Fátima
António Sardinha
[Nota do Autor, em 1924; edição de 1925: Escrito e publicado no Outono de 1917 [in A Monarquia] , quando começaram a afamar-se as aparições misteriosas de Fátima, o presente estudo insere-se hoje aqui, não só para documentação das jornadas sofridas pelo pensamento do autor, mas ainda para se verem de futuro quais os caminhos levados pela inteligência portuguesa durante a terrível crise em que esteve submersa. Sente-se o autor bem modesto e sabe perfeitamente que as verdades que defende não são suas, — mas de Deus e da velha experiência humana, de quem as recebeu. No entanto, olhando ao egotismo cego com que pensadores arcaicos e retardatários, como o senhor António Sérgio (ainda vem por Descartes e Kant o escritor que não corou de vergonha ao chamar a D. Sebastião "pedaço de asno"), se apresentam com pretensões a influir nos nossos estreitos meios intelectuais, o autor entende-se com o direito de se apresentar como um agitador de questões e problemas, até então nem de longe abordados em Portugal. A esse número pertence o ensaio sobre Fátima. Claro que, acolhidos hoje à síntese tomista, nem de longe transigimos com as falsas filosofias da intuição. Mas não negamos que elas nos libertaram do seco e aprisionante intelectualismo em que tanto se compraz o insultador de D. Sebastião. Para o historiador e para o critico que de futuro procurarem abrir estradas na tremenda babilónia, que é ainda agora o pensamento nacional, aqui lhe deixamos um subsídio, não de todo desprezível."
«Raison et bon sens ne suffisent pas!» — já dizia o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole. Porque razão e bom senso não são o bastante, há na vida do homem, na vida da sua actividade interior, para além do mundo imediato dos sentidos, um outro mundo vasto e rumoroso, onde ele mergulha as raízes mais fundas e mais misteriosas da sua personalidade, e com o qual não é pela inteligência que melhor se pode comunicar. A filosofia moderna, reduzindo a inteligência a uma mera faculdade compreensiva, dá-nos, ao seu lado e com um alcance maior, um outro agente seguro de conhecimento. Refiro-me à intuição, que a psicologia experimental se viu na necessidade de admitir como um processo científico de prova, sendo, por sua obra e graça, que o racionalismo inerte e estéril do século passado não resiste mais às críticas dum William James e dum Henri Bergson.
O caso recente de Fátima, pondo em sobressalto a mentalidade oficial da república, enquanto as legítimas autoridades eclesiásticas o não examinem e julguem no seu significado religioso, importa para nós um princípio de interrogação, cuja fórmula será esta: — se em face da ciência, e fora de toda a interpretação teológica, o Milagre é um facto aceitável e possível. Não nos socorramos assim daqueles argumentos de ordem sobrenatural e mística que, como crentes na omnipotência de um Deus-Criador, nos apresentam logo a possibilidade plena do Milagre. Encaremos antes o problema por outro aspecto, — pelo aspecto positivo e concreto das realidades quotidianas, partindo comezinhamente da simples observação dos acontecimentos para a força oculta que os haja de determinar.
Só em Portugal o materialismo predomina ainda nos espíritos que uma meia-tintura intelectual faz presumir de cultos. Crê-se ainda aqui no absolutismo da Matéria, admitindo-se como um dogma a antiga concepção estática do Universo, regido não sei por que leis inflexíveis e automáticas, anteriores a toda e qualquer causa impulsora e, como tal, consciente. Daí um certo ateísmo pedantesco profissional, concedendo foros de livre espírito a quem simiescamente o declame, como a última palavra da Ciência. Pretende-se deste modo estabelecer entre a Ciência e a Religião urna irredutibilidade que não existe no fundo. Ciência e Religião não se excluem, porque são diversos os seus campos, como diversos são por natureza os fenómenos sobre que se exerce a sua acção e influência. O pragmatismo, delimitando e definindo o alcance da razão, veio reabilitar as razões de Pascal, que são as chamadas "razões do coração". Como há uma ordem intelectual nas coisas da vida, há também uma ordem afectiva, a que a intuição corresponde como meio de experiência. Cientificamente, a inteligência intervém depois, não para resolver só por si as questões que a intuição abrange na sua órbita mais larga, mas também para as proclamar e contraprovar como verdades reconhecidas.
O erro fundamental do racionalismo baseia-se, assim, no orgulho da inteligência, que nega por sistema, sempre que não consegue explicar. As manifestações elevadas do misticismo entraram por essa via no capítulo das fantasias inverosímeis — quando se não qualificavam comodamente de autênticos produtos patológicos. Mas é diverso hoje, felizmente, o rumo do pensamento! A inteligência, restringida apenas à apreciação do mundo material, sobre o qual incide por intermédio dos sentidos[1], é constrangida a admitir a existência de outras realidades, que, por não serem tangíveis, são, no entanto, mais que perceptíveis. A nossa época é uma época de revisão científica. E, quanto à índole da ciência em si, nós temos que concluir com Brunetière que ela não é de forma nenhuma uma solução da vida. Se o mundo físico é susceptível de se tornar o seu domínio, escapa-lhe por inteiro o mundo moral. Ora é exactamente no mundo moral que a Religião actua como senhora das vastas extensões da consciência.
Eis o que a filosofia contemporânea acentua como seu principal mandamento. Depois que o método intuicionista foi alevantado com tanta nobreza por sábios como Henri Poincaré, que vemos nós senão a ciência, mudada de deusa omnipotente numa modesta hipótese, que a existência se encarrega, ou não, de confirmar? Os próprios fundamentos em que a ciência constituída se cimenta são seriamente atingidos pelo revisionismo contemporâneo. A geometria, por exemplo. Repousando-se na noção euclidiana das três dimensões, Poincaré denuncia-a como deficiente, senão insubsistente, visto já hoje a ciência se ver na necessidade de trabalhar com uma outra dimensão — o tempo, que é bem a "quarta dimensão" dos ocultistas e que a inteligência, por não a solidificar, não tem direito por isso a impugná-la. O que sucede com a geometria sucede com a noção de Matéria, tida como indestrutível e eterna. Ao contrário do simplismo científico do século findo, Gustave Le Bon demonstra-nos como a matéria se desagrega e morre. A matéria decompõe-se, pulveriza-se e extingue-se, em desmentido formal à célebre lei de Lavoisier, pela qual na natureza nada se cria, nada se perde e tudo se transforma. Assente a dissociação da matéria, Gustave Le Bon ensina-nos que as suas partes primordiais são geradas por uma como que condensação de energia. A Energia, antecedendo a Matéria, é toda a concepção estática do Universo desfeita no ar. Por isso não nos admiremos que Reinke, naturalista alemão, apresentasse os organismos vivos como governados por uma dupla categoria de forças: — forças materiais, obedecendo às leis da energética geral, e forças espirituais, inteligentes, que Reinke apelida de "dominantes". Assim cientificamente, o materialismo é por todos os modos um "contra-senso biológico" — como com precisão vigorosa, lhe chama o Docteur X***, no seu notabilíssimo livro (Les conflits de Ia science et les idées modernes, Paris, Perrin, 1905).
"Numa máquina não há só um conjunto de peças, — escreve Dastre, agora falecido; há atrás dele a finalidade que o seu inventor lhe atribuiu ao predispô-Ias num sentido determinado. As energias dispendidas no seu funcionamento são governadas pelo fim a que se propõem, isto é, pelas dominantes, saídas da inteligência do construtor." Outro tanto, e com motivos centuplicados, acontece com a Vida. É preciso não encará-la mais debaixo do ponto de vista estático para se encarar através de uma compreensão que só debaixo do ponto de vista dinâmico nos satisfaz e serve, em harmonia com as mais recentes conclusões da ciência. Ora a Energia antecedendo a Matéria e condensando-se para lhe dar unidade e duração o que é senão a afirmação da força primeira, consciente e omnipotente, que já existia no começo de todas as coisas?
Subordinando-se à disciplina admirável dos factos, William James, fisiologista e filósofo, confessava que pela comunhão com o Ideal uma nova energia entra no mundo e dá origem a fenómenos novos. "É o princípio do Credo formulado em outras palavras —, ponderava ao cirurgião Marsal o abade Courmont do Sens de Ia mort. E, efectivamente, se as ciências de observação nos apontam a energia presidindo ao aparecimento da vida que por ela se mantém e prolonga, a psicologia, instituindo a "terceira experiência" ou "experiência religiosa", reconhece pela boca de um dos mais sinceros sábios do nosso tempo a transformação das condições ordinárias da Vida, por mercê duma força inesperada que entra no mundo e vem em nosso auxílio, sempre que nos ponhamos em comunhão com essa força mística que é Deus, — ideal supremo. Temos assim num caso a Criação, no outro a Encarnação. Credo in unum Deum, factorem coeli et terrae... et in unum Dominum Jesum Christum per quem omnia facta sunt. Qui propter nos homines et propter nostram salutem, descendit de coelis.
Será o testemunho espantoso do dia de amanhã esse da ciência acolhendo-se à sombra do santuário, e confessando a sua inteira subordinação à verdade revelada. Já as teorias de René Quinton sobre a origem marítima da vida enchem duma actualidade invencível a passagem da Bíblia que nos figura, às vésperas da Criação, o espírito de Deus levado sobre as águas. Por outro lado, o professor Benedikt, de Viena, claramente assevera que a ordem de aparição dos seres vivos como no-la desenha o Genesis é a que mais se ajusta com as lições da verdadeira ciência, — daquela que se não tem como fim, mas unicamente como um meio. Ninguém pensa com isto em conciliar a Fé com a Ciência! A Ciência é que se inclina diante da Fé, — e não tardará que ela a adore como mestra soberana da nossa pobre existência dum momento!
A prova da mudança profunda que a este respeito se opera na inteligência contemporânea está na discussão realizada em 28 de Dezembro de 1911 na Sociedade Francesa de Filosofia. O tema proposto foi o Milagre, que, afirmado por crentes como Le Roy e Maurice Blondel, esteve bem longe de ser considerado pelos não-crentes como um absurdo infantil e grosseiro. No seu inquérito, hoje célebre, já Agathon declarava, segundo o depoimento insuspeito de Georges Sorel, que de todos os sábios do nosso tempo os matemáticos eram os que aceitavam com mais facilidade o dogma católico!
"Quando se interroga um algebrista, ele responde-nos em geral que o milagre não oferece nada de estranho, porque o milagre comporta a intervenção de dados que não se conhecem."
De que carecemos mais para mostrar quanto o materialismo atingiu o seu declínio, não sendo senão o património de meia dúzia de semi-analfabetos em quem a inferioridade do raciocínio se inculca como superioridade de espírito? Ainda a William James se deve a reabilitação dos Santos dentro do puro critério psicológico, contra o falso conceito científico que os reputava meros tipos de fenomenologia hospitalar. Reduz-se à mais deplorável das insuficiências a escola de Charcot, incorporando o êxtasis místico na flora larguíssima das taras nervosas. É preciso julgar a árvore pelos seus frutos! Enquanto "as taras nervosas enfraquecem e diminuem a alma, o êxtasis, pelo contrário, torna-a mais vigorosa, fortificara e enobrece-a". A experiência mística dos Santos condu-los à alegria, ao passo que o misticismo dos loucos é triste e aniquilador. "Um exalta, o outro deprime." Não há por isso possibilidade alguma de confusão. Por seu turno, no Traité de pathologie mentale, Ballet ensina-nos ser a fé religiosa, sob todas as suas formas, uma causa de tranquilidade moral.
Já lá vão bastantes anos desde que Myers, sem intenções confessionais, apenas conduzido pelo lado experimental da questão, concluía ruidosamente pela sobrevivência da personalidade humana, depois da desagregação material da morte. Paralelamente, aqueles princípios em que a ciência se repousava confiadamente desfazem-se como bolas de sabão. Assim, Lobatchewski e Riemann, criando uma geometria fora das bases de Euclides, convencem-nos não ser verdade o teorema que nos dá a soma dos ângulos de um triângulo como igual a dois rectos. É ela menor para Lobatchewski e maior para Riemann. Com razão escrevia Poincaré que tudo era hipótese e que a ciência não assentava senão numa rede de convenções. Mas se a ciência, — a ciência como fim, a ciência que procura inquirir das causas primárias e se entrega a romanescas explicações do Universo, não é mais que um edifício erguido sobre simples convenções, o mesmo não acontece com os milagres de Lourdes, que são pão nosso de todos os dias. Não se trata somente de casos mais ou menos complicados de histeria, com motivo na alteração dos centros nervosos. O dr. Boissarie fala-nos da cicatrização de fístulas ósseas na cara dum doente. O dr. Le Bec, cirurgião-chefe dum hospital de Paris, verificou a cicatrização dum caso de cárie no calcanhar (calcaneum) e dum abcesso revelador de tuberculose vertebral. Três médicos belgas, Van Hoestenberghe, Royer e Deschamps relatam-nos a consolidação rápida duma velha fractura numa perna, acompanhada de chagas dolorosas. O Milagre existe pleno, irrecusável! Comporta, efectivamente, a intervenção de dados que não se conhecem nem se prevêem.
No estado actual da nossa mentalidade, é necessário que as aparições de Fátima se tomem assim como uma realidade supra-sensível, de modo nenhum contestável pelo próprio espírito científico. Até já a auréola resplandente dos Santos a ciência honesta se vê obrigada a justificá-la, desde que a descoberta dos raios nos veio revelar uma energia luminosa, emanando do cérebro, e tornando-se mais forte sua irradiação quanto mais intenso é o trabalho cerebral. Se o trabalho do cérebro se materializa assim nos raios, porque é que a elevação mística, havida por William James como o ponto máximo da vida moral, não se há-de manifestar numa luminosidade mais intensa ainda e ainda mais duradoira? Riamos dos que, em nome dum falso naturalismo, se insurgem contra o Milagre e pretendem nivelar os acontecimentos verdadeiramente prodigiosos de Fátima como a explosão duma crendice baixa e sem resistência ao mais leve e reflectido exame!
Cumpre às autoridades eclesiásticas instaurarem o respectivo processo.
O sentimento de presença é um sinal poderoso de afirmação divina. Experimentaram-no, numa uniformidade admirável, quantos viram o Sol empalidecer diante de Aquela que vinha qual "a Aurora nascente, mais formidável do que um exército bem ordenado".
Não estive em Fátima, mas de longe eu creio na assistência da Virgem à pobre terra de Portugal. Antes que a Igreja o definisse como dogma não fomos nós dos primeiros que A adoraram no Mistério da Sua Imaculada Conceição? A minha crença fundamenta-se na voz ponderada da minha consciência. Tão lamentável é a incredulidade que cega, como a dúvida que escandaliza! O visível não é mais que a expressão bem limitada do invisível. Para além do mundo imediato dos sentidos um mundo há, — mais amplo e mais insondável, que a inteligência mal adivinha e de que só a Fé nos entrega o segredo. Como no epitáfio do médico de Pádua, a ciência, de senhora tornada escrava, ensina-nos apenas a não ignorar a nossa ignorância. Por isso, pois que para edificação dos incrédulos e lição dos precavidos a humildade do espírito é o caminho aberto para Deus, repitamos com o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole, que "raison et bons sens ne suffisent pas!".
António Sardinha
[1] Aconselhamos a propósito deste interessante ponto a leitura e o convívio de Jacques Maritain, no Antimoderne e nas Réflexions sur l'intelligence (1924) [Nota do Autor].
(In Ao Ritmo da Ampulheta, 2ª ed., Lisboa, Biblioteca do Pensamento Político, 1978, pp. 209-219)
[Nota do Autor, em 1924; edição de 1925: Escrito e publicado no Outono de 1917 [in A Monarquia] , quando começaram a afamar-se as aparições misteriosas de Fátima, o presente estudo insere-se hoje aqui, não só para documentação das jornadas sofridas pelo pensamento do autor, mas ainda para se verem de futuro quais os caminhos levados pela inteligência portuguesa durante a terrível crise em que esteve submersa. Sente-se o autor bem modesto e sabe perfeitamente que as verdades que defende não são suas, — mas de Deus e da velha experiência humana, de quem as recebeu. No entanto, olhando ao egotismo cego com que pensadores arcaicos e retardatários, como o senhor António Sérgio (ainda vem por Descartes e Kant o escritor que não corou de vergonha ao chamar a D. Sebastião "pedaço de asno"), se apresentam com pretensões a influir nos nossos estreitos meios intelectuais, o autor entende-se com o direito de se apresentar como um agitador de questões e problemas, até então nem de longe abordados em Portugal. A esse número pertence o ensaio sobre Fátima. Claro que, acolhidos hoje à síntese tomista, nem de longe transigimos com as falsas filosofias da intuição. Mas não negamos que elas nos libertaram do seco e aprisionante intelectualismo em que tanto se compraz o insultador de D. Sebastião. Para o historiador e para o critico que de futuro procurarem abrir estradas na tremenda babilónia, que é ainda agora o pensamento nacional, aqui lhe deixamos um subsídio, não de todo desprezível."
«Raison et bon sens ne suffisent pas!» — já dizia o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole. Porque razão e bom senso não são o bastante, há na vida do homem, na vida da sua actividade interior, para além do mundo imediato dos sentidos, um outro mundo vasto e rumoroso, onde ele mergulha as raízes mais fundas e mais misteriosas da sua personalidade, e com o qual não é pela inteligência que melhor se pode comunicar. A filosofia moderna, reduzindo a inteligência a uma mera faculdade compreensiva, dá-nos, ao seu lado e com um alcance maior, um outro agente seguro de conhecimento. Refiro-me à intuição, que a psicologia experimental se viu na necessidade de admitir como um processo científico de prova, sendo, por sua obra e graça, que o racionalismo inerte e estéril do século passado não resiste mais às críticas dum William James e dum Henri Bergson.
O caso recente de Fátima, pondo em sobressalto a mentalidade oficial da república, enquanto as legítimas autoridades eclesiásticas o não examinem e julguem no seu significado religioso, importa para nós um princípio de interrogação, cuja fórmula será esta: — se em face da ciência, e fora de toda a interpretação teológica, o Milagre é um facto aceitável e possível. Não nos socorramos assim daqueles argumentos de ordem sobrenatural e mística que, como crentes na omnipotência de um Deus-Criador, nos apresentam logo a possibilidade plena do Milagre. Encaremos antes o problema por outro aspecto, — pelo aspecto positivo e concreto das realidades quotidianas, partindo comezinhamente da simples observação dos acontecimentos para a força oculta que os haja de determinar.
Só em Portugal o materialismo predomina ainda nos espíritos que uma meia-tintura intelectual faz presumir de cultos. Crê-se ainda aqui no absolutismo da Matéria, admitindo-se como um dogma a antiga concepção estática do Universo, regido não sei por que leis inflexíveis e automáticas, anteriores a toda e qualquer causa impulsora e, como tal, consciente. Daí um certo ateísmo pedantesco profissional, concedendo foros de livre espírito a quem simiescamente o declame, como a última palavra da Ciência. Pretende-se deste modo estabelecer entre a Ciência e a Religião urna irredutibilidade que não existe no fundo. Ciência e Religião não se excluem, porque são diversos os seus campos, como diversos são por natureza os fenómenos sobre que se exerce a sua acção e influência. O pragmatismo, delimitando e definindo o alcance da razão, veio reabilitar as razões de Pascal, que são as chamadas "razões do coração". Como há uma ordem intelectual nas coisas da vida, há também uma ordem afectiva, a que a intuição corresponde como meio de experiência. Cientificamente, a inteligência intervém depois, não para resolver só por si as questões que a intuição abrange na sua órbita mais larga, mas também para as proclamar e contraprovar como verdades reconhecidas.
O erro fundamental do racionalismo baseia-se, assim, no orgulho da inteligência, que nega por sistema, sempre que não consegue explicar. As manifestações elevadas do misticismo entraram por essa via no capítulo das fantasias inverosímeis — quando se não qualificavam comodamente de autênticos produtos patológicos. Mas é diverso hoje, felizmente, o rumo do pensamento! A inteligência, restringida apenas à apreciação do mundo material, sobre o qual incide por intermédio dos sentidos[1], é constrangida a admitir a existência de outras realidades, que, por não serem tangíveis, são, no entanto, mais que perceptíveis. A nossa época é uma época de revisão científica. E, quanto à índole da ciência em si, nós temos que concluir com Brunetière que ela não é de forma nenhuma uma solução da vida. Se o mundo físico é susceptível de se tornar o seu domínio, escapa-lhe por inteiro o mundo moral. Ora é exactamente no mundo moral que a Religião actua como senhora das vastas extensões da consciência.
Eis o que a filosofia contemporânea acentua como seu principal mandamento. Depois que o método intuicionista foi alevantado com tanta nobreza por sábios como Henri Poincaré, que vemos nós senão a ciência, mudada de deusa omnipotente numa modesta hipótese, que a existência se encarrega, ou não, de confirmar? Os próprios fundamentos em que a ciência constituída se cimenta são seriamente atingidos pelo revisionismo contemporâneo. A geometria, por exemplo. Repousando-se na noção euclidiana das três dimensões, Poincaré denuncia-a como deficiente, senão insubsistente, visto já hoje a ciência se ver na necessidade de trabalhar com uma outra dimensão — o tempo, que é bem a "quarta dimensão" dos ocultistas e que a inteligência, por não a solidificar, não tem direito por isso a impugná-la. O que sucede com a geometria sucede com a noção de Matéria, tida como indestrutível e eterna. Ao contrário do simplismo científico do século findo, Gustave Le Bon demonstra-nos como a matéria se desagrega e morre. A matéria decompõe-se, pulveriza-se e extingue-se, em desmentido formal à célebre lei de Lavoisier, pela qual na natureza nada se cria, nada se perde e tudo se transforma. Assente a dissociação da matéria, Gustave Le Bon ensina-nos que as suas partes primordiais são geradas por uma como que condensação de energia. A Energia, antecedendo a Matéria, é toda a concepção estática do Universo desfeita no ar. Por isso não nos admiremos que Reinke, naturalista alemão, apresentasse os organismos vivos como governados por uma dupla categoria de forças: — forças materiais, obedecendo às leis da energética geral, e forças espirituais, inteligentes, que Reinke apelida de "dominantes". Assim cientificamente, o materialismo é por todos os modos um "contra-senso biológico" — como com precisão vigorosa, lhe chama o Docteur X***, no seu notabilíssimo livro (Les conflits de Ia science et les idées modernes, Paris, Perrin, 1905).
"Numa máquina não há só um conjunto de peças, — escreve Dastre, agora falecido; há atrás dele a finalidade que o seu inventor lhe atribuiu ao predispô-Ias num sentido determinado. As energias dispendidas no seu funcionamento são governadas pelo fim a que se propõem, isto é, pelas dominantes, saídas da inteligência do construtor." Outro tanto, e com motivos centuplicados, acontece com a Vida. É preciso não encará-la mais debaixo do ponto de vista estático para se encarar através de uma compreensão que só debaixo do ponto de vista dinâmico nos satisfaz e serve, em harmonia com as mais recentes conclusões da ciência. Ora a Energia antecedendo a Matéria e condensando-se para lhe dar unidade e duração o que é senão a afirmação da força primeira, consciente e omnipotente, que já existia no começo de todas as coisas?
Subordinando-se à disciplina admirável dos factos, William James, fisiologista e filósofo, confessava que pela comunhão com o Ideal uma nova energia entra no mundo e dá origem a fenómenos novos. "É o princípio do Credo formulado em outras palavras —, ponderava ao cirurgião Marsal o abade Courmont do Sens de Ia mort. E, efectivamente, se as ciências de observação nos apontam a energia presidindo ao aparecimento da vida que por ela se mantém e prolonga, a psicologia, instituindo a "terceira experiência" ou "experiência religiosa", reconhece pela boca de um dos mais sinceros sábios do nosso tempo a transformação das condições ordinárias da Vida, por mercê duma força inesperada que entra no mundo e vem em nosso auxílio, sempre que nos ponhamos em comunhão com essa força mística que é Deus, — ideal supremo. Temos assim num caso a Criação, no outro a Encarnação. Credo in unum Deum, factorem coeli et terrae... et in unum Dominum Jesum Christum per quem omnia facta sunt. Qui propter nos homines et propter nostram salutem, descendit de coelis.
Será o testemunho espantoso do dia de amanhã esse da ciência acolhendo-se à sombra do santuário, e confessando a sua inteira subordinação à verdade revelada. Já as teorias de René Quinton sobre a origem marítima da vida enchem duma actualidade invencível a passagem da Bíblia que nos figura, às vésperas da Criação, o espírito de Deus levado sobre as águas. Por outro lado, o professor Benedikt, de Viena, claramente assevera que a ordem de aparição dos seres vivos como no-la desenha o Genesis é a que mais se ajusta com as lições da verdadeira ciência, — daquela que se não tem como fim, mas unicamente como um meio. Ninguém pensa com isto em conciliar a Fé com a Ciência! A Ciência é que se inclina diante da Fé, — e não tardará que ela a adore como mestra soberana da nossa pobre existência dum momento!
A prova da mudança profunda que a este respeito se opera na inteligência contemporânea está na discussão realizada em 28 de Dezembro de 1911 na Sociedade Francesa de Filosofia. O tema proposto foi o Milagre, que, afirmado por crentes como Le Roy e Maurice Blondel, esteve bem longe de ser considerado pelos não-crentes como um absurdo infantil e grosseiro. No seu inquérito, hoje célebre, já Agathon declarava, segundo o depoimento insuspeito de Georges Sorel, que de todos os sábios do nosso tempo os matemáticos eram os que aceitavam com mais facilidade o dogma católico!
"Quando se interroga um algebrista, ele responde-nos em geral que o milagre não oferece nada de estranho, porque o milagre comporta a intervenção de dados que não se conhecem."
De que carecemos mais para mostrar quanto o materialismo atingiu o seu declínio, não sendo senão o património de meia dúzia de semi-analfabetos em quem a inferioridade do raciocínio se inculca como superioridade de espírito? Ainda a William James se deve a reabilitação dos Santos dentro do puro critério psicológico, contra o falso conceito científico que os reputava meros tipos de fenomenologia hospitalar. Reduz-se à mais deplorável das insuficiências a escola de Charcot, incorporando o êxtasis místico na flora larguíssima das taras nervosas. É preciso julgar a árvore pelos seus frutos! Enquanto "as taras nervosas enfraquecem e diminuem a alma, o êxtasis, pelo contrário, torna-a mais vigorosa, fortificara e enobrece-a". A experiência mística dos Santos condu-los à alegria, ao passo que o misticismo dos loucos é triste e aniquilador. "Um exalta, o outro deprime." Não há por isso possibilidade alguma de confusão. Por seu turno, no Traité de pathologie mentale, Ballet ensina-nos ser a fé religiosa, sob todas as suas formas, uma causa de tranquilidade moral.
Já lá vão bastantes anos desde que Myers, sem intenções confessionais, apenas conduzido pelo lado experimental da questão, concluía ruidosamente pela sobrevivência da personalidade humana, depois da desagregação material da morte. Paralelamente, aqueles princípios em que a ciência se repousava confiadamente desfazem-se como bolas de sabão. Assim, Lobatchewski e Riemann, criando uma geometria fora das bases de Euclides, convencem-nos não ser verdade o teorema que nos dá a soma dos ângulos de um triângulo como igual a dois rectos. É ela menor para Lobatchewski e maior para Riemann. Com razão escrevia Poincaré que tudo era hipótese e que a ciência não assentava senão numa rede de convenções. Mas se a ciência, — a ciência como fim, a ciência que procura inquirir das causas primárias e se entrega a romanescas explicações do Universo, não é mais que um edifício erguido sobre simples convenções, o mesmo não acontece com os milagres de Lourdes, que são pão nosso de todos os dias. Não se trata somente de casos mais ou menos complicados de histeria, com motivo na alteração dos centros nervosos. O dr. Boissarie fala-nos da cicatrização de fístulas ósseas na cara dum doente. O dr. Le Bec, cirurgião-chefe dum hospital de Paris, verificou a cicatrização dum caso de cárie no calcanhar (calcaneum) e dum abcesso revelador de tuberculose vertebral. Três médicos belgas, Van Hoestenberghe, Royer e Deschamps relatam-nos a consolidação rápida duma velha fractura numa perna, acompanhada de chagas dolorosas. O Milagre existe pleno, irrecusável! Comporta, efectivamente, a intervenção de dados que não se conhecem nem se prevêem.
No estado actual da nossa mentalidade, é necessário que as aparições de Fátima se tomem assim como uma realidade supra-sensível, de modo nenhum contestável pelo próprio espírito científico. Até já a auréola resplandente dos Santos a ciência honesta se vê obrigada a justificá-la, desde que a descoberta dos raios nos veio revelar uma energia luminosa, emanando do cérebro, e tornando-se mais forte sua irradiação quanto mais intenso é o trabalho cerebral. Se o trabalho do cérebro se materializa assim nos raios, porque é que a elevação mística, havida por William James como o ponto máximo da vida moral, não se há-de manifestar numa luminosidade mais intensa ainda e ainda mais duradoira? Riamos dos que, em nome dum falso naturalismo, se insurgem contra o Milagre e pretendem nivelar os acontecimentos verdadeiramente prodigiosos de Fátima como a explosão duma crendice baixa e sem resistência ao mais leve e reflectido exame!
Cumpre às autoridades eclesiásticas instaurarem o respectivo processo.
O sentimento de presença é um sinal poderoso de afirmação divina. Experimentaram-no, numa uniformidade admirável, quantos viram o Sol empalidecer diante de Aquela que vinha qual "a Aurora nascente, mais formidável do que um exército bem ordenado".
Não estive em Fátima, mas de longe eu creio na assistência da Virgem à pobre terra de Portugal. Antes que a Igreja o definisse como dogma não fomos nós dos primeiros que A adoraram no Mistério da Sua Imaculada Conceição? A minha crença fundamenta-se na voz ponderada da minha consciência. Tão lamentável é a incredulidade que cega, como a dúvida que escandaliza! O visível não é mais que a expressão bem limitada do invisível. Para além do mundo imediato dos sentidos um mundo há, — mais amplo e mais insondável, que a inteligência mal adivinha e de que só a Fé nos entrega o segredo. Como no epitáfio do médico de Pádua, a ciência, de senhora tornada escrava, ensina-nos apenas a não ignorar a nossa ignorância. Por isso, pois que para edificação dos incrédulos e lição dos precavidos a humildade do espírito é o caminho aberto para Deus, repitamos com o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole, que "raison et bons sens ne suffisent pas!".
António Sardinha
[1] Aconselhamos a propósito deste interessante ponto a leitura e o convívio de Jacques Maritain, no Antimoderne e nas Réflexions sur l'intelligence (1924) [Nota do Autor].
(In Ao Ritmo da Ampulheta, 2ª ed., Lisboa, Biblioteca do Pensamento Político, 1978, pp. 209-219)