Cultura Clássica
António Sardinha
...na controvérsia tão disputada das causas da Revolução, eu voto por Taine contra Maurras!
(excertos)
É um ponto este de crítica e doutrina que nós devemos examinar com cuidadosa atenção. Olhando à formação histórica do nosso país - formação medieval e toda ela motivada mais num facto instintivo de raça de que numa razão consciente de ordem política, o romanismo, nem como jurisprudência, nem como tipo de sociedade, pode constituir para Portugal uma disciplina pública de carácter imperioso e insubstituível. Pelo contrário, constitui até, no desenvolvimento acidentado da nossa pátria, um forte elemento de perturbação, que precisamos de enumerar entre as causas primaciais da sua decadência. Daí o não considerarmos a Renascença como um período de vigor e de brilho para a nacionalidade portuguesa, pois tanto intelectual, como socialmente, representa a origem fundamental de quantos desvios houvemos de sofrer nas direcções do nosso génio colectivo.
Mas se a Renascença, e com ela o ideal greco-romano, precisa de ser contada como um factor inimigo da marcha natural da nossa história, nem por isso nós condenamos a educação clássica nos domínios da pedagogia. No definhamento do gosto literário e na quebra assustadora das faculdades lógi [56 - 57] cas - características universais da barbaria contemporânea - eu não sei mesmo de outro recurso que se haja de opôr com eficácia à animalização crescente das novas gerações, em quem esmorece o enlevo das boas leituras e onde alastra, como uma nódoa deprimente, a mais vergonhosa das inabilidades no exercício da própria língua. Em Portugal hoje não se sabe redigir! Médicos terminam os seus cursos, terminam os seus cursos engenheiros. E sempre que careçam de praticar a expressão escrita, tanto em relatórios profissionais, como em trabalhos de maior fôlego, é doloroso reconhecer que claudicam indecorosamente na ignorância das mais sóbrias e mais elementares regras do estilo.
A ressurreição das humanidades no ensino secundário impõe-se, pois, como mais necessária que o semi-cientismo a que se sujeita o cérebro dos rapazes, roubando-os nesse período tão decisivo da vida à aprendizagem fundamental do pensar claro e do sentir claro. O problema, que é seriíssimo, não se resolve de forma alguma senão apelando para a educação humanista. (...)
[58 - 59]
Com a urgência duma medida de salvação nacional, o problema da educação clássica põe-se para Portugal tão inadiavelmente quase como o do regresso do Rei. A tara principal duma democracia consiste no enfraquecimento das forças do raciocínio e na confusão consequente de ideias, ainda as mais gerais. Concorre para isso sensivelmente a influência social do Parlamentarismo, apresentando como meta suprema da intelectualidade o rábula que discursa, o arengador encartado - o verbómano, numa palavra. (...)
Psicologicamente, estão já hoje estudados os efeitos destrutivos da oratória, que gera a obscuridade mental e contribui para o rebaixamento do nível comum da inteligência. Nos alvores do nosso Constitucionalismo, se tivemos parlamentares que intelectualmente significaram o que, por exemplo, significou [58 - 59] Garrett, deve ainda à educação clássica. Nas sua maioria os grandes vultos do liberalismo português foram discípulos dos Padres do Oratório, recebendo do cultivo das humanidades a norma sadia de cultura que lhes deu sempre vivacidade e frescura ao espírito.
Já não acontece o mesmo com a camada que lhes sucedeu na herança. A depressão do gosto literário e da clareza lógica acompanhou a curva rápida da nossa desorganização, até cair na República, com os seus intelectuais semitatuados - pobres galerianos das coisas do pensamento, que hão-de passar à posteridade certamente, não como pessoas, mas como símbolos! (...)
* * *
É-nos grato encontrarmos mais uma vez connosco pela maneira como também encara o problema da educação clássica um escritor ilustre como Manuel da Silva Gaio. Acaba Manuel da Silva Gaio de publicar um estudo a todos os respeitos notabilíssimo, Da Poesia na educação dos gregos[*], que não é senão um aspecto da obra, Educação Clássica, em que por largos tempos, sempre dispersivamente, a sua nobilíssima actividade se empenhou. No prefácio da sua recente monografia, deixa-nos Manuel da Silva Gaio o esboço do que seria esse trabalho. E pelas linhas gerais com que o traceja, não hesitamos em reconhecer que era o livro de que em Portugal se carecia para levarmos à vitória uma forte campanha a favor do renascimento das humanidades.
Manuel da Silva Gaio coloca-se exactamente no [59 - 60] verdadeiro ponto de vista, ao reputar a educação clássica como uma "preparação formal do espírito". As vantagens do Classicismo em semelhante sentido Manuel da Silva Gaio as define com aquela agudeza crítica, que na história das ideias portuguesas o ficará marcando, inconfundivelmente, ao lado de Antero de Quental e de Moniz Barreto. (...)
As virtudes da educação clássica traduzem-se na noção de universalidade que imprimem a quem as convive de perto e pelos quadros mentais que nos conferem. Dando sempre às exigências da nossa curiosidade intelectual uma certa economia de proporções, insuflam-nos uma tendência salutar para a síntese. (...)
Talvez que ainda voltemos a detalhar as nossas opiniões sobre a educação clássica, chamando a aten- [61 - 62] ção de Manuel da Silva Gaio para a parte que no ensino moderno do Latim devem ter os Padres da Igreja. Se o grande século francês assim o houvesse entendido, pode bem ser que o naturalismo dos poetas e sofistas pagãos não produzisse a soltura céptica dos espíritos, em que a Revolução se entronca directamente. Porque na controvérsia tão disputada das causas da Revolução, eu voto por Taine contra Maurras! Mais que o vendaval romântico, a obsessão do figurino greco-romano inspirou os declamadores da Assembleia Constituinte e levou ao individualismo nefasto do Contrato-social.
Há um humanismo devoto, que, pelo que respeita à França, Henri de Bremond acaba de reanimar brilhantemente. Refiro-me ao humanismo que descende das medidas purgatórias do concílio de Trento. A doçura de S. Francisco de Sales é um exemplo, como é um exemplo a elevação moral de um Bossuet. Nós tivemos entre nós, sobre todos, um Padre Manuel Bernardes. Ora, se o Humanismo deu, através do lado religioso, puristas e mestres da Língua - clássicos, em resumo, porque é que os Padres da Igreja não figurarão, com a devida compreensão crítica da sua época, no material pedagógico do moderno ensino das humanidades? Santo Agostinho é bem o depositário do classicismo antigo, que ele purifica ao lado de S. Jerónimo. Ainda há pouco Luís Bertrand se lembrou de nos proporcionar uma antologia dos seus melhores excertos. O que na questão se me apresenta de importância é o cristianizar-se tanto quanto possível o estudo das humanidades, para evitar o caso frequente de Jules Lemaitre, o qual atribuía a sua descrença à acção negativista dos velhos mestres que haviam ignorado a Cristo."
(...)
in Ao Ritmo da Ampulheta, 2ª ed., Lisboa, 1978, pp. 56-60 (nota de pé de página e negritos acrescentados).
[*] Manuel da Silva Gaio, 1860-1934 - Da poesia na educação dos gregos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, 91 p.; separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 5 (1917), nº 3 e 4.
É um ponto este de crítica e doutrina que nós devemos examinar com cuidadosa atenção. Olhando à formação histórica do nosso país - formação medieval e toda ela motivada mais num facto instintivo de raça de que numa razão consciente de ordem política, o romanismo, nem como jurisprudência, nem como tipo de sociedade, pode constituir para Portugal uma disciplina pública de carácter imperioso e insubstituível. Pelo contrário, constitui até, no desenvolvimento acidentado da nossa pátria, um forte elemento de perturbação, que precisamos de enumerar entre as causas primaciais da sua decadência. Daí o não considerarmos a Renascença como um período de vigor e de brilho para a nacionalidade portuguesa, pois tanto intelectual, como socialmente, representa a origem fundamental de quantos desvios houvemos de sofrer nas direcções do nosso génio colectivo.
Mas se a Renascença, e com ela o ideal greco-romano, precisa de ser contada como um factor inimigo da marcha natural da nossa história, nem por isso nós condenamos a educação clássica nos domínios da pedagogia. No definhamento do gosto literário e na quebra assustadora das faculdades lógi [56 - 57] cas - características universais da barbaria contemporânea - eu não sei mesmo de outro recurso que se haja de opôr com eficácia à animalização crescente das novas gerações, em quem esmorece o enlevo das boas leituras e onde alastra, como uma nódoa deprimente, a mais vergonhosa das inabilidades no exercício da própria língua. Em Portugal hoje não se sabe redigir! Médicos terminam os seus cursos, terminam os seus cursos engenheiros. E sempre que careçam de praticar a expressão escrita, tanto em relatórios profissionais, como em trabalhos de maior fôlego, é doloroso reconhecer que claudicam indecorosamente na ignorância das mais sóbrias e mais elementares regras do estilo.
A ressurreição das humanidades no ensino secundário impõe-se, pois, como mais necessária que o semi-cientismo a que se sujeita o cérebro dos rapazes, roubando-os nesse período tão decisivo da vida à aprendizagem fundamental do pensar claro e do sentir claro. O problema, que é seriíssimo, não se resolve de forma alguma senão apelando para a educação humanista. (...)
[58 - 59]
Com a urgência duma medida de salvação nacional, o problema da educação clássica põe-se para Portugal tão inadiavelmente quase como o do regresso do Rei. A tara principal duma democracia consiste no enfraquecimento das forças do raciocínio e na confusão consequente de ideias, ainda as mais gerais. Concorre para isso sensivelmente a influência social do Parlamentarismo, apresentando como meta suprema da intelectualidade o rábula que discursa, o arengador encartado - o verbómano, numa palavra. (...)
Psicologicamente, estão já hoje estudados os efeitos destrutivos da oratória, que gera a obscuridade mental e contribui para o rebaixamento do nível comum da inteligência. Nos alvores do nosso Constitucionalismo, se tivemos parlamentares que intelectualmente significaram o que, por exemplo, significou [58 - 59] Garrett, deve ainda à educação clássica. Nas sua maioria os grandes vultos do liberalismo português foram discípulos dos Padres do Oratório, recebendo do cultivo das humanidades a norma sadia de cultura que lhes deu sempre vivacidade e frescura ao espírito.
Já não acontece o mesmo com a camada que lhes sucedeu na herança. A depressão do gosto literário e da clareza lógica acompanhou a curva rápida da nossa desorganização, até cair na República, com os seus intelectuais semitatuados - pobres galerianos das coisas do pensamento, que hão-de passar à posteridade certamente, não como pessoas, mas como símbolos! (...)
* * *
É-nos grato encontrarmos mais uma vez connosco pela maneira como também encara o problema da educação clássica um escritor ilustre como Manuel da Silva Gaio. Acaba Manuel da Silva Gaio de publicar um estudo a todos os respeitos notabilíssimo, Da Poesia na educação dos gregos[*], que não é senão um aspecto da obra, Educação Clássica, em que por largos tempos, sempre dispersivamente, a sua nobilíssima actividade se empenhou. No prefácio da sua recente monografia, deixa-nos Manuel da Silva Gaio o esboço do que seria esse trabalho. E pelas linhas gerais com que o traceja, não hesitamos em reconhecer que era o livro de que em Portugal se carecia para levarmos à vitória uma forte campanha a favor do renascimento das humanidades.
Manuel da Silva Gaio coloca-se exactamente no [59 - 60] verdadeiro ponto de vista, ao reputar a educação clássica como uma "preparação formal do espírito". As vantagens do Classicismo em semelhante sentido Manuel da Silva Gaio as define com aquela agudeza crítica, que na história das ideias portuguesas o ficará marcando, inconfundivelmente, ao lado de Antero de Quental e de Moniz Barreto. (...)
As virtudes da educação clássica traduzem-se na noção de universalidade que imprimem a quem as convive de perto e pelos quadros mentais que nos conferem. Dando sempre às exigências da nossa curiosidade intelectual uma certa economia de proporções, insuflam-nos uma tendência salutar para a síntese. (...)
Talvez que ainda voltemos a detalhar as nossas opiniões sobre a educação clássica, chamando a aten- [61 - 62] ção de Manuel da Silva Gaio para a parte que no ensino moderno do Latim devem ter os Padres da Igreja. Se o grande século francês assim o houvesse entendido, pode bem ser que o naturalismo dos poetas e sofistas pagãos não produzisse a soltura céptica dos espíritos, em que a Revolução se entronca directamente. Porque na controvérsia tão disputada das causas da Revolução, eu voto por Taine contra Maurras! Mais que o vendaval romântico, a obsessão do figurino greco-romano inspirou os declamadores da Assembleia Constituinte e levou ao individualismo nefasto do Contrato-social.
Há um humanismo devoto, que, pelo que respeita à França, Henri de Bremond acaba de reanimar brilhantemente. Refiro-me ao humanismo que descende das medidas purgatórias do concílio de Trento. A doçura de S. Francisco de Sales é um exemplo, como é um exemplo a elevação moral de um Bossuet. Nós tivemos entre nós, sobre todos, um Padre Manuel Bernardes. Ora, se o Humanismo deu, através do lado religioso, puristas e mestres da Língua - clássicos, em resumo, porque é que os Padres da Igreja não figurarão, com a devida compreensão crítica da sua época, no material pedagógico do moderno ensino das humanidades? Santo Agostinho é bem o depositário do classicismo antigo, que ele purifica ao lado de S. Jerónimo. Ainda há pouco Luís Bertrand se lembrou de nos proporcionar uma antologia dos seus melhores excertos. O que na questão se me apresenta de importância é o cristianizar-se tanto quanto possível o estudo das humanidades, para evitar o caso frequente de Jules Lemaitre, o qual atribuía a sua descrença à acção negativista dos velhos mestres que haviam ignorado a Cristo."
(...)
in Ao Ritmo da Ampulheta, 2ª ed., Lisboa, 1978, pp. 56-60 (nota de pé de página e negritos acrescentados).
[*] Manuel da Silva Gaio, 1860-1934 - Da poesia na educação dos gregos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, 91 p.; separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 5 (1917), nº 3 e 4.