1919 - Carta de D. Manuel II para Aires de Ornelas, a respeito da quebra de obediência do Integralismo Lusitano
Esta carta foi inicialmente publicada pelo jornal republicano Diário de Notícias, em 3 de Dezembro de 1919, e depois reproduzida pela Junta Central do Integralismo ao publicar A Questão Dinástica, em 1921. Segue a transcrição, incluindo, em negrito, os comentários introduzidos em rodapé pela Junta Central.
"Para a Historia —Um documento politico - Uma carta dirigida pelo ex-rei sr. D. Manuel de Bragança ao sr. Aires de Ornelas - O soberano deposto declara-se contrário ao nosso "estado de luta interna constante" e faz nesse sentido "um apelo a todos os portugueses, sem distinção de cores políticas" - "Um só ideal: a Pátria!"
O Diário de Noticias publica hoje um documento politico importante. Fazemo-lo com caracter de informação que este jornal tem e sem de forma alguma pretendermos ligar qualquer espécie de responsabilidade às afirmações nele contidas. Trata-se dum documento histórico em que o ex-rei sr. D. Manuel de Bragança manifesta, entre outros pontos de vista de caracter pessoal sobre uma recente cisão aberta no partido monárquico, a opinião de que "precisamos, como portugueses, de estar unidos e formar um bloco firme e compacto que deve ter como lema, uma só palavra, um só ideal: Pátria!"
O antigo soberano, hoje exilado e destronado, escrevendo ao mais graduado dos seus correligionários, considera o momento actual um "momento em que a união de todos os portugueses é essencial" e, dirigindo-se ao governo português, reconhece que "todos os portugueses são necessários" para a obra nacional, que se impõe
O sr. D. Manuel de Bragança afirma-se contrário a movimentos revolucionários e quanto às outras declarações, que envolvem a vida interna de um partido, à qual, como à de todos os outros, este jornal é estranho, só as publicamos pelo caracter público e de curiosidade histórica que contém.
Eis a carta dirigida ao sr. Aires de Orneias e cuja cópia obtivemos.
Twickenham —1 de Novembro —1919.
Meu querido Ayres d'Ornellas.
Não julgava Eu há dois meses, quando lhe escrevi, que seria obrigado a dirigir-lhe novamente uma carta, que necessita a máxima publicidade, em vista dos factos tão graves que tiveram lugar em Portugal.
Chegou-me ontem às mãos o número do jornal A Monarquia, de 20 de Outubro. Com assombro li as declarações e resoluções da Junta Central do Integralismo Lusitano. Em Agosto último escrevia-lhe Eu que esperava poder manter o silêncio, que desde Janeiro último me tinha imposto para evitar mais tristezas e desuniões (nota 1 - Não esclareceu aqui o monarca deposto as tristezas e desuniões existentes no seu partido. Pela leitura do relatório adiante publicado, conclui-se que se trata da velha oposição entre as direcções políticas do sr. Conselheiro Aires de Ornelas e as ambições militares do sr. Paiva Couceiro). Infelizmente não me é possível manter hoje esse silêncio e chegou o momento, com profunda mágoa o digo, de falar claramente pondo perante o país a verdade. Custa-me sobremaneira ter de relatar factos e acontecimentos, que certamente teria calado, se o abandono de um agrupamento político, que militava debaixo da minha bandeira e pelo qual Eu tinha sincera simpatia, pois é composto de gente nova como Eu, me não forçasse a dirigir-me publicamente e oficialmente ao meu Lugar-Tenente. É indispensável que se faça luz para que o País possa julgar.
Nos fins de Setembro p. p. vieram a Inglaterra dois delegados da Junta Central do Integralismo Lusitano. Eram eles portadores da Mensagem que A Monarquia de 20 de Outubro publicou. Além dessa Mensagem traziam os delegados uma missão mais importante do que a de simplesmente depor em minhas mãos o documento assinado pelos membros da Junta Central. Constava ela de um certo numero de perguntas, pedidos e declarações, pois como estava dito na mensagem os delegados deviam suprir o que fosse demasiadamente longo para aquela exposição.
Podia neste momento, antes de escrever quais foram essas perguntas, pedidos e declarações e sobre tudo quais foram as minhas respostas, referir-me a actos de desobediência flagrante às minhas instruções já conhecidas de todos (nota 2 - Quais teriam sido esses actos de desobediência? Fica esta acusação suspensa sobre as cabeças dos chefes e dirigentes do partido do sr. D. Manuel). Mas impede-me de o fazer o meu coração ao pensar nos amigos que tanto têm sofrido pela Causa que represento ou que derramaram o seu sangue oferecendo a vida pela minha bandeira.
O meu pensamento os acompanha sempre, enquanto que, com profunda saudade cheia de mágoa, rogo reverente a Deus pelo eterno descanso daqueles que morreram pelo seu Rei (nota 3 - Deve notar-se que, depois dos acontecimentos políticos de Janeiro e Fevereiro, era esta a primeira vez que o sr. D. Manuel se dirigia em público aos seus partidários, não o tendo feito, mesmo particularmente, para uma simples saudação aos presos e aos feridos dos hospitais. E para que justiça se faça a todos, é de notar que, como consta do relatório adiante publicado, foram os delegados integralistas quem lembrou ao sr. D. Manuel o dever de não esquecer os que pela sua causa tinham sido sacrificados). Desde o início da guerra mundial, traçei ao partido monárquico o caminho a seguir: Era simples: tinha uma única base: a Aliança com a Inglaterra, uma das maiores glórias da monarquia, um dos maiores triunfos daquele grande Rei que foi meu sempre chorado Pai. Essa política, a única que Portugal podia seguir então, é hoje mais necessária do que nunca. Gratíssimo estou àqueles, e sobre tudo ao meu Lugar-Tenente, que souberam compreender nesse momento as minhas instruções e ver os perigos que ameaçavam Portugal, perigos que não desapareceram.
Depois dos factos lamentáveis que tão profundamente vieram perturbar a nossa Pátria, ambicionava Eu a união completa do partido monárquico, para, neste momento em que o vento da loucura sopra sobre o mundo, ser ele o maior sustento da ordem no nosso País. Durante os longos anos que tenho vivido no exílio, nem durante um momento deixei de trabalhar por Portugal, com o amor profundo que tenho pela minha Pátria e que nada faz alterar. Infelizmente, vejo-me hoje perante um facto sem precedente.
A Junta Central do Integralismo Lusitano desliga-se de toda a obediência ao seu Rei e afasta-se inteiramente das minhas direcções políticas, em vista das respostas que Eu dei aos seus delegados.
Já que tiveram a coragem de tomar resoluções dessa gravidade e publicá-las, sem de forma alguma me prevenirem ou informarem dessa decisão (nota 4 - Há aqui um lapso de memória: o sr. D. Manuel esqueceu que os delegados integralistas, como se vê do seu relatório, in fine, expressamente lhe declararam a proposta que iam apresentar à Junta Central, tendo também sido notificada a resolução da mesma Junta ao sr. Conselheiro Aires de Ornelas seu lugar-tenente, antes de ser tornada pública) é, por todos os motivos lamentável que não tivessem igualmente a coragem de publicar as respostas que dei aos delegados da Junta Central do Integralismo Lusitano. Passarei pois a expor quais foram tanto os pedidos como as minhas respostas.
O primeiro pedido era: que Eu lançasse um proclamação ao País, na qual eu afirmasse que queria intervir efectivamente na política monárquica: - Respondi: que não considerava o momento oportuno, pois atravessamos uma crise terrível e que devíamos empregar todos os esforços para obter a amnistia para os presos monárquicos que estavam sofrendo nas cadeias e para aqueles que, longe da Pátria, eram obrigados a viver no exílio; acrescentando que uma proclamação minha ao País, neste momento, não teria senão como resultado incendiar mais os ódios já tão profundos, tornar a desunião da Família Portuguesa ainda mais completa e dificultar a amnistia dos milhares de presos e exilados, tão necessária para a paz interna de Portugal.
O segundo pedido foi: que Eu nomeasse um chefe militar e que Eu me pusesse á frente de uma nova revolução monárquica, devendo começar desde já a sua preparação (nota 5 - Esta gravíssima inconfidência entre pessoas que professam o culto da lealdade, chama-se - DELAÇÃO).
Respondi negativamente: em parte pelas mesmas razões que já tinha usado para responder ao primeiro pedido, em parte pelas que passo a expor.
1º Porque o Tratado da Paz ainda não está ratificado por todos os países; 2.º Porque o estado de luta interna constante não faz senão aumentar os perigos que pesam sobre a nossa desditosa Pátria; 3.° porque considerava inoportuno o momento, quando estávamos sofrendo as consequências de um fracasso.
O terceiro pedido referia-se á existência em Portugal de um meu representante. Respondi simplesmente que o Conselheiro Aires d'Ornelas era o meu representante e que possuia toda a minha confiança.
O quarto pedido era referente à necessidade de Eu designar o Meu Herdeiro, já que até hoje Deus me não concedeu um Filho. Respondi: que essa questão era excessivamente grave e delicada: que me dizia a mim mais intimamente respeito do que a ninguém, mas que prometia estuda-la convenientemente e com a máxima atenção.
O quinto pedido foi que Eu repudiasse o Sistema Constitucional e adoptasse desde já o programa da Junta Central do Integralismo Lusitano, (6 - A esta afirmação falsa respondem cabalmente as palavras do relatório, que adiante é publicado) Respondi negativamente: 1.º declarando que era fiel ao Juramento solene que como Rei prestei a 6 de Maio de 1908 perante o Parlamento reunido (7 - Na tarde de 5 de Outubro de 1910, na praia da Ericeira, o sr. D. Manuel abandonando o seu posto em que devia vencer ou morrer, tornava-se perjuro à letra e ao espírito da Carta Constitucional que no seu art. 77º diz assim : "O Rei não poderá sair do reino de Portugal sem o consentimento das Cortes Gerais; e se o fizer, se entenderá que abdicou a coroa". A coacção fisica invencível não se verificou sobre a pessoa do filho de El-Rei Dom Carlos; a coacção moral (intimidações, ameaças, medo, etc), não podem ter sentido, tratando-se de um rapaz de 21 anos, de perfeita saúde c fardado de generalíssimo. O caso de força maior de uma revolução republicana não o exceptuou o artigo 77º, decerto porque o legislador entendeu, e muito bem, que nessa hipótese e em todas aquelas em que o Trono perigasse, mais ainda do que a fé de um juramento deveria pesar no espirito de um rei o sentimento da dignidade do seu dever, por outras palavras, a força maior, de uma revolução republicana, era um motivo maior, para o rei ficar em terra portuguesa, tanto mais que a revolução se limitava à cidade de Lisboa, como comprovam milhares de testemunhas e o afirma a triste historia dos últimos onze anos. / De sorte que ... o judicioso leitor já deve ter tirado a conclusão ... ) 2.° que não podia, sem ser ouvido o País, alterar a base fundamental da Monarquia Portuguesa. Eis aqui os pedidos que me foram feitos e as respostas que por mim foram dadas. Fiquei desde o primeiro momento convencido que se tratava de um "ultimatum" da Junta Central do Integralismo Lusitano, pois declararam-me os seus delegados que não serviriam a Monarquia Constitucional; mas esperava ainda, se outra razão não houvesse, que o bom senso, o amor da Pátria e a necessidade imperativa de união, impedissem a Junta Central do Integralismo Lusitano de abrir uma cisão no partido monárquico. Sobre tudo o que nunca pensei é que o fizessem de uma forma tão pouco correcta, digna e mesmo leal. Era um simples dever de honra publicar as respostas que dei, já que publicaram a mensagem que me foi entregue. (8 - Estes insultos à correcção, à dignidade, à lealdade e à honra daqueles que, sob a sua bandeira, já por mais de uma vez tinham exposto a vida e derramado o sangue, traduzem um recurso só próprio de quem não tem outras razões de os combater e contrastam singularmente com a extrema correcção e moderação com que a Junta Central se desligou de uma obediência, cuja continuação viria a ser funesta para os destinos da Monarquia Portuguesa.)
Queria a Junta Central do Integralismo Lusitano tomar a direcção dos negócios da causa monárquica, pois a base fundamental de toda a questão era Eu repudiar o meu Juramento e sem ouvir o País aceitar incondicionalmente o seu programa. (9 - A Junta Central do Integralismo Lusitano não queria tomar a direcção da Causa Monárquica; reclamava que o senhor D. Manuel, finalmente, se dignasse assumi-la, como era seu dever de Rei.) Não vivemos em épocas para desta maneira se decretarem monarquias absolutas! (10 - O sr. D. Manuel, vítima por certo de uma errada educação liberalista, revela assim, pelo seu próprio punho, o mais completo desconhecimento do espírito da verdadeira monarquia, atrevendo-se a chamar absoluta à monarquia que fez Portugal - a Monarquia Representativa dos Municípios e das Corporações.)
Não é de forma alguma minha tenção lançar aqui uma proclamação ao Meu País, pois recusei-me ha pouco a fazê-lo; mas desde que aqueles que me pediam que a fizesse me abandonam, é meu dever imprescindível escrever duas declarações categóricas: 1° Mantenho formalmente todos os meus indiscutíveis direitos ao trono de meus maiores; 2.° Afirmo, vindo a ser restaurada a Monarquia, reunir imediatamente Cortes Gerais, eleitas pelo sufrágio o mais amplo, para determinarem a forma do governo.
As declarações da Junta Central do Integralismo Lusitano obrigaram-me a responder com outras declarações.
O País poderá julgar as minhas respostas, que a mesma Junta não quis publicar. É sempre triste presenciar uma deserção e um abandono, mas mais penoso isso se torna quando se lhe vêem claramente os motivos. (11 - Abandonados se sentiram sempre, desde o dia 4 de Outubro, todos aqueles que tem pegado em armas para restaurar o trono do sr. D. Manuel, e permanecer longe do combate, no exílio cómodo de Londres, enquanto os soldados se batem, não é senão uma deserção.) Permita Deus que um dia saibam avaliar e compreender o erro que cometeram, a deslealdade que praticaram e que não seja então tarde de mais.
O que acaba de se passar mostra de forma aterradora a crise que Portugal atravessa. Todos querem mandar, mas poucos sabem obedecer! Crise tremenda para um País pequeno, enfraquecido por todas as formas e lutas e sobre o qual existem tantas ambições.
No momento em que a união de todos os portugueses é essencial, é a Junta Central do Integralismo Lusitano que dá o exemplo da desunião e da indisciplina. Triste e desolador espectáculo! Quiseram mandar no seu Rei, e como ele, tendo somente na sua mente o bem da Pátria e o seu dever, não obedeceu à imposição e se recusou a aceitar o «ultimatum», a perjurar o que solenemente jurou, repudiam-no!
Resta-me pois declarar com profundo desgosto, mas com firmeza, que de hoje em diante, considero a Junta Central do Integralismo Lusitano como minha adversária, deixando em vista das suas resoluções de fazer parte do partido monárquico.
Juntamente a estas declarações fundamentais, quero, não lançar um Manifesto, mas fazer um apelo ao meu País, a todos os portugueses sem distinção de cores políticas. É gravíssimo o momento que atravessa o mundo e especialmente aquele no qual, à beira do abismo, se debate a nossa Pátria. (12 - Reconhecendo o sr. D. Manuel que à beira do abismo se debate a nossa Pátria, nada fez nem faz para evitar a sua queda e, o que é pior, proibiu sempre aos seus partidários qualquer intervenção nesse sentido. Ele continuará no exílio, conforme as suas palavras: No meu exílio continuarei...)
Sendo Eu o representante de mais de oito séculos de Monarquia que criou Portugal, O fez grande e Lhe mostrou o caminho da Honra e da Glória, tenho o direito de apelar para todos os Portugueses, para que se unam perante o perigo que existe e para que saibam por todos os meios defender o solo sagrado da nossa Terra, a sua independência e autonomia. O perigo não diminuiu: precisamos, como Portugueses, de estar unidos e formar um bloco firme e compacto que deve ter como lema uma só palavra, um só ideal: Pátria.
No meu exílio continuarei, como sempre, a cumprir o meu dever trabalhando pela integridade da Pátria com o amor que Lhe dedico e a saudade que d' Ela tenho. Prouvera a Deus que a minha voz fosse ouvida em todas as Terras Portuguesas, bradando: "Portugueses, unam-se pela Pátria: sejamos fortes e mostremos ao mundo e àqueles que nos seguem atentamente com cubiça, que Portugal há-de renascer ainda, numa era de grandeza e prosperidade. Pensemos no País, sem outras ideias do que a que devemos sempre ter presente:
«Nascemos Portugueses, queremos reviver as glorias passadas, queremos levantar bem alto o nome de Portugal, queremos viver e morrer Portugueses!
É este o meu apelo ao meu País. É esta a minha resposta à Junta Central do Integralismo Lusitano. Ao seu procedimento tão pouco digno, à sua forma desleal de se desligar do seu Rei, às suas acusações sobre respostas que não publicam, respondo apenas com um grito vibrante de amor da Pátria.
Aos meus partidários e em primeiro lugar ao meu Representante me dirijo, traçando neste momento angustioso, o caminho a seguir.
Ouso esperar que o Governo Português saberá igualmente compreender a gravidade da situação, reconhecer que todos os Portugueses são indispensáveis para esta obra e que a amnistia é uma necessidade nacional para o bem do País (13 - Nesta passagem infelicíssima, o sr. D. Manuel na hora em que tantos soldados da sua causa sofriam os horrores dos cárceres e dos hospitais, ousava ainda confiar nos sentimentos generosos da república!)
Confio na lealdade e dedicação dos meus partidários e no Patriotismo de todos os Portugueses para me auxiltarem nesta cruzada!
Creia-me sempre, meu querido Aires d'Ornelas, seu muito amigo.
Manuel R."
A Junta Central do IL respondeu, publicando na íntegra o relatório dos seus delegados - Relatório da Missão a Londres, como D. Manuel reclamava: "Relatório da Missão a Londres": "O Integralismo Lusitano e o Senhor Dom Manuel II - Relatório da Missão a Londres", A Monarquia, de 4, 5 e 6 de Dezembro de 1919 (também em A Questão Dinástica - Documentos para a História..., Lisboa, 1921, pp. 12-38).
"Para a Historia —Um documento politico - Uma carta dirigida pelo ex-rei sr. D. Manuel de Bragança ao sr. Aires de Ornelas - O soberano deposto declara-se contrário ao nosso "estado de luta interna constante" e faz nesse sentido "um apelo a todos os portugueses, sem distinção de cores políticas" - "Um só ideal: a Pátria!"
O Diário de Noticias publica hoje um documento politico importante. Fazemo-lo com caracter de informação que este jornal tem e sem de forma alguma pretendermos ligar qualquer espécie de responsabilidade às afirmações nele contidas. Trata-se dum documento histórico em que o ex-rei sr. D. Manuel de Bragança manifesta, entre outros pontos de vista de caracter pessoal sobre uma recente cisão aberta no partido monárquico, a opinião de que "precisamos, como portugueses, de estar unidos e formar um bloco firme e compacto que deve ter como lema, uma só palavra, um só ideal: Pátria!"
O antigo soberano, hoje exilado e destronado, escrevendo ao mais graduado dos seus correligionários, considera o momento actual um "momento em que a união de todos os portugueses é essencial" e, dirigindo-se ao governo português, reconhece que "todos os portugueses são necessários" para a obra nacional, que se impõe
O sr. D. Manuel de Bragança afirma-se contrário a movimentos revolucionários e quanto às outras declarações, que envolvem a vida interna de um partido, à qual, como à de todos os outros, este jornal é estranho, só as publicamos pelo caracter público e de curiosidade histórica que contém.
Eis a carta dirigida ao sr. Aires de Orneias e cuja cópia obtivemos.
Twickenham —1 de Novembro —1919.
Meu querido Ayres d'Ornellas.
Não julgava Eu há dois meses, quando lhe escrevi, que seria obrigado a dirigir-lhe novamente uma carta, que necessita a máxima publicidade, em vista dos factos tão graves que tiveram lugar em Portugal.
Chegou-me ontem às mãos o número do jornal A Monarquia, de 20 de Outubro. Com assombro li as declarações e resoluções da Junta Central do Integralismo Lusitano. Em Agosto último escrevia-lhe Eu que esperava poder manter o silêncio, que desde Janeiro último me tinha imposto para evitar mais tristezas e desuniões (nota 1 - Não esclareceu aqui o monarca deposto as tristezas e desuniões existentes no seu partido. Pela leitura do relatório adiante publicado, conclui-se que se trata da velha oposição entre as direcções políticas do sr. Conselheiro Aires de Ornelas e as ambições militares do sr. Paiva Couceiro). Infelizmente não me é possível manter hoje esse silêncio e chegou o momento, com profunda mágoa o digo, de falar claramente pondo perante o país a verdade. Custa-me sobremaneira ter de relatar factos e acontecimentos, que certamente teria calado, se o abandono de um agrupamento político, que militava debaixo da minha bandeira e pelo qual Eu tinha sincera simpatia, pois é composto de gente nova como Eu, me não forçasse a dirigir-me publicamente e oficialmente ao meu Lugar-Tenente. É indispensável que se faça luz para que o País possa julgar.
Nos fins de Setembro p. p. vieram a Inglaterra dois delegados da Junta Central do Integralismo Lusitano. Eram eles portadores da Mensagem que A Monarquia de 20 de Outubro publicou. Além dessa Mensagem traziam os delegados uma missão mais importante do que a de simplesmente depor em minhas mãos o documento assinado pelos membros da Junta Central. Constava ela de um certo numero de perguntas, pedidos e declarações, pois como estava dito na mensagem os delegados deviam suprir o que fosse demasiadamente longo para aquela exposição.
Podia neste momento, antes de escrever quais foram essas perguntas, pedidos e declarações e sobre tudo quais foram as minhas respostas, referir-me a actos de desobediência flagrante às minhas instruções já conhecidas de todos (nota 2 - Quais teriam sido esses actos de desobediência? Fica esta acusação suspensa sobre as cabeças dos chefes e dirigentes do partido do sr. D. Manuel). Mas impede-me de o fazer o meu coração ao pensar nos amigos que tanto têm sofrido pela Causa que represento ou que derramaram o seu sangue oferecendo a vida pela minha bandeira.
O meu pensamento os acompanha sempre, enquanto que, com profunda saudade cheia de mágoa, rogo reverente a Deus pelo eterno descanso daqueles que morreram pelo seu Rei (nota 3 - Deve notar-se que, depois dos acontecimentos políticos de Janeiro e Fevereiro, era esta a primeira vez que o sr. D. Manuel se dirigia em público aos seus partidários, não o tendo feito, mesmo particularmente, para uma simples saudação aos presos e aos feridos dos hospitais. E para que justiça se faça a todos, é de notar que, como consta do relatório adiante publicado, foram os delegados integralistas quem lembrou ao sr. D. Manuel o dever de não esquecer os que pela sua causa tinham sido sacrificados). Desde o início da guerra mundial, traçei ao partido monárquico o caminho a seguir: Era simples: tinha uma única base: a Aliança com a Inglaterra, uma das maiores glórias da monarquia, um dos maiores triunfos daquele grande Rei que foi meu sempre chorado Pai. Essa política, a única que Portugal podia seguir então, é hoje mais necessária do que nunca. Gratíssimo estou àqueles, e sobre tudo ao meu Lugar-Tenente, que souberam compreender nesse momento as minhas instruções e ver os perigos que ameaçavam Portugal, perigos que não desapareceram.
Depois dos factos lamentáveis que tão profundamente vieram perturbar a nossa Pátria, ambicionava Eu a união completa do partido monárquico, para, neste momento em que o vento da loucura sopra sobre o mundo, ser ele o maior sustento da ordem no nosso País. Durante os longos anos que tenho vivido no exílio, nem durante um momento deixei de trabalhar por Portugal, com o amor profundo que tenho pela minha Pátria e que nada faz alterar. Infelizmente, vejo-me hoje perante um facto sem precedente.
A Junta Central do Integralismo Lusitano desliga-se de toda a obediência ao seu Rei e afasta-se inteiramente das minhas direcções políticas, em vista das respostas que Eu dei aos seus delegados.
Já que tiveram a coragem de tomar resoluções dessa gravidade e publicá-las, sem de forma alguma me prevenirem ou informarem dessa decisão (nota 4 - Há aqui um lapso de memória: o sr. D. Manuel esqueceu que os delegados integralistas, como se vê do seu relatório, in fine, expressamente lhe declararam a proposta que iam apresentar à Junta Central, tendo também sido notificada a resolução da mesma Junta ao sr. Conselheiro Aires de Ornelas seu lugar-tenente, antes de ser tornada pública) é, por todos os motivos lamentável que não tivessem igualmente a coragem de publicar as respostas que dei aos delegados da Junta Central do Integralismo Lusitano. Passarei pois a expor quais foram tanto os pedidos como as minhas respostas.
O primeiro pedido era: que Eu lançasse um proclamação ao País, na qual eu afirmasse que queria intervir efectivamente na política monárquica: - Respondi: que não considerava o momento oportuno, pois atravessamos uma crise terrível e que devíamos empregar todos os esforços para obter a amnistia para os presos monárquicos que estavam sofrendo nas cadeias e para aqueles que, longe da Pátria, eram obrigados a viver no exílio; acrescentando que uma proclamação minha ao País, neste momento, não teria senão como resultado incendiar mais os ódios já tão profundos, tornar a desunião da Família Portuguesa ainda mais completa e dificultar a amnistia dos milhares de presos e exilados, tão necessária para a paz interna de Portugal.
O segundo pedido foi: que Eu nomeasse um chefe militar e que Eu me pusesse á frente de uma nova revolução monárquica, devendo começar desde já a sua preparação (nota 5 - Esta gravíssima inconfidência entre pessoas que professam o culto da lealdade, chama-se - DELAÇÃO).
Respondi negativamente: em parte pelas mesmas razões que já tinha usado para responder ao primeiro pedido, em parte pelas que passo a expor.
1º Porque o Tratado da Paz ainda não está ratificado por todos os países; 2.º Porque o estado de luta interna constante não faz senão aumentar os perigos que pesam sobre a nossa desditosa Pátria; 3.° porque considerava inoportuno o momento, quando estávamos sofrendo as consequências de um fracasso.
O terceiro pedido referia-se á existência em Portugal de um meu representante. Respondi simplesmente que o Conselheiro Aires d'Ornelas era o meu representante e que possuia toda a minha confiança.
O quarto pedido era referente à necessidade de Eu designar o Meu Herdeiro, já que até hoje Deus me não concedeu um Filho. Respondi: que essa questão era excessivamente grave e delicada: que me dizia a mim mais intimamente respeito do que a ninguém, mas que prometia estuda-la convenientemente e com a máxima atenção.
O quinto pedido foi que Eu repudiasse o Sistema Constitucional e adoptasse desde já o programa da Junta Central do Integralismo Lusitano, (6 - A esta afirmação falsa respondem cabalmente as palavras do relatório, que adiante é publicado) Respondi negativamente: 1.º declarando que era fiel ao Juramento solene que como Rei prestei a 6 de Maio de 1908 perante o Parlamento reunido (7 - Na tarde de 5 de Outubro de 1910, na praia da Ericeira, o sr. D. Manuel abandonando o seu posto em que devia vencer ou morrer, tornava-se perjuro à letra e ao espírito da Carta Constitucional que no seu art. 77º diz assim : "O Rei não poderá sair do reino de Portugal sem o consentimento das Cortes Gerais; e se o fizer, se entenderá que abdicou a coroa". A coacção fisica invencível não se verificou sobre a pessoa do filho de El-Rei Dom Carlos; a coacção moral (intimidações, ameaças, medo, etc), não podem ter sentido, tratando-se de um rapaz de 21 anos, de perfeita saúde c fardado de generalíssimo. O caso de força maior de uma revolução republicana não o exceptuou o artigo 77º, decerto porque o legislador entendeu, e muito bem, que nessa hipótese e em todas aquelas em que o Trono perigasse, mais ainda do que a fé de um juramento deveria pesar no espirito de um rei o sentimento da dignidade do seu dever, por outras palavras, a força maior, de uma revolução republicana, era um motivo maior, para o rei ficar em terra portuguesa, tanto mais que a revolução se limitava à cidade de Lisboa, como comprovam milhares de testemunhas e o afirma a triste historia dos últimos onze anos. / De sorte que ... o judicioso leitor já deve ter tirado a conclusão ... ) 2.° que não podia, sem ser ouvido o País, alterar a base fundamental da Monarquia Portuguesa. Eis aqui os pedidos que me foram feitos e as respostas que por mim foram dadas. Fiquei desde o primeiro momento convencido que se tratava de um "ultimatum" da Junta Central do Integralismo Lusitano, pois declararam-me os seus delegados que não serviriam a Monarquia Constitucional; mas esperava ainda, se outra razão não houvesse, que o bom senso, o amor da Pátria e a necessidade imperativa de união, impedissem a Junta Central do Integralismo Lusitano de abrir uma cisão no partido monárquico. Sobre tudo o que nunca pensei é que o fizessem de uma forma tão pouco correcta, digna e mesmo leal. Era um simples dever de honra publicar as respostas que dei, já que publicaram a mensagem que me foi entregue. (8 - Estes insultos à correcção, à dignidade, à lealdade e à honra daqueles que, sob a sua bandeira, já por mais de uma vez tinham exposto a vida e derramado o sangue, traduzem um recurso só próprio de quem não tem outras razões de os combater e contrastam singularmente com a extrema correcção e moderação com que a Junta Central se desligou de uma obediência, cuja continuação viria a ser funesta para os destinos da Monarquia Portuguesa.)
Queria a Junta Central do Integralismo Lusitano tomar a direcção dos negócios da causa monárquica, pois a base fundamental de toda a questão era Eu repudiar o meu Juramento e sem ouvir o País aceitar incondicionalmente o seu programa. (9 - A Junta Central do Integralismo Lusitano não queria tomar a direcção da Causa Monárquica; reclamava que o senhor D. Manuel, finalmente, se dignasse assumi-la, como era seu dever de Rei.) Não vivemos em épocas para desta maneira se decretarem monarquias absolutas! (10 - O sr. D. Manuel, vítima por certo de uma errada educação liberalista, revela assim, pelo seu próprio punho, o mais completo desconhecimento do espírito da verdadeira monarquia, atrevendo-se a chamar absoluta à monarquia que fez Portugal - a Monarquia Representativa dos Municípios e das Corporações.)
Não é de forma alguma minha tenção lançar aqui uma proclamação ao Meu País, pois recusei-me ha pouco a fazê-lo; mas desde que aqueles que me pediam que a fizesse me abandonam, é meu dever imprescindível escrever duas declarações categóricas: 1° Mantenho formalmente todos os meus indiscutíveis direitos ao trono de meus maiores; 2.° Afirmo, vindo a ser restaurada a Monarquia, reunir imediatamente Cortes Gerais, eleitas pelo sufrágio o mais amplo, para determinarem a forma do governo.
As declarações da Junta Central do Integralismo Lusitano obrigaram-me a responder com outras declarações.
O País poderá julgar as minhas respostas, que a mesma Junta não quis publicar. É sempre triste presenciar uma deserção e um abandono, mas mais penoso isso se torna quando se lhe vêem claramente os motivos. (11 - Abandonados se sentiram sempre, desde o dia 4 de Outubro, todos aqueles que tem pegado em armas para restaurar o trono do sr. D. Manuel, e permanecer longe do combate, no exílio cómodo de Londres, enquanto os soldados se batem, não é senão uma deserção.) Permita Deus que um dia saibam avaliar e compreender o erro que cometeram, a deslealdade que praticaram e que não seja então tarde de mais.
O que acaba de se passar mostra de forma aterradora a crise que Portugal atravessa. Todos querem mandar, mas poucos sabem obedecer! Crise tremenda para um País pequeno, enfraquecido por todas as formas e lutas e sobre o qual existem tantas ambições.
No momento em que a união de todos os portugueses é essencial, é a Junta Central do Integralismo Lusitano que dá o exemplo da desunião e da indisciplina. Triste e desolador espectáculo! Quiseram mandar no seu Rei, e como ele, tendo somente na sua mente o bem da Pátria e o seu dever, não obedeceu à imposição e se recusou a aceitar o «ultimatum», a perjurar o que solenemente jurou, repudiam-no!
Resta-me pois declarar com profundo desgosto, mas com firmeza, que de hoje em diante, considero a Junta Central do Integralismo Lusitano como minha adversária, deixando em vista das suas resoluções de fazer parte do partido monárquico.
Juntamente a estas declarações fundamentais, quero, não lançar um Manifesto, mas fazer um apelo ao meu País, a todos os portugueses sem distinção de cores políticas. É gravíssimo o momento que atravessa o mundo e especialmente aquele no qual, à beira do abismo, se debate a nossa Pátria. (12 - Reconhecendo o sr. D. Manuel que à beira do abismo se debate a nossa Pátria, nada fez nem faz para evitar a sua queda e, o que é pior, proibiu sempre aos seus partidários qualquer intervenção nesse sentido. Ele continuará no exílio, conforme as suas palavras: No meu exílio continuarei...)
Sendo Eu o representante de mais de oito séculos de Monarquia que criou Portugal, O fez grande e Lhe mostrou o caminho da Honra e da Glória, tenho o direito de apelar para todos os Portugueses, para que se unam perante o perigo que existe e para que saibam por todos os meios defender o solo sagrado da nossa Terra, a sua independência e autonomia. O perigo não diminuiu: precisamos, como Portugueses, de estar unidos e formar um bloco firme e compacto que deve ter como lema uma só palavra, um só ideal: Pátria.
No meu exílio continuarei, como sempre, a cumprir o meu dever trabalhando pela integridade da Pátria com o amor que Lhe dedico e a saudade que d' Ela tenho. Prouvera a Deus que a minha voz fosse ouvida em todas as Terras Portuguesas, bradando: "Portugueses, unam-se pela Pátria: sejamos fortes e mostremos ao mundo e àqueles que nos seguem atentamente com cubiça, que Portugal há-de renascer ainda, numa era de grandeza e prosperidade. Pensemos no País, sem outras ideias do que a que devemos sempre ter presente:
«Nascemos Portugueses, queremos reviver as glorias passadas, queremos levantar bem alto o nome de Portugal, queremos viver e morrer Portugueses!
É este o meu apelo ao meu País. É esta a minha resposta à Junta Central do Integralismo Lusitano. Ao seu procedimento tão pouco digno, à sua forma desleal de se desligar do seu Rei, às suas acusações sobre respostas que não publicam, respondo apenas com um grito vibrante de amor da Pátria.
Aos meus partidários e em primeiro lugar ao meu Representante me dirijo, traçando neste momento angustioso, o caminho a seguir.
Ouso esperar que o Governo Português saberá igualmente compreender a gravidade da situação, reconhecer que todos os Portugueses são indispensáveis para esta obra e que a amnistia é uma necessidade nacional para o bem do País (13 - Nesta passagem infelicíssima, o sr. D. Manuel na hora em que tantos soldados da sua causa sofriam os horrores dos cárceres e dos hospitais, ousava ainda confiar nos sentimentos generosos da república!)
Confio na lealdade e dedicação dos meus partidários e no Patriotismo de todos os Portugueses para me auxiltarem nesta cruzada!
Creia-me sempre, meu querido Aires d'Ornelas, seu muito amigo.
Manuel R."
A Junta Central do IL respondeu, publicando na íntegra o relatório dos seus delegados - Relatório da Missão a Londres, como D. Manuel reclamava: "Relatório da Missão a Londres": "O Integralismo Lusitano e o Senhor Dom Manuel II - Relatório da Missão a Londres", A Monarquia, de 4, 5 e 6 de Dezembro de 1919 (também em A Questão Dinástica - Documentos para a História..., Lisboa, 1921, pp. 12-38).