A colina inspirada
António Sardinha, "A colina inspirada (fragmento), Exílio - Revista Mensal de Arte, Lettras e Ciencias, nº 1, Abril de 1916, (único publicado), pp. 17-20.
Eu moro agora nas vizinhanças duma colina inspirada, onde sopra o Vento-do-Espirito, como nessoutra em que Barrés escutou o diálogo eterno da campina com a ermida. Peregrino das grandes emoções, todas as tardes a subo, quando o poente já não é mais que uma ferida rubra inflamada. Caem vagas as primeiras sombras. E das primeiras sombras se animam então as vertentes povoadas de oliveiras, que avançam pela argila vermelha como que em modos reverentes de cortejo.
Uma vez ali, a paisagem deixa de ser instintiva para se mostrar torturada e difícil. Sumiram-se no vale, escondidas pela encosta, as minhas verduras virgilianas. Não chegam lá acima os murmúrios da água correndo sempre no giro manso das regas. Uma gravidade súbita se apossa das coisas, tornadas sérias pela meditação. A gleba ali é mordida de sedes impenitentes. Foi mais trabalhada pelos desejos e pelas canseiras do homem do que pelo favor maternal das estações. Se ainda houvesse profetas no mundo, Deus podia falar-lhes do alto desta colina!
Todas as tardes a subo, porque ela — a colina inspirada — ensina-me a suprema lição da Terra e dos Mortos. É bem um curso de energia nacional que eu ando a tirar pelas lentas calmas de agosto, com a canícula esbravejando no céu impassível e o traço esbatido dos longes fixando-se em linhas crudelíssimas de luz. Ergue-me a alma doente a alma centenária dos arvoredos que guarda consigo a presença impalpável de não sei que mistério. Revela-se em tudo um segredo que eu não decifro, de tudo se desprende uma religiosidade que é profunda e chega a encher-se das azas do pavor divino, se à noite a lua ascende devagar, derramando uma claridade baça de sortilégio. Adivinham-se, dispersos na écloga permanente do vale, uns restos de hino heroico que as nossas veias entendem melhor que o nosso entendimento. Respira-se um ar de oferenda litúrgica no olivedo que marcha, recolhido, caminho da colina, nos choupos que se curvam para o leito do ribeiro. O vale parece antes um lugar abandonado de sacrifício diante do silêncio austero da colina. Aqui verteu-se sangue. Talvez que para memória do sangue vertido tenha uma cor desbotada de carnificina o chão gretado e barrento.
Aqui verteu-se sangue, — e sangue propiciatório! No entanto, as arúspices abalaram, o cutelo sagrado já se não embebe há muito no peito fremente das vítimas. Quebraram-se as lápides votivas, extinguiu-se a chama inquieta das lâmpadas. Nunca mais se viram as turbas dançando e cantando à roda do santuário olvidado. Só no alto da colina, mais forte que o isolamento, o Vento-do-Espírito ficou.
Aqui verteu-se sangue! Mas o sangue vertido não subiu envolto em vapores acres para a deusa abundante que concede a fartura das colheitas e preside em casa à repartição das sementes. Nem os gentios ocultos da Fecundidade se sentiram nomeados durante a orgia brava de hecatombe. O sangue vertido desceu às raízes, penetrou no íntimo dos torrões, adoçou a rijeza das moitas, fez de cada tronco um gesto de elevação para os céus. Ajoelhemos! Estamos em frente de um altar em que a divindade é a raça e os sacerdotes somos nós. Ajoelhemos! Na expressão parada do olivedo adivinha-se a recordação do sangue derramado. A charrua com que a jeira é amanhada não perdeu ainda o talhe da espada antiga. O ferro que hoje nos lavra a courela é ainda o ferro que ontem a recuperou. Ajoelhemos, com os olhos da carne fechados, para que os outros, os de dentro, se possam abrir. No alto da colina o Vento-do-Espírito vai ouvir-se. Crescendo em surdina do vale, a estrofe errante do Passado é, agora ao crepúsculo, como que um grito súbito de Anunciação.
Aqui derramou-se sangue, e — sangue propiciatório, sangue bom de portugueses! É este o terreno mais que bendito em que os avós de Seiscentos brigaram com os soldados de Castela "uma singular e porfiada batalha que durou das nove da manhã até se cerrar a noite" — reza na encosta um letreiro ingénuo que aprouve ao tempo poupar para que os homens o esquecessem. Eu a evoco — a essa "singular e porfiada batalha", debruçado para o meu atavismo à procura dalguma reminiscência hereditária. Com um sol pálido de inverno assomando a custo por entre os nevoeiros, oh, como seria a colina na hora trágica em que à roda dela se decidiam os destinos dum povo! Não houve lareira, por toda a província de Entre Tejo-e-Guadiana, que não tivesse ali um filho ou um noivo debaixo dos golpes duros do inimigo.
Ao fundo, a cidade torcia-se nas inclemências do assédio, com o hálito negro da peste, aspirando-a vorazmente. Acudidos de largo para a livrarem dos anéis apertados do cerco, os nossos atacaram de surpresa as avançadas arrogantes da gente estrangeira, ao toque dos clarins e ao rufo dos atambores. A colina não passava então de um outeiro redondinho, sem vocação mística, entre os outeirinhos redondos que à sua volta trocam as mãos e formam cadeia. O Vento-do-Espirito só a visitou depois que o sangue fez dela uma ara constante, dedicada à piedade pelos Manes.
Entre-se na ermida que a coroa cristianissimamente. Na rudez das paredes nuas, nada há que rememore o grande sacrifício que a colina abençoou. E uma capela rústica de aldeia, onde o luxo é a cal e o asseio a maior pompa que porventura ainda conheceu. Mas Deus — o Deus dos Exércitos, o Deus dos Combates, o Jeová tremendo dos extermínios bíblicos, decerto se repousou ali por momentos da Sua ira de Senhor Omnipotente para escutar os latins agradecidos com que Lhe ofereceram uma morada na colina. É o Deus das Vitórias que lá habita, no templo deserto em que já se não elevam as orações, aonde, no entanto, eu subo todas as tardes, ao crepúsculo, para melhor aprender no mistério da Terra e dos Mortos o segredo profundo que na colina reside.
(...)
Eu moro agora nas vizinhanças duma colina inspirada, onde sopra o Vento-do-Espirito, como nessoutra em que Barrés escutou o diálogo eterno da campina com a ermida. Peregrino das grandes emoções, todas as tardes a subo, quando o poente já não é mais que uma ferida rubra inflamada. Caem vagas as primeiras sombras. E das primeiras sombras se animam então as vertentes povoadas de oliveiras, que avançam pela argila vermelha como que em modos reverentes de cortejo.
Uma vez ali, a paisagem deixa de ser instintiva para se mostrar torturada e difícil. Sumiram-se no vale, escondidas pela encosta, as minhas verduras virgilianas. Não chegam lá acima os murmúrios da água correndo sempre no giro manso das regas. Uma gravidade súbita se apossa das coisas, tornadas sérias pela meditação. A gleba ali é mordida de sedes impenitentes. Foi mais trabalhada pelos desejos e pelas canseiras do homem do que pelo favor maternal das estações. Se ainda houvesse profetas no mundo, Deus podia falar-lhes do alto desta colina!
Todas as tardes a subo, porque ela — a colina inspirada — ensina-me a suprema lição da Terra e dos Mortos. É bem um curso de energia nacional que eu ando a tirar pelas lentas calmas de agosto, com a canícula esbravejando no céu impassível e o traço esbatido dos longes fixando-se em linhas crudelíssimas de luz. Ergue-me a alma doente a alma centenária dos arvoredos que guarda consigo a presença impalpável de não sei que mistério. Revela-se em tudo um segredo que eu não decifro, de tudo se desprende uma religiosidade que é profunda e chega a encher-se das azas do pavor divino, se à noite a lua ascende devagar, derramando uma claridade baça de sortilégio. Adivinham-se, dispersos na écloga permanente do vale, uns restos de hino heroico que as nossas veias entendem melhor que o nosso entendimento. Respira-se um ar de oferenda litúrgica no olivedo que marcha, recolhido, caminho da colina, nos choupos que se curvam para o leito do ribeiro. O vale parece antes um lugar abandonado de sacrifício diante do silêncio austero da colina. Aqui verteu-se sangue. Talvez que para memória do sangue vertido tenha uma cor desbotada de carnificina o chão gretado e barrento.
Aqui verteu-se sangue, — e sangue propiciatório! No entanto, as arúspices abalaram, o cutelo sagrado já se não embebe há muito no peito fremente das vítimas. Quebraram-se as lápides votivas, extinguiu-se a chama inquieta das lâmpadas. Nunca mais se viram as turbas dançando e cantando à roda do santuário olvidado. Só no alto da colina, mais forte que o isolamento, o Vento-do-Espírito ficou.
Aqui verteu-se sangue! Mas o sangue vertido não subiu envolto em vapores acres para a deusa abundante que concede a fartura das colheitas e preside em casa à repartição das sementes. Nem os gentios ocultos da Fecundidade se sentiram nomeados durante a orgia brava de hecatombe. O sangue vertido desceu às raízes, penetrou no íntimo dos torrões, adoçou a rijeza das moitas, fez de cada tronco um gesto de elevação para os céus. Ajoelhemos! Estamos em frente de um altar em que a divindade é a raça e os sacerdotes somos nós. Ajoelhemos! Na expressão parada do olivedo adivinha-se a recordação do sangue derramado. A charrua com que a jeira é amanhada não perdeu ainda o talhe da espada antiga. O ferro que hoje nos lavra a courela é ainda o ferro que ontem a recuperou. Ajoelhemos, com os olhos da carne fechados, para que os outros, os de dentro, se possam abrir. No alto da colina o Vento-do-Espírito vai ouvir-se. Crescendo em surdina do vale, a estrofe errante do Passado é, agora ao crepúsculo, como que um grito súbito de Anunciação.
Aqui derramou-se sangue, e — sangue propiciatório, sangue bom de portugueses! É este o terreno mais que bendito em que os avós de Seiscentos brigaram com os soldados de Castela "uma singular e porfiada batalha que durou das nove da manhã até se cerrar a noite" — reza na encosta um letreiro ingénuo que aprouve ao tempo poupar para que os homens o esquecessem. Eu a evoco — a essa "singular e porfiada batalha", debruçado para o meu atavismo à procura dalguma reminiscência hereditária. Com um sol pálido de inverno assomando a custo por entre os nevoeiros, oh, como seria a colina na hora trágica em que à roda dela se decidiam os destinos dum povo! Não houve lareira, por toda a província de Entre Tejo-e-Guadiana, que não tivesse ali um filho ou um noivo debaixo dos golpes duros do inimigo.
Ao fundo, a cidade torcia-se nas inclemências do assédio, com o hálito negro da peste, aspirando-a vorazmente. Acudidos de largo para a livrarem dos anéis apertados do cerco, os nossos atacaram de surpresa as avançadas arrogantes da gente estrangeira, ao toque dos clarins e ao rufo dos atambores. A colina não passava então de um outeiro redondinho, sem vocação mística, entre os outeirinhos redondos que à sua volta trocam as mãos e formam cadeia. O Vento-do-Espirito só a visitou depois que o sangue fez dela uma ara constante, dedicada à piedade pelos Manes.
Entre-se na ermida que a coroa cristianissimamente. Na rudez das paredes nuas, nada há que rememore o grande sacrifício que a colina abençoou. E uma capela rústica de aldeia, onde o luxo é a cal e o asseio a maior pompa que porventura ainda conheceu. Mas Deus — o Deus dos Exércitos, o Deus dos Combates, o Jeová tremendo dos extermínios bíblicos, decerto se repousou ali por momentos da Sua ira de Senhor Omnipotente para escutar os latins agradecidos com que Lhe ofereceram uma morada na colina. É o Deus das Vitórias que lá habita, no templo deserto em que já se não elevam as orações, aonde, no entanto, eu subo todas as tardes, ao crepúsculo, para melhor aprender no mistério da Terra e dos Mortos o segredo profundo que na colina reside.
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