Carta dirigida ao Cardeal Mercier, Arcebispo de Maline e Cardeal da Bélgica.
EMINENTÍSSIMO SENHOR:
Sobem hoje junto de Vossa Eminência Reverendíssima as homenagens de admiração e de respeito dos Católicos Portugueses. Não podia a terra cristã de Portugal ficar silenciosa diante da figura extraordinária do glorioso arcebispo de Malines. Se a vossa palavra apostólica comoveu, Eminentíssimo Senhor, a consciência religiosa do mundo inteiro, teve um eco maior ainda nas pequenas nacionalidades que perante a imolação dessa pobre Bélgica mártir se sentiram ameaçadas de morte no seu próprio destino.
Também Portugal se vê envolvido na tragédia sem nome que abraça a Europa enlutada nas suas duplas tenazes de ferro. No tumulto de ruína e massacre que cresce de hora para hora avassaladoramente, vós sois, Eminentíssimo Senhor, a força desarmada do Espírito, pregando aos povos divididos o respeito inviolável pela lei do Crucificado. Nunca a Fé nem o Patriotismo encontraram neste momento de amargura suprema quem mais erguidamente os incarnasse e servisse! Debruçado sobre os destroços palpitantes da vossa querida Lovaina, com a vossa catedral desmantelada e as vossas ovelhas padecendo as longas agonias de tristeza e da miséria, toda a existência histórica da Igreja ressurge e se condensa, Eminentíssimo Senhor, no exemplo constante de virtude e heroísmo, que é a vossa acção de Prelado e de Pai.
Como nos tempos primitivos da Cristandade, vós encheis, Eminência Reverendíssima, esse fundo sangrento de devastações e de batalhas, que é a vossa pátria desfeita, pelo exercício diário dos mais rudes mas também dos mais tocantes actos de misericórdia. Por vós se enterram os mortos, se recolhem os órfãos, se auxiliam as viuvas, se hospitalizam os enfermos. Vós reconstruis os lares e restaurais os altares, anunciando já para o centenário da independência da Bélgica a vitoria total dum país que, como nenhum outro mereceu, - Per crucem ad lucem,- as alegrias do resgate pela aceitação gostosa do sacrifico. E, mais alto que os impérios e que as chancelarias, a vossa voz, com a serenidade firme dos justos, não hesita em denunciar à face de Deus e dos homens o pecado social duma guerra violenta de conquista, em que de todo se perdeu a noção duma mesma origem em Cristo, que é a estrutura sempre moça e sempre fecunda da nossa civilização católica e romana.
Dizemos «civilização católica e romana», porque sem o Cristianismo, a civilização latina, ou teria desaparecido, ou não seria mais que a legitimação de quantas durezas e de quantas desigualdades constituíram a base da cidade-antiga. A cidade-antiga fundamentava-se na escravidão e no cesarismo suprimindo assim a responsabilidade moral dos indivíduos porque lhes não reconhecia a sua autonomia interior. A liberdade, por isso, só nasceu durante essa caluniada Idade-Média, já filha dos séculos cristãos, quando a Igreja alevantou a sociedade dos escombros que a soterravam e lhe deu a Família por alicerce invencível.
É da Família que deriva mais tarde a Pátria pelo alargamento da comunidade domestica no Município e na Corporação. O Município consagra o amor da terra, a Corporação, o amor do trabalho.
A cidade-antiga não prezava nem o trabalho nem a terra. O trabalho, como tarefa baixa, deixava-o aos escravos; a terra, como matéria fiscal entregava-a à voracidade insatisfeita do Estado. Pois a Igreja dignifica o trabalho e nas Catacumbas o maior elogio que se inscreve sobre a lousa funerária dos humildes é um apenas: o de operarius. Pois a Igreja abençoa e santifica a propriedade e tira dela a Europa moderna, povoando-a de paroquias como uma abelha povoa de favos a sua colmeia. Lembremo-lo nós no instante que passa, para que não se sobreponham nunca à obra criadora do Catolicismo as falsas ideologias revolucionarias que afincadamente se pretendem substituir à nossa civilização tradicional.
Vós, Eminentíssimo Senhor, guardais como poucos a honra e a nobreza dessa civilização. A vossa catedral de Lovaina foi sempre um reduto extremado do pensamento católico contra as alterações depressivas da verdade religiosa e da verdade filosófica. A vós se deve poderosamente a renovação intelectual a que o Santo Padre Leão XIII presidiu com a sua imortal encíclica Aeterni Patris em que S. Tomás é invocado como o modelo eterno da eterna sabedoria. Tão depressa Roma indicou o regresso ao Tomismo. como o caminho mais direito para se obter o acordo da Razão com a Fé, logo junto de Vós, Eminentíssimo Senhor, se acendeu a candeia serena do estudo, a fim de se opor à influencia perniciosa do naturalismo o verbo forte do Anjo das Escolas, do admirável Doutor Angélico. Não percorremos agora, nem em rápido relance, o que foi, debaixo dos vossos auspícios, esse renascimento assombroso da Escolástica. Por S. Tomás, comentador de Aristóteles, a Igreja recebera da Antiguidade o que havia de humano e de saudável nas boas letras clássicas. A continuidade da cultura a Igreja a salvou na crise das invasões barbaras, ao anoitecer da estrela pagã.
Também, pelo mesmo património invencível, a Igreja nos salva hoje nas melhores e mais belas conquistas do espírito ocidental, elevando com o Tomismo um baluarte inderrubável contra os sistemas e contra as teorias que, hora a hora, dia a dia, nos chegavam do outro lado do Reno, desde que de lá se alevantara a grande pestilência da Reforma.
Antes que o arcebispo de Malines se erguesse em padroeiro da sua pátria perante o crescer dos exércitos germânicos, já o professor de Lovaina, catedrático insigne, ligado para sempre à mais nobre das revivescências da filosofia, se apresentava no combate não menos aguerrido das ideias, ordenando a nossa defesa mental de católicos e de romanos em face das heresias sociais e morais geradas pelo individualismo protestante.
A guerra espantosa que nos quebra, como a vara de ferro simbólica da Bíblia, arranca as suas raízes da divisão trazida à unidade da Europa pela palavra anárquica de Lutero. Acabou de se romper então o equilíbrio de sentimentos e de interesses em que a noção superior de Cristandade mantivera unidos os povos e os reis debaixo do sinal pacificador da Cruz. Na falta dum poder que, pela sua divina fraqueza, em nada signifique as ambições da terra e em tudo nos fale a linguagem suprema da disciplina e do sacrifício, a sociedade internacional dissolveu-se, a sociedade internacional deixou de existir. O drama actual em que as nações se enclavinham umas nas outras, despedaçando-se duramente como leoas enraivadas, é a consequência trágica desse erro já secular.
Nós a expiamos com a maior das catástrofes que a história assinala, não querendo ainda reconhecer que a tanto nos levou o individualismo sem freio da cisão de Lutero. Tal foi a primeira vitoria do como que avant-guerre em que a Latinidade começou a sentir os impulsos demolidores que hoje a Alemanha traduz na rudeza dos factos, ao proclamar como nunca a sua aptidão ao domínio universal. Seguiram-se depois as inovações perniciosas do século XVIII, em que o filosofismo enfático dos Enciclopedistas, amigos de Frederico II, antecedeu e preparou a Revolução que marca na Europa o princípio da hegemonia da Prússia. Do alto da cadeira de S. Pedro já Leão XIII o recordava na sua encíclica Diuturnum iliud.
«Já no passado,» - escreve o imortal Pontífice, - «o movimento que se chama a Reforma teve por auxiliares e por chefes homens que, pelas suas doutrinas, alteraram profundamente a essência dos dois poderes, - espiritual e temporal; perturbações subitâneas, revoltas audaciosas, principalmente na Alemanha, formaram o séquito destas novidades, e a guerra civil e as perseguições exerceram-se com tanta violência que não houve uma única região que não se visse exposta às agitações e aos morticínios. Dessa heresia nasceram no século último a falsa filosofia, o que se intitula o direito moderno, a soberania do povo e a licença sem limites fora da qual se não sabe já encontrar a verdadeira liberdade».
Nos ensinamentos claros de Roma estão energicamente apontadas as causas dos males que nos afligem. O acto material da conquista não procurou senão consumar o resultado duma lenta e pertinaz invasão da nossa consciência e do nosso pensamento. É aí, Eminentíssimo Senhor, que a vossa acção admirável se incita. «Nihil innovetur nisi quod traditum est!» - eis o lema da vossa vida de padre e de sábio.
Fiel à mais pura essência da tradição católica, os baixos subjectivismos da mentira racionalista são dominados por vós numa atitude magnifica de intransigência e de doutrina. S. Tomás, renovado por Vossa Eminência Reverendíssima, volta a ser o gládio de dois gumes a que nenhuma perfídia mental resiste. Ninguém esqueceu ainda aquela hora de Malines, quando em 1891, numa memorável assembleia geral de católicos belgas, o Tomismo, rejuvenescido pelo «contacto das ciências novas, estudadas segundo o seu próprio método», foi apresentado por vós como a síntese de todas as ciências físicas, naturais e morais. Assim Santo Agostinho, colocado na transição de uma idade do mundo, colhera a herança intelectual da Antiguidade para a transmitir aos vindouros, já depurada do seu desvairo filosófico. Predestinou-nos o Céu para uma missão semelhante! Afirmando os direitos da filosofia eterna, por vossa mão ingressaram no âmbito sereno aquelas verificações experimentais, em cuja descoberta os últimos cem anos foram notáveis.
Nós não conhecemos paralelo mais rigoroso nem mais impressionante! Com os olhos poisados nos espectáculos duma subversão terrível, Agostinho preparava o renascimento futuro, imprimindo o prestígio salutar da Graça à graça prestigiosa das letras pagãs. Vós, Eminentíssimo Senhor, incorporais no vasto morgadio da cultura humana, de que a Igreja é administradora e guardiã, baptizados e redimidos já dos seus defeitos originais, os frutos desse mesmo espirito de curiosidade naturalista, de que os incrédulos quiseram fazer o desmentido das verdades absolutas que só vinham confirmar. Por isso na vossa voz, Eminentíssimo Senhor, não é o requiem soluçante que nós ouvimos por sobre o desabamento abominável de Lovaina. A beleza da sua alma universitária não morreu. E parece que, entre tanta ruína e tanto sacrilégio, na vossa boca ressuscita a profecia admirável de Agostinho, sossegando a turba espavorida dos fieis: - «Quod Christus custodit, non tollit Gothus !»
Mas o homem de estado vai completar-se pelo homem de acção. Elevado ao episcopado em 1916, e alguns meses depois à purpura cardinalícia, Vossa Eminência Reverendíssima em breve revestiu esse supremo ministério daquele caracter militante, que é a força fecunda das grandes almas eclesiásticas. A vossa linhagem espiritual, Eminentíssimo Senhor, é a linhagem espiritual dos primeiros padres da Igreja. A actividade e a piedade congregam-se nos mesmos intuitos de pensamento e de coração. Lembrando uma máxima celebre de Santo Inácio, vós rezais sem contar convosco, e trabalhais sem contar com Deus. E ao lermos agora as vossas exortações em que o sublime do Cristianismo toma a forma simples duma verdade em que até o entendimento frágil das crianças pode comungar, nós não sabemos se é Pedro-Apóstolo que fala das promessas infalíveis de Cristo aos mártires que vão morrer confessando a fé, se Sua Eminência Reverendíssima o Cardeal Desiderio Me Arcebispo Primaz da Bélgica, que, ao mesmo tempo que proclama o patriotismo uma virtude cristã, abençoa os que, de armas na mão por uma causa justa, caem no bom combate, entregando a sua vida como o mais alto e o mais sentido de todos os sacrifícios!
A pastoral de Dezembro de 1914, Patriotisme et endurance, assinala para a veneração do mundo inteiro esse extraordinário vigor moral que soergue já nos fundos severos da historia a vossa figura excepcional de Prelado e de Doutor. Com razão Mgr. Baudrillart a considera um acto tão belo como a atitude de S. João Baptista na presença de Herodes, como a do papa Gregorio VII na de Henrique IV da Alemanha e a de Tomás Becket na de Henrique II de Inglaterra. Na total anulação de todos os elementos-materiais da defesa só a energia desarmada do Espirito ficou inflexa, como outrora em Roma, no Papa Leão, saindo ao encontro das fúrias assoladoras de Atila. São de sacerdote as vossas palavras, - não esquecem jamais a brancura do perdão. Mas, porque elas se inspiram nos altos ditames da caridade cristã, é que vós, Eminentíssimo Senhor, não deixais nunca de afirmar que «o direito violentado continua sendo o direito e que a injustiça apoiada na força é sempre da mesma forma a injustiça.» E com que sereno desassombro, Vossa Eminência Reverendíssima, d' olhos poisados na Cruz e as mãos santificadas de padre traçando um gesto largo de reprovação, recorda à nação belga agrilhoada que o poder que o governa não é uma autoridade legitima, não se lhe devendo por isso nem a estima, nem a obediência! Assim a Bélgica vos quer e olha como a incarnação viva da sua formidável resistência religiosa e patriótica!
A «Trégua de Deus» viu-se outra vez pregada por Vossa Eminência Reverendíssima naquele apelo dirigido ao Episcopado da Áustria e da Alemanha para a constituição dum tribunal de apreciação desapaixonada e calma, onde a verdade se restabelecesse contra os rancores e contra as confusões que a obscurecem. Foi mais uma nobre tentativa para a restauração da sociedade internacional, que só encontrará apoio e repouso na Igreja Pacificadora, a quem Jesus, seu Fundador, confiou a assistência da Eternidade. Assim, a vossa atitude perante as deportações ordenadas por Von Bissing, comandante militar de Bruxelas, não há ninguém que a não tenha guardado no seu coração, porque é o maior legado moral da temerosa catástrofe que dizima em carnagens que fariam empalidecer as da própria Antiguidade. Vós recuperas, Senhor, os direitos da Cruz sobre a Europa despedaçada. Por isso à Bélgica em agonia concedeu a sua primeira benção o Supremo Pontífice no momento em que era elevado à cadeira de Pedro. É simbólica essa benção, pois caindo na desgraça e na desolação, caiu sobre o calvário dum povo, a quem não falta a crença de seus Maiores para que lhe haja de faltar a fé na ressurreição futura. Já vós anunciais para daqui a treze anos, no centenário exacto da independência do vosso pais, o prémio da sua constância na angustia e da sua lealdade no martírio. «Non tollit Gothus quod Christus custodit». E a voz profética de Agostinho enche-vos a alma de certezas místicas, as mais fortes e as mais verdadeiras de todas as certezas!
Não podia a terra fidelíssima de Portugal permanecer silenciosa diante do vosso fervor apostólico. Somos pequenos como a Bélgica, a nossa história, corno a da Bélgica, se escreveu à sombra Cruz. Ainda agora, só na Cruz nós depomos esperança no nosso ressurgimento. A mesma remissão em Cristo, que une entre si os homens, une igualmente as nações. A Bélgica cativa é amada e chorada em Portugal. Saudemo-la no seu Primaz, no seu Rei, nos seus Mortos, no seu Exercito, nos seus Heróis, nas suas Viuvas, nos seus Órfãos! A Vossa Eminência Reverendíssima entregamos os votos sentidos dos Católicos Portugueses. Não sejam os destinos da nossa Pátria esquecidos por quem, como Vós, Eminentíssimo Senhor, se encontra tão perto de Deus pela Virtude e pela Oração. Que o nome de Portugal mereça de Vossa Eminência Reverendíssima a lembrança duma prece diária, enquanto nós, ajoelhados aos pés do grande arcebispo de Malines, lhe beijamos respeitosamente o sagrado anel.
Lisboa, 10 de Junho de 1917.
António Sardinha (1887-1925), Durante a Fogueira - Páginas da Guerra, 1927.
(1) Mensagem redigida por António Sardinha e enviada ao Cardeal Mercier em nome dos Católicos Portugueses.
Sobem hoje junto de Vossa Eminência Reverendíssima as homenagens de admiração e de respeito dos Católicos Portugueses. Não podia a terra cristã de Portugal ficar silenciosa diante da figura extraordinária do glorioso arcebispo de Malines. Se a vossa palavra apostólica comoveu, Eminentíssimo Senhor, a consciência religiosa do mundo inteiro, teve um eco maior ainda nas pequenas nacionalidades que perante a imolação dessa pobre Bélgica mártir se sentiram ameaçadas de morte no seu próprio destino.
Também Portugal se vê envolvido na tragédia sem nome que abraça a Europa enlutada nas suas duplas tenazes de ferro. No tumulto de ruína e massacre que cresce de hora para hora avassaladoramente, vós sois, Eminentíssimo Senhor, a força desarmada do Espírito, pregando aos povos divididos o respeito inviolável pela lei do Crucificado. Nunca a Fé nem o Patriotismo encontraram neste momento de amargura suprema quem mais erguidamente os incarnasse e servisse! Debruçado sobre os destroços palpitantes da vossa querida Lovaina, com a vossa catedral desmantelada e as vossas ovelhas padecendo as longas agonias de tristeza e da miséria, toda a existência histórica da Igreja ressurge e se condensa, Eminentíssimo Senhor, no exemplo constante de virtude e heroísmo, que é a vossa acção de Prelado e de Pai.
Como nos tempos primitivos da Cristandade, vós encheis, Eminência Reverendíssima, esse fundo sangrento de devastações e de batalhas, que é a vossa pátria desfeita, pelo exercício diário dos mais rudes mas também dos mais tocantes actos de misericórdia. Por vós se enterram os mortos, se recolhem os órfãos, se auxiliam as viuvas, se hospitalizam os enfermos. Vós reconstruis os lares e restaurais os altares, anunciando já para o centenário da independência da Bélgica a vitoria total dum país que, como nenhum outro mereceu, - Per crucem ad lucem,- as alegrias do resgate pela aceitação gostosa do sacrifico. E, mais alto que os impérios e que as chancelarias, a vossa voz, com a serenidade firme dos justos, não hesita em denunciar à face de Deus e dos homens o pecado social duma guerra violenta de conquista, em que de todo se perdeu a noção duma mesma origem em Cristo, que é a estrutura sempre moça e sempre fecunda da nossa civilização católica e romana.
Dizemos «civilização católica e romana», porque sem o Cristianismo, a civilização latina, ou teria desaparecido, ou não seria mais que a legitimação de quantas durezas e de quantas desigualdades constituíram a base da cidade-antiga. A cidade-antiga fundamentava-se na escravidão e no cesarismo suprimindo assim a responsabilidade moral dos indivíduos porque lhes não reconhecia a sua autonomia interior. A liberdade, por isso, só nasceu durante essa caluniada Idade-Média, já filha dos séculos cristãos, quando a Igreja alevantou a sociedade dos escombros que a soterravam e lhe deu a Família por alicerce invencível.
É da Família que deriva mais tarde a Pátria pelo alargamento da comunidade domestica no Município e na Corporação. O Município consagra o amor da terra, a Corporação, o amor do trabalho.
A cidade-antiga não prezava nem o trabalho nem a terra. O trabalho, como tarefa baixa, deixava-o aos escravos; a terra, como matéria fiscal entregava-a à voracidade insatisfeita do Estado. Pois a Igreja dignifica o trabalho e nas Catacumbas o maior elogio que se inscreve sobre a lousa funerária dos humildes é um apenas: o de operarius. Pois a Igreja abençoa e santifica a propriedade e tira dela a Europa moderna, povoando-a de paroquias como uma abelha povoa de favos a sua colmeia. Lembremo-lo nós no instante que passa, para que não se sobreponham nunca à obra criadora do Catolicismo as falsas ideologias revolucionarias que afincadamente se pretendem substituir à nossa civilização tradicional.
Vós, Eminentíssimo Senhor, guardais como poucos a honra e a nobreza dessa civilização. A vossa catedral de Lovaina foi sempre um reduto extremado do pensamento católico contra as alterações depressivas da verdade religiosa e da verdade filosófica. A vós se deve poderosamente a renovação intelectual a que o Santo Padre Leão XIII presidiu com a sua imortal encíclica Aeterni Patris em que S. Tomás é invocado como o modelo eterno da eterna sabedoria. Tão depressa Roma indicou o regresso ao Tomismo. como o caminho mais direito para se obter o acordo da Razão com a Fé, logo junto de Vós, Eminentíssimo Senhor, se acendeu a candeia serena do estudo, a fim de se opor à influencia perniciosa do naturalismo o verbo forte do Anjo das Escolas, do admirável Doutor Angélico. Não percorremos agora, nem em rápido relance, o que foi, debaixo dos vossos auspícios, esse renascimento assombroso da Escolástica. Por S. Tomás, comentador de Aristóteles, a Igreja recebera da Antiguidade o que havia de humano e de saudável nas boas letras clássicas. A continuidade da cultura a Igreja a salvou na crise das invasões barbaras, ao anoitecer da estrela pagã.
Também, pelo mesmo património invencível, a Igreja nos salva hoje nas melhores e mais belas conquistas do espírito ocidental, elevando com o Tomismo um baluarte inderrubável contra os sistemas e contra as teorias que, hora a hora, dia a dia, nos chegavam do outro lado do Reno, desde que de lá se alevantara a grande pestilência da Reforma.
Antes que o arcebispo de Malines se erguesse em padroeiro da sua pátria perante o crescer dos exércitos germânicos, já o professor de Lovaina, catedrático insigne, ligado para sempre à mais nobre das revivescências da filosofia, se apresentava no combate não menos aguerrido das ideias, ordenando a nossa defesa mental de católicos e de romanos em face das heresias sociais e morais geradas pelo individualismo protestante.
A guerra espantosa que nos quebra, como a vara de ferro simbólica da Bíblia, arranca as suas raízes da divisão trazida à unidade da Europa pela palavra anárquica de Lutero. Acabou de se romper então o equilíbrio de sentimentos e de interesses em que a noção superior de Cristandade mantivera unidos os povos e os reis debaixo do sinal pacificador da Cruz. Na falta dum poder que, pela sua divina fraqueza, em nada signifique as ambições da terra e em tudo nos fale a linguagem suprema da disciplina e do sacrifício, a sociedade internacional dissolveu-se, a sociedade internacional deixou de existir. O drama actual em que as nações se enclavinham umas nas outras, despedaçando-se duramente como leoas enraivadas, é a consequência trágica desse erro já secular.
Nós a expiamos com a maior das catástrofes que a história assinala, não querendo ainda reconhecer que a tanto nos levou o individualismo sem freio da cisão de Lutero. Tal foi a primeira vitoria do como que avant-guerre em que a Latinidade começou a sentir os impulsos demolidores que hoje a Alemanha traduz na rudeza dos factos, ao proclamar como nunca a sua aptidão ao domínio universal. Seguiram-se depois as inovações perniciosas do século XVIII, em que o filosofismo enfático dos Enciclopedistas, amigos de Frederico II, antecedeu e preparou a Revolução que marca na Europa o princípio da hegemonia da Prússia. Do alto da cadeira de S. Pedro já Leão XIII o recordava na sua encíclica Diuturnum iliud.
«Já no passado,» - escreve o imortal Pontífice, - «o movimento que se chama a Reforma teve por auxiliares e por chefes homens que, pelas suas doutrinas, alteraram profundamente a essência dos dois poderes, - espiritual e temporal; perturbações subitâneas, revoltas audaciosas, principalmente na Alemanha, formaram o séquito destas novidades, e a guerra civil e as perseguições exerceram-se com tanta violência que não houve uma única região que não se visse exposta às agitações e aos morticínios. Dessa heresia nasceram no século último a falsa filosofia, o que se intitula o direito moderno, a soberania do povo e a licença sem limites fora da qual se não sabe já encontrar a verdadeira liberdade».
Nos ensinamentos claros de Roma estão energicamente apontadas as causas dos males que nos afligem. O acto material da conquista não procurou senão consumar o resultado duma lenta e pertinaz invasão da nossa consciência e do nosso pensamento. É aí, Eminentíssimo Senhor, que a vossa acção admirável se incita. «Nihil innovetur nisi quod traditum est!» - eis o lema da vossa vida de padre e de sábio.
Fiel à mais pura essência da tradição católica, os baixos subjectivismos da mentira racionalista são dominados por vós numa atitude magnifica de intransigência e de doutrina. S. Tomás, renovado por Vossa Eminência Reverendíssima, volta a ser o gládio de dois gumes a que nenhuma perfídia mental resiste. Ninguém esqueceu ainda aquela hora de Malines, quando em 1891, numa memorável assembleia geral de católicos belgas, o Tomismo, rejuvenescido pelo «contacto das ciências novas, estudadas segundo o seu próprio método», foi apresentado por vós como a síntese de todas as ciências físicas, naturais e morais. Assim Santo Agostinho, colocado na transição de uma idade do mundo, colhera a herança intelectual da Antiguidade para a transmitir aos vindouros, já depurada do seu desvairo filosófico. Predestinou-nos o Céu para uma missão semelhante! Afirmando os direitos da filosofia eterna, por vossa mão ingressaram no âmbito sereno aquelas verificações experimentais, em cuja descoberta os últimos cem anos foram notáveis.
Nós não conhecemos paralelo mais rigoroso nem mais impressionante! Com os olhos poisados nos espectáculos duma subversão terrível, Agostinho preparava o renascimento futuro, imprimindo o prestígio salutar da Graça à graça prestigiosa das letras pagãs. Vós, Eminentíssimo Senhor, incorporais no vasto morgadio da cultura humana, de que a Igreja é administradora e guardiã, baptizados e redimidos já dos seus defeitos originais, os frutos desse mesmo espirito de curiosidade naturalista, de que os incrédulos quiseram fazer o desmentido das verdades absolutas que só vinham confirmar. Por isso na vossa voz, Eminentíssimo Senhor, não é o requiem soluçante que nós ouvimos por sobre o desabamento abominável de Lovaina. A beleza da sua alma universitária não morreu. E parece que, entre tanta ruína e tanto sacrilégio, na vossa boca ressuscita a profecia admirável de Agostinho, sossegando a turba espavorida dos fieis: - «Quod Christus custodit, non tollit Gothus !»
Mas o homem de estado vai completar-se pelo homem de acção. Elevado ao episcopado em 1916, e alguns meses depois à purpura cardinalícia, Vossa Eminência Reverendíssima em breve revestiu esse supremo ministério daquele caracter militante, que é a força fecunda das grandes almas eclesiásticas. A vossa linhagem espiritual, Eminentíssimo Senhor, é a linhagem espiritual dos primeiros padres da Igreja. A actividade e a piedade congregam-se nos mesmos intuitos de pensamento e de coração. Lembrando uma máxima celebre de Santo Inácio, vós rezais sem contar convosco, e trabalhais sem contar com Deus. E ao lermos agora as vossas exortações em que o sublime do Cristianismo toma a forma simples duma verdade em que até o entendimento frágil das crianças pode comungar, nós não sabemos se é Pedro-Apóstolo que fala das promessas infalíveis de Cristo aos mártires que vão morrer confessando a fé, se Sua Eminência Reverendíssima o Cardeal Desiderio Me Arcebispo Primaz da Bélgica, que, ao mesmo tempo que proclama o patriotismo uma virtude cristã, abençoa os que, de armas na mão por uma causa justa, caem no bom combate, entregando a sua vida como o mais alto e o mais sentido de todos os sacrifícios!
A pastoral de Dezembro de 1914, Patriotisme et endurance, assinala para a veneração do mundo inteiro esse extraordinário vigor moral que soergue já nos fundos severos da historia a vossa figura excepcional de Prelado e de Doutor. Com razão Mgr. Baudrillart a considera um acto tão belo como a atitude de S. João Baptista na presença de Herodes, como a do papa Gregorio VII na de Henrique IV da Alemanha e a de Tomás Becket na de Henrique II de Inglaterra. Na total anulação de todos os elementos-materiais da defesa só a energia desarmada do Espirito ficou inflexa, como outrora em Roma, no Papa Leão, saindo ao encontro das fúrias assoladoras de Atila. São de sacerdote as vossas palavras, - não esquecem jamais a brancura do perdão. Mas, porque elas se inspiram nos altos ditames da caridade cristã, é que vós, Eminentíssimo Senhor, não deixais nunca de afirmar que «o direito violentado continua sendo o direito e que a injustiça apoiada na força é sempre da mesma forma a injustiça.» E com que sereno desassombro, Vossa Eminência Reverendíssima, d' olhos poisados na Cruz e as mãos santificadas de padre traçando um gesto largo de reprovação, recorda à nação belga agrilhoada que o poder que o governa não é uma autoridade legitima, não se lhe devendo por isso nem a estima, nem a obediência! Assim a Bélgica vos quer e olha como a incarnação viva da sua formidável resistência religiosa e patriótica!
A «Trégua de Deus» viu-se outra vez pregada por Vossa Eminência Reverendíssima naquele apelo dirigido ao Episcopado da Áustria e da Alemanha para a constituição dum tribunal de apreciação desapaixonada e calma, onde a verdade se restabelecesse contra os rancores e contra as confusões que a obscurecem. Foi mais uma nobre tentativa para a restauração da sociedade internacional, que só encontrará apoio e repouso na Igreja Pacificadora, a quem Jesus, seu Fundador, confiou a assistência da Eternidade. Assim, a vossa atitude perante as deportações ordenadas por Von Bissing, comandante militar de Bruxelas, não há ninguém que a não tenha guardado no seu coração, porque é o maior legado moral da temerosa catástrofe que dizima em carnagens que fariam empalidecer as da própria Antiguidade. Vós recuperas, Senhor, os direitos da Cruz sobre a Europa despedaçada. Por isso à Bélgica em agonia concedeu a sua primeira benção o Supremo Pontífice no momento em que era elevado à cadeira de Pedro. É simbólica essa benção, pois caindo na desgraça e na desolação, caiu sobre o calvário dum povo, a quem não falta a crença de seus Maiores para que lhe haja de faltar a fé na ressurreição futura. Já vós anunciais para daqui a treze anos, no centenário exacto da independência do vosso pais, o prémio da sua constância na angustia e da sua lealdade no martírio. «Non tollit Gothus quod Christus custodit». E a voz profética de Agostinho enche-vos a alma de certezas místicas, as mais fortes e as mais verdadeiras de todas as certezas!
Não podia a terra fidelíssima de Portugal permanecer silenciosa diante do vosso fervor apostólico. Somos pequenos como a Bélgica, a nossa história, corno a da Bélgica, se escreveu à sombra Cruz. Ainda agora, só na Cruz nós depomos esperança no nosso ressurgimento. A mesma remissão em Cristo, que une entre si os homens, une igualmente as nações. A Bélgica cativa é amada e chorada em Portugal. Saudemo-la no seu Primaz, no seu Rei, nos seus Mortos, no seu Exercito, nos seus Heróis, nas suas Viuvas, nos seus Órfãos! A Vossa Eminência Reverendíssima entregamos os votos sentidos dos Católicos Portugueses. Não sejam os destinos da nossa Pátria esquecidos por quem, como Vós, Eminentíssimo Senhor, se encontra tão perto de Deus pela Virtude e pela Oração. Que o nome de Portugal mereça de Vossa Eminência Reverendíssima a lembrança duma prece diária, enquanto nós, ajoelhados aos pés do grande arcebispo de Malines, lhe beijamos respeitosamente o sagrado anel.
Lisboa, 10 de Junho de 1917.
António Sardinha (1887-1925), Durante a Fogueira - Páginas da Guerra, 1927.
(1) Mensagem redigida por António Sardinha e enviada ao Cardeal Mercier em nome dos Católicos Portugueses.