A Ordem-Nova
António Sardinha
É bem singelo o nosso programa, que todo se condensa em regressar primeiro, para progredir depois.
Recolhem-se por fim os frutos da sementeira louca do 89! E na destruição dos organismos tradicionais, ou seja daqueles corpos que entre os indivíduos e o Estado tornavam outrora fácil e resistente a vida social, não era impossível prever que, vítimas das oligarquias financeiras e parlamentaristas, os povos, arrastados pelo desenvolvimento dominador do industrialismo e do capitalismo, aos abusos execráveis da plutocracia, acordariam em peso para mais uma utopia – a utopia da ditadura do proletariado
...
... ao confessarmo-nos antiparlamentaristas no político e descentralizadores no administrativo, nos declaramos conjuntamente sindicalistas no social e no económico.
...
Oferece-nos o sindicalismo a estrada larga das suas realizações. E quando escrevo « sindicalismo», quase que prefiro escrever «gremialismo». Batizado pela Igreja, o gremialismo há de colocar em equação o problema momentoso da produção da riqueza e da sua respetiva distribuição, confinado em funções centrais de direção, ao Estado pertencerá unificar, com vista à mesma finalidade, as várias autonomias económicas e extrair delas a colaboração necessária ao bem geral do agregado. No regime conjunto, ou paralelo, da propriedade privada e hereditária e da corporação sabia e fortemente constituída, achará por certo o dia de amanhã o equilíbrio tão dolorosamente ambicionado por todos nós.
Adivinha-se desde já, como numa comunidade descentralizada e hierarquizada ao mesmo tempo o Estado intervém, garantindo com a sua norma reguladora, a justa expansão das diversas atividades produtoras, quer sejam coletivas, quer sejam simplesmente individuais.
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Tal é a Ordem que se desprende da desordem, — tal é a Ordem que arrancará a Europa da carreira do abismo, ou que fará florir outra vez, a civilização no nosso continente, se a desgraça tombar por sobre nós! Essa Ordem é a ordem de sempre, porque a Ordem é só uma e define-se singelamente por tudo quanto seja o inverso da Desordem. Através das suas múltiplas formas, como um monstro de muitas cabeças, a desordem já não nos ilude mais, porque na experiência russa achou o limite máximo que poderia atingir. «Um princípio triunfa, - raciocinava Berryer -, quando ele se aplica e produz o bem. Ele triunfa da mesma maneira, quando se aplica o princípio contrário, e só produz o mal».
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....restauremos os direitos de Deus na sociedade, para que o Trabalho se dignifique como uma virtude e retome nos Lares e nas Oficinas a sua antiga realeza moral. Pela extrema desagregação a que o Estado chegou entre nós, talvez que a Portugal esteja reservado o destino glorioso de inaugurar a Ordem-Nova na Europa. Se for assim, - e eu creio que há de ser ! -, teremos recuperado a nossa vocação apostólica de povo conquistador e descobridor, levantando contra o tufão maximalista do Oriente o maximalismo cristianíssimo do mundo ocidental.
- António Sardinha
António Sardinha
A Ordem-Nova
(1922)
A Ordem-Nova
(1922)
Comentando as impressões da sua viagem à Rússia bolchevista, observa algures o catedrático e socialista espanhol Fernando de los Rios - "El Estado ruso se ha visto arrastrado a una consecuencia que era fatal, dados los principios de su organización centralista y la actitud que se había adoptado respecto de la economía; él ha constreñido a convertir el trabajo obligatorio en trabajo forzado, porque la fuerza del trabajo en si mismo ha advenido propriedad del Estado..." [Fernando de los Rios, Mi viaje a la Rússia sovietista, Madrid, 1921]. Efetivamente, no Memorandum apresentado ao IX Congresso do Partido Comunista (1920, 29 de Março a 1 de Abril), Trotsky [Liev Davidovich Bronstein, 1879-1940] declara sem rodeios: - "A liberdade do trabalho é própria da sociedade burguesa. Para execução das ordens correspondentes ao trabalho forçado, obrigatório para todos, sem distinção de sexo, deve ser empregue a força armada. Os operários deverão ser incorporados nas empresas, introduzindo-se nelas um regime severo, com aplicação de penas disciplinares. Unicamente as pessoas cheias de preconceitos burgueses se poderão insurgir contra um tal sistema."
Respondia Trotsky com estas palavras francas ao voto expresso de Bujarin, Osinsky e outros elementos da esquerda comunista, - porque há também uma "direita" comunista! -, os quais não hesitavam em reclamar para o trabalho a sua inteira militarização debaixo duma completa disciplina de ferro. De resto, já antes no jornal Pravda, Trostsky afirmara num artigo seu: - "A adaptação do trabalho às necessidades comuns e a intensificação da produção estão determinadas em grande parte pelo interesse pessoal dos trabalhadores; e o que importa em semelhante caso não é o regime jurídico sob que se haja de gozar dos frutos do nosso esforço, mas a parte efetiva que nos haja de corresponder."
Em face de tão significativos depoimentos, nós vemos a que escravatura inesperada conduzem as aplicações do dogma marxista de "luta de classes". Insuspeito na evidente formação revolucionária do seu espírito, o prof. Fernando de los Rios considera o drama que se passa na Rússia como o "eclipse dos direitos do homem". E não vacila em asseverar, perante essa espantosa paranoia coletiva, que, segundo os preceitos e as realizações da ditadura bolchevista, "não há direito para a consciência, porque não há um elemento humano geral, visto os homens na Rússia serem hoje absolutamente insolidários", acrescendo que o direito ali existente é apenas um precário direito objetivo e só ao titular do Poder pertence defini-lo.
Dificilmente o despotismo encontraria características mais acentuadas. A tanto leva nas suas extremas consequências a lógica do princípio democrático! O individualismo sentimental de Jean-Jacques Rousseau torna-se assim, passado um século, no «insolidarismo total» do prof. Fernando de los Rios. Todos os germes antissociais da era liberalista afloram agora na terra enevoada dos Czares, revestindo-se, para efeitos mais sinistros, de uma espécie de religiosismo frenético, a que não é estranha a hereditariedade mongólica de Lenine. Mas, pondo de lado as condições de meio e de raça, o pensador e o sociólogo necessariamente verificarão no excessivo estatismo da experiência russa o fundo centralista e absorvente do Estado moderno, saído da Revolução Francesa e que, tão bem autopsiado por Taine, recebeu de Napoleão a expressão jurídica definitiva. A diferença consiste apenas em que essa noção de Estado computava até agora o indivíduo unicamente como "homem político" - como "cidadão", ao passo que a ditadura de Lenine o classifica apenas como "homem económico", como simples "produtor".
Mas a compreensão exata de quanto se desenrola na Rússia não nos é possível, se não considerarmos o parentesco legítimo que liga o tipo de Estado, aproveitado por Lenine, ao tipo de Estado que Napoleão nos legou. A crise em que a Europa se debate é, sobretudo, onde se filia. Nascidas de uma concepção meramente doutrinária da sociedade, com o crescente altear dos problemas contemporâneos, tão complexos e tão agudos nas suas múltiplas manifestações, as instituições políticas do nosso continente, não possuindo raízes na história, dificilmente acompanhariam as exigências cada vez mais clamorosas da realidade. Recolhem-se por fim os frutos da sementeira louca do 89! E na destruição das organismos tradicionais, ou seja daqueles "corpos» que entre os indivíduos e o Estado tornavam outrora fácil e resistente a vida social, não era impossível de prever que, vítimas das oligarquias financeiras e parlamentaristas, os povos, arrastados pelo desenvolvimento dominador do industrialismo e do capitalismo, aos abusos execráveis da plutocracia, acordariam em peso para mais uma utopia - a utopia da ditadura do proletariado, em que, afinal, acabarão por se sentir escravizados como nunca, - se tão grande desgraça houver de desabar por sobre o ocidente europeu!
Oscilando, deste modo, entre as duas barbarias, - a barbaria argentária e a barbaria sovietista, a sorte do mundo, se o facho da civilização tiver de se manter aceso, não dependerá seguramente nem da vitoria dos barões da Finança, nem do avanço da cavalgada do Apocalipse. Quer se trate do Estado burguês com o seu cortejo interminável de retóricos e corretores de Bolsa, quer se trate do czarismo vermelho de Lenine, precisamente o dever da nossa inteligência é empenharmo-nos sem descanso no combate imediato a essas duas formas de desorganização sistematizada, incestuosamente geradoras uma da outra. Se digo "geradoras uma da outra", é porque na pantomina trágica representada em Génova presenciou-se claramente o conluio estreito que enlaça o cosmopolitismo criminoso dos banqueiros à demência universal do sonho bolchevista. E tudo, porquê?
Tudo porque, "au surplus, les deux barbaries ne font qu'une: fruits, l'une et l'autre, du désordre de l'esprit, du tumulte des passions et du déchainement des appétits, la barbarie ploutocratique et la barbarie bolcheviste sont filles du même sang corrompu", - escreve Georges Valois. "Sœur ennemies et amies, l'une riche, possédée par les biens du monde, l’autre pauvre, anxieuse des richesses de la première, l'une et l'autre également agitées par la passion de jouir et par le désir d'échapper à la loi du travail. L’une et l'autre vivant de rapines et de pillages, l'une agissant au coin des banques, l'autre au coin des rues, elles se jalousent, se redoutent, se combattent en se ménageant, s'appuient l'une sur l'autre et se servent une de l'autre."
Tais são as duplas algemas em que as velhas pátrias cristãs agonizam estranguladas, desde que, vai para século e meio, a filosofia naturalista dos ideólogos da Enciclopédia as atirou para fora do grande caminho da Tradição. Formado pela obra laboriosa e lenta duma longa elaboração da história, o Estado, já então corrompido pelo vírus absolutista do Direito-Romano e da Renascença, de instituição coordenadora e complementaria que era, volveu-se abertamente num como que instrumento do domínio, depressa utilizado pelos profissionais do Poder como o mais seguro e eficaz agente de exploração social. O conceito individualista da sociedade, sobrepondo-se a tudo e a todos num delírio de reformismos niveladores, apenas atendeu à excelência abstrata das suas hipóteses. E eu não instruirei aqui o processo dessa mentira nefasta que Napoleão formalizou e o Liberalismo tornou exequível, visto que temos bem à mostra, na lição da Rússia, a soma dos seus resultados desastrosos!
Não aplaudindo a herança do romantismo revolucionário, não é, por isso, de defesa a posição que assumimos em frente da falência inevitável do Estado democrático. Não é também á negação do Estado em si que as nossas reflexões se dirigem, ao confessarmo-nos antiparlamentaristas no político e descentralizadores no administrativo, nos declaramos conjuntamente sindicalistas no social e no económico. O nosso trabalho é um trabalho simultâneo de destruição e de reconstrução. De destruição, quando no campo do pensamento e dos factos nos esforçamos por dissipar até ao seu último equívoco, a influencia funesta da mitologia revolucionária. [ 7 - 8 ] De reconstrução, quando, por sobre os alicerces combalidos da sociedade, procuramos terraplanar o hiato aberto pela passagem perturbadora do Liberalismo e achar as bases sólidas em que a Ordem-Nova se estabelecerá, para prestígio da Cristandade e aumento da civilização.
Respondia Trotsky com estas palavras francas ao voto expresso de Bujarin, Osinsky e outros elementos da esquerda comunista, - porque há também uma "direita" comunista! -, os quais não hesitavam em reclamar para o trabalho a sua inteira militarização debaixo duma completa disciplina de ferro. De resto, já antes no jornal Pravda, Trostsky afirmara num artigo seu: - "A adaptação do trabalho às necessidades comuns e a intensificação da produção estão determinadas em grande parte pelo interesse pessoal dos trabalhadores; e o que importa em semelhante caso não é o regime jurídico sob que se haja de gozar dos frutos do nosso esforço, mas a parte efetiva que nos haja de corresponder."
Em face de tão significativos depoimentos, nós vemos a que escravatura inesperada conduzem as aplicações do dogma marxista de "luta de classes". Insuspeito na evidente formação revolucionária do seu espírito, o prof. Fernando de los Rios considera o drama que se passa na Rússia como o "eclipse dos direitos do homem". E não vacila em asseverar, perante essa espantosa paranoia coletiva, que, segundo os preceitos e as realizações da ditadura bolchevista, "não há direito para a consciência, porque não há um elemento humano geral, visto os homens na Rússia serem hoje absolutamente insolidários", acrescendo que o direito ali existente é apenas um precário direito objetivo e só ao titular do Poder pertence defini-lo.
Dificilmente o despotismo encontraria características mais acentuadas. A tanto leva nas suas extremas consequências a lógica do princípio democrático! O individualismo sentimental de Jean-Jacques Rousseau torna-se assim, passado um século, no «insolidarismo total» do prof. Fernando de los Rios. Todos os germes antissociais da era liberalista afloram agora na terra enevoada dos Czares, revestindo-se, para efeitos mais sinistros, de uma espécie de religiosismo frenético, a que não é estranha a hereditariedade mongólica de Lenine. Mas, pondo de lado as condições de meio e de raça, o pensador e o sociólogo necessariamente verificarão no excessivo estatismo da experiência russa o fundo centralista e absorvente do Estado moderno, saído da Revolução Francesa e que, tão bem autopsiado por Taine, recebeu de Napoleão a expressão jurídica definitiva. A diferença consiste apenas em que essa noção de Estado computava até agora o indivíduo unicamente como "homem político" - como "cidadão", ao passo que a ditadura de Lenine o classifica apenas como "homem económico", como simples "produtor".
Mas a compreensão exata de quanto se desenrola na Rússia não nos é possível, se não considerarmos o parentesco legítimo que liga o tipo de Estado, aproveitado por Lenine, ao tipo de Estado que Napoleão nos legou. A crise em que a Europa se debate é, sobretudo, onde se filia. Nascidas de uma concepção meramente doutrinária da sociedade, com o crescente altear dos problemas contemporâneos, tão complexos e tão agudos nas suas múltiplas manifestações, as instituições políticas do nosso continente, não possuindo raízes na história, dificilmente acompanhariam as exigências cada vez mais clamorosas da realidade. Recolhem-se por fim os frutos da sementeira louca do 89! E na destruição das organismos tradicionais, ou seja daqueles "corpos» que entre os indivíduos e o Estado tornavam outrora fácil e resistente a vida social, não era impossível de prever que, vítimas das oligarquias financeiras e parlamentaristas, os povos, arrastados pelo desenvolvimento dominador do industrialismo e do capitalismo, aos abusos execráveis da plutocracia, acordariam em peso para mais uma utopia - a utopia da ditadura do proletariado, em que, afinal, acabarão por se sentir escravizados como nunca, - se tão grande desgraça houver de desabar por sobre o ocidente europeu!
Oscilando, deste modo, entre as duas barbarias, - a barbaria argentária e a barbaria sovietista, a sorte do mundo, se o facho da civilização tiver de se manter aceso, não dependerá seguramente nem da vitoria dos barões da Finança, nem do avanço da cavalgada do Apocalipse. Quer se trate do Estado burguês com o seu cortejo interminável de retóricos e corretores de Bolsa, quer se trate do czarismo vermelho de Lenine, precisamente o dever da nossa inteligência é empenharmo-nos sem descanso no combate imediato a essas duas formas de desorganização sistematizada, incestuosamente geradoras uma da outra. Se digo "geradoras uma da outra", é porque na pantomina trágica representada em Génova presenciou-se claramente o conluio estreito que enlaça o cosmopolitismo criminoso dos banqueiros à demência universal do sonho bolchevista. E tudo, porquê?
Tudo porque, "au surplus, les deux barbaries ne font qu'une: fruits, l'une et l'autre, du désordre de l'esprit, du tumulte des passions et du déchainement des appétits, la barbarie ploutocratique et la barbarie bolcheviste sont filles du même sang corrompu", - escreve Georges Valois. "Sœur ennemies et amies, l'une riche, possédée par les biens du monde, l’autre pauvre, anxieuse des richesses de la première, l'une et l'autre également agitées par la passion de jouir et par le désir d'échapper à la loi du travail. L’une et l'autre vivant de rapines et de pillages, l'une agissant au coin des banques, l'autre au coin des rues, elles se jalousent, se redoutent, se combattent en se ménageant, s'appuient l'une sur l'autre et se servent une de l'autre."
Tais são as duplas algemas em que as velhas pátrias cristãs agonizam estranguladas, desde que, vai para século e meio, a filosofia naturalista dos ideólogos da Enciclopédia as atirou para fora do grande caminho da Tradição. Formado pela obra laboriosa e lenta duma longa elaboração da história, o Estado, já então corrompido pelo vírus absolutista do Direito-Romano e da Renascença, de instituição coordenadora e complementaria que era, volveu-se abertamente num como que instrumento do domínio, depressa utilizado pelos profissionais do Poder como o mais seguro e eficaz agente de exploração social. O conceito individualista da sociedade, sobrepondo-se a tudo e a todos num delírio de reformismos niveladores, apenas atendeu à excelência abstrata das suas hipóteses. E eu não instruirei aqui o processo dessa mentira nefasta que Napoleão formalizou e o Liberalismo tornou exequível, visto que temos bem à mostra, na lição da Rússia, a soma dos seus resultados desastrosos!
Não aplaudindo a herança do romantismo revolucionário, não é, por isso, de defesa a posição que assumimos em frente da falência inevitável do Estado democrático. Não é também á negação do Estado em si que as nossas reflexões se dirigem, ao confessarmo-nos antiparlamentaristas no político e descentralizadores no administrativo, nos declaramos conjuntamente sindicalistas no social e no económico. O nosso trabalho é um trabalho simultâneo de destruição e de reconstrução. De destruição, quando no campo do pensamento e dos factos nos esforçamos por dissipar até ao seu último equívoco, a influencia funesta da mitologia revolucionária. [ 7 - 8 ] De reconstrução, quando, por sobre os alicerces combalidos da sociedade, procuramos terraplanar o hiato aberto pela passagem perturbadora do Liberalismo e achar as bases sólidas em que a Ordem-Nova se estabelecerá, para prestígio da Cristandade e aumento da civilização.
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Não consente duvidas a ninguém que, colocado dentro da doutrina marxista da luta das classes, Lenine raciocinava com firmeza, ao asseverar em Março de 1919, no Congresso da Terceira-Internacional, que «a ditadura do proletariado manifesta-se inteiramente legitima, não só como um meio de derrubar os opressores e de suprimir a sua resistência, mas ainda como uma necessidade absoluta para as massas trabalhadoras, por ser a única forma de defesa contra a ditadura da burguesia, que originou a guerra e está preparando novas guerras.» Nesta sequência de ideias, «a essência do poder soviético consiste, - ainda segundo Lenine -, na circunstância de se tomar por base constante e exclusiva de toda a autoridade do Estado e de todo o mecanismo governamental a organização em massa dessas mesmas classes que estavam debaixo do jugo do capitalismo, isto é, dos operários e dos semiproletários", nos quais Lenine congloba os camponeses que não exploram o trabalho alheio e que vendem parcialmente a sua força manual. Instrumento de uma ditadura, - a da burguesia, Lenine utiliza o Estado, para servir a ditadura do proletariado, enquanto durar o período de necessária transição e o comunismo não tiver aplicação integral. Desde que nas democracias a razão do Estado reside no critério da opinião pública e na lei da maioria, não se negará a Lenine uma reta dedução nas suas considerações. Se a sociedade não é mais de que um composto aritmético de indivíduos, não se entende, na verdade, que a parte mais numerosa viva sujeita ao egoísmo e aos interesses parasitários de um grupo reduzido de políticos e de banqueiros, - exploradores privilegiados do Oiro e do Poder. Sucede isto em regimes que enfaticamente se rotulam como "liberais". Eis porque Lenine, atacando a "democracia pura", nos oferece uma definição admirável da "liberdade", que, sem ofensa para o ilustre mestre da Contra-Revolução, o próprio Charles Maurras não duvidaria em acolher. "Os capitalistas, - diz o César vermelho de Moscovo -, chamaram sempre "liberdade" à facilidade com que os ricos podem fazer os seus negócios, enquanto os pobres vão morrendo de fome." E a consciência antidemocrática de Lenine é tão nítida e acentuada que, numa entrevista reproduzida pelos jornais de todo o mundo, não fugiu de exprimi-la ao coronel Raimundo Robins, presidente da Cruz Vermelha norte-americana. Assim falou Lenine: - "Talvez que o coronel veja baionetas estrangeiras atravessar a Rússia; talvez que veja mortos os chefes dos Sovietes e as trevas envolver de novo o nosso país. Mas a luz que surgir dessas trevas destruiu a democracia política em toda a parte e para sempre. Quero dizer que a ideia da democracia política morreu." Pergunta-se: - mas o que será para Lenine a "democracia política"? Evidentemente que é o Estado segundo o modelo das constituições escritas e em que os homens não são "produtores" — e sim "cidadãos". A que chegou na Rússia o "produtor", sabemo-lo nós com o trabalho militarizado e considerado, tal como a propriedade, pertença indiscutível do Estado. Na pulverização crescente da sociedade, o "indivíduo" dos idílios solitários de Rousseau dera lugar ao "cidadão" dos festins eleitorais do Liberalismo. Por seu turno, o "cidadão" do Liberalismo, no alargamento opressivo do Estado moderno, volveu-se sem demora no "produtor" da metafísica bastarda de Karl Marx. Rotos os laços que o prendem à coletividade, simplificado, como um estômago que digere, em mero "homem-económico", o "produtor", não sendo mais que uma máquina que trabalha e uma boca que pede pão, viu-se de súbito, despojado de toda a relação moral e social, nesse pavoroso "insolidarismo" da definição inolvidável do prof. Fernando de los Rios.
Traçada assim a genealogia dos fenómenos de dissolução geral que, mais marcadamente desde o século XVIII, vêm roendo os fundamentos da civilização, compreende-se facilmente que a essa como que tendência da sociedade para o atomismo, em que o património do passado se perde e com ele os estímulos sagrados do futuro, corresponda, como elementar recurso te coesão, o estatismo mais abusivo e mais arbitrário que se haja de conceber, a ponto de na Rússia não existir outro direito que não seja um grosseiro direito objetivo, ainda por cima ditado exclusivamente pelo titular ocasional do Poder. O facto é tanto mais para impressionar, se nos [ 8 - 9 ] recordarmos que o bolchevismo, representando uma reação contra o que apelidaremos a «ordem-burguesa», é também, e fundamentalmente, uma reação contra o critério histórico do Estado. E não se deixa de assinalar agora uma circunstância de alta significação para o nosso fim. Ao passo que o «indivíduo» de Jean-Jacques se eleva por vontade própria, e progressivamente, á aceitação da disciplina do Estado, o produtor» de Lenine surge-nos ao cabo de operação inversa, isto é, depois de decompor a estrutura da sociedade existente, tentando realizar uma espécie de errata ao vicio original da democracia.
Se na democracia, o indivíduo, entregue aos desvarios metafísicos da «liberdade», subalternizou e anulou as instituições que o amparavam contra a omnipotência do Estado, tais como o Município e a Corporação, no bolchevismo pretende-se por um instinto atrabiliário e cego, mas lógico dentro da falsidade dos princípios, substituir a imprescindível força coordenadora do Estado por uma série sucessiva de assembleias, ou sovietes, que, partindo de grupos económicos rudimentares, termina no soviete central, — vértice em que se recolhem as linhas de tão imprevista e descomunal pirâmide.
O que resulta, pois, como clara lição das coisas da Rússia é que o sindicalismo, mesmo na forma absoluta que procurou assumir na desgraçada terra dos Czares, carece de um agente, que, federando-o e regulamentando-o, o preserve da anarquia e que assegure simultaneamente, para com as corporações a independência individual e para com os indivíduos a autonomia corporativa. Não lhe sendo possível obtê-lo na sua quimera estulta de emendar a sociedade segundo as preferências sociológicas de meia dúzia de ideólogos em delírio, o bolchevismo, a braços com o dilema de se negar a si próprio, ou de cair no perigo mortal da sua inteira desfibração, não teve outro remedio senão recorrer, - como recorreu—, para a mais dura e inflexível ditadura pessoal.
Traçada assim a genealogia dos fenómenos de dissolução geral que, mais marcadamente desde o século XVIII, vêm roendo os fundamentos da civilização, compreende-se facilmente que a essa como que tendência da sociedade para o atomismo, em que o património do passado se perde e com ele os estímulos sagrados do futuro, corresponda, como elementar recurso te coesão, o estatismo mais abusivo e mais arbitrário que se haja de conceber, a ponto de na Rússia não existir outro direito que não seja um grosseiro direito objetivo, ainda por cima ditado exclusivamente pelo titular ocasional do Poder. O facto é tanto mais para impressionar, se nos [ 8 - 9 ] recordarmos que o bolchevismo, representando uma reação contra o que apelidaremos a «ordem-burguesa», é também, e fundamentalmente, uma reação contra o critério histórico do Estado. E não se deixa de assinalar agora uma circunstância de alta significação para o nosso fim. Ao passo que o «indivíduo» de Jean-Jacques se eleva por vontade própria, e progressivamente, á aceitação da disciplina do Estado, o produtor» de Lenine surge-nos ao cabo de operação inversa, isto é, depois de decompor a estrutura da sociedade existente, tentando realizar uma espécie de errata ao vicio original da democracia.
Se na democracia, o indivíduo, entregue aos desvarios metafísicos da «liberdade», subalternizou e anulou as instituições que o amparavam contra a omnipotência do Estado, tais como o Município e a Corporação, no bolchevismo pretende-se por um instinto atrabiliário e cego, mas lógico dentro da falsidade dos princípios, substituir a imprescindível força coordenadora do Estado por uma série sucessiva de assembleias, ou sovietes, que, partindo de grupos económicos rudimentares, termina no soviete central, — vértice em que se recolhem as linhas de tão imprevista e descomunal pirâmide.
O que resulta, pois, como clara lição das coisas da Rússia é que o sindicalismo, mesmo na forma absoluta que procurou assumir na desgraçada terra dos Czares, carece de um agente, que, federando-o e regulamentando-o, o preserve da anarquia e que assegure simultaneamente, para com as corporações a independência individual e para com os indivíduos a autonomia corporativa. Não lhe sendo possível obtê-lo na sua quimera estulta de emendar a sociedade segundo as preferências sociológicas de meia dúzia de ideólogos em delírio, o bolchevismo, a braços com o dilema de se negar a si próprio, ou de cair no perigo mortal da sua inteira desfibração, não teve outro remedio senão recorrer, - como recorreu—, para a mais dura e inflexível ditadura pessoal.
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Ora, aceitando o bolchevismo a sua critica ao conceito individualista da sociedade, neste desfazer incontestável das superstições políticas e económicas do Liberalismo, qual a posição que nos cabe a nós, —"renovadores», e não "conservadores», perante o drama em que a Europa parece desconjuntar-se? Se repelimos desde logo o inqualificável mito romântico da «Bondade Natural» do "cidadão", com não menor energia repelimos também o fermento de desagregação que o marxismo comporta consigo nos terríveis enunciados da sua "luta de classes". Para nós, na esteira dos melhores mestres e conforme os ensinamentos de verdadeira sociologia, a sociedade é constituída por «famílias», e não por «indivíduos». Os "indivíduos", quando nascem, nascem já dentro de uma família, e caracterizam-se em seguida, ou profissionalmente pelo grémio ou corporação a que pertencem, ou institucional e economicamente pelo município ou província em que residem. Há assim um "direito social, ou "natural", que resulta intrinsecamente da condição do homem, para o qual, ao contrário de Rousseau nos seus improvisos sociológicos, a sociabilidade é qualidade inseparável da existência.
Não estranharemos, pois, que, ao lado do tradicionalismo político e filosófico de um Maurras, se constitua no campo da ciência objectiva uma forte corrente doutrinaria, de que é condutor e porta-voz o catedrático da universidade de Bordéus, Mr. Léon Duguit. Encontra Mr. Léon Duguit na «solidariedade» um facto fundamental da vida do homem, porque dispõe de uma base instintiva, como que fisiológica, muito antes de receber a sanção das leis e das instituições no campo superior do direito.
Assim, para Duguit, "a sociedade não existe porque os homens queiram viver em comum, mas sim porque os homens viveram sempre em comum, visto não poderem viver de outro modo..." Com o positivismo de mestre Duguit é o velho tema do "direito-natural" que ressurge, - não do "direito-natural", como a metafísica da Revolução o concebeu e divulgou, mas sim como o compreendia S. Tomás e toda a magnífica coorte dos seus comentadores peninsulares da Contra-Reforma, com o insigne Francisco Suárez à cabeceira. Sabe-se que, para S. Tomás e seus discípulos, a "comunidade-perfeita", nascida da razão original das coisas, prevalecia sobre o indivíduo e condicionava o desenvolvimento de sua curva vital. Em que consistia, conforme os Escolásticos, a "comunidade-perfeita"? Na comunidade que se basta a si mesma. A comunidade que se basta a si mesma é evidentemente aquela que possui dos seus destinos o sentido solidário e continuo que Duguit nos aponta e que [ 9 - 10 ] só é possível pela subordinação harmónica das partes ao todo, desde que o todo seja regido e impregnado,- como queria Claude Bernard para os organismos físicos -, pela permanência de uma ideia-diretriz.
De nada mais se carece para que se saliente a concordância ou, para melhor me exprimir, o paralelismo, que se surpreende entre o pensamento de Mr. Léon Duguit e os sistematizadores, tanto antigos como modernos, das grandes verdades tradicionais. Visto que, para uns e para outros, os fundamentos da sociedade assentam no grupo, e não no individuo, implicitamente que á sociabilidade dos escritores tradicionalistas, filha da lei natural, e não ao atomismo anárquico dos Imortais-Princípios, é que devemos ir buscar os motivos primários e inalteráveis da sociedade constituída. Um reforço de valia nos surge aqui, partido dos domínios das ciências experimentais, contra o inqualificável abuso que, em nome das teorias de Darwin, se pretendeu exercer durante largo tempo nos âmbitos agitados da sociologia. Considerando o homem como uma espécie fixada há muitos séculos e com caracteres próprios que o distinguem dos outros seres vivos, o eminente dr. Grasset conclui do estudo da biologia que "a lei biológica fundamental da sociedade humana não é a lei darwiniana da luta e da concorrência", mas que, pelo contrario, os homens são «regidas pela lei biológica humana do auxilio mutuo, do amor, da solidariedade e da colaboração "
Não é cair no otimismo dissolvente da "Bondade-Natural" e dos vários mitos congéneres. Mas, corrigindo a fatalidade animal que nos convida a cada momento a escutar as solicitações da nossa índole inferior, é antes elevar-nos pelo gosto da perfeição e pela prática das disciplinas interiores a esse tipo excelso de humanidade que o Cristianismo gravou dentro das nossas almas e que é o segredo fecundo da marcha do homem através da História. Palpita-se tem o alto e dramático sentido do dogma cristão do "pecado-original" e da sua remissão pelas graças da Igreja e, em cada um de nós, pelo exercício heróico da vontade.
Substituída, portanto, pelo reconhecimento da "solidariedade" ou "independência" humana, a falsa filosofia da Revolução - na hora em que a tragédia russa, realizando entre os homens o «insolidarismo total», representa para nós a ilustração mais viva e mais tocante da cilada que se esconde nas paginas do Contracto-Social -, quais são os roteiros que se abrem diante dos que acreditam nas possibilidades do futuro, —venha ou não venha a catástrofe, venha ou não a civilização a padecer paixão e morte?
Pensamos como Guglielmo Ferrero que estamos no fim de um mundo, - que o mundo se vai, desfeito pelo excessivo materialismo que lhe corrói as entranhas. Mas, sem partilhar das inquietações dolorosas do ilustre historiador, cremos ainda que a sociedade encontra dentro de si os elementos necessários para a sua ressurreição. "Rien n'est perdu tant qui' il reste dans une nation quelques intelligences lucides et des volontés ardentes - observa George Valois no seu último livro La reconstruction économique de l'Europe. "L’Europe n' échapperait pas á la catastrophe si elle n'avait pour la sauver que ces libéraux anglais, qui ne pensent qu'à faire leurs affaires, ces libéraux français qui font les affaires des premiers, et ces libéraux russes qui ne font les affaires de personne, ou encore ces conservateurs de tous pays, qui n'ont jamais conservé que le mal et qui sont convaincus que rien ne n’eut arrêter la marche du socialisme révolutionnaire." [Vide discurso do conselheiro José de Azevedo Castelo Branco no banquete Aires de Ornelas] "Mais toutes ces jeunes forces qui se sont groupés en France autour de Maurras, en Belgique, en Suisse, en Espagne, au Portugal, autour d'hommes jeunes, en Italie à l'appel de Mussolini, toutes ces forces ont repris et tiennent haut le flambeau de la civilisation. L'Europe retentit d'appels qui entend une jeunesse frémissante. Giovanese! Giovanese! c'est en Italie, le premier cri d'un chant qui rythme les pas des jeunes hommes sur la terre latine. Nous ne sommes pas en décadence; nous sommes au seuil d'une renaissance."
E porque nos sentimos alentados com o verbo do ilustre economista francês, empenhado como nós na restauração de uma maior e mais bela Cristandade, é bom que o oiçamos ainda nas suas reflexões incisivas e reconfortantes. Insiste ele: - "Le péril n'est pas dans l'âme des peuples. Il est dans l'esprit des gouvernements qui sont sous le contrôle de la ploutocratie. Ce sont les ploutocrates et leurs serviteurs qui troublent l'Europe autant et plus [10 - 11] que les idées révolutionnaires ; ce sont eux qui ouvrent nos frontières á la révolution. Un Nitti, un Briand, un Lloyd George, un Stinnes ou un Rathenau, qui croient utiliser l'anarchie pour leurs desseins, sont en Europe les fourriers de la barbarie. Daniel Halévy dit que la société russe est tombée en ruine après quatre ans de guerre. Eût elle fait cette chute si les caisses des libéraux russes n'avaient été alimentées par les banques de Londres; si les caisses des bolchevistes n'avaient été remplies par des banques judéo américaines et judéo-germaniques? Tous ces hommes d'argent qui ne voient le monde qu'á travers des traites et des billets de banque, perdent la notion des réalités ; ils croient que tout se meut ou s'arrête selon les ordres donnés en Bourse. Ces hommes pratiques vivent dans l'illusion, habitués aux fortunes qui se font et se défont en une année, en un mois, en une semaine, en un jour, ils ne savent plus que la vraie fortune des peuples est celle que produit sur la terre le labeur séculaire du paysan. La révolution russe est pour eux une affaire. Allez leur faire entendre qu'elle peut être une catastrophe de l’humanité! C'est contre eux autant que contre les bolchevistes, qu'il nous faut défendre l'Europe "
Exatamente, na defesa da Europa contra os dois bolchevismos, —o bolchevismo do argentário e o bolchevismo do agitador, é que o nosso plano de campanha necessita de se desenvolver e detalhar quanto antes! Soldados de uma nova cruzada, é na luta pela Ordem-Nova que a nossa inteligência se fortalece e o nosso braço se inspira. O património que recebemos do Passado guarda consigo os mais imprevistos germes de triunfo. O que à nossa volta está desabando é toda a ignóbil constituição ideológica do espírito da Enciclopédia. Incapacitado de responder às interrogações que o assaltam de hora para hora, cada vez mais opressivamente na sua rota desesperada de naufrago, o Estado parlamentarista e plutocrático não tardará a ruir. Deixemo-lo baquear, para que a sociedade, restituída às suas próprias forças, se refaça, finalmente, do adormecimento vegetativo em que ele a lançou com o peso das suas insaciáveis oligarquias parasitarias! No entanto, evitemos que, num estremecer de pupilas hediondas, a Horda, que espreita e avança na sombra, se precipite para o saque desejado, como um bando primitivo de gorilas. Na missão que a Providencia lhe distribui, cabe-lhe arrastar à última capitulação a firma de banqueiros sem escrúpulos que exploram por sua conta os benefícios do chamado "Progresso" e têm os interesses da humanidade como um alto e lucrativo negócio. Enquanto eles se abismam na escravidão infame da Matéria, confessemos nós o poder invencível do Espírito, ajoelhado diante dos átrios misteriosos da Cidade-Futura. É bem singelo o nosso programa, que todo se condensa em regressar primeiro, para progredir depois.
Mas regressar é devolver-nos às condições normais da vida social, efetuando pela harmonia e colaboração mútua aquela lei biológica humana, que o dr. Grasset opõe energicamente aos conceitos darwinianos com que o seculo findo, no seu racionalismo grosseiríssimo, envenenou o ambiente contraditório da sociologia. Reconstituamos, pois, a sociedade, reconstituindo a Família, agrupamento fundamental e primário, na sua íntima composição monogâmica e territorial. Da Família iremos ao Município e à Corporação. Do Município e da Corporação, somados organicamente na Província, sairá a Pátria, servida nos seus fins superiores pela ação coordenadora do Estado. Assim encontraremos, pelos caminhos eternos e sempre remoçados da Tradição, essa ordem que é natural e humana, sem a qual não há civilização nem existência possível, como o «cidadão» de Rousseau nos acaba de demonstrar, rasgando na Rússia o Contracto-social e caindo no "insolidarismo total", pela sua volta ao tropel errante dos símios na floresta.
Oferece-nos o sindicalismo a estrada larga das suas realizações. E quando escrevo "sindicalismo", quase que prefiro escrever "gremialismo". Batizado pela Igreja, o gremialismo há de colocar em equação o problema momentoso da produção da riqueza e da sua respetiva distribuição confinado em funções centrais de direção, ao Estado pertencerá unificar, com vista à mesma finalidade, as várias autonomias económicas e extrair delas a colaboração necessária ao bem geral do agregado. No regime conjunto, ou paralelo, da propriedade privada e hereditária e da corporação sadia e fortemente constituída, achará por certo o dia de amanhã o equilíbrio tão dolorosamente ambicionado por todos nós.
Adivinha-se desde já, como numa comunidade descentralizada e hierarquizada ao mesmo tempo o Estado intervém, garantindo com a sua norma reguladora, a justa expansão das diversas actividades produtoras, quer sejam colectivas, quer sejam simplesmente individuais. "Ni individualisme anarchique, ni étatisme abêtisseur et paupérisant, - escreve A. L. Galéot; mais des organisations corporatives ouvertes, prenant soin des leurs et répartissant les frais de secours sur la profession, le tout synthétisé, coordonné par l'organe central de cohésion nationale, le "roi du travail", le monarque héréditaire." Porque se o chefe único é imprescindível para se ganhar a guerra, não é menos imprescindível para se estabilizar a paz, a fim de que a riqueza se desenvolva e se distribua equitativamente, assegurada como carece de ser por uma autoridade legítima, consciente e contínua.
Não estranharemos, pois, que, ao lado do tradicionalismo político e filosófico de um Maurras, se constitua no campo da ciência objectiva uma forte corrente doutrinaria, de que é condutor e porta-voz o catedrático da universidade de Bordéus, Mr. Léon Duguit. Encontra Mr. Léon Duguit na «solidariedade» um facto fundamental da vida do homem, porque dispõe de uma base instintiva, como que fisiológica, muito antes de receber a sanção das leis e das instituições no campo superior do direito.
Assim, para Duguit, "a sociedade não existe porque os homens queiram viver em comum, mas sim porque os homens viveram sempre em comum, visto não poderem viver de outro modo..." Com o positivismo de mestre Duguit é o velho tema do "direito-natural" que ressurge, - não do "direito-natural", como a metafísica da Revolução o concebeu e divulgou, mas sim como o compreendia S. Tomás e toda a magnífica coorte dos seus comentadores peninsulares da Contra-Reforma, com o insigne Francisco Suárez à cabeceira. Sabe-se que, para S. Tomás e seus discípulos, a "comunidade-perfeita", nascida da razão original das coisas, prevalecia sobre o indivíduo e condicionava o desenvolvimento de sua curva vital. Em que consistia, conforme os Escolásticos, a "comunidade-perfeita"? Na comunidade que se basta a si mesma. A comunidade que se basta a si mesma é evidentemente aquela que possui dos seus destinos o sentido solidário e continuo que Duguit nos aponta e que [ 9 - 10 ] só é possível pela subordinação harmónica das partes ao todo, desde que o todo seja regido e impregnado,- como queria Claude Bernard para os organismos físicos -, pela permanência de uma ideia-diretriz.
De nada mais se carece para que se saliente a concordância ou, para melhor me exprimir, o paralelismo, que se surpreende entre o pensamento de Mr. Léon Duguit e os sistematizadores, tanto antigos como modernos, das grandes verdades tradicionais. Visto que, para uns e para outros, os fundamentos da sociedade assentam no grupo, e não no individuo, implicitamente que á sociabilidade dos escritores tradicionalistas, filha da lei natural, e não ao atomismo anárquico dos Imortais-Princípios, é que devemos ir buscar os motivos primários e inalteráveis da sociedade constituída. Um reforço de valia nos surge aqui, partido dos domínios das ciências experimentais, contra o inqualificável abuso que, em nome das teorias de Darwin, se pretendeu exercer durante largo tempo nos âmbitos agitados da sociologia. Considerando o homem como uma espécie fixada há muitos séculos e com caracteres próprios que o distinguem dos outros seres vivos, o eminente dr. Grasset conclui do estudo da biologia que "a lei biológica fundamental da sociedade humana não é a lei darwiniana da luta e da concorrência", mas que, pelo contrario, os homens são «regidas pela lei biológica humana do auxilio mutuo, do amor, da solidariedade e da colaboração "
Não é cair no otimismo dissolvente da "Bondade-Natural" e dos vários mitos congéneres. Mas, corrigindo a fatalidade animal que nos convida a cada momento a escutar as solicitações da nossa índole inferior, é antes elevar-nos pelo gosto da perfeição e pela prática das disciplinas interiores a esse tipo excelso de humanidade que o Cristianismo gravou dentro das nossas almas e que é o segredo fecundo da marcha do homem através da História. Palpita-se tem o alto e dramático sentido do dogma cristão do "pecado-original" e da sua remissão pelas graças da Igreja e, em cada um de nós, pelo exercício heróico da vontade.
Substituída, portanto, pelo reconhecimento da "solidariedade" ou "independência" humana, a falsa filosofia da Revolução - na hora em que a tragédia russa, realizando entre os homens o «insolidarismo total», representa para nós a ilustração mais viva e mais tocante da cilada que se esconde nas paginas do Contracto-Social -, quais são os roteiros que se abrem diante dos que acreditam nas possibilidades do futuro, —venha ou não venha a catástrofe, venha ou não a civilização a padecer paixão e morte?
Pensamos como Guglielmo Ferrero que estamos no fim de um mundo, - que o mundo se vai, desfeito pelo excessivo materialismo que lhe corrói as entranhas. Mas, sem partilhar das inquietações dolorosas do ilustre historiador, cremos ainda que a sociedade encontra dentro de si os elementos necessários para a sua ressurreição. "Rien n'est perdu tant qui' il reste dans une nation quelques intelligences lucides et des volontés ardentes - observa George Valois no seu último livro La reconstruction économique de l'Europe. "L’Europe n' échapperait pas á la catastrophe si elle n'avait pour la sauver que ces libéraux anglais, qui ne pensent qu'à faire leurs affaires, ces libéraux français qui font les affaires des premiers, et ces libéraux russes qui ne font les affaires de personne, ou encore ces conservateurs de tous pays, qui n'ont jamais conservé que le mal et qui sont convaincus que rien ne n’eut arrêter la marche du socialisme révolutionnaire." [Vide discurso do conselheiro José de Azevedo Castelo Branco no banquete Aires de Ornelas] "Mais toutes ces jeunes forces qui se sont groupés en France autour de Maurras, en Belgique, en Suisse, en Espagne, au Portugal, autour d'hommes jeunes, en Italie à l'appel de Mussolini, toutes ces forces ont repris et tiennent haut le flambeau de la civilisation. L'Europe retentit d'appels qui entend une jeunesse frémissante. Giovanese! Giovanese! c'est en Italie, le premier cri d'un chant qui rythme les pas des jeunes hommes sur la terre latine. Nous ne sommes pas en décadence; nous sommes au seuil d'une renaissance."
E porque nos sentimos alentados com o verbo do ilustre economista francês, empenhado como nós na restauração de uma maior e mais bela Cristandade, é bom que o oiçamos ainda nas suas reflexões incisivas e reconfortantes. Insiste ele: - "Le péril n'est pas dans l'âme des peuples. Il est dans l'esprit des gouvernements qui sont sous le contrôle de la ploutocratie. Ce sont les ploutocrates et leurs serviteurs qui troublent l'Europe autant et plus [10 - 11] que les idées révolutionnaires ; ce sont eux qui ouvrent nos frontières á la révolution. Un Nitti, un Briand, un Lloyd George, un Stinnes ou un Rathenau, qui croient utiliser l'anarchie pour leurs desseins, sont en Europe les fourriers de la barbarie. Daniel Halévy dit que la société russe est tombée en ruine après quatre ans de guerre. Eût elle fait cette chute si les caisses des libéraux russes n'avaient été alimentées par les banques de Londres; si les caisses des bolchevistes n'avaient été remplies par des banques judéo américaines et judéo-germaniques? Tous ces hommes d'argent qui ne voient le monde qu'á travers des traites et des billets de banque, perdent la notion des réalités ; ils croient que tout se meut ou s'arrête selon les ordres donnés en Bourse. Ces hommes pratiques vivent dans l'illusion, habitués aux fortunes qui se font et se défont en une année, en un mois, en une semaine, en un jour, ils ne savent plus que la vraie fortune des peuples est celle que produit sur la terre le labeur séculaire du paysan. La révolution russe est pour eux une affaire. Allez leur faire entendre qu'elle peut être une catastrophe de l’humanité! C'est contre eux autant que contre les bolchevistes, qu'il nous faut défendre l'Europe "
Exatamente, na defesa da Europa contra os dois bolchevismos, —o bolchevismo do argentário e o bolchevismo do agitador, é que o nosso plano de campanha necessita de se desenvolver e detalhar quanto antes! Soldados de uma nova cruzada, é na luta pela Ordem-Nova que a nossa inteligência se fortalece e o nosso braço se inspira. O património que recebemos do Passado guarda consigo os mais imprevistos germes de triunfo. O que à nossa volta está desabando é toda a ignóbil constituição ideológica do espírito da Enciclopédia. Incapacitado de responder às interrogações que o assaltam de hora para hora, cada vez mais opressivamente na sua rota desesperada de naufrago, o Estado parlamentarista e plutocrático não tardará a ruir. Deixemo-lo baquear, para que a sociedade, restituída às suas próprias forças, se refaça, finalmente, do adormecimento vegetativo em que ele a lançou com o peso das suas insaciáveis oligarquias parasitarias! No entanto, evitemos que, num estremecer de pupilas hediondas, a Horda, que espreita e avança na sombra, se precipite para o saque desejado, como um bando primitivo de gorilas. Na missão que a Providencia lhe distribui, cabe-lhe arrastar à última capitulação a firma de banqueiros sem escrúpulos que exploram por sua conta os benefícios do chamado "Progresso" e têm os interesses da humanidade como um alto e lucrativo negócio. Enquanto eles se abismam na escravidão infame da Matéria, confessemos nós o poder invencível do Espírito, ajoelhado diante dos átrios misteriosos da Cidade-Futura. É bem singelo o nosso programa, que todo se condensa em regressar primeiro, para progredir depois.
Mas regressar é devolver-nos às condições normais da vida social, efetuando pela harmonia e colaboração mútua aquela lei biológica humana, que o dr. Grasset opõe energicamente aos conceitos darwinianos com que o seculo findo, no seu racionalismo grosseiríssimo, envenenou o ambiente contraditório da sociologia. Reconstituamos, pois, a sociedade, reconstituindo a Família, agrupamento fundamental e primário, na sua íntima composição monogâmica e territorial. Da Família iremos ao Município e à Corporação. Do Município e da Corporação, somados organicamente na Província, sairá a Pátria, servida nos seus fins superiores pela ação coordenadora do Estado. Assim encontraremos, pelos caminhos eternos e sempre remoçados da Tradição, essa ordem que é natural e humana, sem a qual não há civilização nem existência possível, como o «cidadão» de Rousseau nos acaba de demonstrar, rasgando na Rússia o Contracto-social e caindo no "insolidarismo total", pela sua volta ao tropel errante dos símios na floresta.
Oferece-nos o sindicalismo a estrada larga das suas realizações. E quando escrevo "sindicalismo", quase que prefiro escrever "gremialismo". Batizado pela Igreja, o gremialismo há de colocar em equação o problema momentoso da produção da riqueza e da sua respetiva distribuição confinado em funções centrais de direção, ao Estado pertencerá unificar, com vista à mesma finalidade, as várias autonomias económicas e extrair delas a colaboração necessária ao bem geral do agregado. No regime conjunto, ou paralelo, da propriedade privada e hereditária e da corporação sadia e fortemente constituída, achará por certo o dia de amanhã o equilíbrio tão dolorosamente ambicionado por todos nós.
Adivinha-se desde já, como numa comunidade descentralizada e hierarquizada ao mesmo tempo o Estado intervém, garantindo com a sua norma reguladora, a justa expansão das diversas actividades produtoras, quer sejam colectivas, quer sejam simplesmente individuais. "Ni individualisme anarchique, ni étatisme abêtisseur et paupérisant, - escreve A. L. Galéot; mais des organisations corporatives ouvertes, prenant soin des leurs et répartissant les frais de secours sur la profession, le tout synthétisé, coordonné par l'organe central de cohésion nationale, le "roi du travail", le monarque héréditaire." Porque se o chefe único é imprescindível para se ganhar a guerra, não é menos imprescindível para se estabilizar a paz, a fim de que a riqueza se desenvolva e se distribua equitativamente, assegurada como carece de ser por uma autoridade legítima, consciente e contínua.
* * *
Tal é a Ordem que se desprende da desordem, - tal é a Ordem que arrancará a Europa da carreira do abismo, ou que fará florir outra vez a civilização no nosso continente, se a desgraça tombar por sobre nós! Essa Ordem é a ordem de sempre, porque a Ordem é só uma e define-se singelamente por tudo quanto seja o inverso da Desordem. Através das suas múltiplas formas, como um monstro de muitas cabeças, a desordem já não nos ilude mais, porque na experiência russa achou o limite máximo que poderia atingir. «Um princípio triunfa, - raciocinava Berryer -, quando ele se aplica e produz o bem. Ele triunfa da mesma maneira, quando se aplica o princípio contrário, e só produz o mal».
Eis que, por sobre um cortejo de mentiras, a nossa verdade alcança um triunfo inesperado! Julgando quebrar as grilhetas de todos os preconceitos, nós assistimos, com a ditadura de Lenine, ao advento duma tirania sem nome, que prostitui a dignidade do trabalho, reduzido agora a uma vil tarefa de besta puxando ao carro. Respondamos-lhe nós sem trepidações, entoando um daqueles admiráveis hinos com que George Valois entremeia as suas não menos admiráveis criações económicas. «Homem, porque trabalhas tu?» - «Trabalho, porque sou o instrumento da vontade de Deus, que me manda pôr ao serviço divino todas as faculdades e todas as graças que do Senhor recebi em usufruto!» Pois, penetrados dessa certeza solene, restauremos os direitos de Deus na sociedade, para que o Trabalho se dignifique como uma virtude e retome nos Lares e nas Oficinas a sua antiga realeza moral. Pela extrema desagregação a que o Estado chegou entre nós, talvez que a Portugal esteja reservado o destino glorioso de inaugurar a Ordem-Nova na Europa. Se for assim, - e eu creio que há de ser! -, teremos recuperado a nossa vocação apostólica de povo conquistador e descobridor, levantando contra o tufão maximalista do Oriente o maximalismo cristianíssimo do mundo ocidental.
Eis que, por sobre um cortejo de mentiras, a nossa verdade alcança um triunfo inesperado! Julgando quebrar as grilhetas de todos os preconceitos, nós assistimos, com a ditadura de Lenine, ao advento duma tirania sem nome, que prostitui a dignidade do trabalho, reduzido agora a uma vil tarefa de besta puxando ao carro. Respondamos-lhe nós sem trepidações, entoando um daqueles admiráveis hinos com que George Valois entremeia as suas não menos admiráveis criações económicas. «Homem, porque trabalhas tu?» - «Trabalho, porque sou o instrumento da vontade de Deus, que me manda pôr ao serviço divino todas as faculdades e todas as graças que do Senhor recebi em usufruto!» Pois, penetrados dessa certeza solene, restauremos os direitos de Deus na sociedade, para que o Trabalho se dignifique como uma virtude e retome nos Lares e nas Oficinas a sua antiga realeza moral. Pela extrema desagregação a que o Estado chegou entre nós, talvez que a Portugal esteja reservado o destino glorioso de inaugurar a Ordem-Nova na Europa. Se for assim, - e eu creio que há de ser! -, teremos recuperado a nossa vocação apostólica de povo conquistador e descobridor, levantando contra o tufão maximalista do Oriente o maximalismo cristianíssimo do mundo ocidental.
António Sardinha
[ negritos acrescentados ]
[António Sardinha, "A Ordem-Nova", Nação Portuguesa, 2ª Série, nº 1, Julho de 1922, pp. 6-12.]
[ 1922_-_antónio_sardinha_-_a_ordem-nova_-_np_-_1_-_julho_-_pp6-12.pdf ]
Refs.
- Fernando de los Rios, Mi viaje a la Rusia sovietista, Madrid, 1921 (p. 6)
- Taine - O centralismo absorvente do Estado moderno culminando em Napoleão (p. 6).
- Leon Trotsky [Liev Davidovich Bronstein, 1879-1940], Memorandum apresentado ao IX Congresso do Partido Comunista (1920, 29 de Março a 1 de Abril). (p. 6)
- Lenine (p. 6)
- Georges Valois, La reconstruction économique de l'Europe, 1922. (cit., pp. 7; 10-11)
- Karl Marx (p. 8)
- Jean-Jacques Rousseau (p. 9)
- Charles Maurras (p. 9, 10)
- Léon Duguit (p. 9-10) - direito natural
- São Tomás de Aquino (p. 9) - direito natural
- Francisco Suárez (p. 9) - direito natural
- Claude Bernard (p. 10)
- Charles Darwin (p. 10)
- José de Azevedo Castelo Branco (p. 10)
- Benito Mussolini - citando Georges Valois, expressa a esperança de que uma nova geração seria capaz de realizar uma renascença ocidental (p. 10).
- A. L. Galéot
- Guglielmo Ferrero (p. 10)
- Berryer
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