El-Rei D. Carlos
...com o elemento político substituído pelo elemento administrativo, com a representação orgânica dos municípios e das classes substituindo a representação parlamentar dos partidos. Concepção de Oliveira Martins, que quase trinta anos antes adivinhava o nosso movimento, ninguém duvida do influxo que recebeu de Antero [de Quental]
"Antero e Oliveira Martins desceram para o repouso do túmulo - o primeiro desiludido, vencido o segundo. Sobrevivia-lhes o rei. E quando na sua reflexão se decidiu a ser deveras o continuador de uma pátria que se desfazia aos bocados num cenário de comédia burlesca, o caminho apontado pelos dois mortos foi o que resolutamente escolheu. Antecipado como eles, como eles seria vítima da sua antecipação.
"Antero e Oliveira Martins desceram para o repouso do túmulo - o primeiro desiludido, vencido o segundo. Sobrevivia-lhes o rei. E quando na sua reflexão se decidiu a ser deveras o continuador de uma pátria que se desfazia aos bocados num cenário de comédia burlesca, o caminho apontado pelos dois mortos foi o que resolutamente escolheu. Antecipado como eles, como eles seria vítima da sua antecipação.
António Sardinha
Não falarei de El-Rei D. Carlos na sua obra artística e científica. É dever do meu espírito, neste momento, olhá-lo antes debaixo do aspeto porque foi mais incriminado, vindo por ele a sofrer paixão e morte. Refiro-me á sua política, tão mal compreendida hoje mesmo, mas que, realçada a distância pela transformação das inteligências e dos tempos, o fará para a admiração do futuro o maior de todos numa época sem finalidade nem aspirações, em que só a sua figura se destaca envoltanum halo ensanguentado de martírio. Tinha por si El-Rei D. Carlos a natural aptidão dos Braganças para a arte de bem governar. Tornada por penas sectárias em arma de partido, a nossa história não passou nunca dum panfleto sem consciência nem consistência contra a dinastia reinante. Não estranhemos por isso que logo o seu próprio fundador seja considerado através da calunia com que os manifestos filipinos, espalhados pela Europa a peso de oiro, lhe pretenderam entravar e diminuir o seu tato habilíssimo no reconhecimento árduo da nossa libertação. No entanto, apesar das tintas tão injustas como mentirosas com que é de uso e costume falsear-lhe o caracter, El-Rei D. João IV reuniu na sua personalidade vigorosa fortes e notabilíssimos recursos de chefe de Estado. Nada melhor o retrata do que uma passagem do seu testamento. "Me resolvi a restituir-me" - diz ele—, "a esta coroa sem nenhum respeito particular á minha pessoa, senão por livrar os reinos que me pertencem das misérias que lhes vi padecer em estranha sujeição e por entender era obrigado a isso em minha consciência, sujeitando-me por esta causa a vida e trabalhos, pudera ser diferente de minha inclinação." Nessa disposição resoluta e persistente, ao falecer, D. João IV deixava consolidados os alicerces da Independência de Portugal. «Restaurar O reino em todo o sentido, restabelecer as finanças, - escreve Joaquim de Vasconcelos, - criar os complicados elementos da defesa, reconquistar quase todas as possessões de África e todo o Brasil, criar a Junta Geral do Comércio, negociar alianças valiosas, tudo isto em dezasseis anos...parece-nos uma obra digna de admiração e do nosso respeito, ainda que não fossem conhecidas as circunstâncias dificílimas em que estes trabalhos foram executados.
O traço tónico d'El-Rei D. João IV, como monarca, consistiu na sua rara capacidade diplomática. O sr. Edgar Prestage reputa a nossa Restauração mais como um fruto de boa política externa do que como um resultado devido exclusivamente à sorte das armas portuguesas. De nada mais se precisa para a reabilitação das qualidades superiores de D. João IV. Se o celebre Papel lançado na caixa das Cortes-Gerais sob a rubrica de "Procurador-Geral dos Descaminhos do Reino" o revela senhor de vistas completas sobre a administração do Estado, a sua entrevista memoranda com o cavalheiro de Jant constitui ainda agora para Portugal um plano seguro de engrandecimento. Aí se contém o esboço do Atlântico "lago português", que só a nossa aliança com o Brasil permitirá aproximar da realidade, tornando possível a visão grandiosa do "Feliz-Restaurador".
Artista e erudito, político e lavrador, D. João IV voltou a viver na psicologia magnificamente dotada de El-Rei D. Carlos. Na nossa pequenez, a braços com uma crise orgânica quase tao dominadora como a do século XVII, El-Rei D. Carlos apresenta-se-nos, como o seu longínquo avô, o verdadeiro "Procurador dos Descaminhos do Reino". Preparando-se para a sua visita ao Rio, quando uma bala traiçoeira o prostrou faz exatamente dez anos, era a conclusão da conversa iniciada dois séculos antes por D. João IV com o enviado da corte de Franca que o monarca assassinado se dispunha a rematar. Um apertado laço os prende muito de perto, o descendente ao antepassado, - um músico, o outro pintor, embebendo-se ambos no ritmo doce das coisas belas, com o mesmo amor provinciano, quase chão, à terra que os vira nascer, ao sol amorável que os beijara em meninos. Mas é então precisamente na situação exterior criada pelo Senhor D. Carlos a Portugal que o Bragança se afirma nas suas excecionais qualidades de governante. A herança política de D. João IV mantivera-se sempre com brio e, só quem ignorar a nossa história diplomática é que pode colaborar de boa-fé na difamação sistemática de que é vitima a última serie dos nossos Reis. Depois do Restaurador, para o exemplificar, em três tocarei, e dos mais desacreditados. Não correspondendo de modo nenhum ao nível elevado do seu progenitor, até D. Pedro II continua e honra a tradição brilhantíssima de D. João IV.
Num período em que dependíamos do apoio que a França de Luís XIV nos dava na Europa contra as pretensões da casa de Áustria, o orgulho do Rei-Sol, mais duma vez, se amarrotou de encontro ao nosso monarca. Assim, desembaraçando-se das pelas e das tutelas que Versailles se esforçava por lhe impor, D. Pedro II consuma a paz com a Espanha, sem pedir conselho a Luiz XIV. Chocado, o rei de França salva o desastre com um dito de espírito, que é para D. Pedro II o seu maior elogio. "Porém como ele (Luís XIV) é que tem ensinado ao mundo estas lições, sendo crédito do mestre deixar bons discípulos, não lhe fica mal que este lhe saísse tão avantajado".
Idêntico juízo formaria Luís XV d’El-Rei D. João V, ao informar o seu representante em Lisboa de que não existia pessoa alguma com influencia no espírito do monarca, acrescentando logo que o ministro não devia perder de vista que D. João V tinha sido ‹constante em elevar a sua corda á categoria das principais da Europa, e que por isso que ele tem sido bem sucedido nesta pretensão, convém estar atento.› E quanto a D. João VI, é nas comunicações do cônsul Maler para Paris que o soberano se nos desvenda em todo o seu esforçado empenho para responder com uma tentativa de imperialismo americano às condições de miserável abandono em que nos votara a diplomacia europeia de Viena.
"Monsenhor" - observa do Rio o francês, - esta Corte, mau grado a penúria das suas finanças, a fraqueza do seu governo, e o estado da sua população, nutre ideias ambiciosas; imaginou que chegará para ela o momento favorável e o titulo de Reino Unido, havendo exaltado algumas cabeças, acredita poder impunemente, não sacudir a mascara, mas levantar o véu." Com este património de família e com a permanência de pensamento que é a virtude da hereditariedade monárquica, El-Rei D. Carlos. não servia durante a sua existência outro desígnio que não fosse o de valorizar a posição do seu minúsculo país no concerto das grandes potências da Europa.
Eu não sei se o regicídio nos não empurrasse para a fraqueza anárquica em que nos debatemos, qual seria hoje, perante o drama da guerra, o destino reservado a El-Rei D. Carlos. O que sei, - e é o que me importa acentuar, - é que o desditoso monarca compreendeu bem cedo, ao acordar para as suas responsabilidades de soberano, que não pode haver política exterior decisiva e de alcance largo sem uma profunda unidade de ação dentro das esferas supremas do Estado. Rei constitucional dum país que o Constitucionalismo pervertera, D. Carlos achou-se numa hora máxima para a sua consciência colocado entre as pontas duríssimas dum duríssimo dilema: - ou deter a sua obrigação de monarca e de patriota, ou então romper os liames legalistas que o prendiam pela fórmula oficial dum juramento ao texto morto duma constituição muito mais morta ainda, aí que se nos descobre com extraordinário desassombro a envergadura extraordinária do monarca. Porque quis ser Rei de Portugal, e não dos portugueses, porque ao seu título fruste de rei-funcionário procurou sobrepor, em nome de oito séculos de história e dos interesses sagrados da Pátria, a dignidade esquecida do principio monárquico, é que o espingardearam, ao dobrar duma esquina, como numa espera de lobos. Até parece que no instante único em que a realeza bastarda do Constitucionalismo se legitimava perante o curso vagaroso da tradição, D. Carlos, purificador da sua dinastia, expiava consigo, no borbulhão quente do seu sangue de mártir, a espoliação, já meio-esquecida, de Évora-Monte!
Foi El-Rei D. Carlos, sobretudo, um antecipado.
Como antecipado, teria que naufragar, se não se recusasse a capitular num pais em que o Liberalismo germinara com força e em que a desorientação coletiva nos empurrava para a republica por uma espécie de cegueira fatal. Antes que a carabina regicida lhe alvejasse o coração, já os políticos o haviam condenado ao insucesso e à retirada, enredando-o nas malhas miúdas do pacto constitucional. Erguido contra eles, erguido contra a democracia triunfante, que pontos de apoio encontrava o monarca à sua volta? Nenhuns. Fora do caciquismo arregimentado em elemento basilar do Estado, fora das clientelas impostas ao corpo inerme do país, nada existia de sólido e de orgânico a que porventura se encostasse, na sua iniciativa de Rei que se resolve a ser Rei.
Os males que de longe vinham, - na sua palavra melancólica e profunda, imperavam mais do que ele: e era talvez necessário, para lavar a nódoa do pecado original, que o seu corpo baqueasse em holocausto, para que as gerações vindoiras tornassem de novo, em Portugal, a confessar à luz do sol o prestígio glorioso da Realeza.
É bem o nosso precursor El-Rei D. Carlos! E ao destrinçar-lhe agora as linhas predominantes da sua fisionomia de soberano, eu não olvido que esse monarca, insultado, cuspido e por fim assassinado, teve a noção perfeita — e por ela se encaminhou, - do que seria amanhã a função coordenadora da Realeza. E o que ninguém supõe é de quem o senhor D. Carlos, em política, recebera as impulsões definitivas. Nada mais, nada menos do que de Antero de Quental. Eis um tema interessante da nossa vida publica, conservado ainda na sombra, mas que constitui um precioso capítulo de filosofia política. Não que El-Rei D. Carlos ouvisse conselho direto de Antero. Mas Antero, amigo de Oliveira Martins, foi quem resolveu este a aceitar o facto dinástico e a colaborar com a Monarquia no ressurgimento do país. Antero na sua vagabundagem revolucionária, aceitara a influencia de Proudhon. Nunca se inclinara às fórmulas simplistas do jacobinismo francês. Houve sempre no seu espírito uma nobre ansiedade construtiva. Mais tarde, o socialismo de Lassalle orientou-lhe a inteligência no sentido aproximado ao da noção do Estado histórico, para o que contribuíram não pouco a leitura e a meditação de Hegel, o apologista do Estado prussiano. Nestas circunstâncias, Anteroveio a interferir com o peso do seu prestígio mental na transformação de Oliveira Martins. Também discípulo de Lassalle, Oliveira Martins apreendera em Mommsen, na História de Roma, o ideal do cesarismo perfeito. A lição do Ultimatum abrira os olhos ao nosso romantismo parlamentar. Reconheceu-se logo a necessidade de emendar o defeito ingénito do regime pela intervenção pessoal do chefe do Estado. Até políticos que, na confusão das ideias, se rotulavam ingenuamente de radicais apelavam para a ação enérgica do chefe do Estado. Conhece-se o fecho dum discurso de Augusto Fuschini em S. Bento.
“Dada a indisciplina absoluta, moral e política, que lavra profunda nas classes dirigentes, - clamava Fuschini, - demonstrada a impotência e a desorganização completa que esfacela os partidos; provada a ausência de homens de prestigio e autoridade entre as multidões, que labutam inconscientes à beira do precipício, ou se riem com aqueles que ridicularizam os imortais princípios, um homem há, neste terrível momento histórico, que pode ter força, e com a força a responsabilidade, para salvar a ordem pública e as instituições. Ora, esse homem, - prosseguia Fuschini - não é o sr. Luciano de Castro, nem o sr. António de Serpa, nem o sr. Manuel de Arriaga, nem algum de nós. O homem, que pode salvar ainda hoje as instituições, mantendo a ordem pela legalidade e pelas mais amplas liberdades públicas e individuais, é o rei.”. E no seu livro Liquidações Políticas, Fuschini mostra-nos a psicologia d’El-Rei D. Carlos contando-nos miudamente uma entrevista sua com o monarca. Moço, flutuando entre as solicitações do seu cargo e as exigências do partidarismo, o Rei traduz-se ali num altíssimo desejo de bem servir e de bem governar. A esse estado de incerteza e de imprecisão, tanto do monarca como de algumas raras individualidades do país, daria forma concreta Oliveira Martins. No admirável trabalho que é o seu estudo A Crise, Silva Cordeiro fixaria mais tarde à questão o seu verdadeiro significado, ao ocupar-se dela no capítulo que intitulou Oliveira Martins e o germanismo na política. O tipo procurado para o remoçamento da Monarquia na Pátria e da Pátria na Monarquia era uma espécie de realeza socialista ou de democracia conservadora, - nas terminologias perplexas da época —, de que o Estado prussiano oferecia a exemplificação acabada. Os princípios basilares em que se apoiaria a nova ordem de coisas reduziam-se, à alemã, no militarismo e nas reformas económicas, com o elemento político substituído pelo elemento administrativo, com a representação orgânica dos municípios e das classes substituindo a representação parlamentar dos partidos. Conceção de Oliveira Martins, que quase trinta anos antes adivinhava o nosso movimento, ninguém duvida do influxo que recebeu de Antero. A carta de Antero a Sebastião de Arruda da Costa Botelho, datada de Vila do Conde em 1 de Agosto de 1885, convence-nos bem das suas responsabilidades na adesão de Oliveira Martins ao Progressismo. Por seu lado, Adolfo Coelho assim no-lo testemunha, ao nótular de passagem no Alexandre Herculano e o ensino público, que Oliveira Martins "acabou por cair nos braços do partido progressista, com sanção de Antero". De resto, o próprio Antero se encarrega de o confirmar em outra carta sua, - esta dirigida a João Machado de Faria e Maia aos 31 de Maio de 1886. "Os bons astrólogos políticos," - comunica ele - "dizem que o ministério, tal como esta, não pode durar muito, pois se acha dividido em dois campos rivais, e preveem crise para depois do casamento do Príncipe. O campo de batalha é o novo ministério, destinado a O. Martins e o programa financeiro e económico do nosso grupo". A prova é mais que bastante. Ascendido depois do Ultimatum a ministro da Coroa, Oliveira Martins, que levava já na sua bagagem o Projeto de lei de Fomento rural, deu às aspirações inconscientes do reinado em começo a sua fórmula definida. Falhou diante das habilidades sem nobreza de José Dias Ferreira. Mas no animo do rei, a sua lição não ficou perdida. Portador de planos económicos e sociais, a que Antero chamava o programa do nosso grupo, por inspiração de Proudhon e de Lassalle, nós verificamos enfim como Oliveira Martins chegava à definição da sua "democracia conservadora", firmada no poder pessoal do soberano. Assim Antero de Quental acionara na inteligência aberta d’El-Rei D. Carlos. Os tempos passaram, Antero e Oliveira Martins desceram para o repouso do túmulo, - o primeiro desiludido, vencido o segundo. Sobrevivia-lhes o Rei. E quando na sua reflexão se decidiu a ser deveras o continuador duma pátria que se desfazia aos bocados num cenário de comedia burlesca, o caminho apontado pelos dois mortos foi o que resolutamente escolheu. Antecipado como eles, como eles seria vítima da sua antecipação. Surgiu a tragédia depois. Sobre um crime sem perdão, a república, que é outro crime, ganhou raízes criminosas. Mas a figura do monarca espingardeado, crescendo acusadora, é cada vez maior, é cada vez mais bela de majestade e de intenção. Um Rei como esse é que tinha nascido para nós! Sejamos os executores do seu testamento, participando, para nos depurarmos, do Sacrifício que em expiação nos haja de caber, e reatando a história de Portugal, para além deste parêntesis de infâmia, a sua sequência interrompida, faz hoje exatamente dez anos, numa emboscada traiçoeira.
Fevereiro, 1918.
(in António Sardinha (1887-1925), Durante a Fogueira - Páginas da Guerra, Lisboa, Livraria Universal, 1927, pp. 145-156)
Não falarei de El-Rei D. Carlos na sua obra artística e científica. É dever do meu espírito, neste momento, olhá-lo antes debaixo do aspeto porque foi mais incriminado, vindo por ele a sofrer paixão e morte. Refiro-me á sua política, tão mal compreendida hoje mesmo, mas que, realçada a distância pela transformação das inteligências e dos tempos, o fará para a admiração do futuro o maior de todos numa época sem finalidade nem aspirações, em que só a sua figura se destaca envoltanum halo ensanguentado de martírio. Tinha por si El-Rei D. Carlos a natural aptidão dos Braganças para a arte de bem governar. Tornada por penas sectárias em arma de partido, a nossa história não passou nunca dum panfleto sem consciência nem consistência contra a dinastia reinante. Não estranhemos por isso que logo o seu próprio fundador seja considerado através da calunia com que os manifestos filipinos, espalhados pela Europa a peso de oiro, lhe pretenderam entravar e diminuir o seu tato habilíssimo no reconhecimento árduo da nossa libertação. No entanto, apesar das tintas tão injustas como mentirosas com que é de uso e costume falsear-lhe o caracter, El-Rei D. João IV reuniu na sua personalidade vigorosa fortes e notabilíssimos recursos de chefe de Estado. Nada melhor o retrata do que uma passagem do seu testamento. "Me resolvi a restituir-me" - diz ele—, "a esta coroa sem nenhum respeito particular á minha pessoa, senão por livrar os reinos que me pertencem das misérias que lhes vi padecer em estranha sujeição e por entender era obrigado a isso em minha consciência, sujeitando-me por esta causa a vida e trabalhos, pudera ser diferente de minha inclinação." Nessa disposição resoluta e persistente, ao falecer, D. João IV deixava consolidados os alicerces da Independência de Portugal. «Restaurar O reino em todo o sentido, restabelecer as finanças, - escreve Joaquim de Vasconcelos, - criar os complicados elementos da defesa, reconquistar quase todas as possessões de África e todo o Brasil, criar a Junta Geral do Comércio, negociar alianças valiosas, tudo isto em dezasseis anos...parece-nos uma obra digna de admiração e do nosso respeito, ainda que não fossem conhecidas as circunstâncias dificílimas em que estes trabalhos foram executados.
O traço tónico d'El-Rei D. João IV, como monarca, consistiu na sua rara capacidade diplomática. O sr. Edgar Prestage reputa a nossa Restauração mais como um fruto de boa política externa do que como um resultado devido exclusivamente à sorte das armas portuguesas. De nada mais se precisa para a reabilitação das qualidades superiores de D. João IV. Se o celebre Papel lançado na caixa das Cortes-Gerais sob a rubrica de "Procurador-Geral dos Descaminhos do Reino" o revela senhor de vistas completas sobre a administração do Estado, a sua entrevista memoranda com o cavalheiro de Jant constitui ainda agora para Portugal um plano seguro de engrandecimento. Aí se contém o esboço do Atlântico "lago português", que só a nossa aliança com o Brasil permitirá aproximar da realidade, tornando possível a visão grandiosa do "Feliz-Restaurador".
Artista e erudito, político e lavrador, D. João IV voltou a viver na psicologia magnificamente dotada de El-Rei D. Carlos. Na nossa pequenez, a braços com uma crise orgânica quase tao dominadora como a do século XVII, El-Rei D. Carlos apresenta-se-nos, como o seu longínquo avô, o verdadeiro "Procurador dos Descaminhos do Reino". Preparando-se para a sua visita ao Rio, quando uma bala traiçoeira o prostrou faz exatamente dez anos, era a conclusão da conversa iniciada dois séculos antes por D. João IV com o enviado da corte de Franca que o monarca assassinado se dispunha a rematar. Um apertado laço os prende muito de perto, o descendente ao antepassado, - um músico, o outro pintor, embebendo-se ambos no ritmo doce das coisas belas, com o mesmo amor provinciano, quase chão, à terra que os vira nascer, ao sol amorável que os beijara em meninos. Mas é então precisamente na situação exterior criada pelo Senhor D. Carlos a Portugal que o Bragança se afirma nas suas excecionais qualidades de governante. A herança política de D. João IV mantivera-se sempre com brio e, só quem ignorar a nossa história diplomática é que pode colaborar de boa-fé na difamação sistemática de que é vitima a última serie dos nossos Reis. Depois do Restaurador, para o exemplificar, em três tocarei, e dos mais desacreditados. Não correspondendo de modo nenhum ao nível elevado do seu progenitor, até D. Pedro II continua e honra a tradição brilhantíssima de D. João IV.
Num período em que dependíamos do apoio que a França de Luís XIV nos dava na Europa contra as pretensões da casa de Áustria, o orgulho do Rei-Sol, mais duma vez, se amarrotou de encontro ao nosso monarca. Assim, desembaraçando-se das pelas e das tutelas que Versailles se esforçava por lhe impor, D. Pedro II consuma a paz com a Espanha, sem pedir conselho a Luiz XIV. Chocado, o rei de França salva o desastre com um dito de espírito, que é para D. Pedro II o seu maior elogio. "Porém como ele (Luís XIV) é que tem ensinado ao mundo estas lições, sendo crédito do mestre deixar bons discípulos, não lhe fica mal que este lhe saísse tão avantajado".
Idêntico juízo formaria Luís XV d’El-Rei D. João V, ao informar o seu representante em Lisboa de que não existia pessoa alguma com influencia no espírito do monarca, acrescentando logo que o ministro não devia perder de vista que D. João V tinha sido ‹constante em elevar a sua corda á categoria das principais da Europa, e que por isso que ele tem sido bem sucedido nesta pretensão, convém estar atento.› E quanto a D. João VI, é nas comunicações do cônsul Maler para Paris que o soberano se nos desvenda em todo o seu esforçado empenho para responder com uma tentativa de imperialismo americano às condições de miserável abandono em que nos votara a diplomacia europeia de Viena.
"Monsenhor" - observa do Rio o francês, - esta Corte, mau grado a penúria das suas finanças, a fraqueza do seu governo, e o estado da sua população, nutre ideias ambiciosas; imaginou que chegará para ela o momento favorável e o titulo de Reino Unido, havendo exaltado algumas cabeças, acredita poder impunemente, não sacudir a mascara, mas levantar o véu." Com este património de família e com a permanência de pensamento que é a virtude da hereditariedade monárquica, El-Rei D. Carlos. não servia durante a sua existência outro desígnio que não fosse o de valorizar a posição do seu minúsculo país no concerto das grandes potências da Europa.
Eu não sei se o regicídio nos não empurrasse para a fraqueza anárquica em que nos debatemos, qual seria hoje, perante o drama da guerra, o destino reservado a El-Rei D. Carlos. O que sei, - e é o que me importa acentuar, - é que o desditoso monarca compreendeu bem cedo, ao acordar para as suas responsabilidades de soberano, que não pode haver política exterior decisiva e de alcance largo sem uma profunda unidade de ação dentro das esferas supremas do Estado. Rei constitucional dum país que o Constitucionalismo pervertera, D. Carlos achou-se numa hora máxima para a sua consciência colocado entre as pontas duríssimas dum duríssimo dilema: - ou deter a sua obrigação de monarca e de patriota, ou então romper os liames legalistas que o prendiam pela fórmula oficial dum juramento ao texto morto duma constituição muito mais morta ainda, aí que se nos descobre com extraordinário desassombro a envergadura extraordinária do monarca. Porque quis ser Rei de Portugal, e não dos portugueses, porque ao seu título fruste de rei-funcionário procurou sobrepor, em nome de oito séculos de história e dos interesses sagrados da Pátria, a dignidade esquecida do principio monárquico, é que o espingardearam, ao dobrar duma esquina, como numa espera de lobos. Até parece que no instante único em que a realeza bastarda do Constitucionalismo se legitimava perante o curso vagaroso da tradição, D. Carlos, purificador da sua dinastia, expiava consigo, no borbulhão quente do seu sangue de mártir, a espoliação, já meio-esquecida, de Évora-Monte!
Foi El-Rei D. Carlos, sobretudo, um antecipado.
Como antecipado, teria que naufragar, se não se recusasse a capitular num pais em que o Liberalismo germinara com força e em que a desorientação coletiva nos empurrava para a republica por uma espécie de cegueira fatal. Antes que a carabina regicida lhe alvejasse o coração, já os políticos o haviam condenado ao insucesso e à retirada, enredando-o nas malhas miúdas do pacto constitucional. Erguido contra eles, erguido contra a democracia triunfante, que pontos de apoio encontrava o monarca à sua volta? Nenhuns. Fora do caciquismo arregimentado em elemento basilar do Estado, fora das clientelas impostas ao corpo inerme do país, nada existia de sólido e de orgânico a que porventura se encostasse, na sua iniciativa de Rei que se resolve a ser Rei.
Os males que de longe vinham, - na sua palavra melancólica e profunda, imperavam mais do que ele: e era talvez necessário, para lavar a nódoa do pecado original, que o seu corpo baqueasse em holocausto, para que as gerações vindoiras tornassem de novo, em Portugal, a confessar à luz do sol o prestígio glorioso da Realeza.
É bem o nosso precursor El-Rei D. Carlos! E ao destrinçar-lhe agora as linhas predominantes da sua fisionomia de soberano, eu não olvido que esse monarca, insultado, cuspido e por fim assassinado, teve a noção perfeita — e por ela se encaminhou, - do que seria amanhã a função coordenadora da Realeza. E o que ninguém supõe é de quem o senhor D. Carlos, em política, recebera as impulsões definitivas. Nada mais, nada menos do que de Antero de Quental. Eis um tema interessante da nossa vida publica, conservado ainda na sombra, mas que constitui um precioso capítulo de filosofia política. Não que El-Rei D. Carlos ouvisse conselho direto de Antero. Mas Antero, amigo de Oliveira Martins, foi quem resolveu este a aceitar o facto dinástico e a colaborar com a Monarquia no ressurgimento do país. Antero na sua vagabundagem revolucionária, aceitara a influencia de Proudhon. Nunca se inclinara às fórmulas simplistas do jacobinismo francês. Houve sempre no seu espírito uma nobre ansiedade construtiva. Mais tarde, o socialismo de Lassalle orientou-lhe a inteligência no sentido aproximado ao da noção do Estado histórico, para o que contribuíram não pouco a leitura e a meditação de Hegel, o apologista do Estado prussiano. Nestas circunstâncias, Anteroveio a interferir com o peso do seu prestígio mental na transformação de Oliveira Martins. Também discípulo de Lassalle, Oliveira Martins apreendera em Mommsen, na História de Roma, o ideal do cesarismo perfeito. A lição do Ultimatum abrira os olhos ao nosso romantismo parlamentar. Reconheceu-se logo a necessidade de emendar o defeito ingénito do regime pela intervenção pessoal do chefe do Estado. Até políticos que, na confusão das ideias, se rotulavam ingenuamente de radicais apelavam para a ação enérgica do chefe do Estado. Conhece-se o fecho dum discurso de Augusto Fuschini em S. Bento.
“Dada a indisciplina absoluta, moral e política, que lavra profunda nas classes dirigentes, - clamava Fuschini, - demonstrada a impotência e a desorganização completa que esfacela os partidos; provada a ausência de homens de prestigio e autoridade entre as multidões, que labutam inconscientes à beira do precipício, ou se riem com aqueles que ridicularizam os imortais princípios, um homem há, neste terrível momento histórico, que pode ter força, e com a força a responsabilidade, para salvar a ordem pública e as instituições. Ora, esse homem, - prosseguia Fuschini - não é o sr. Luciano de Castro, nem o sr. António de Serpa, nem o sr. Manuel de Arriaga, nem algum de nós. O homem, que pode salvar ainda hoje as instituições, mantendo a ordem pela legalidade e pelas mais amplas liberdades públicas e individuais, é o rei.”. E no seu livro Liquidações Políticas, Fuschini mostra-nos a psicologia d’El-Rei D. Carlos contando-nos miudamente uma entrevista sua com o monarca. Moço, flutuando entre as solicitações do seu cargo e as exigências do partidarismo, o Rei traduz-se ali num altíssimo desejo de bem servir e de bem governar. A esse estado de incerteza e de imprecisão, tanto do monarca como de algumas raras individualidades do país, daria forma concreta Oliveira Martins. No admirável trabalho que é o seu estudo A Crise, Silva Cordeiro fixaria mais tarde à questão o seu verdadeiro significado, ao ocupar-se dela no capítulo que intitulou Oliveira Martins e o germanismo na política. O tipo procurado para o remoçamento da Monarquia na Pátria e da Pátria na Monarquia era uma espécie de realeza socialista ou de democracia conservadora, - nas terminologias perplexas da época —, de que o Estado prussiano oferecia a exemplificação acabada. Os princípios basilares em que se apoiaria a nova ordem de coisas reduziam-se, à alemã, no militarismo e nas reformas económicas, com o elemento político substituído pelo elemento administrativo, com a representação orgânica dos municípios e das classes substituindo a representação parlamentar dos partidos. Conceção de Oliveira Martins, que quase trinta anos antes adivinhava o nosso movimento, ninguém duvida do influxo que recebeu de Antero. A carta de Antero a Sebastião de Arruda da Costa Botelho, datada de Vila do Conde em 1 de Agosto de 1885, convence-nos bem das suas responsabilidades na adesão de Oliveira Martins ao Progressismo. Por seu lado, Adolfo Coelho assim no-lo testemunha, ao nótular de passagem no Alexandre Herculano e o ensino público, que Oliveira Martins "acabou por cair nos braços do partido progressista, com sanção de Antero". De resto, o próprio Antero se encarrega de o confirmar em outra carta sua, - esta dirigida a João Machado de Faria e Maia aos 31 de Maio de 1886. "Os bons astrólogos políticos," - comunica ele - "dizem que o ministério, tal como esta, não pode durar muito, pois se acha dividido em dois campos rivais, e preveem crise para depois do casamento do Príncipe. O campo de batalha é o novo ministério, destinado a O. Martins e o programa financeiro e económico do nosso grupo". A prova é mais que bastante. Ascendido depois do Ultimatum a ministro da Coroa, Oliveira Martins, que levava já na sua bagagem o Projeto de lei de Fomento rural, deu às aspirações inconscientes do reinado em começo a sua fórmula definida. Falhou diante das habilidades sem nobreza de José Dias Ferreira. Mas no animo do rei, a sua lição não ficou perdida. Portador de planos económicos e sociais, a que Antero chamava o programa do nosso grupo, por inspiração de Proudhon e de Lassalle, nós verificamos enfim como Oliveira Martins chegava à definição da sua "democracia conservadora", firmada no poder pessoal do soberano. Assim Antero de Quental acionara na inteligência aberta d’El-Rei D. Carlos. Os tempos passaram, Antero e Oliveira Martins desceram para o repouso do túmulo, - o primeiro desiludido, vencido o segundo. Sobrevivia-lhes o Rei. E quando na sua reflexão se decidiu a ser deveras o continuador duma pátria que se desfazia aos bocados num cenário de comedia burlesca, o caminho apontado pelos dois mortos foi o que resolutamente escolheu. Antecipado como eles, como eles seria vítima da sua antecipação. Surgiu a tragédia depois. Sobre um crime sem perdão, a república, que é outro crime, ganhou raízes criminosas. Mas a figura do monarca espingardeado, crescendo acusadora, é cada vez maior, é cada vez mais bela de majestade e de intenção. Um Rei como esse é que tinha nascido para nós! Sejamos os executores do seu testamento, participando, para nos depurarmos, do Sacrifício que em expiação nos haja de caber, e reatando a história de Portugal, para além deste parêntesis de infâmia, a sua sequência interrompida, faz hoje exatamente dez anos, numa emboscada traiçoeira.
Fevereiro, 1918.
(in António Sardinha (1887-1925), Durante a Fogueira - Páginas da Guerra, Lisboa, Livraria Universal, 1927, pp. 145-156)