa história. Desde que o mito esmoreceu nos horizontes da vida portuguesa, nunca mais arrancamos jornada direita, nem soubemos que destino realizar. A nossa história tornou-se então, na frase incisiva de alguém, uma história de ocasiões perdidas. O que é a miséria presente explica-se bem pela ausência duma fé, duma crença, que nos estimule as vontades e obtenha assim a vontade que a Nação não possui.
Destituídos dela, seremos até à consumação dos séculos a proeza da jacobinagem. Porque a jacobinagem dispõe de uma fé, dispõe duma crença, embora negativa, embora invertida. Num meio em que a incapacidade conservadora se acha mais que provada, é o suficiente para vencer e para nos tratar como a gentio sem preço nem estimação. Convençam-se que, sem uma doutrina, a nossa vitória é impossível. Se nós, meus senhores, continuamos sendo ainda a desordem! Apenas pelo regresso às virtudes obliteradas da Nacionalidade nos resgataremos. A Restauração nada será, se não for uma instauração. Para isso o Rei é ainda o menos. Sendo o remate do edifício e o órgão essencial à sua duração, de pouco serve se o edifício se não alevantar, se não se modificarem de raiz os nossos costumes. É o ponto em que a gente moça de Portugal insiste principalmente, não é outro o fim que condiciona a sua fidelidade ao Senhor D. Manuel II. Vimos de mais longe que o desembarque no Mindelo e seguimos para mais largo que a volta pura e simples de Acácio. Eis porque, prevenidos do valor dos mitos, apesar de não termos em política outra inspiração que não seja a dos factos, nós desejamos conferir ao movimento integralista, no seu aspeto sentimental e psicológico o carácter dum bandarrismo inteligente. É nossa a filosofia da Esperança, com um subido teórico no Padre António Vieira. Se Georges Sorel, o filósofo moderno que achou a influência decisiva dos mitos nos movimentos sociais, conhecesse a História do Futuro do glorioso jesuíta, com certeza que a utilizava como uma das melhores claridades que a sua tese poderia receber. Neste propósito, não nos é indiferente mais uma vez o pensamento de Garrett.
Garrett é um professor de energia nacional, — filho pródigo arrependido, mais o amamos pelo muito que errou e pela sinceridade com que se arrependeu. De pés para a cova, faz o seu testamento nas memoráveis sessões de 54. Quiseram as circunstâncias que os integralistas, recolhendo-lhe a herança, se vejam agora tornados os testamenteiros do altíssimo Poeta. Portugal é um reino de milagre - anunciava ele, confiando na nossa sorte. É imperioso o regresso ao estado de espírito coletivo que o milagre de Ourique significa, - pregamos nós. E Garrett antecipa-se a justificar-nos, com palavras cunhadas em ouro de boa marca, não se lembrasse a gargalhada indígena de ressuscitar em nós, com música de Ciríaco Cardoso, o tipo sempre vivo do boticário do Altinho. "Foi assim pequena e cheia de mistérios a Terra dos Helenos, foram assim todas as terras e nações pequenas que deram grande brado no mundo. E porquê? Porque o homem não vive só de pão, nem as nações vivem só de dinheiro, só de força bruta, só de braços e de pernas. Pela cabeça e pelo coração hão-de viver. A imaginação e o sentimento são elementos de vida, também são essenciais como os outros, e mais indispensáveis às organizações sociais menos robustas. Assim como o homem de menos força física pode ser superior ao gigante pelo espírito que o eleva, assim a nação menor arrosta com o grande império. É David em frente de Golias, mas a pedra da funda pode sair com fé. Tirai-lhe a fé, o colosso ri-se do anão".
Seja a fé a nossa espada. Aceite-se o legado de Garrett, de quem somos herdeiros universais.
"Quando todas as armas se nos quebram nas mãos, não nos resta senão a fé para vencermos!" exclamava o ano passado o Cardeal Mercier durante a lenta crucificação da Bélgica. Também nós, os integralistas, não temos mais que a fé para triunfar!
Não nos esquecemos que duma vez, sete homens subiram a encosta de Montmartre e fizeram no cimo da colina profissão de obediência a um deles. Em menos dm século a Companhia de Jesus sustinha o avanço do Protestantismo, disciplinava a mentalidade latina e, atravessando os mares, ia civilizar a Índia e as Américas. Tanto pudera a fé desses sete homens! Nós não temos nem o Protestantismo que combater, nem a Latinidade que disciplinar. Somos já no ano V da república, muito mais que sete. Portugal não se compra nem com as Índias nem com as Américas. Basta, pois, que tenhamos fé, para que tenhamos vontade. Ter vontade num povo que a não tem, é ser senhor em breve dos sorrisos difíceis da vitória. A vitória é feminina, rende-se aos audazes que a procuram. Ora o varão forte foi sempre o que teve mais fé. Ter fé é levantar montanhas,- rezam as Escrituras. Não custa tanto a levantar Portugal do sonambulismo em que caíu.
É de incertezas o momento que corre? É que Deus apaga quando quere construir, - já dizia da Revolução, Joseph de Maistre. Talvez que nas derrotas sobre derrotas em que parecemos ir a pique, Deus esteja apagando para construir connosco alguma coisa de mais sólido e de melhor.
Tenhamos fé. Não é Portugal um reino de milagre, segundo Garrett, nosso mestre? Se o é, porque não havemos de acreditar no milagre de Ourique?
1915.
(negritos acrescentados)
[Este texto foi escrito e publicado em 1915. Portugal só entraria na Grande Guerra, em 1916, produzindo-se então a transformação do Integralismo Lusitano de movimento de ideias em organização política, apresentando em Abril de 1916 o primeiro Manifesto da Junta Central do Integralismo Lusitano]
O testamento de Garrett (1915), Glossário dos Tempos, Porto, Edições Gama, 1942, pp. 51-119.
“Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.”
"Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo."
“Cotejados hoje os dois sistemas de representação, nós assistimos ao descrédito mortal do parlamentarismo, que cede sensivelmente à velha representação territorial e técnica o lugar que em justiça lhe pertence.”
"Nas opiniões que possuía acerca do problema da nossa administração, Garrett, pelo visto, revela-se um dos mestres mais eminentes do Integralismo Lusitano. Proclamando pela boca de Frei Denis o valor intrínseco da nossa velha Monarquia, Garrett, pela justa compreensão das nossas instituições municipais, estabelecia os limites por cujo intermédio as virtudes só próprias da descentralização evitam que a função condensadora do poder central descaia no caprichoso e no arbitrário. Eis porque Garrett, equivocado com a palavra democracia, como se equivocara com a palavra liberdade, não cessava nunca de proclamar, ao longo dos seus discursos, que a democracia e a monarquia eram ambas necessárias à sociedade, para que a primeira não resultasse em oligarquia e a segunda em despotismo."