Teoria do Município
António Sardinha
... o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus. - Almeida Garrett
António Sardinha, À sombra dos Pórticos - Novos ensaios, Lisboa, Ferin, 1927, pp. 125-187; pp. 307-310.
TEORIA DO MUNICÍPIO
I. Exposição do problema
II. Do Valor do Localismo
*
Apêndice - 16 Teses sobre o Município
TEORIA DO MUNICÍPIO
I. Exposição do problema
II. Do Valor do Localismo
*
Apêndice - 16 Teses sobre o Município
TEORIA DO MUNICÍPIO
I
EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA
EXPOSIÇÃO DO PROBLEMA
Escreve Alexandre Herculano na sua História de Portugal: - «O estudo do Município, nas origens dele, nas suas modificações como elemento político, deve ter para a geração actual subido valor histórico, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido mas indispensável elemento de toda a boa organização social.» Contêm as palavras de Alexandre Herculano o reconhecimento exacto de uma realidade que é cada vez mais forte e mais evidente, quer nos coloquemos em relação ao puro ponto de vista português, quer, dilatando o olhar para maiores horizontes, consideremos o drama angustioso em que a Europa e a civilização se debatem, por se haverem desfibrado insensatamente as velhas raizes tradicionais que prendiam outrora as raças e as pátrias à continuidade do seu próprio desenvolvimento e aspirações.
Atingiram as consequências extremas as dou trinas do século passado sobre a constituição do Estado e a natureza do poder. Baseadas no indivíduo, como célula fundamental da sociedade, fizeram tábua-rasa dos agrupamentos naturais, de que o ser colectivo se tecia e que, sendo, na sua formação, organismos anteriores à vida e aparecimento do Estado, representam forças essenciais, para cuja coordenação e guarda o Estado existe como lógico agente ponderador. Método violento de conquista, sistema eficaz de ocupação, - os princípios saídos da Revolução Francesa e tornados por Napoleão em corpo legal, suprimiram assim todas as fecundas actividades locais, - ou Comunas, encaradas político-administrativamente, ou Corporações, se as encararmos profissionalmente, - abrindo caminho desta forma à dissolução dos vínculos sociais e à consequente anarquia em que o Estado moderno se desmantela e oscila, tal como a nau de Horácio, ao sabor dos ventos mais contraditórios, à mercê dos apetites mais ignaros e audaciosos.
A concepção da sociedade que triunfou então era uma concepção abstracta, copiada dos idílios convencionais de Rousseau e tendo por modelo as fachadas simétricas da antiga e exígua sociologia greco-romana. Gerou, como não podia deixar de gerar, o cesarismo, — e com ele o absolutismo mascarado da centralização burocrática dos regimes actuais, ou sejam monarquias democráticas, ou repúblicas semi-socialistas. Ao sentimento unânime da unidade moral da pátria substituía-se agora, como regra de governo, a luta permanente dos partidos. E a estrutura histórica da sociedade, já bastante revolvida pelos exageros centralistas dos Jurisconsultos, obcecados na ressurreição do direito justinianeu, acabou por se pulverizar com o advento do Liberalismo.
Entre as instituições que mais sofreram, ocupam os Municípios um lugar de destaque. Elaboradores do patriotismo local, graças a eles se originou, cresceu e abriu as asas o patriotismo nacional. Fala-se muito de Municípios e de Municipalismo. Importa não irmos na tendência verbalista que tudo obscurece, detendo-nos a examinar o que seja de facto o Município. «Se se analisam e decompõem os elementos orgânicos de um Estado» - observa Savigny,- «encontraremos em toda a parte o município.» Tocqueville, esse, exaltava-o numa definição que é memorável: - «O Município existe em todos os povos, quaisquer que sejam suas leis e costumes. Organiza e forma tanto os reinos como as repúblicas. O Município parece que saiu das mãos de Deus. É a primeira escola onde o cidadão deve aprender os seus deveres políticos e sociais.» Arhens, por seu turno declara: - «O Município é a segunda sociedade fundamental em que se realizam todos os fins humanos, não como uma simples circunscrição territorial, um «termo» mais ou menos extenso com determinada função política, mas como uma sociedade em que a finalidade religiosa, científica, artística, económica, — em síntese, tudo quanto ao homem cabe efectuar e atingir, se desenvolve dispondo dos meios necessários para a sua realização.» H. de Tausey, chamado a depor, diz-nos: - «O poder municipal não é uma criação da lei, devendo a sua origem à própria força das coisas; existe porque tem de existir.» Sismondi afirmava já também que o Município não é um ser ideal ou fantástico, mas sim a verdadeira pátria, a que vemos, a que conhecemos em todos os seus pormenores, a que nos fala a todos os sentidos.»
E nesta ligeira convocatória os depoimentos sucedem-se, não se esgotam nem se retraem. Oiçamos o de Royer Collard: - «O Município, como a família, existiu antes do Estado. Não foi a lei política que o constituiu, porque foi acha-lo já formado.» No mesmo ritmo, Castadot opina que «o Município é a entidade primordial do território. Quanto vale o Município, quanto vale a Nação.» Rowe, municipalista americano, afirma que os vínculos municipais fortalecem o culto da honra nacional e levam-nos ao sacrifício voluntário e pronto para a defesa do lar.» Laveleye, no seu radicalismo intelectualizado, assevera que «sem liberdades provinciais e municipais a democracia é como um livro sem título.» Já em outra trincheira política, Cánovas del Castillo exclamava: - «Un pueblo que no tiene liberdades locales, carece de hogar, es un vagabundo.» Por ultimo escutemos a Maura, nos acentos da sua bela linguagem: - «Motivos de coexistencia geográfica, intereses comunes de venicidad y apremios de la sociabilidad natural, van formando los Municípios. La nación no da vida al Municipio, siendo tan absurda y tan ofensiva a la ley natural la injerencia del Estado nacional en lo concejil, como la intrusión en el organismo familiar.» E o autor do formidável projecto de lei de 7 de Junho de 1907 sobre a autonomia local acrescenta: — «En la vida local está la iniciación de la ciudadania, porque el amor de la adolescencia es la patria chica. Sólo el ciudadano adulto ama y concibe à la patria grande. Los votos sueltos, las voluntades individuales, para que puedan producir obra fecunda, han de canalizarse, concretarse y sistematizarse donde tienen el primer vinculo y el más natural, en los Municípios; porque alli están los afectos y los intereses que ligan mucho más al hombre que las idéas...»
Com tão expressiva prova testemunhal se realça a importância do Município e dos problemas que andam ligados à plenitude da sua independência e integridade. Avoluma-se hoje uma reacção profunda no campo das ciências jurídicas e políticas, reclamando para o Município o exercício da sua completa soberania. Reconhece-se, pois, o erro dos critérios administrativos herdados do Liberalismo e da corrente centralizadora francesa. Para esses critérios os Municípios não são mais de que um grau inferior da administração geral do Estado. Tem-se assim o Município como uma exclusiva criação da lei, que ordinariamente o entende como sendo a associação legal de todas as pessoas que residam numa dada circunscrição administrativa, quando, em rigor, o Município é uma criação espontânea ou natural de circunstâncias históricas e demográficas. Compreende-se porque discorrendo acerca de municipalismo e poder municipal, o tratadista espanhol Adolfo Posada não hesite em nos confessar: - «Quiçá no hay hoy en los pueblos cultos de Europa y de América problema político que supere en interés y importancia al del gobierno, o, mejor, régimen municipal; y digo problema politico, huyendo de la falsa indicación y sugestión que suele desnaturalizarlo, al defenir la vida de las formaciones locales como vida de entidades administrativas, no sabiendo a veces ni aun lo que se quiere decir, salvo que no son politicas.»
E o catedrático de Direito Municipal comparado na Universidade de Madrid prossegue com a autoridade competentísima da sua especialização: - «El problema municipal, lo mismo el general del régimen de Municipios grandes y pequeños, rurales y urbanos, ciudades y aldeas, que el más concreto y estricto de la gran ciudad contemporânea es esencialmente politico, en el sentido mais propio y especifico de la palavra. Y sí cuando se estima que los Municipios son simples divisiones ó creaciones del poder central, con el carácter de meras circunscripciones subordinadas, que tienen a su frente corporaciones y funcionarios administrativos, se quiere disminuir o disolver su personalidad política - su Estado,- un examen realista de la vida municipal actual obligaría a rectificar orientación tan equivocada, para afirmar, en cambio, que el problema municipal no es ya solo politico, sino eminentemente social. Ni una sola de cuestiones que entraña la politica social moderna deja de plantearse en los Municipios con más o menos intensidad, según la complejidad de su vida.»
Completa o ilustre professor espanhol o seu pensamento lançando uma nota à anterior transcrição, que é tal como a reproduzimos: - «Es, en rigor, el del municipio el problema de un Estado; ya que el Municipio puede reclamar la condición de Estado, siendo asi legitimo hablar de Estado Municipal.» E Adolfo Posada insiste depois mais demoradamente na sua tese: - «El carácter político de los problemas municipales se impone inevitablemente. En primer lugar, el Municipio és una sociedad territorial determinada o definida por las necesidades de la vida de vencidad, esto es, de una forma de la vida de relación en el espacio: un régimen. Luego, ¿no es política la determinación de la posición del municipio en el sistema constitucional de cada nación? Además, ¿ como explicar la estructura política de un Estado nacional cualquier, sin considerar la posición en el del Municipio? Poco a poco el mismo derecho constitucional ensancha su base y su esfera, para comprender como parte integrante de su sistema el régimen local en todas sus manifestaciones. No puede defenirse - no se define hoy - la constitución de un Estado nacional, considerando unicamente el juego o funcionamento de sus poderes, y las declaraciones fundamentales sobre la soberania y respecto del régimen de garantias; es preciso, además, tener en cuenta la organización interna de sus instituciones municipales y regionales - y el criterio según el cual se regulan las relaciones de estas instituciones con el Poder central. Más aún; si hubo un periodo - el del influjo y predominio del liberalismo, que ahora llamamos viejo - en que la labor politica esencial era hacer efectivo el constitucionalismo en el Estado, creando el régimen de garantias y de división de poderes, luego se ha producido la grande preocupación politica de la aplicación del criterio del constitucionalismo al régimen de las instituciones locales. Y bajo esa preocupación vivimos, muy señaladamente en España, como lo demuestra el valor que se da, en los mas recientes proyectos de reforma del régimen local, a las garantias jurídicas de la autonomia, mediante la dislocación del actual régimen de recursos gubernativos, régimen que implica una sumisión del Municipio al Poder central, con todas las consecuencias deplorables del entronizamiento de la oligarquia caciquil y la negación del caracter politico del Municipio; politico en el sentido propio, en cuanto debe haber y puede haber una política municipal distinta, que nada tiene que ver con la corruptela que hace del Municipio un joguete de las pasiones de los partidos nacionales.»
Foi longo o extracto arrancado ao Prof. Adolfo Posada. Mas de que serviria entraja-lo com expressões nossas, se o seu conteúdo representa a verdadeira exposição do problema? Possui demais a mais uma característica saborosa, — e é a do conflito estabelecido dentro da mesma mentalidade entre o juízo perfeito das condições em que o Município vegeta e o resto de superstição democrática que subsiste ainda no espírito do ilustre tratadista. Nada o traduz melhor do que a sua distinção entre liberalismo velho e liberalismo novo, como se a fórmula «liberalismo» não significasse, tanto no social como no político, «individualismo» e só «individualismo». Ora o «individualismo», considerado quer social, quer politicamente, não sai da hereditariedade viciosa da Revolução Francesa; e, na sua tendência fatal para a pulverização e dispersão, apenas depara refúgio que lhe corrija a falha original na mais férrea e condensada centralização.
O que Adolfo Posada entende como «novo liberalismo» não é, pois, senão a revolta dos acontecimentos e das inteligências contra o Liberalismo. No ponto especial do problema municipalista em que nos confinamos, essa revolta vem de larga data. Deram-lhe consistência e rumo os sociólogos que no campo tradicionalista começaram logo a ofensiva contra os falsos dogmas da Revolução. O antagonismo irredutível, visceral, entre a liberdade teórica dos códigos democráticos e as «liberdades», tanto locais como profissionais, de antigamente, é hoje um principio reconhecido pelos ditames do pensamento tradicionalista. Se digo «pensamento tradicionalista», refiro-me, está claro, ao «experimentalismo cientifico» que a palavra «tradição» importa consigo perante a cultura moderna.
Assim, não há muito ainda que num congresso de jurisconsultos católicos, efectuado em Montpellier (1912), sob a presidência do falecido cardeal de Cabrières [François-Marie-Anatole de Rovérié de Cabrières, 30.8.1830 - 21.12.1921], discutindo-se, entre os temas propostos, a tese da «descentralização», se concluiu unanimemente a tal respeito que «le régime électif s'oppose par principe à une décentralisation effective.» Informa-nos o relato do aludido congresso: - «M. de Boyer Montégut y exposa les résultats d'une enquête approfondie faite par lui sur l'organisation communale dans les pars étrangers. Il s'en dégage que la majorité des législations actuelles sont nettement décentralisatrices et que, là où des réformes sont projéctées, c'est aussi dans ce sens qu'elles sont conçues. Deux pays seulement font exceptions, la Suisse et les Etats-Unis: la tendance a la centralisation s'y explique par l'évolution historique et par les exigences du régime electif.» Não nos achamos em frente de uma afirmação isolada. Na sua esplendida monografia La Province sous l'Ancien Régime, comenta A. Babeau : - «La vieille monarchie jugeait inutile à ses intérêts de conservation de s'assurer partout des auxiliaires dépendants et dévoués, parce qu'elle était assurée de la fidélité de tous; les régimes parlementaires et démocratiques, contraints de se tenir en équilibre sur le sol instable des élections, ont besoin de trouver partout des agents subordonnés, depuis les magistrats de l'ordre judiciaire jusqu'aux instituteurs, aux facteurs ruraux et aux cantonniers.»
Cesarista por natureza e fins, o sistema jurídico-político, brotado do conúbio do Império com a Revolução, não podia deixar de originar um cesarismo administrativo perante as relações da vida local com a vida central do Estado. Insuspeitamente, já Royer-Collard o asseverava em 1822, ao submeter ao Parlamento um projecto de descentralização: — «Nous avons vu la veille société périr, et avec elle cette foule d'institutions domestiques et de magistratures indépendantes qu'elle portait dans son sein, faisceaux puissants des droits privés, vraies Républiques dans la Monarchie», acrescentando em seguida com lamentoso pessimismo: - «Nous sommes devenus un peuple d'administrés sous la main de fonctionnaires irresponsables.»
Coincide singularmente com o nobre desabafo de Royer-Collard a atitude do nosso visconde de Almeida Garrett em 1854 na Câmara dos Pares. Sabe-se que o braço direito de Mousinho da Silveira nas insensatas reformas da Terceira foi Almeida Garrett. Pois, regressado a uma ideia orgânica da nacionalidade, na sua íntima estrutura municipalista, Garrett não ocultaria ali nem o seu protesto, nem o seu arrependimento.
«A administração em Portugal» - bradaria com inflamada razão o grande avô do nacionalismo português, - «como desde a remota origem deste povo se afeiçoou com as leis e hábitos romanos (Garrett considerava o Município, como Herculano o consideraria também, um beneficio do domínio romano), com os hábitos e as instituições da idade média, assenta num princípio que ninguém por largos anos se lembrará jamais de revocar em dúvida ou de discutir sequer - embora se sofismasse muitas vezes, - e é que o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus. Ajunte-se a este princípio o que lhe adicionou depois a monarquia, a bem da ordem e da harmonia geral dos interesses públicos, o qual é - que a autoridade central tem direito e obrigação de olhar por que os interesses das localidades se não choquem e contrariem em prejuízo comum: e temos concentrados nestes dois, todos os mandamentos da lei da nossa existência social.»
«Abusando umas vezes, rectificando outras,» - adita Garrett, - «assim vemos na nossa história administrativa a autoridade delegada pelo poder central do Estado nos Corregedores, nos Juizes de Fora e nos Provedores, posta de equilíbrio e de fiel de balança á autoridade delegada pelo povo aos seus vereadores e juizes.» E o poeta, na asa da sua oratória elegante e sóbria, resume-se: - «Se é permitida a expressão, direi que a nossa administração pública se criou e fundou pelo método natural - o analítico, enquanto o sistema imperial francês é todo sintético.» «Portugal,» - ajunta ele, - «assim como ainda hoje a Inglaterra, a Holanda, a Belgica e a melhor parte da Alemanha, países todos municipais, professa e crê que o direito de se administrar a si próprio pertence ao povo; assim como o direito de vedar que a administração popular de uma localidade lese a outra, ou a outras, ou no todo do País, pertence à autoridade central: em melhor e mais certo rigor de expressão constitucional, - à Coroa, primeiro fiel e primeira garantia de todas as liberdades.»
Impressiona, na verdade, a precisão crítica de Garrett! Quando o mito liberalista entrava a descrever a curva ascensional do seu voo, é de assombrar como o poeta da D. Branca toca nos vícios fundamentais do sistema que defendera de armas na mão, assinalando com rasgada visão o inevitável das suas consequências funestas. Reclamava Garrett para os Concelhos uma completa e franca autonomia, porque, - na frase própria, - o povo «é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus.» A legislação francesa, que o nosso Constitucionalismo servilmente copiara com aberta cumplicidade dele, Garrett, era a personificação do princípio oposto, «que eu não duvido qualificar de falso,» - adicionaria o antigo colaborador de Mousinho, - «de que o direito de administrar pertence à autoridade central, e que os povos, quando muito, só podem ser ouvidos e consultados sobre as suas necessidades, desejos e contribuições.»
O que pretendia então Garrett na encruzilhada em que o espírito se detinha, cheio de apreensões tão sinceras? «Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação,» - gritaria o poeta batendo amplamente no peito, - «a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com a minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, dessas imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimental de teorias que basta serem tantas e tão desencontradas, para nenhuma se poder realizar.» O geometrismo nivelador, traço predominante dos processos administrativos inaugurados pela Revolução, Garrett o encarava de frente, acusando-o de absurdo, por ser a organização que dele derivava em Portugal, invariavelmente «a mesma para o continente e para os arquipélagos das nossas ilhas, separados entre si por largos e tempestuosos mares.» Outro tanto sucedia na metrópole «para uma capital como Lisboa e para uma vilazinha de trinta fogos.»
«Não, Srs., não são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juizes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos» - esclareceria Garrett aos que o olhavam já entre desconfiados e condoídos. «São algumas poucas e simples bases de reforma e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem, para que em harmonia e conformidade com elas seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...»
Rever e nacionalizar o Código Administrativo de 1842! Ingénua aspiração essa de Garrett que só despertaria indiferença ou sorrisos de torpe comentário! Perto já do epílogo de uma decadência sem remédio, os nossos Municípios sentir-se-iam cada vez mais submetidos às vicissitudes do poder central, tornados, portanto, em instrumento das combinações eleiçoeiras com que os partidos se disputavam e alternavam no governo. Abramos o Código Administrativo de 78, — abramos o de 96, abramos ainda aquele com que a República nos presenteou, redigido debaixo da quente aspiração municipalista do senhor dr. Jacinto Nunes. Como são aí tratados e capitulados os Concelhos? Como agregados de formação natural ou histórica, anteriores á formação do Estado, que os deve considerar como componentes seus? Que puro engano, para quem o suponha assim! A designação de «corpos administrativos», compreendendo os Municípios e os Distritos como meras entidades legais, transitou sucessivamente do Código de 78 para o Código do senhor dr. Jacinto Nunes, com a sua filiação napoleónica ou afrancesada bem transparente. Os enérgicos reparos de Garrett tinham-se perdido na sonoridade vazia da sala em que os soltara. E, apesar do Partido-Republicano em Portugal inscrever o municipalismo como um dos primaciais artigos de fé do seu programa, - apesar das campanhas e opúsculos de Rodrigues Nogueira, seu primeiro orientador intelectual e municipalista provado e entusiástico, nós sabemos como a República, refugiando-se num hibridismo de disposições que se contradizem radicalmente umas às outras, não só não modificou a primitiva situação, já deprimente para os Municípios, como a agravou duma maneira insensata e violenta, lançando a perturbação nos serviços concelhios pelo desdobramento das Câmaras Municipais em parte executiva e parte deliberativa e atirando para o seio dos Concelhos mais sertanejos e mais insulados com o gérmen dissolvente do partidarismo em que a unidade moral da Pátria de dia para dia se esfrangalha tragicamente.
É certo que todos esses fermentos de desordem já existiam, implantados pela acção corrosiva do Constitucionalismo. Achavam, porém, um prudente limite nos restos de tradição e espírito municipal que naturalmente levavam os «homens-bons» da localidade às cadeiras da vereação. Tudo se submeteu com a queda da monarquia da Carta, em que para a administração local se não buscou outro título que não fosse o do republicanismo integro das novas edilidades. Resultado? A confusão, a inexperiência, se não a delapidação e o escândalo, agora grandemente facilitado pela entrada nas Câmaras de elementos destituídos da mais ligeira preparação, em vista da amplitude dada aos organismos municipais exigir um maior número de membros para a sua constituição. Não é que nós combatamos em princípio a alteração introduzida nos quadros orgânicos dos nossos Municípios, seccionados pela reforma republicana em Comissão Executiva, propriamente dita, e em Senado Municipal. Nas tendências descentralizadoras da legislação estrangeira nota-se até certo ponto semelhante inovação, de modo nenhum, porém, como a nossa República a entendeu, transportando para a já débil e atrofiada actividade dos Municípios o vírus do Parlamentarismo. Tanto mais que a discórdia das facções, repercutindo-se em toda a extensão da vida nacional, exerce por aí a sua coacção, perfeitamente legítima, sobre a ilusória autonomia dos Concelhos. Acresce ainda que não há medida, por franca e exequível que ela nos apareça nos textos legais, capaz de resistir a um estado de ânimo colectivo, contrário à sua execução ou aplicação. Ora, podiam as intenções do Código Administrativo, promulgado pela República, raiarem nos mais louváveis propósitos descentralizadores, que nem por isso, - por se estatuir na lei, o municipalismo voltava a ser em Portugal uma realidade como outrora!A lei não decreta nem cria as instituições, porque não é o Direito que antecede a sociedade, mas a sociedade o Direito. Para que os Municípios sejam, como as necessidades sociais imperiosamente o reclamam, células elaboradoras de energia e virtudes públicas, antes que a lei se manifeste, preciso se torna um labor de educação e renascimento cívico, que em nada se compraz com a subserviência e guilhotinamento constante a que a burocracia e as demais opressivas montagens do Estado democrático obrigam o cidadão e as entidades chamadas. «administrativas» para com os detentores ocasionais do poder.
Não cumpriu assim a nossa república os seus compromissos municipalistas do tempo da oposição... E não cumpriu, porque naturalmente lhe era impossível cumpri-los. Verificou-se uma vez mais que os regimens de composição ou carácter electivo não pensam nunca em descentralizar, pois que descentralizar representaria perder a chave das eleições sem as quais se não ganha o poder nem se continua no desfruto das suas benesses. Recordemo-nos das grandes palavras, já citadas de Royer-Collard : - «Nous sommes devenus un peuple d'administrés sous la main de fonctionnaires irresponsables!» São palavras que nos quadram perfeitamente. Nascidas da observação em França do mesmo fenómeno, exprimem duma forma inolvidável a tara insanável dos sistemas políticos que a Revolução e o Liberalismo, seu filho primogénito, incestuosamente engendraram. «Appelons l'attention de quelques gens qui pensent à quelque chose sur cette anomalie que le pays où le peuple prêtend exercer la souveraineté n'est organisé qu'en pays conquis,» — comenta também o insigne sociólogo que é o marquês de La Tour du Pin. Os motivos dessa estranha antinomia já ficaram apontados e sumariados. Adicionemos-lhes alguns detalhes que são interessantes e acabaremos por nos convencer com a nudez do seu desprendimento persuasivo. Absolve-se com isso a nossa República de um pecado que não lhe cabe inteiramente, submetendo à apreciação das inteligências de boa-fé o exame de certos factos, que por si só nos forçam, sem mais apelo nem recursos, ao repudio terminante da Democracia em geral, assuma ela o aspecto que assumir, aperte a máscara que apertar!
Sem nos afastarmos muito de ao pé da porta, o insucesso do belo projecto de Maura sobre o «regímen local», oferecido à discussão do parlamento espanhol em 1907, demonstra-nos, fora das considerações de índole teórica, a incompatibilidade irredutível do Estado moderno, — ou seja do Estado democrático e parlamentar, com o ressurgimento e intensificação das velhas autonomias municipais e provinciais. Merece um minuto de atenção tão importante reforma, que significava nada menos do que a extinção das oligarquias de caciques que manietam e estrangulam abusivamente a pobre Espanha. E para que se note desde já a transformação profunda que o projecto de D. António Maura trazia ao saneamento e dignificação da política do seu país, basta assinalar que os Municípios e Províncias deixavam de ser classificados como circunscrições exclusivamente administrativas, passando a entender-se como órgãos integradores do «regímen local».
Atendia o referido projecto à manutenção dos pequenos Municípios, facilitando-lhes a reconstituição por meio de mancomunidades. Admitia no governo municipal a representação profissional ou corporativa, sendo esta representação obtida por eleição indirecta. O mandato dos vereadores (concejales) duraria seis anos, renovando-se de três em três anos apenas por metade. Garantiam-se assim a estabilidade e a continuidade necessárias à boa administração do Município. O Ajuntamiento, entidade conjunta actuando como um todo uno, dividia-se «en una representación diferenciada, que funciona periodicamente como ajuntamiento pleno, pasando el gobierno y administración normales del Municipio a cargo del alcalde y de los tenientes (adjuntos).» Aqui foi buscar, estragando-a, o nosso último Código Administrativo a inovação, já apontada, duma Comissão Executiva, e dum Senado Municipal. Acentua o projecto de Maura o duplo carácter do alcalde como magistratura municipal e como delegado do poder central. Determina com mais segurança as condições de vecindad (residencia),— conceito essencial para o exercício dos cargos municipais. Cria também as «juntas de vecinos y de mancomunidad.» Mas sublinhando melhor o espírito que inspira o projecto em questão, recortemos para aqui a sua definição de Município.
«Forma Municipio,» - reza o artigo I - «la comunidad natural, reconocida por la ler, de familias y casas dentro del término á que alcanza la jurisdición de su Ayuntamiento.» Contrasta singularmente a doutrina do transcrito artigo com a que até então se professava nas estações oficiais e para o qual o Município, - tal como entre nós, - exprimia apenas uma «idéa» ou «critério» legal.
Sem nos alongarmos no estudo do projecto de Maura, fixaremos ainda, num breve apanhado, os seus traços dominantes. Considera ele como «organismos locais»: - a) os «anejos» juntamente com os Municípios; b) o agrupamento de Municípios; c) as mancomunidades de Municípios; d) as Províncias; e e) as mancomunidades de Províncias. O que são, porém, os «anejos»? Eis uma particularidade da constituição topológica de Espanha, onde, a não ser na Galiza e nas Astúrias, a Paróquia não existe como célula ou unidade civil. Isto nos distingue em Portugal, quanto à génese e formação social da nossa pátria. Mas os «anejos» são (artigo 4 do projecto) «los poblados, aldeas y caserios que en la actualidad ó en consecuencia de venideras fusiones ó agregaciónes tengan território propio, aguas, pastos, montes ó cualesquiera derecho peculiares...» As «Juntas vecinales» representariam os «anejos», a quem se conferia a capacidade jurídica correspondente à sua órbita de acção. Quanto às «agrupaciónes de municipios», estatuía o projecto: — «Para servicios, funciones y facultades que no son de la exclusiva competencia municipal y en que las autoridades locales actúen por virtud de delegación del Gobierno y de la Administración del Estado, los Municipios que manten menos de 2:000 habitantes podrán ser agrupados á otro ó otros limitrofes, segun las conveniencias ó gubernativas ó administrativas, recayendo la mencionada delegación del Poder central, para todo el território de los termi-nos agregados, en la alcaldia del Municipio donde existe la mais populosa agrupación...»
As exemplificações que do projecto de Maura inserimos, instruem-nos suficientemente acerca do seu alcance e magnitude. Desde os mais modestos núcleos rurais de sociabilidade até à resolução dos conflitos candentes do Catalanismo, por efeito das mancomunidades de províncias ou regiões, o «regimen local» espanhol encontrava nele satisfação às suas aspirações com tanto de legítimas como de inadiáveis. O eixo central do Estado não sofria aluimento ou diminuição, antes se robustecia na sua dinâmica coordenadora, graças a essa espécie de capilaridade que no projecto aludido assegura sábiamente a harmonia e a vitalidade do organismo político. Porque não venceu então? Não venceu pela incapacidade congénita do Estado parlamentar, - quer se rotule de monárquico, quer se confesse abertamente republicano, - para descentralizar. Enquanto no Congresso os agrupamentos da «direita», incluindo os Jaimistas, dispensavam ao projecto de Maura o apoio e o aplauso que sem favor lhe era devido, perante a oposição sistemática de «liberais», «democratas» e «republicanos», protelando-o e discutindo-o incessantemente, o seu naufrágio não tardou a consumar-se como um capítulo a mais da insigne farsa que é, em democracia política, a liberdade.»
Voltou em 1912 Canalejas, em nome do Partido-Liberal que chefiava, ao eterno tema da « descentralização» e «autonomia local.» O seu projecto não passou também de projecto, e em pouco ou nada diferia do de Maura, senão para o ajeitar mais à estrutura parlamentarista do Estado. Não se quer dizer com isto que o projecto de Maura a repelisse. O seu defeito consiste até na preocupação evidente de contar com a falsa instituição do sufrágio-universal e de pretender moralisa-la. No entanto, apesar dessas e outras deficiências viscerais, traduz um nobre anseio de vivificação municipal e provincial, constituindo matéria jurídica em desacordo terminante com o individualismo consignado pelos costumes e pelas leis. Recordemo-nos, para o comprovar, da definição que êle nos dá de Município. «Município é a associação natural e legal de familias e casas dentro dum determinado termo ou território.» «Esta difinición,» -sublinha agudamente Valenzuela Soler no seu opúsculo Condición juridica del Municipio,- «a demás de reconocer el carácter natural del Municipio, ya no habla de individuos aislados sino de familias y casas.» E levantando-se discussão no Congresso sobre o significado de «casas», visto que uma casa ou agrupamentos de casas podem ser objecto de direito, mas nunca sujeito dele, o deputado Tormo, membro da comissão encarregada de apreciar e relatar o projecto, explicou que «se dice casa no como elemento distinto de familia, sino como elemento complentario de la misma, como hogar ó vivenda que siempre es indispensable á la familia. Domicilio, en una palabra. » Nada, efectivamente, mais conforme com os preceitos e o experimentalismo da sociologia tradicionalista!
O insucesso da tentativa de Maura, seguida no mesmo destino pela de Canalejas, serve-nos, pois, para nos confirmar na absoluta certeza de que os regimens parlamentares não conseguem nunca des-centralisar, quanto mais devolver aos organismos locais a sua perdida autonomia! Sinceramente impressionado com esta incapacidade do Estado liberal ou democrático, o político e orador espanhol Segismundo Moret, figura representativa da ‹esquerda» dinástica, não se conteve sem reparar num dos seus discursos: - «Uno de los grandes males que liene la libertad, es que se tema verla venir, que no inspire confianza á los mismos que han de plantearla, porque entonces, empezando poco á poco la centralización, viene esa serie de Reales decretos, de Reales órdenes, y de trabajos del Ministerio de la Gober-nación, que dán por resultado destruir en poco tempo cualquiera que sea el espiritu de la ley, la independencia de las corporaciones populares.»
Daqui se deduz sem dificuldade como o Liberalismo e a Democracia, adversos por natureza ao Municipalismo, são adversos, por consequência, ao verdadeiro nacionalismo, exactamente, porque nos extintos centros da vida local é que a fisionomia da Nação se elaborava e fortificava através das suas formas imediatas, — a fonte, o adro da igreja, a casa da Câmara, a Torre do Relógio, a ponte morena com o rio correndo, manso, entre choupos luzentes. Tudo respirava, com a consciência da nossa pequena pátria, o sentido e a adivinhação duma pátria maior. Então o ‹patriotismo» não se conhecia, como vocábulo sonoro. Mas existia o sentimento da Família e da Religião, - existia o brio profissional e o apêgo á vila em que se nascera e de cujas pedras seculares se dependurava o quadro pacifico das nossas aspirações. A Revolução surgiu, porém, - com ela se desataram e esfarraparam metodicamente os laços que prendiam outrora os homens ao património ancestral e os somavam em actividades permanentes e contínuas, - as Comunas e as Corporações. Defendendo e solidarizando os indivíduos perante a intromissão abusiva do Estado, esses numerosos enxames de mesteirais e nobres de segunda condição constituíam uma espécie de «repúblicas intermediarias», - na frase feliz de alguém,- em que a liberdade e a autoridade se casavam fecundamente com a laboriosidade e o pundonor.
E não se estranhe que eu perfilhe a expressão «republicas intermediarias.»! Não olvidamos decerto ainda que Royer-Collard se descobria com respeito diante da «multidão de instituições domésticas e de magistraturas independentes» que a sociedade tradicional abrigava no seu seio, como «verdadeiras repúblicas na monarquia.» Mais insuspeito pela sua posição intelectual e politica, Charles Maurras opina também que «le mot république a un sens raisonnable: même après le rétablissement de la Monarchie, il pourra être conservé dans ce sens primitif que désignait Vétendue des affaires communes... En revanche, démocratie doit être rayé, banni et oublié, come pur synonyme de dégenerescence, expression de la désorganisation et de l'émiettement, épave linguistique de ce que le régime de la République eut jadis de plus funeste. C'est la démocratie qui est l'élement anarchique de la République; c'est la démocratie qui est l'élement pernicieua du socialisme.»
Em Portugal, o termo «república» encontra nos documentos um significado igual. O nosso passado municipal, tão cioso das suas regalias e foros, pode, pois, reputar-se, na atitude desenvolta de tantos e tantos vereadores e «homens-bons» para com os nossos monarcas, como uma lição de perfeito «republicanismo», — desde que «república» se entenda como Maurras a interpreta, colocado dentro da mais rigorosa realidade histórica. Já ponderava Bonald: - «J'aime assez, je l'avoue, dans un homme, le mélange de sentiments et d'indépendance républicaine et de principes d'obéissance et de fidélité monarchique: c'est là, si l'on y prend garde, ce qui constituait l'esprit français, et ce qui fait l'homme fort dans une société forte».
Essa mistura de «independência republicanas e de «fidelidade monárquica», sendo o que faz o homem forte numa sociedade forte, não era só qualidade do espírito francês. Era qualidade fundamental dos povos emancipados pela civilisação cristã e dignificados socialmente pelo Município. Assim se formou o «cidadão», — assim se formou o «civismo», se a tão desacreditadas designações restituirmos a sua pureza nativa. Tudo se extinguiu com a vaga assoladora da Revolução. É fora de dúvidas que a concentração absolutista, iniciada pelos Legistas e levada ao cume pela Renascença, tinha amortecido sensivelmente a consciência municipal dos povos. Mas o desastre consumou-se sem remédio, quando a liberdade teórica dos «Imortais Princípios» suplantou as velhas liberdades orgânicas!
Um absolutismo pior que o absolutismo dos Reis tomou corpo e forma jurídica na sua odiosa e tirânica impersonalidade: - o absolutismo anónimo e irresponsavel da soberania popular. Acerca de tão «irrisório dogma», reflexionava com rara agudeza no n.° 2 do seu panfleto O Desengano o nosso grande Padre José Agostinho de Macedo: - «Em nome da Nação se cometem todos os atentados pela mesma Nação e fica escrava dos facciosos a mesma que se acredita soberana no trono.» Foi o que sucedeu em Portugal, foi o que sucedeu em França, tratada como «país conquistado», segundo o juizo categorisado de La Tour du Pin; foi o que sucedeu em toda a parte onde explodiram, ganhando raizes, as ideias individualistas do Contracto Social. O Estado absorveu imediatamente as parcelas de autonomia, - as «liberdades», - disseminadas pela colectividade, reduzindo esta a um atomismo que a impossibilitou de qualquer resistência. Hoje a sociedade tradicional, que é a sociedade naturalmente constituida, parece renascer, despertar, reconquistar os seus direitos esquecidos. Como sintoma prometedor, entre outros muitos, salienta-se o da profunda revivescencia localista, verificada tanto no campo dos factos como no dominio das inteligências. À crise sem recurso do Estado, — tal como o Liberalismo e a Democracia o conceberam, responde na maior amplitude um movimento de lenta, mas afincada reconstituição nos tecidos celulares das velhas pátrias europeias. Desenha-se o regresso à unidade e indissolubilidade da Família; desenha-se o regresso às formas gremiais do Trabalho; a Propriedade principia a retomar as linhas imperativas da sua obliterada função social; no descalabro da economia burguesa, reabilitam-se com estrondosa oportunidade as caluniadas fórmulas económicas da Idade-Media; e até a Nobreza ressurge como elemento de estímulo, de hierarquia e de ordem, desde que, em face do materialismo abjecto da hora que passa, se reconhece enfim que o heroísmo, o sacrifício, a virtude e o desinterêsse não encontram outro prémio que não seja o da herança moral, transmitida de pais a filhos como um bem inalteravel.
A corrente municipalista que se acentua em toda a parte, mesmo naqueles sectores de opinião cuja ideologia lhe é hostil por índole, não se deve, por isso, apreciar como um fenómeno solto, simples modismo ocasional, sem raízes profundas no germinar oculto dos acontecimentos. Antes, pelo contrário, se enlaça de perto às causas que estão motivando o eclipse mortal das superstições e mitos, tanto filosóficos, como políticos, em que o século findo, - le Stupide de León Daudet! - tão abundantemente se desentranhou. Vê-se demais a mais que não se trata dum romantismo passageiro, — dum tradicionalismo literário ou sentimental. As ciências sociais e económicas apossam-se do Municipalismo com ponderada paixão e tornam-no um dos problemas mais em destaque entre as questões primaciais da nossa época. Por divergentes que os autores se manifestem na interpretação de um ou de outro detalhe, segundo a posição que reconheçam ao Estado na orgânica geral de colectividade, nenhum discorda da maneira como o Município moderno carece de funcionar, totalmente emancipado de peias e deprimentes tutelas centralistas. Trata-se unanimamente «de la diferenciación de la vida municipal, apartandola de la del Estado y procurando que ella se defina y mueva con politica própia,» esclarece o catedrático Adolfo Posada em prefácio à tradução espanhola do livro de Rowe sobre O governo da cidade. «Por que es evidente que nada perturba y corrompe el régimen municipal como la subordinación de su politica a la de los partidos nacionales, haciendo que las elecciones municipales se efectúen con el supuesto de los problemas generales y como luchas de partidos llamados a reflectir las tendencias producidas en relación con aquellos problemas.»
«Lo que acaso va resultando cada dia más claro, aunque sea con grandes repugnancias — es que la reforma del régimen local no es un sencillo problema de pura administración, no consiste en una nueva cuestión legal de centralización...»,- explica o professor Posada em outro trabalho seu - Evolución legislativa del régimen local en España (1812-1909). Não só importa trazer de novo para a realidade jurídica as formações naturais e históricas que subsistiram dos antigos pluralismos localistas, - dessa espécie de repúblicas intermediárias», como é urgentíssimo também incorporar nas instituições municipais e provinciais as forças que vivem à margem da política e que precisam de inspira-la, moralisa-la e conduzi-la. A tanto olhava o projecto de Maura, admitindo a representação corporativa na constituição dos Municípios. Justamente, porque semelhante medida arrancava o trabalhador associado às garras dos profissionais do radicalismo, é que o mencionado projecto padeceu tão duro combate por parte das «esquerdas» parlamentares em Espanha.
Há, pelo exposto, um governo de Municipio e, como tal, um poder municipal. Donde o concluirmos, com respeito às generalidades da questão, como conclui Adolfo Posada: - «La visión moderna de la vida local está sin duda, muy lejos de la conceptuación legal de los Municipios, con sus Ayuntamientos incrustados en el sistema de una función administrativa, como una división territorial del Estado. Esta visión moderna impone el Municipio grande ó pequeno, sintetizado en un centro de vida como una unidad orgânica, que entreña un complejo de intereses comunes - vecinales: - intereses del hombre moderno, economicos, éticos, culturales, de la salud del cuerpo y del espiritu; aungue comprendida la formación municipal en el sistema más amplio de una vida nacional, que será tanto más rica y progresiva cuanto más intensa sea la de los municipios componentes.»
Se semelhante conclusão dum Município-Estado, componente da Pátria como elaborador e realisador de energias colectivas, é na actualidade um tema estreitamente ligado á sorte da Autoridade e da Civilização, reveste-se, quanto a nós, portugueses, duma importância especial pela arraigada estrutura municipalista do nosso país. Como outrora os «vilões» ingresaram no corpo da Nobreza servindo com ânimo limpo e recto juízo as magistraturas concelhias, a dignificação política do nosso país conseguir-se-á por certo quando os «homens-bons» de Portugal, que os há ainda! — se resolvam a arrancar os Concelhos das mãos em que cairam, cortando pela raíz o partidarismo que envilece o Estado e insaciávelmente o depaupera. Não nos poupemos a tudo quanto contribua para preparar contra o centralismo ignaro do Terreiro do Paço que tem Portugal como coisa conquistada, uma forte reacção dos elementos sãos da nacionalidade. O Municipalismo é um dos caminhos mais seguros e mais directos. Precisemos, pois, o que seja o Municipalismo, limpando-o das misturas bastardas com que anda de boca em boca na retórica salivosa dos comícios e congressos. Para bem agir, carece-se primeiro de se pensar bem. A mais se não destinam, como modesto indicador, os materiais reunidos no presente estudo.
[negritos acrescentados]
Atingiram as consequências extremas as dou trinas do século passado sobre a constituição do Estado e a natureza do poder. Baseadas no indivíduo, como célula fundamental da sociedade, fizeram tábua-rasa dos agrupamentos naturais, de que o ser colectivo se tecia e que, sendo, na sua formação, organismos anteriores à vida e aparecimento do Estado, representam forças essenciais, para cuja coordenação e guarda o Estado existe como lógico agente ponderador. Método violento de conquista, sistema eficaz de ocupação, - os princípios saídos da Revolução Francesa e tornados por Napoleão em corpo legal, suprimiram assim todas as fecundas actividades locais, - ou Comunas, encaradas político-administrativamente, ou Corporações, se as encararmos profissionalmente, - abrindo caminho desta forma à dissolução dos vínculos sociais e à consequente anarquia em que o Estado moderno se desmantela e oscila, tal como a nau de Horácio, ao sabor dos ventos mais contraditórios, à mercê dos apetites mais ignaros e audaciosos.
A concepção da sociedade que triunfou então era uma concepção abstracta, copiada dos idílios convencionais de Rousseau e tendo por modelo as fachadas simétricas da antiga e exígua sociologia greco-romana. Gerou, como não podia deixar de gerar, o cesarismo, — e com ele o absolutismo mascarado da centralização burocrática dos regimes actuais, ou sejam monarquias democráticas, ou repúblicas semi-socialistas. Ao sentimento unânime da unidade moral da pátria substituía-se agora, como regra de governo, a luta permanente dos partidos. E a estrutura histórica da sociedade, já bastante revolvida pelos exageros centralistas dos Jurisconsultos, obcecados na ressurreição do direito justinianeu, acabou por se pulverizar com o advento do Liberalismo.
Entre as instituições que mais sofreram, ocupam os Municípios um lugar de destaque. Elaboradores do patriotismo local, graças a eles se originou, cresceu e abriu as asas o patriotismo nacional. Fala-se muito de Municípios e de Municipalismo. Importa não irmos na tendência verbalista que tudo obscurece, detendo-nos a examinar o que seja de facto o Município. «Se se analisam e decompõem os elementos orgânicos de um Estado» - observa Savigny,- «encontraremos em toda a parte o município.» Tocqueville, esse, exaltava-o numa definição que é memorável: - «O Município existe em todos os povos, quaisquer que sejam suas leis e costumes. Organiza e forma tanto os reinos como as repúblicas. O Município parece que saiu das mãos de Deus. É a primeira escola onde o cidadão deve aprender os seus deveres políticos e sociais.» Arhens, por seu turno declara: - «O Município é a segunda sociedade fundamental em que se realizam todos os fins humanos, não como uma simples circunscrição territorial, um «termo» mais ou menos extenso com determinada função política, mas como uma sociedade em que a finalidade religiosa, científica, artística, económica, — em síntese, tudo quanto ao homem cabe efectuar e atingir, se desenvolve dispondo dos meios necessários para a sua realização.» H. de Tausey, chamado a depor, diz-nos: - «O poder municipal não é uma criação da lei, devendo a sua origem à própria força das coisas; existe porque tem de existir.» Sismondi afirmava já também que o Município não é um ser ideal ou fantástico, mas sim a verdadeira pátria, a que vemos, a que conhecemos em todos os seus pormenores, a que nos fala a todos os sentidos.»
E nesta ligeira convocatória os depoimentos sucedem-se, não se esgotam nem se retraem. Oiçamos o de Royer Collard: - «O Município, como a família, existiu antes do Estado. Não foi a lei política que o constituiu, porque foi acha-lo já formado.» No mesmo ritmo, Castadot opina que «o Município é a entidade primordial do território. Quanto vale o Município, quanto vale a Nação.» Rowe, municipalista americano, afirma que os vínculos municipais fortalecem o culto da honra nacional e levam-nos ao sacrifício voluntário e pronto para a defesa do lar.» Laveleye, no seu radicalismo intelectualizado, assevera que «sem liberdades provinciais e municipais a democracia é como um livro sem título.» Já em outra trincheira política, Cánovas del Castillo exclamava: - «Un pueblo que no tiene liberdades locales, carece de hogar, es un vagabundo.» Por ultimo escutemos a Maura, nos acentos da sua bela linguagem: - «Motivos de coexistencia geográfica, intereses comunes de venicidad y apremios de la sociabilidad natural, van formando los Municípios. La nación no da vida al Municipio, siendo tan absurda y tan ofensiva a la ley natural la injerencia del Estado nacional en lo concejil, como la intrusión en el organismo familiar.» E o autor do formidável projecto de lei de 7 de Junho de 1907 sobre a autonomia local acrescenta: — «En la vida local está la iniciación de la ciudadania, porque el amor de la adolescencia es la patria chica. Sólo el ciudadano adulto ama y concibe à la patria grande. Los votos sueltos, las voluntades individuales, para que puedan producir obra fecunda, han de canalizarse, concretarse y sistematizarse donde tienen el primer vinculo y el más natural, en los Municípios; porque alli están los afectos y los intereses que ligan mucho más al hombre que las idéas...»
Com tão expressiva prova testemunhal se realça a importância do Município e dos problemas que andam ligados à plenitude da sua independência e integridade. Avoluma-se hoje uma reacção profunda no campo das ciências jurídicas e políticas, reclamando para o Município o exercício da sua completa soberania. Reconhece-se, pois, o erro dos critérios administrativos herdados do Liberalismo e da corrente centralizadora francesa. Para esses critérios os Municípios não são mais de que um grau inferior da administração geral do Estado. Tem-se assim o Município como uma exclusiva criação da lei, que ordinariamente o entende como sendo a associação legal de todas as pessoas que residam numa dada circunscrição administrativa, quando, em rigor, o Município é uma criação espontânea ou natural de circunstâncias históricas e demográficas. Compreende-se porque discorrendo acerca de municipalismo e poder municipal, o tratadista espanhol Adolfo Posada não hesite em nos confessar: - «Quiçá no hay hoy en los pueblos cultos de Europa y de América problema político que supere en interés y importancia al del gobierno, o, mejor, régimen municipal; y digo problema politico, huyendo de la falsa indicación y sugestión que suele desnaturalizarlo, al defenir la vida de las formaciones locales como vida de entidades administrativas, no sabiendo a veces ni aun lo que se quiere decir, salvo que no son politicas.»
E o catedrático de Direito Municipal comparado na Universidade de Madrid prossegue com a autoridade competentísima da sua especialização: - «El problema municipal, lo mismo el general del régimen de Municipios grandes y pequeños, rurales y urbanos, ciudades y aldeas, que el más concreto y estricto de la gran ciudad contemporânea es esencialmente politico, en el sentido mais propio y especifico de la palavra. Y sí cuando se estima que los Municipios son simples divisiones ó creaciones del poder central, con el carácter de meras circunscripciones subordinadas, que tienen a su frente corporaciones y funcionarios administrativos, se quiere disminuir o disolver su personalidad política - su Estado,- un examen realista de la vida municipal actual obligaría a rectificar orientación tan equivocada, para afirmar, en cambio, que el problema municipal no es ya solo politico, sino eminentemente social. Ni una sola de cuestiones que entraña la politica social moderna deja de plantearse en los Municipios con más o menos intensidad, según la complejidad de su vida.»
Completa o ilustre professor espanhol o seu pensamento lançando uma nota à anterior transcrição, que é tal como a reproduzimos: - «Es, en rigor, el del municipio el problema de un Estado; ya que el Municipio puede reclamar la condición de Estado, siendo asi legitimo hablar de Estado Municipal.» E Adolfo Posada insiste depois mais demoradamente na sua tese: - «El carácter político de los problemas municipales se impone inevitablemente. En primer lugar, el Municipio és una sociedad territorial determinada o definida por las necesidades de la vida de vencidad, esto es, de una forma de la vida de relación en el espacio: un régimen. Luego, ¿no es política la determinación de la posición del municipio en el sistema constitucional de cada nación? Además, ¿ como explicar la estructura política de un Estado nacional cualquier, sin considerar la posición en el del Municipio? Poco a poco el mismo derecho constitucional ensancha su base y su esfera, para comprender como parte integrante de su sistema el régimen local en todas sus manifestaciones. No puede defenirse - no se define hoy - la constitución de un Estado nacional, considerando unicamente el juego o funcionamento de sus poderes, y las declaraciones fundamentales sobre la soberania y respecto del régimen de garantias; es preciso, además, tener en cuenta la organización interna de sus instituciones municipales y regionales - y el criterio según el cual se regulan las relaciones de estas instituciones con el Poder central. Más aún; si hubo un periodo - el del influjo y predominio del liberalismo, que ahora llamamos viejo - en que la labor politica esencial era hacer efectivo el constitucionalismo en el Estado, creando el régimen de garantias y de división de poderes, luego se ha producido la grande preocupación politica de la aplicación del criterio del constitucionalismo al régimen de las instituciones locales. Y bajo esa preocupación vivimos, muy señaladamente en España, como lo demuestra el valor que se da, en los mas recientes proyectos de reforma del régimen local, a las garantias jurídicas de la autonomia, mediante la dislocación del actual régimen de recursos gubernativos, régimen que implica una sumisión del Municipio al Poder central, con todas las consecuencias deplorables del entronizamiento de la oligarquia caciquil y la negación del caracter politico del Municipio; politico en el sentido propio, en cuanto debe haber y puede haber una política municipal distinta, que nada tiene que ver con la corruptela que hace del Municipio un joguete de las pasiones de los partidos nacionales.»
Foi longo o extracto arrancado ao Prof. Adolfo Posada. Mas de que serviria entraja-lo com expressões nossas, se o seu conteúdo representa a verdadeira exposição do problema? Possui demais a mais uma característica saborosa, — e é a do conflito estabelecido dentro da mesma mentalidade entre o juízo perfeito das condições em que o Município vegeta e o resto de superstição democrática que subsiste ainda no espírito do ilustre tratadista. Nada o traduz melhor do que a sua distinção entre liberalismo velho e liberalismo novo, como se a fórmula «liberalismo» não significasse, tanto no social como no político, «individualismo» e só «individualismo». Ora o «individualismo», considerado quer social, quer politicamente, não sai da hereditariedade viciosa da Revolução Francesa; e, na sua tendência fatal para a pulverização e dispersão, apenas depara refúgio que lhe corrija a falha original na mais férrea e condensada centralização.
O que Adolfo Posada entende como «novo liberalismo» não é, pois, senão a revolta dos acontecimentos e das inteligências contra o Liberalismo. No ponto especial do problema municipalista em que nos confinamos, essa revolta vem de larga data. Deram-lhe consistência e rumo os sociólogos que no campo tradicionalista começaram logo a ofensiva contra os falsos dogmas da Revolução. O antagonismo irredutível, visceral, entre a liberdade teórica dos códigos democráticos e as «liberdades», tanto locais como profissionais, de antigamente, é hoje um principio reconhecido pelos ditames do pensamento tradicionalista. Se digo «pensamento tradicionalista», refiro-me, está claro, ao «experimentalismo cientifico» que a palavra «tradição» importa consigo perante a cultura moderna.
Assim, não há muito ainda que num congresso de jurisconsultos católicos, efectuado em Montpellier (1912), sob a presidência do falecido cardeal de Cabrières [François-Marie-Anatole de Rovérié de Cabrières, 30.8.1830 - 21.12.1921], discutindo-se, entre os temas propostos, a tese da «descentralização», se concluiu unanimemente a tal respeito que «le régime électif s'oppose par principe à une décentralisation effective.» Informa-nos o relato do aludido congresso: - «M. de Boyer Montégut y exposa les résultats d'une enquête approfondie faite par lui sur l'organisation communale dans les pars étrangers. Il s'en dégage que la majorité des législations actuelles sont nettement décentralisatrices et que, là où des réformes sont projéctées, c'est aussi dans ce sens qu'elles sont conçues. Deux pays seulement font exceptions, la Suisse et les Etats-Unis: la tendance a la centralisation s'y explique par l'évolution historique et par les exigences du régime electif.» Não nos achamos em frente de uma afirmação isolada. Na sua esplendida monografia La Province sous l'Ancien Régime, comenta A. Babeau : - «La vieille monarchie jugeait inutile à ses intérêts de conservation de s'assurer partout des auxiliaires dépendants et dévoués, parce qu'elle était assurée de la fidélité de tous; les régimes parlementaires et démocratiques, contraints de se tenir en équilibre sur le sol instable des élections, ont besoin de trouver partout des agents subordonnés, depuis les magistrats de l'ordre judiciaire jusqu'aux instituteurs, aux facteurs ruraux et aux cantonniers.»
Cesarista por natureza e fins, o sistema jurídico-político, brotado do conúbio do Império com a Revolução, não podia deixar de originar um cesarismo administrativo perante as relações da vida local com a vida central do Estado. Insuspeitamente, já Royer-Collard o asseverava em 1822, ao submeter ao Parlamento um projecto de descentralização: — «Nous avons vu la veille société périr, et avec elle cette foule d'institutions domestiques et de magistratures indépendantes qu'elle portait dans son sein, faisceaux puissants des droits privés, vraies Républiques dans la Monarchie», acrescentando em seguida com lamentoso pessimismo: - «Nous sommes devenus un peuple d'administrés sous la main de fonctionnaires irresponsables.»
Coincide singularmente com o nobre desabafo de Royer-Collard a atitude do nosso visconde de Almeida Garrett em 1854 na Câmara dos Pares. Sabe-se que o braço direito de Mousinho da Silveira nas insensatas reformas da Terceira foi Almeida Garrett. Pois, regressado a uma ideia orgânica da nacionalidade, na sua íntima estrutura municipalista, Garrett não ocultaria ali nem o seu protesto, nem o seu arrependimento.
«A administração em Portugal» - bradaria com inflamada razão o grande avô do nacionalismo português, - «como desde a remota origem deste povo se afeiçoou com as leis e hábitos romanos (Garrett considerava o Município, como Herculano o consideraria também, um beneficio do domínio romano), com os hábitos e as instituições da idade média, assenta num princípio que ninguém por largos anos se lembrará jamais de revocar em dúvida ou de discutir sequer - embora se sofismasse muitas vezes, - e é que o povo é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus. Ajunte-se a este princípio o que lhe adicionou depois a monarquia, a bem da ordem e da harmonia geral dos interesses públicos, o qual é - que a autoridade central tem direito e obrigação de olhar por que os interesses das localidades se não choquem e contrariem em prejuízo comum: e temos concentrados nestes dois, todos os mandamentos da lei da nossa existência social.»
«Abusando umas vezes, rectificando outras,» - adita Garrett, - «assim vemos na nossa história administrativa a autoridade delegada pelo poder central do Estado nos Corregedores, nos Juizes de Fora e nos Provedores, posta de equilíbrio e de fiel de balança á autoridade delegada pelo povo aos seus vereadores e juizes.» E o poeta, na asa da sua oratória elegante e sóbria, resume-se: - «Se é permitida a expressão, direi que a nossa administração pública se criou e fundou pelo método natural - o analítico, enquanto o sistema imperial francês é todo sintético.» «Portugal,» - ajunta ele, - «assim como ainda hoje a Inglaterra, a Holanda, a Belgica e a melhor parte da Alemanha, países todos municipais, professa e crê que o direito de se administrar a si próprio pertence ao povo; assim como o direito de vedar que a administração popular de uma localidade lese a outra, ou a outras, ou no todo do País, pertence à autoridade central: em melhor e mais certo rigor de expressão constitucional, - à Coroa, primeiro fiel e primeira garantia de todas as liberdades.»
Impressiona, na verdade, a precisão crítica de Garrett! Quando o mito liberalista entrava a descrever a curva ascensional do seu voo, é de assombrar como o poeta da D. Branca toca nos vícios fundamentais do sistema que defendera de armas na mão, assinalando com rasgada visão o inevitável das suas consequências funestas. Reclamava Garrett para os Concelhos uma completa e franca autonomia, porque, - na frase própria, - o povo «é quem a si mesmo se administra por magistrados eleitos e delegados seus.» A legislação francesa, que o nosso Constitucionalismo servilmente copiara com aberta cumplicidade dele, Garrett, era a personificação do princípio oposto, «que eu não duvido qualificar de falso,» - adicionaria o antigo colaborador de Mousinho, - «de que o direito de administrar pertence à autoridade central, e que os povos, quando muito, só podem ser ouvidos e consultados sobre as suas necessidades, desejos e contribuições.»
O que pretendia então Garrett na encruzilhada em que o espírito se detinha, cheio de apreensões tão sinceras? «Eu sou o primeiro a confessar-me réu nesta acusação,» - gritaria o poeta batendo amplamente no peito, - «a querelar de mim mesmo pelo que tenho contribuído com a minha inexperiência e cego zelo para muitas dessas desvairadas provisões, dessas imitações e traduções estrangeiras com que erradamente, sem método, sem nexo, temos feito deste pobre país um campo experimental de teorias que basta serem tantas e tão desencontradas, para nenhuma se poder realizar.» O geometrismo nivelador, traço predominante dos processos administrativos inaugurados pela Revolução, Garrett o encarava de frente, acusando-o de absurdo, por ser a organização que dele derivava em Portugal, invariavelmente «a mesma para o continente e para os arquipélagos das nossas ilhas, separados entre si por largos e tempestuosos mares.» Outro tanto sucedia na metrópole «para uma capital como Lisboa e para uma vilazinha de trinta fogos.»
«Não, Srs., não são as Câmaras por pauta, não é a Ordenação Filipina, não é o Desembargo do Paço, não são os Juizes de Fora presidindo às Câmaras o que hoje venho propor-vos» - esclareceria Garrett aos que o olhavam já entre desconfiados e condoídos. «São algumas poucas e simples bases de reforma e reabilitação administrativa que venho pedir que se decretem, para que em harmonia e conformidade com elas seja revisto e nacionalizado o Código Administrativo de 1842, de maneira que a administração pública menos dispendiosa, mais simples, mais eficaz, seja ao mesmo tempo mais liberal, mais portuguesa...»
Rever e nacionalizar o Código Administrativo de 1842! Ingénua aspiração essa de Garrett que só despertaria indiferença ou sorrisos de torpe comentário! Perto já do epílogo de uma decadência sem remédio, os nossos Municípios sentir-se-iam cada vez mais submetidos às vicissitudes do poder central, tornados, portanto, em instrumento das combinações eleiçoeiras com que os partidos se disputavam e alternavam no governo. Abramos o Código Administrativo de 78, — abramos o de 96, abramos ainda aquele com que a República nos presenteou, redigido debaixo da quente aspiração municipalista do senhor dr. Jacinto Nunes. Como são aí tratados e capitulados os Concelhos? Como agregados de formação natural ou histórica, anteriores á formação do Estado, que os deve considerar como componentes seus? Que puro engano, para quem o suponha assim! A designação de «corpos administrativos», compreendendo os Municípios e os Distritos como meras entidades legais, transitou sucessivamente do Código de 78 para o Código do senhor dr. Jacinto Nunes, com a sua filiação napoleónica ou afrancesada bem transparente. Os enérgicos reparos de Garrett tinham-se perdido na sonoridade vazia da sala em que os soltara. E, apesar do Partido-Republicano em Portugal inscrever o municipalismo como um dos primaciais artigos de fé do seu programa, - apesar das campanhas e opúsculos de Rodrigues Nogueira, seu primeiro orientador intelectual e municipalista provado e entusiástico, nós sabemos como a República, refugiando-se num hibridismo de disposições que se contradizem radicalmente umas às outras, não só não modificou a primitiva situação, já deprimente para os Municípios, como a agravou duma maneira insensata e violenta, lançando a perturbação nos serviços concelhios pelo desdobramento das Câmaras Municipais em parte executiva e parte deliberativa e atirando para o seio dos Concelhos mais sertanejos e mais insulados com o gérmen dissolvente do partidarismo em que a unidade moral da Pátria de dia para dia se esfrangalha tragicamente.
É certo que todos esses fermentos de desordem já existiam, implantados pela acção corrosiva do Constitucionalismo. Achavam, porém, um prudente limite nos restos de tradição e espírito municipal que naturalmente levavam os «homens-bons» da localidade às cadeiras da vereação. Tudo se submeteu com a queda da monarquia da Carta, em que para a administração local se não buscou outro título que não fosse o do republicanismo integro das novas edilidades. Resultado? A confusão, a inexperiência, se não a delapidação e o escândalo, agora grandemente facilitado pela entrada nas Câmaras de elementos destituídos da mais ligeira preparação, em vista da amplitude dada aos organismos municipais exigir um maior número de membros para a sua constituição. Não é que nós combatamos em princípio a alteração introduzida nos quadros orgânicos dos nossos Municípios, seccionados pela reforma republicana em Comissão Executiva, propriamente dita, e em Senado Municipal. Nas tendências descentralizadoras da legislação estrangeira nota-se até certo ponto semelhante inovação, de modo nenhum, porém, como a nossa República a entendeu, transportando para a já débil e atrofiada actividade dos Municípios o vírus do Parlamentarismo. Tanto mais que a discórdia das facções, repercutindo-se em toda a extensão da vida nacional, exerce por aí a sua coacção, perfeitamente legítima, sobre a ilusória autonomia dos Concelhos. Acresce ainda que não há medida, por franca e exequível que ela nos apareça nos textos legais, capaz de resistir a um estado de ânimo colectivo, contrário à sua execução ou aplicação. Ora, podiam as intenções do Código Administrativo, promulgado pela República, raiarem nos mais louváveis propósitos descentralizadores, que nem por isso, - por se estatuir na lei, o municipalismo voltava a ser em Portugal uma realidade como outrora!A lei não decreta nem cria as instituições, porque não é o Direito que antecede a sociedade, mas a sociedade o Direito. Para que os Municípios sejam, como as necessidades sociais imperiosamente o reclamam, células elaboradoras de energia e virtudes públicas, antes que a lei se manifeste, preciso se torna um labor de educação e renascimento cívico, que em nada se compraz com a subserviência e guilhotinamento constante a que a burocracia e as demais opressivas montagens do Estado democrático obrigam o cidadão e as entidades chamadas. «administrativas» para com os detentores ocasionais do poder.
Não cumpriu assim a nossa república os seus compromissos municipalistas do tempo da oposição... E não cumpriu, porque naturalmente lhe era impossível cumpri-los. Verificou-se uma vez mais que os regimens de composição ou carácter electivo não pensam nunca em descentralizar, pois que descentralizar representaria perder a chave das eleições sem as quais se não ganha o poder nem se continua no desfruto das suas benesses. Recordemo-nos das grandes palavras, já citadas de Royer-Collard : - «Nous sommes devenus un peuple d'administrés sous la main de fonctionnaires irresponsables!» São palavras que nos quadram perfeitamente. Nascidas da observação em França do mesmo fenómeno, exprimem duma forma inolvidável a tara insanável dos sistemas políticos que a Revolução e o Liberalismo, seu filho primogénito, incestuosamente engendraram. «Appelons l'attention de quelques gens qui pensent à quelque chose sur cette anomalie que le pays où le peuple prêtend exercer la souveraineté n'est organisé qu'en pays conquis,» — comenta também o insigne sociólogo que é o marquês de La Tour du Pin. Os motivos dessa estranha antinomia já ficaram apontados e sumariados. Adicionemos-lhes alguns detalhes que são interessantes e acabaremos por nos convencer com a nudez do seu desprendimento persuasivo. Absolve-se com isso a nossa República de um pecado que não lhe cabe inteiramente, submetendo à apreciação das inteligências de boa-fé o exame de certos factos, que por si só nos forçam, sem mais apelo nem recursos, ao repudio terminante da Democracia em geral, assuma ela o aspecto que assumir, aperte a máscara que apertar!
Sem nos afastarmos muito de ao pé da porta, o insucesso do belo projecto de Maura sobre o «regímen local», oferecido à discussão do parlamento espanhol em 1907, demonstra-nos, fora das considerações de índole teórica, a incompatibilidade irredutível do Estado moderno, — ou seja do Estado democrático e parlamentar, com o ressurgimento e intensificação das velhas autonomias municipais e provinciais. Merece um minuto de atenção tão importante reforma, que significava nada menos do que a extinção das oligarquias de caciques que manietam e estrangulam abusivamente a pobre Espanha. E para que se note desde já a transformação profunda que o projecto de D. António Maura trazia ao saneamento e dignificação da política do seu país, basta assinalar que os Municípios e Províncias deixavam de ser classificados como circunscrições exclusivamente administrativas, passando a entender-se como órgãos integradores do «regímen local».
Atendia o referido projecto à manutenção dos pequenos Municípios, facilitando-lhes a reconstituição por meio de mancomunidades. Admitia no governo municipal a representação profissional ou corporativa, sendo esta representação obtida por eleição indirecta. O mandato dos vereadores (concejales) duraria seis anos, renovando-se de três em três anos apenas por metade. Garantiam-se assim a estabilidade e a continuidade necessárias à boa administração do Município. O Ajuntamiento, entidade conjunta actuando como um todo uno, dividia-se «en una representación diferenciada, que funciona periodicamente como ajuntamiento pleno, pasando el gobierno y administración normales del Municipio a cargo del alcalde y de los tenientes (adjuntos).» Aqui foi buscar, estragando-a, o nosso último Código Administrativo a inovação, já apontada, duma Comissão Executiva, e dum Senado Municipal. Acentua o projecto de Maura o duplo carácter do alcalde como magistratura municipal e como delegado do poder central. Determina com mais segurança as condições de vecindad (residencia),— conceito essencial para o exercício dos cargos municipais. Cria também as «juntas de vecinos y de mancomunidad.» Mas sublinhando melhor o espírito que inspira o projecto em questão, recortemos para aqui a sua definição de Município.
«Forma Municipio,» - reza o artigo I - «la comunidad natural, reconocida por la ler, de familias y casas dentro del término á que alcanza la jurisdición de su Ayuntamiento.» Contrasta singularmente a doutrina do transcrito artigo com a que até então se professava nas estações oficiais e para o qual o Município, - tal como entre nós, - exprimia apenas uma «idéa» ou «critério» legal.
Sem nos alongarmos no estudo do projecto de Maura, fixaremos ainda, num breve apanhado, os seus traços dominantes. Considera ele como «organismos locais»: - a) os «anejos» juntamente com os Municípios; b) o agrupamento de Municípios; c) as mancomunidades de Municípios; d) as Províncias; e e) as mancomunidades de Províncias. O que são, porém, os «anejos»? Eis uma particularidade da constituição topológica de Espanha, onde, a não ser na Galiza e nas Astúrias, a Paróquia não existe como célula ou unidade civil. Isto nos distingue em Portugal, quanto à génese e formação social da nossa pátria. Mas os «anejos» são (artigo 4 do projecto) «los poblados, aldeas y caserios que en la actualidad ó en consecuencia de venideras fusiones ó agregaciónes tengan território propio, aguas, pastos, montes ó cualesquiera derecho peculiares...» As «Juntas vecinales» representariam os «anejos», a quem se conferia a capacidade jurídica correspondente à sua órbita de acção. Quanto às «agrupaciónes de municipios», estatuía o projecto: — «Para servicios, funciones y facultades que no son de la exclusiva competencia municipal y en que las autoridades locales actúen por virtud de delegación del Gobierno y de la Administración del Estado, los Municipios que manten menos de 2:000 habitantes podrán ser agrupados á otro ó otros limitrofes, segun las conveniencias ó gubernativas ó administrativas, recayendo la mencionada delegación del Poder central, para todo el território de los termi-nos agregados, en la alcaldia del Municipio donde existe la mais populosa agrupación...»
As exemplificações que do projecto de Maura inserimos, instruem-nos suficientemente acerca do seu alcance e magnitude. Desde os mais modestos núcleos rurais de sociabilidade até à resolução dos conflitos candentes do Catalanismo, por efeito das mancomunidades de províncias ou regiões, o «regimen local» espanhol encontrava nele satisfação às suas aspirações com tanto de legítimas como de inadiáveis. O eixo central do Estado não sofria aluimento ou diminuição, antes se robustecia na sua dinâmica coordenadora, graças a essa espécie de capilaridade que no projecto aludido assegura sábiamente a harmonia e a vitalidade do organismo político. Porque não venceu então? Não venceu pela incapacidade congénita do Estado parlamentar, - quer se rotule de monárquico, quer se confesse abertamente republicano, - para descentralizar. Enquanto no Congresso os agrupamentos da «direita», incluindo os Jaimistas, dispensavam ao projecto de Maura o apoio e o aplauso que sem favor lhe era devido, perante a oposição sistemática de «liberais», «democratas» e «republicanos», protelando-o e discutindo-o incessantemente, o seu naufrágio não tardou a consumar-se como um capítulo a mais da insigne farsa que é, em democracia política, a liberdade.»
Voltou em 1912 Canalejas, em nome do Partido-Liberal que chefiava, ao eterno tema da « descentralização» e «autonomia local.» O seu projecto não passou também de projecto, e em pouco ou nada diferia do de Maura, senão para o ajeitar mais à estrutura parlamentarista do Estado. Não se quer dizer com isto que o projecto de Maura a repelisse. O seu defeito consiste até na preocupação evidente de contar com a falsa instituição do sufrágio-universal e de pretender moralisa-la. No entanto, apesar dessas e outras deficiências viscerais, traduz um nobre anseio de vivificação municipal e provincial, constituindo matéria jurídica em desacordo terminante com o individualismo consignado pelos costumes e pelas leis. Recordemo-nos, para o comprovar, da definição que êle nos dá de Município. «Município é a associação natural e legal de familias e casas dentro dum determinado termo ou território.» «Esta difinición,» -sublinha agudamente Valenzuela Soler no seu opúsculo Condición juridica del Municipio,- «a demás de reconocer el carácter natural del Municipio, ya no habla de individuos aislados sino de familias y casas.» E levantando-se discussão no Congresso sobre o significado de «casas», visto que uma casa ou agrupamentos de casas podem ser objecto de direito, mas nunca sujeito dele, o deputado Tormo, membro da comissão encarregada de apreciar e relatar o projecto, explicou que «se dice casa no como elemento distinto de familia, sino como elemento complentario de la misma, como hogar ó vivenda que siempre es indispensable á la familia. Domicilio, en una palabra. » Nada, efectivamente, mais conforme com os preceitos e o experimentalismo da sociologia tradicionalista!
O insucesso da tentativa de Maura, seguida no mesmo destino pela de Canalejas, serve-nos, pois, para nos confirmar na absoluta certeza de que os regimens parlamentares não conseguem nunca des-centralisar, quanto mais devolver aos organismos locais a sua perdida autonomia! Sinceramente impressionado com esta incapacidade do Estado liberal ou democrático, o político e orador espanhol Segismundo Moret, figura representativa da ‹esquerda» dinástica, não se conteve sem reparar num dos seus discursos: - «Uno de los grandes males que liene la libertad, es que se tema verla venir, que no inspire confianza á los mismos que han de plantearla, porque entonces, empezando poco á poco la centralización, viene esa serie de Reales decretos, de Reales órdenes, y de trabajos del Ministerio de la Gober-nación, que dán por resultado destruir en poco tempo cualquiera que sea el espiritu de la ley, la independencia de las corporaciones populares.»
Daqui se deduz sem dificuldade como o Liberalismo e a Democracia, adversos por natureza ao Municipalismo, são adversos, por consequência, ao verdadeiro nacionalismo, exactamente, porque nos extintos centros da vida local é que a fisionomia da Nação se elaborava e fortificava através das suas formas imediatas, — a fonte, o adro da igreja, a casa da Câmara, a Torre do Relógio, a ponte morena com o rio correndo, manso, entre choupos luzentes. Tudo respirava, com a consciência da nossa pequena pátria, o sentido e a adivinhação duma pátria maior. Então o ‹patriotismo» não se conhecia, como vocábulo sonoro. Mas existia o sentimento da Família e da Religião, - existia o brio profissional e o apêgo á vila em que se nascera e de cujas pedras seculares se dependurava o quadro pacifico das nossas aspirações. A Revolução surgiu, porém, - com ela se desataram e esfarraparam metodicamente os laços que prendiam outrora os homens ao património ancestral e os somavam em actividades permanentes e contínuas, - as Comunas e as Corporações. Defendendo e solidarizando os indivíduos perante a intromissão abusiva do Estado, esses numerosos enxames de mesteirais e nobres de segunda condição constituíam uma espécie de «repúblicas intermediarias», - na frase feliz de alguém,- em que a liberdade e a autoridade se casavam fecundamente com a laboriosidade e o pundonor.
E não se estranhe que eu perfilhe a expressão «republicas intermediarias.»! Não olvidamos decerto ainda que Royer-Collard se descobria com respeito diante da «multidão de instituições domésticas e de magistraturas independentes» que a sociedade tradicional abrigava no seu seio, como «verdadeiras repúblicas na monarquia.» Mais insuspeito pela sua posição intelectual e politica, Charles Maurras opina também que «le mot république a un sens raisonnable: même après le rétablissement de la Monarchie, il pourra être conservé dans ce sens primitif que désignait Vétendue des affaires communes... En revanche, démocratie doit être rayé, banni et oublié, come pur synonyme de dégenerescence, expression de la désorganisation et de l'émiettement, épave linguistique de ce que le régime de la République eut jadis de plus funeste. C'est la démocratie qui est l'élement anarchique de la République; c'est la démocratie qui est l'élement pernicieua du socialisme.»
Em Portugal, o termo «república» encontra nos documentos um significado igual. O nosso passado municipal, tão cioso das suas regalias e foros, pode, pois, reputar-se, na atitude desenvolta de tantos e tantos vereadores e «homens-bons» para com os nossos monarcas, como uma lição de perfeito «republicanismo», — desde que «república» se entenda como Maurras a interpreta, colocado dentro da mais rigorosa realidade histórica. Já ponderava Bonald: - «J'aime assez, je l'avoue, dans un homme, le mélange de sentiments et d'indépendance républicaine et de principes d'obéissance et de fidélité monarchique: c'est là, si l'on y prend garde, ce qui constituait l'esprit français, et ce qui fait l'homme fort dans une société forte».
Essa mistura de «independência republicanas e de «fidelidade monárquica», sendo o que faz o homem forte numa sociedade forte, não era só qualidade do espírito francês. Era qualidade fundamental dos povos emancipados pela civilisação cristã e dignificados socialmente pelo Município. Assim se formou o «cidadão», — assim se formou o «civismo», se a tão desacreditadas designações restituirmos a sua pureza nativa. Tudo se extinguiu com a vaga assoladora da Revolução. É fora de dúvidas que a concentração absolutista, iniciada pelos Legistas e levada ao cume pela Renascença, tinha amortecido sensivelmente a consciência municipal dos povos. Mas o desastre consumou-se sem remédio, quando a liberdade teórica dos «Imortais Princípios» suplantou as velhas liberdades orgânicas!
Um absolutismo pior que o absolutismo dos Reis tomou corpo e forma jurídica na sua odiosa e tirânica impersonalidade: - o absolutismo anónimo e irresponsavel da soberania popular. Acerca de tão «irrisório dogma», reflexionava com rara agudeza no n.° 2 do seu panfleto O Desengano o nosso grande Padre José Agostinho de Macedo: - «Em nome da Nação se cometem todos os atentados pela mesma Nação e fica escrava dos facciosos a mesma que se acredita soberana no trono.» Foi o que sucedeu em Portugal, foi o que sucedeu em França, tratada como «país conquistado», segundo o juizo categorisado de La Tour du Pin; foi o que sucedeu em toda a parte onde explodiram, ganhando raizes, as ideias individualistas do Contracto Social. O Estado absorveu imediatamente as parcelas de autonomia, - as «liberdades», - disseminadas pela colectividade, reduzindo esta a um atomismo que a impossibilitou de qualquer resistência. Hoje a sociedade tradicional, que é a sociedade naturalmente constituida, parece renascer, despertar, reconquistar os seus direitos esquecidos. Como sintoma prometedor, entre outros muitos, salienta-se o da profunda revivescencia localista, verificada tanto no campo dos factos como no dominio das inteligências. À crise sem recurso do Estado, — tal como o Liberalismo e a Democracia o conceberam, responde na maior amplitude um movimento de lenta, mas afincada reconstituição nos tecidos celulares das velhas pátrias europeias. Desenha-se o regresso à unidade e indissolubilidade da Família; desenha-se o regresso às formas gremiais do Trabalho; a Propriedade principia a retomar as linhas imperativas da sua obliterada função social; no descalabro da economia burguesa, reabilitam-se com estrondosa oportunidade as caluniadas fórmulas económicas da Idade-Media; e até a Nobreza ressurge como elemento de estímulo, de hierarquia e de ordem, desde que, em face do materialismo abjecto da hora que passa, se reconhece enfim que o heroísmo, o sacrifício, a virtude e o desinterêsse não encontram outro prémio que não seja o da herança moral, transmitida de pais a filhos como um bem inalteravel.
A corrente municipalista que se acentua em toda a parte, mesmo naqueles sectores de opinião cuja ideologia lhe é hostil por índole, não se deve, por isso, apreciar como um fenómeno solto, simples modismo ocasional, sem raízes profundas no germinar oculto dos acontecimentos. Antes, pelo contrário, se enlaça de perto às causas que estão motivando o eclipse mortal das superstições e mitos, tanto filosóficos, como políticos, em que o século findo, - le Stupide de León Daudet! - tão abundantemente se desentranhou. Vê-se demais a mais que não se trata dum romantismo passageiro, — dum tradicionalismo literário ou sentimental. As ciências sociais e económicas apossam-se do Municipalismo com ponderada paixão e tornam-no um dos problemas mais em destaque entre as questões primaciais da nossa época. Por divergentes que os autores se manifestem na interpretação de um ou de outro detalhe, segundo a posição que reconheçam ao Estado na orgânica geral de colectividade, nenhum discorda da maneira como o Município moderno carece de funcionar, totalmente emancipado de peias e deprimentes tutelas centralistas. Trata-se unanimamente «de la diferenciación de la vida municipal, apartandola de la del Estado y procurando que ella se defina y mueva con politica própia,» esclarece o catedrático Adolfo Posada em prefácio à tradução espanhola do livro de Rowe sobre O governo da cidade. «Por que es evidente que nada perturba y corrompe el régimen municipal como la subordinación de su politica a la de los partidos nacionales, haciendo que las elecciones municipales se efectúen con el supuesto de los problemas generales y como luchas de partidos llamados a reflectir las tendencias producidas en relación con aquellos problemas.»
«Lo que acaso va resultando cada dia más claro, aunque sea con grandes repugnancias — es que la reforma del régimen local no es un sencillo problema de pura administración, no consiste en una nueva cuestión legal de centralización...»,- explica o professor Posada em outro trabalho seu - Evolución legislativa del régimen local en España (1812-1909). Não só importa trazer de novo para a realidade jurídica as formações naturais e históricas que subsistiram dos antigos pluralismos localistas, - dessa espécie de repúblicas intermediárias», como é urgentíssimo também incorporar nas instituições municipais e provinciais as forças que vivem à margem da política e que precisam de inspira-la, moralisa-la e conduzi-la. A tanto olhava o projecto de Maura, admitindo a representação corporativa na constituição dos Municípios. Justamente, porque semelhante medida arrancava o trabalhador associado às garras dos profissionais do radicalismo, é que o mencionado projecto padeceu tão duro combate por parte das «esquerdas» parlamentares em Espanha.
Há, pelo exposto, um governo de Municipio e, como tal, um poder municipal. Donde o concluirmos, com respeito às generalidades da questão, como conclui Adolfo Posada: - «La visión moderna de la vida local está sin duda, muy lejos de la conceptuación legal de los Municipios, con sus Ayuntamientos incrustados en el sistema de una función administrativa, como una división territorial del Estado. Esta visión moderna impone el Municipio grande ó pequeno, sintetizado en un centro de vida como una unidad orgânica, que entreña un complejo de intereses comunes - vecinales: - intereses del hombre moderno, economicos, éticos, culturales, de la salud del cuerpo y del espiritu; aungue comprendida la formación municipal en el sistema más amplio de una vida nacional, que será tanto más rica y progresiva cuanto más intensa sea la de los municipios componentes.»
Se semelhante conclusão dum Município-Estado, componente da Pátria como elaborador e realisador de energias colectivas, é na actualidade um tema estreitamente ligado á sorte da Autoridade e da Civilização, reveste-se, quanto a nós, portugueses, duma importância especial pela arraigada estrutura municipalista do nosso país. Como outrora os «vilões» ingresaram no corpo da Nobreza servindo com ânimo limpo e recto juízo as magistraturas concelhias, a dignificação política do nosso país conseguir-se-á por certo quando os «homens-bons» de Portugal, que os há ainda! — se resolvam a arrancar os Concelhos das mãos em que cairam, cortando pela raíz o partidarismo que envilece o Estado e insaciávelmente o depaupera. Não nos poupemos a tudo quanto contribua para preparar contra o centralismo ignaro do Terreiro do Paço que tem Portugal como coisa conquistada, uma forte reacção dos elementos sãos da nacionalidade. O Municipalismo é um dos caminhos mais seguros e mais directos. Precisemos, pois, o que seja o Municipalismo, limpando-o das misturas bastardas com que anda de boca em boca na retórica salivosa dos comícios e congressos. Para bem agir, carece-se primeiro de se pensar bem. A mais se não destinam, como modesto indicador, os materiais reunidos no presente estudo.
[negritos acrescentados]
Refs.
- Alexandre Herculano, História de Portugal
- Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social
- Savigny
- Alexis de Tocqueville
- Ahrens
- H. de Tausay
- Sismondi
- Pierre Paul Royer-Collard, 1763-1845
- Castadot
- Leo Stanton Rowe, 1871-1946, Problems of City Government (New York, D. Appleton and Company. 1908)
- Laveleye
- Cánovas del Castillo
- Maura
- Adolfo Posada, 1860-1944 , Evolución legislativa del régimen local en España (1812-1909).
- A. Babeau, La Province sous l'Ancien Régime.
- François-Marie-Anatole de Rovérié de Cabrières, 1830-1921
- Almeida Garrett
- José Felix Henriques Nogueira, 1823-1858
- René de La Tour du Pin, 1834-1924
- José Agostinho de Macedo
- León Daudet, 1867-1942, Le Stupide XIXe Siècle, 1922.
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Refs.
- Alexandre Herculano, História de Portugal
- Jean-Jacques Rousseau
- Savigny
- Tocqueville
- Ahrens
- H. de Tausay
- Sismondi
- Pierre Paul Royer-Collard, 1763-1845
- Castadot
- Rowe
- Laveleye
- Cánovas del Castillo
- Maura
- Adolfo Posada, Evolucion
- A. Babeau, La Province sous l'Ancien Régime.
- François-Marie-Anatole de Rovérié de Cabrières, 1830-1921
- Almeida Garrett
- F. Henriques Nogueira
- René de La Tour du Pin, 1834-1924
- José Agostinho de Macedo
II
DO VALOR DO LOCALISMO
Apêndice à Teoria do Município
Para o Congresso Nacional Municipalista do Porto em 1924, que não chegou a realizar-se, escreveu António Sardinha, então Presidente da Câmara Municipal de Elvas, as teses seguintes:
1ª TESE
O Município não é uma criação legal. Anterior ao Estado, é preciso defini-lo e tê-lo como organismo natural e histórico.
2ª TESE
A descentralização administrativa não é, por isso, suficiente para resolver o problema municipalista.
3ª TESE
Órgão da vida local, inteiramente extinta, mas que é preciso ressuscitar para que haja vida nacional consistente e intensa, o Município deve ser restaurado nos termos em que vicejaria hoje o velho e tradicional município mediévico, se o seu desenvolvimento não tivesse sido estrangulado por factores de sobejo conhecidos.
4ª TESE
Essa restauração do nosso antigo Município equivale a considerá-lo não como uma simples função administrativa, mas como um centro de vida própria, espécie de unidade orgânica, abrangendo todas as relações e interesses dos seus convizinhos, desde o ponto de vista familiar e económico até ao ponto de vista cultural e espiritual.
5ª TESE
Restaurado em tais condições, o Município, simultaneamente suporte e descongestionador do Estado, contribuirá para atenuar a crise mortal que este atravessa, vítima do centralismo excessivo que o depaupera e abastarda.
6ª TESE
Como, em harmonia com o meio físico e a sua estrutura económica específica, os Municípios se não podem reduzir a um tipo único, – e esse é o erro da legislação herdada da revolução francesa – os Municípios poderão e deverão classificar-se segundo as características que lhe imprimam personalidade em MUNICÍPIOS RURAIS, MUNICÍPIOS INDUSTRIAIS, MUNICÍPIOS MARÍTIMOS, etc., havendo que admitir o MUNICÍPIOS-CIDADE, para os grandes centros urbanos.
7ª TESE
A classificação dos municípios, requerida por eles, importa consigo uma lei orgânica própria, – ou foral –, que o Município redigirá, entrando em vigor desde que receba a sanção do poder central.
8ª TESE
E como, na tendência crescente para a substituição do “indivíduo” pelo “grupo”, é preciso constranger o sufrágio a aceitar novos moldes, a constituição das câmaras municipais deverá sair, em número igual, de vereadores eleitos directamente e de representantes ou delegados das associações e sindicatos existentes na área de concelho.
9ª TESE
Na eleição municipal terão voto, além dos cidadãos em pleno exercício desse direito, as mulheres viúvas com lar constituído.
10ª TESE
Revogar-se-ão, com critério prudente, as leis de desamortização no tocante aos Municípios, podendo estes adquirir terrenos para aforar nos termos do “casal de família”, – regímen a que igualmente poderão ficar sujeitos os baldios ainda existentes.
11ª TESE
Para semelhante fim necessitam os Municípios ser autorizados ao lançamento de um tributo ou imposto especial sobre os proprietários absentistas.
12ª TESE
Dentro dos Municípios e onde houver Misericórdias, a estas admiráveis e tão portuguesas instituições deverão pertencer as funções de assistência pública, como base local e consequentemente descentralizada, cabendo às câmaras municipais dispensar o apoio e auxílio de que as Misericórdias careçam para bem cumprirem a sua augusta missão.
13ª TESE
Poderão os Municípios federar-se constituindo “regiões” em substituição dos “distritos” – decalque da legislação francesa, sem realidade geográfica nem justificação tradicional.
14ª TESE
Aos Municípios que pela sua pequenez ou insuficiência financeira não seja possível existência autónoma, permitir-se-á também que se federem com outros, mas sem a perda da sua personalidade.
15ª TESE
A instrução primária deve ser de base técnica e regional.
16ª TESE
É imperioso restaurar as Províncias, dotando-as de órgãos próprios e adequados.
1ª TESE
O Município não é uma criação legal. Anterior ao Estado, é preciso defini-lo e tê-lo como organismo natural e histórico.
2ª TESE
A descentralização administrativa não é, por isso, suficiente para resolver o problema municipalista.
3ª TESE
Órgão da vida local, inteiramente extinta, mas que é preciso ressuscitar para que haja vida nacional consistente e intensa, o Município deve ser restaurado nos termos em que vicejaria hoje o velho e tradicional município mediévico, se o seu desenvolvimento não tivesse sido estrangulado por factores de sobejo conhecidos.
4ª TESE
Essa restauração do nosso antigo Município equivale a considerá-lo não como uma simples função administrativa, mas como um centro de vida própria, espécie de unidade orgânica, abrangendo todas as relações e interesses dos seus convizinhos, desde o ponto de vista familiar e económico até ao ponto de vista cultural e espiritual.
5ª TESE
Restaurado em tais condições, o Município, simultaneamente suporte e descongestionador do Estado, contribuirá para atenuar a crise mortal que este atravessa, vítima do centralismo excessivo que o depaupera e abastarda.
6ª TESE
Como, em harmonia com o meio físico e a sua estrutura económica específica, os Municípios se não podem reduzir a um tipo único, – e esse é o erro da legislação herdada da revolução francesa – os Municípios poderão e deverão classificar-se segundo as características que lhe imprimam personalidade em MUNICÍPIOS RURAIS, MUNICÍPIOS INDUSTRIAIS, MUNICÍPIOS MARÍTIMOS, etc., havendo que admitir o MUNICÍPIOS-CIDADE, para os grandes centros urbanos.
7ª TESE
A classificação dos municípios, requerida por eles, importa consigo uma lei orgânica própria, – ou foral –, que o Município redigirá, entrando em vigor desde que receba a sanção do poder central.
8ª TESE
E como, na tendência crescente para a substituição do “indivíduo” pelo “grupo”, é preciso constranger o sufrágio a aceitar novos moldes, a constituição das câmaras municipais deverá sair, em número igual, de vereadores eleitos directamente e de representantes ou delegados das associações e sindicatos existentes na área de concelho.
9ª TESE
Na eleição municipal terão voto, além dos cidadãos em pleno exercício desse direito, as mulheres viúvas com lar constituído.
10ª TESE
Revogar-se-ão, com critério prudente, as leis de desamortização no tocante aos Municípios, podendo estes adquirir terrenos para aforar nos termos do “casal de família”, – regímen a que igualmente poderão ficar sujeitos os baldios ainda existentes.
11ª TESE
Para semelhante fim necessitam os Municípios ser autorizados ao lançamento de um tributo ou imposto especial sobre os proprietários absentistas.
12ª TESE
Dentro dos Municípios e onde houver Misericórdias, a estas admiráveis e tão portuguesas instituições deverão pertencer as funções de assistência pública, como base local e consequentemente descentralizada, cabendo às câmaras municipais dispensar o apoio e auxílio de que as Misericórdias careçam para bem cumprirem a sua augusta missão.
13ª TESE
Poderão os Municípios federar-se constituindo “regiões” em substituição dos “distritos” – decalque da legislação francesa, sem realidade geográfica nem justificação tradicional.
14ª TESE
Aos Municípios que pela sua pequenez ou insuficiência financeira não seja possível existência autónoma, permitir-se-á também que se federem com outros, mas sem a perda da sua personalidade.
15ª TESE
A instrução primária deve ser de base técnica e regional.
16ª TESE
É imperioso restaurar as Províncias, dotando-as de órgãos próprios e adequados.
António Sardinha, in À Sombra dos Pórticos, Lisboa, Ferin, 1927, pp. 307-310.
António Sardinha, À sombra dos Pórticos, Lisboa, Ferin, 1927, pp. 125-187; pp. 307-310.