Monarquia e República
António Sardinha
[excertos]
Ia um jornalista nosso adversário quase dizendo a verdade quando escreveu que “o integralismo representa nem mais nem menos do que a doutrina duma República com Rei a dirigi-la”. Esta observação, a que é preciso render uma certa homenagem pela inteligência crítica que revela, iliba-nos da divertida nódoa de absolutistas que a toda hora nos é assacada, ao mesmo tempo que assinala um progresso na inocência mental em que por via de regra vive mergulhado o espírito dos nossos contendores. Claro que o Integralismo não é de modo nenhum a doutrina duma república, com um rei por chave da abóbada. Esse foi o erro da monarquia constitucional, que Lafayette, nas vibrações românticas de 1830, festejava como sendo a melhor das repúblicas. Porque, assimilada pelo princípio monárquico, a doutrina republicana nunca pode dar senão a sua bastardia. No entanto, concretizando um pouco mais o sentido que às suas palavras quis imprimir o jornalista em questão, talvez tenhamos que reconhecer que a liberdade teórica das repúblicas só se efectiva à sombra da Realeza, - dentro duma Monarquia, mas das puras, das verdadeiras.
(...) uma coisa é a República como doutrina política, outra coisa é a República como noção histórica da governança ou do poder.
A doutrina da República exclui a concepção orgânica que antigamente se fazia do facto-república. O facto-república afirmou-se principalmente na Idade Média com as liberdades municipais e corporativas, fundamentadas no direito legítimo do homem a viver e com razão moral no profundo ideal cristão daquela época. É, na verdade, da convergência de tão variados elementos que resulta a necessidade da sua coordenação pela força unificadora da Realeza. Quando a Realeza se estabelece e desenvolve, em que bases é que nós a vemos assentar a sua profunda acção pacificadora? Nas comunas revoltas, no Terceiro-Estado em desavença constante com as arrogâncias, por vezes despóticas, do mundo feudal.
Se, à falta de expressão mais idónea, a nós nos é lícito empregar a palavra "democracia", a Realeza é desta forma o único regime estruturalmente democrático que se conhece na história. E dizemos "democrático, porque só a unidade da soberania, como a Realeza a obtém e consolida, realiza o equilíbrio das classes, sem predomínio, seja ele qual for, de umas sobre as outras.
Detalhando melhor a nossa tese, não se suponha que floreamos com ela um paradoxo impertinente! O grande mestre que foi Fustel de Coulanges já sustentava que a "república" só era compatível com a aristocracia, enquanto que a democracia só se acomodava verdadeiramente à Monarquia. Antes de avançarmos, entendo, porém esclarecer o significado dos dois vocábulos na linguagem do ilustre historiador. "Foi a Grécia - dizia Fustel - que introduziu no mundo o governo republicano, e foi uma classe aristocrática que o introduziu na Grécia". Mais tarde em Roma é a aristocracia que derruba a Realeza, substituindo-a por um Senado que deliberava e por magistrados que executavam as deliberações do Senado. Tanto na Grécia como em Roma, a aristocracia, fundando a República, teve logo o cuidado de afastar a multidão das funções directivas. Mais tarde, no momento em que a república sucumbe, é substituída na Grécia pelos «tiranos» clássicos e em Roma por César que abre as portas ao Império. O que é depois o Império senão um mandato exercido em nome do povo romano?
Eis as razões em que se fundava a teoria de Fustel de Coulanges. São razões que perfilhamos, tão depressa tomemos "aristocracia" como sinónimo de "oligarquia". Realmente, as aristocracias representavam para Fustel, sobre os restantes corpos do Estado, a supremacia de um classe, a ditadura abusiva de uma casta. Não é outro o espectáculo que nos oferece a Grécia nos tempos áureos. Toda a sua civilização, reduzida ainda ao perímetro estreito de Cidade, descansava descricionariamente na escravatura.
O número dos Cidadãos - dos que discutiam e tinham voto na segurança comum, traduzia-se numa minoria insignificante perante o grosso da população condenada a trabalhar para os outros, sob a dureza de uma lei tão opressiva como humilhante. Surgiram os tiranos. E Fustel caracteriza-os como "mandatários do povo contra a aristocracia". É o que sucede em Roma, ao desabar da República. César assoma aos varandins do triunfo, levado aos ombros da plebe.
(...)
A Realeza antiga encarnava fundamentalmente o tipo patriarcal de sociedade. Ressurgido através da família, é esse tipo que persiste na formação das monarquias medievais. Com estas vinha, porém, fecundar-lhe a obra a lei moral que faltara às instituições do paganismo.
A consciência cristã, traçando limites ao poder, fazia dos Reis, não tiranos ao modo clássico, mas magistrados, conforme aos Juízes de Israel.
(...)
É então que a Realeza corrige a desorganização em que a colectividade ia tombando de novo - agora, não pela ausência do Estado, mas pela dispersão incalculável da soberania.
Percebe-se que, restringindo os privilégios excessivos dos barões feudais, a Realeza nunca poderia contar com eles como colaboradores pacíficos e submissos. Evidentemente que carecia de um apoio - e de um apoio seguro. Onde é que a Realeza o encontra? Encontra-o nas Comunas, encontra-o nas Corporações - no povo miúdo e obscuro que cresce, não revolucionariamente para a sua imposição violenta, mas para a conquista das suas franquias, das suas isenções, das suas liberdades, enfim. A autoridade real, numa guerra de séculos quase, defendia, no próprio interesse, o equilíbrio social da preponderância exagerada de um dos braços do Estado sobre os demais. (...)
Entre nós, já no espraiar da Renascença, como explicar, senão assim, a política de D. João II contra a casa de Bragança e os fidalgos seus sequazes? O fenómeno que se verificava em Portugal, verificava-se lá fora - em França, por exemplo. Em 1481, nos Estados Gerais de Tours, quem invoca a soberania inicial da nação é um orador da nobreza, Filipe Pol de la Roche. Em contraste, o cónego Jean de Rély, representante do braço do povo, incita o monarca ao exercício pleno da sua autoridade, acrescentando que o ofício do rei é levantar os pobres da opressão (rélever les povres de oppression!)
É que praticando a detenção do poder contra a unidade da nação, bem expressa na unidade da soberania, a aristocracia de outrora desempenhou op mesmo papel perturbador que hoje os partidos desempenham. Os fidalgos ontem, ciosos da manutenção das sua jurisdições privadas, os políticos da actualidade cada vez mais ávidos de absorver em proveito próprio a marcha e a direcção dos negócios públicos - eis dois aspectos diversos dessa tendência centrífuga que na vida dos Estados é imperioso corrigir, embora não anular, por uma forte organização das funções coordenadoras do Estado. (...)
Estabelecida a incapacidade orgânica dos sistemas democráticos (*) para resolver a questão social pela sua condição simultaneamente plutocrática e parlamentarista, ao proletariado só resta a Revolução ou o Rei. (...)
O predomínio dissolvente dos partidos sobre as legítimas aspirações da colectividade equivale às antigas querelas da Nobreza e do Clero contra a supremacia neutralizadora da Coroa. Há uma diferença, no entanto, que é de justiça destacar. Nunca, a não ser em raras circunstâncias, as discórdias das classes privilegiadas atentaram contra a própria constituição do Estado. Órgãos robustos do mesmo, queriam expandir-se em detrimento da boa harmonia do grupo. (...)
Não sucede outro tanto com os partidos políticos - consequência da liberdade metafísica dos utopistas de 89. Não chegam a ser órgãos do Estado, pois não passam de elementos parasitários, mantendo-se à custa da corrupção e do favoritivismo. O poder, quando o alcançam, sequestram-no em seu benefício exclusivo, como se fosse coisa conquistada. Por intermédio dos mil tentáculos duma burocracia opressiva e inerte, nós vemo-los imporem-se na sua minoria atrevida e insaciável à colectividade escravizada. São as maravilhas do Estado napoleónico, hoje em falência estrondosa!
Setembro, 1918
(In Ao Princípio era o Verbo. Ensaios & Estudos, 2ª edição, Edições Gama, 1940, pp. 125-140)
(*) António Sardinha defendia o municipalismo comunitarista ou orgânico e a representação política nacional por intermédio dos municípios. Em regra, usava a expressão "sistema democrático" ou "democracia" em sentido pejorativo, cobrindo os sistemas políticos parlamentares fundados no sufrágio individual (não orgânico) e no monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos.
[excertos]
Ia um jornalista nosso adversário quase dizendo a verdade quando escreveu que “o integralismo representa nem mais nem menos do que a doutrina duma República com Rei a dirigi-la”. Esta observação, a que é preciso render uma certa homenagem pela inteligência crítica que revela, iliba-nos da divertida nódoa de absolutistas que a toda hora nos é assacada, ao mesmo tempo que assinala um progresso na inocência mental em que por via de regra vive mergulhado o espírito dos nossos contendores. Claro que o Integralismo não é de modo nenhum a doutrina duma república, com um rei por chave da abóbada. Esse foi o erro da monarquia constitucional, que Lafayette, nas vibrações românticas de 1830, festejava como sendo a melhor das repúblicas. Porque, assimilada pelo princípio monárquico, a doutrina republicana nunca pode dar senão a sua bastardia. No entanto, concretizando um pouco mais o sentido que às suas palavras quis imprimir o jornalista em questão, talvez tenhamos que reconhecer que a liberdade teórica das repúblicas só se efectiva à sombra da Realeza, - dentro duma Monarquia, mas das puras, das verdadeiras.
(...) uma coisa é a República como doutrina política, outra coisa é a República como noção histórica da governança ou do poder.
A doutrina da República exclui a concepção orgânica que antigamente se fazia do facto-república. O facto-república afirmou-se principalmente na Idade Média com as liberdades municipais e corporativas, fundamentadas no direito legítimo do homem a viver e com razão moral no profundo ideal cristão daquela época. É, na verdade, da convergência de tão variados elementos que resulta a necessidade da sua coordenação pela força unificadora da Realeza. Quando a Realeza se estabelece e desenvolve, em que bases é que nós a vemos assentar a sua profunda acção pacificadora? Nas comunas revoltas, no Terceiro-Estado em desavença constante com as arrogâncias, por vezes despóticas, do mundo feudal.
Se, à falta de expressão mais idónea, a nós nos é lícito empregar a palavra "democracia", a Realeza é desta forma o único regime estruturalmente democrático que se conhece na história. E dizemos "democrático, porque só a unidade da soberania, como a Realeza a obtém e consolida, realiza o equilíbrio das classes, sem predomínio, seja ele qual for, de umas sobre as outras.
Detalhando melhor a nossa tese, não se suponha que floreamos com ela um paradoxo impertinente! O grande mestre que foi Fustel de Coulanges já sustentava que a "república" só era compatível com a aristocracia, enquanto que a democracia só se acomodava verdadeiramente à Monarquia. Antes de avançarmos, entendo, porém esclarecer o significado dos dois vocábulos na linguagem do ilustre historiador. "Foi a Grécia - dizia Fustel - que introduziu no mundo o governo republicano, e foi uma classe aristocrática que o introduziu na Grécia". Mais tarde em Roma é a aristocracia que derruba a Realeza, substituindo-a por um Senado que deliberava e por magistrados que executavam as deliberações do Senado. Tanto na Grécia como em Roma, a aristocracia, fundando a República, teve logo o cuidado de afastar a multidão das funções directivas. Mais tarde, no momento em que a república sucumbe, é substituída na Grécia pelos «tiranos» clássicos e em Roma por César que abre as portas ao Império. O que é depois o Império senão um mandato exercido em nome do povo romano?
Eis as razões em que se fundava a teoria de Fustel de Coulanges. São razões que perfilhamos, tão depressa tomemos "aristocracia" como sinónimo de "oligarquia". Realmente, as aristocracias representavam para Fustel, sobre os restantes corpos do Estado, a supremacia de um classe, a ditadura abusiva de uma casta. Não é outro o espectáculo que nos oferece a Grécia nos tempos áureos. Toda a sua civilização, reduzida ainda ao perímetro estreito de Cidade, descansava descricionariamente na escravatura.
O número dos Cidadãos - dos que discutiam e tinham voto na segurança comum, traduzia-se numa minoria insignificante perante o grosso da população condenada a trabalhar para os outros, sob a dureza de uma lei tão opressiva como humilhante. Surgiram os tiranos. E Fustel caracteriza-os como "mandatários do povo contra a aristocracia". É o que sucede em Roma, ao desabar da República. César assoma aos varandins do triunfo, levado aos ombros da plebe.
(...)
A Realeza antiga encarnava fundamentalmente o tipo patriarcal de sociedade. Ressurgido através da família, é esse tipo que persiste na formação das monarquias medievais. Com estas vinha, porém, fecundar-lhe a obra a lei moral que faltara às instituições do paganismo.
A consciência cristã, traçando limites ao poder, fazia dos Reis, não tiranos ao modo clássico, mas magistrados, conforme aos Juízes de Israel.
(...)
É então que a Realeza corrige a desorganização em que a colectividade ia tombando de novo - agora, não pela ausência do Estado, mas pela dispersão incalculável da soberania.
Percebe-se que, restringindo os privilégios excessivos dos barões feudais, a Realeza nunca poderia contar com eles como colaboradores pacíficos e submissos. Evidentemente que carecia de um apoio - e de um apoio seguro. Onde é que a Realeza o encontra? Encontra-o nas Comunas, encontra-o nas Corporações - no povo miúdo e obscuro que cresce, não revolucionariamente para a sua imposição violenta, mas para a conquista das suas franquias, das suas isenções, das suas liberdades, enfim. A autoridade real, numa guerra de séculos quase, defendia, no próprio interesse, o equilíbrio social da preponderância exagerada de um dos braços do Estado sobre os demais. (...)
Entre nós, já no espraiar da Renascença, como explicar, senão assim, a política de D. João II contra a casa de Bragança e os fidalgos seus sequazes? O fenómeno que se verificava em Portugal, verificava-se lá fora - em França, por exemplo. Em 1481, nos Estados Gerais de Tours, quem invoca a soberania inicial da nação é um orador da nobreza, Filipe Pol de la Roche. Em contraste, o cónego Jean de Rély, representante do braço do povo, incita o monarca ao exercício pleno da sua autoridade, acrescentando que o ofício do rei é levantar os pobres da opressão (rélever les povres de oppression!)
É que praticando a detenção do poder contra a unidade da nação, bem expressa na unidade da soberania, a aristocracia de outrora desempenhou op mesmo papel perturbador que hoje os partidos desempenham. Os fidalgos ontem, ciosos da manutenção das sua jurisdições privadas, os políticos da actualidade cada vez mais ávidos de absorver em proveito próprio a marcha e a direcção dos negócios públicos - eis dois aspectos diversos dessa tendência centrífuga que na vida dos Estados é imperioso corrigir, embora não anular, por uma forte organização das funções coordenadoras do Estado. (...)
Estabelecida a incapacidade orgânica dos sistemas democráticos (*) para resolver a questão social pela sua condição simultaneamente plutocrática e parlamentarista, ao proletariado só resta a Revolução ou o Rei. (...)
O predomínio dissolvente dos partidos sobre as legítimas aspirações da colectividade equivale às antigas querelas da Nobreza e do Clero contra a supremacia neutralizadora da Coroa. Há uma diferença, no entanto, que é de justiça destacar. Nunca, a não ser em raras circunstâncias, as discórdias das classes privilegiadas atentaram contra a própria constituição do Estado. Órgãos robustos do mesmo, queriam expandir-se em detrimento da boa harmonia do grupo. (...)
Não sucede outro tanto com os partidos políticos - consequência da liberdade metafísica dos utopistas de 89. Não chegam a ser órgãos do Estado, pois não passam de elementos parasitários, mantendo-se à custa da corrupção e do favoritivismo. O poder, quando o alcançam, sequestram-no em seu benefício exclusivo, como se fosse coisa conquistada. Por intermédio dos mil tentáculos duma burocracia opressiva e inerte, nós vemo-los imporem-se na sua minoria atrevida e insaciável à colectividade escravizada. São as maravilhas do Estado napoleónico, hoje em falência estrondosa!
Setembro, 1918
(In Ao Princípio era o Verbo. Ensaios & Estudos, 2ª edição, Edições Gama, 1940, pp. 125-140)
(*) António Sardinha defendia o municipalismo comunitarista ou orgânico e a representação política nacional por intermédio dos municípios. Em regra, usava a expressão "sistema democrático" ou "democracia" em sentido pejorativo, cobrindo os sistemas políticos parlamentares fundados no sufrágio individual (não orgânico) e no monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos.