O Século XVII
António Sardinha
[Neste ensaio, Sardinha aborda o "Século de prosa, - de análise ... entre todos, o século da «cultura portuguesa", tratando dois temas-chave do seu pensamento político: o Seiscentismo e o Sebastianismo.]
[Neste ensaio, Sardinha aborda o "Século de prosa, - de análise ... entre todos, o século da «cultura portuguesa", tratando dois temas-chave do seu pensamento político: o Seiscentismo e o Sebastianismo.]
Quer-me parecer que o descrédito do século XVII não é apenas obra da falsa e superficial historiografia do século passado. Sobe decerto a Pombal, a esse nefasto e vigoroso desnacionalizador, rendido por completo aos métodos da Enciclopédia, - sobe, sem dúvida, à Dedução cronológico-analítica.
.... ele (século XVII), ao lado do século XV, é um século de puro e castiço lusitanismo.
Aqui se acolheram os últimos defensores da "liberdade cristã" da Europa, numa hora em que o absolutismo real, ingressado pelos ventos da Renascença e da Reforma, estrangulava àvidamente as derradeiras franquias e privilégios, tanto localistas como corporativos, legados pela Idade Média.
António Sardinha
.... ele (século XVII), ao lado do século XV, é um século de puro e castiço lusitanismo.
Aqui se acolheram os últimos defensores da "liberdade cristã" da Europa, numa hora em que o absolutismo real, ingressado pelos ventos da Renascença e da Reforma, estrangulava àvidamente as derradeiras franquias e privilégios, tanto localistas como corporativos, legados pela Idade Média.
António Sardinha
Entre as mentiras convencionais da nossa história destaca-se o descrédito do século XVII como uma das mais universalmente aceites, Século em que a Companhia de Jesus exerceu uma verdadeira ditadura moral e intelectual, enegrecê-lo é dever de quantos, mordidos pelas piores gafas anti-clericais, ainda se gastam no salivoso e anacrónico ódio contra os Jesuítas, verdadeiros obreiros do Portugal-Restaurado, - do Portugal, cujas virtudes tão sólidas como modestas são o admirável recheio desse não menos admirável século XVII. (p. 57)
ele (século XVII), ao lado do século XV, é um século de puro e castiço lusitanismo. /// Aqui se acolheram os últimos defensores da "liberdade cristã" da Europa, numa hora em que o absolutismo real, ingressado pelos ventos da Renascença e da Reforma, estrangulava àvidamente as derradeiras franquias e privilégios, tanto localistas como corporativos, legados pela Idade Média.
Os nossos polemistas de Seiscentos ... combateram, contra o Direito Romano dominante, o conceito patrimonial do Estado, não nos aventuraremos a uma afirmação leviana se os saudarmos como os precursores das modernas correntes nacionalistas. Sustentavam já eles então (...) que "os Reis foram feitos para os povos, e não os povos para os Reis" ///////... Não ignoro que o livro do jesuíta Luís de Molina, professor da Universidade de Évora, sobre a concordância do Livro-arbítrio com a Graça, apareceu em Lisboa no ano de 1588. (...) quanto a mim, o século XVII, filho da Contra-Reforma, não é senão a demonstração de quanto se ajustaram à parte sã da alma portuguesa as direcções ditadas em Trento à catolicidade em crise. Ora o "molinismo" (...) corresponde inteiramente à mentalidade que dirigiria o nosso Seiscentismo.
Defensores da liberdade política contra a concentração absolutista, os Jesuítas mostraram-se da mesma maneira, e com a mesma veemência, defensores da "liberdade interior" - da "autonomia individual", seriamente ameaçada pelos excessos da doutrina da Predestinação, que suprimia toda a humana iniciativa. As teses de Molina honram a Companhia de Jesus e as nossas escolas.
Refs.
José Silvestre Ribeiro, História dos estabelecimentos científicos e literários
Joaquim de Vasconcelos
Edgar Prestage
J. Lúcio de Azevedo
- 1588 - Luís de Molina (1536-1600)
- 1768 - Dedução cronológico-analítica [Dedução Cronológico-analítica, Parte II, de José de Seabra da Silva, atribuída ao Marquês de Pombal pdf]
- 1880 - Marcelino Menendéz y Pelayo (1856-1912). Historia de los heterodoxos españoles [Menéndez y Pelayo - Historia de los heterodoxos españoles pdf]
- 1898 - Ferreira Deusdado (1858-1918), La philosophie thomiste en Portugal - I; La philosophie thomiste en Portugal - II.
- 1910 - Heinrich Boehmer (1869-1927), Les Jésuites [trad. de Gabriel Monod (1844-1912)]. [alternativo: heinrich_boehmer_the_jesuits_-_an_historical_study_-_4th_ed_1928.pdf]
- 1919 - Gonzague Truc (1877-1972), Le retour à la Scolastique [1919_-_gonzague_truc_-_le_retour_à_la_scolastique.pdf]
- 1922 - Léon Daudet (1867-1942), Défense des Humanités Gréco-Latines - discours prononcé à la Chambre des Députés le 27 juin 1922.
na Câmara dos Deputados, em 27 de Junho de 1922 [3ª República; XII Legislatura - Mandato de 16 de Novembro de 1919 a 31 Maio 1924; Departamento: Seine; Grupo: Independentes] - 1923 - Manuel Múrias, O Seiscentismo em Portugal.
José Silvestre Ribeiro, História dos estabelecimentos científicos e literários
Joaquim de Vasconcelos
Edgar Prestage
J. Lúcio de Azevedo
Entre as mentiras convencionais da nossa história destaca-se o descrédito do século XVII como uma das mais universalmente aceites. (p. 57)
(...)
Motivam as presentes reflexões o volume, recentemente aparecido, - O Seiscentismo em Portugal, do dr. Manuel Múrias. (p. 57)
(...)
Aqui (em Portugal) se acolheram os últimos defensores da «liberdade cristã» da Europa, numa hora em que o absolutismo real, engrossado pelos ventos da Renascença e da Reforma, estrangulava avidamente as derradeiras franquias e privilégios, tanto localistas como corporativos, legados pela Idade-Média. Se, incontestavelmente, são castelhanos em parte os tratadistas que inspiram a agitação filosófica, que a política da Restauração (1640) utilizaria com ressonância e labareda, devemos, em todo o caso, acentuar que muitos deles, com o insigne Suarez (Francisco Suarez, 1548-1617) à frente, professaram em cátedras portuguesas, acrescendo ainda que, reavivado de S. Tomás e dos seus diligentes comentadores, o alto pensamento que os guiava, se pertencia ao património mental da Europa, só na Península encontrou o seu último reduto, - um reduto firme e consciente. Em face da galhardia com que os nossos polemistas de Seiscentos, educados em tão segura formação, combateram, contra o Direito Romano dominante, o conceito patrimonial do Estado, não nos aventuraremos a uma afirmação leviana se os saudarmos como os precursores das modernas correntes nacionalistas.
Sustentavam já eles então, contraditando as copiosas apologias filipinas, divulgadas por toda a Europa, que “os Reis foram feitos para os povos, e não os povos para os Reis”. E, por que outras não eram as lições e os ensinamentos dos Jesuitas, compreendemos agora porque, um século a seguir, o marquês de Pombal os expulsaria por “monarcómacos & sequazes dos republicanos”.
Os Jesuitas, sequazes dos republicanos, é de estarrecer, na verdade, Mr. Homais na sua botica em Rouen!
(…)
Podemos agradecer ao falecido e ilustre doutor Ferreira Deusdado (1858-1918) * o inventário da doutíssima atividade dos comentadores coimbrões no seu precioso opúsculo La philosophie thomiste en Portugal - I; La philosophie thomiste en Portugal - II. Mencionemos o jesuíta Pedro da Fonseca (1528-1599), que alguns apelidam de «novo Aristóteles» e que Menéndez y Pelayo nos indica como influindo grandemente na formação e na enunciação do “molinismo”. Na difusão e no comento do “Suarismo” nomearemos os padres Baltasar Teles (1596-1675), Manuel de Góis (1543-1597) e Sebastião do Couto (1567-1639), os dois últimos autores do célebre Curso de Artes, publicado pelo Colégio Conimbricense, sendo a Lógica de Couto e o demais de Manuel de Gois. Foi europeu o Curso de Artes e debaixo da designação geral de Commentari collegii Coninbrensis serviu de texto de ensino a toda a Europa culta. Mede-se já a importância de quanto nos roubou, falseando a interpretação exacta do século XVII, o anti-jesuitismo, contaminado por Pombal e pelo Enciclopedismo aos nossos pretensos críticos e historiadores. Ninguém ignora que, num desdém vexatório pelo latim, Inocêncio só registou no seu Dicionário bibliográfico os autores que escreveram em português. Repelíamos deste modo um jesuita como Manuel Álvares (1526-1583), a quem se deve o De Institutione Grammatica libri tres, - compêndio notabilissimo, igualmente espalhado por toda a Europa, e o mercedario fr. Serafim de Freitas (1570-1633), catedrático em Valladolid e eminente refutador de Grocio no seu De justo imperio Lusitanorum asiatico. Não falando nos orientalistas fr. Jerónimo de Azambuja (?-1563) (Oleaster) e fr. Francisco Foreiro (1522-1581), teólogos ao concílio de Trento e insignes tradutores dos sagrados textos hebraicos. Bem nos recordamos que cronologicamente fr. Francisco Foreiro e fr. Jerónimo de Azambuja são do século XVI, mas intelectualmente encorporam-se já na corrente culta que originou (--- p. 62 ---/--- p. 63---) e alimentou o nosso Seiscentismo. Tanto fr. Jerónimo de Azambuja, como fr. Francisco Foreiro, não se limitam nos seus trabalhos a uma versão rigorosa das Escrituras. Nos Commentarii in Pentateuchum Moysi, fr. Jerónimo Oleastro empenha-se em procurar o significado genuíno e primitivo de cada palavra hebraica, subindo às suas etimologias e corrigindo, inclusivamente, a versão dos Santos Padres em bastantes passos. Fr. Francisco Foreiro, na sua tradução das Profecias de Isaias, emprega processos idênticos, oferecendo-nos um notabilíssimo comentário filológico sobre os idiotismos da lingua hebraica. Adicionemos aos seus nomes o nome do crúzio Pedro de Figueiró (1523-1592), ao qual, pela sua perícia no domínio e cultivo das letras sacras, chamaram os seus contemporâneos «alter Hieronymus».
Com semelhante preparação e tais antecedentes compreendemos já sem custo a que elevação intelectual nós subimos no século XVII. Insisto pelo carácter tridentino do nosso Seiscentismo, - pela perfeita ortodoxia do seu pensamento e das suas tendências. Não porque me dirija agora qualquer intenção apologética. Mas, colocado em pleno critério objectivo, para que se destrua de vez o aleive injustificado que tem esse século como uma pausa humilhante na nossa história, acusando nêle os frutos duma longa e asfixiante tutela eclesiástica.
(...)
SEBASTIANISMO
(negritos acrescentados)
(...)
Motivo para extensas lucubrações, o Sebastianismo, como «religião da Esperança» e como «mito nacional», não merece os desdéns dos que objectiva e racionalisticamente se ocuparam dele, desde o confuso e babilónico José Pereira de Sampaio (Bruno) a J. Lúcio de Azevedo e António Sérgio. Urge, porém, que o ilibemos das constantes ampliações romanescas que a cada hora o adulteram, tornando-o em têta esfalfada duma não menos esfalfada bastardia lírica. Antes de tudo, no Sebastianismo revela-se, transfigura-se, a aptidão universalista do génio nacional. É semelhante aptidão o sinal peculiar e próprio da alma hispânica. Ainda recentemente Oswaldo Spengler, tão afamado pelas suas teorias catastróficas acerca do futuro da «civilização ocidental», asseverava que os «espanhóis», primeiro que ingleses e prussianos, souberam dar à civilização europeia ideias universais. Tais ideias resumem-se no ideal católico, que a Península desposou como seu, ditando-o e servindo-o como uma projecção da sua fisionomia espiritual. A designação de Spengler: - «espanhóis» é preciso corrigi-la por «hispânicos », para que, mais exacta, abranja assim «portugueses» e «castelhanos». Ora a tendência espontânea para a hegemonia mundial, equivalente ao ville zur Macht faustiano, que Oswaldo Spengler reconhece nos «hispânicos», entrega-nos a chave da concepção sebastianista.
Se o temperamento dogmático e seco do castelhano, como nascido e medrado nas solidões pensativas do Meseta, o empurra para manifestações exclusivamente individuais e individualistas, como o D. Quijote, as gentes da ribeira atlântica, dispondo duma outra sociabilidade e senhoras duma feição lírica inconfundível, encontrariam no relevo duma criação anónima o herói que lhes personificasse as aspirações, a um tempo comunitárias e imperialistas. A condição especial do Luso dentro da família peninsular, objecto de longos debates, fixa-se tipicamente no caso do Sebastianismo. Claro que "Sebastianismo" significa e importa um conjunto de sentimentos e de forças morais que excede a figura restrita de D. Sebastião, o qual foi o seu condensador. Entrelaçando agudamente a origem da crença sebástica com as entranhadas raízes do lirismo português, nota
[....p. 67..../...p. 68...]
algures Menéndez y Pelayo:- “No es vana la antigua tradición que pone en Portugal o en Galicia la cuna del Amadis y de la mayor parte de los primitivos libros de caballerias, derivación muy libre y muy españolisada de los cuentos galeses y armoricanos. Alli debieron nacer por la misma ley de misterioso atavismo celtico que llevó a los portugueses à la conquista del Mar Tenebroso, fascinados por el espejismo de las islas encantadas y de la leyenda de S. Brandam, y que à través de los siglos renueva hasta en sus minimos pormenores el mesianismo del Rey Artur, rex quondam resque futurus, en la esperanza nunca desfallecida y siempre renaciente, de los que todavia aguardan en dia de niebla por la foz del Tajo al Rey Don Sebastian, redentor de su raza y fundador del sexto (sic) imperio apocalyptico.”
O parentesco evidente do mito do Encoberto com o mito do Rei Artur obrigava Menéndez y Pelayo a recorrer para um recuado fundo étnico, que o insigne polígrafo qualificava de "céltico", forçado pelo celticismo erudito da época em que escrevia. Sem discutirmos agora qual a natureza desse substractum étnico, - se céltico, se ligure, ou se até ibérico, convém recordar que na sua Historia de los heterodoxos españoles, Menéndez y Pelayo, encostado a um passo célebre de Suetonio, nos fala duma sibila de Clunia, - fatidica puella, que prometera à sua tribu oprimida um salvador no futuro. Para os que se gastam a denunciar o Sebastianismo como uma afloração espúria do messianismo judaico, tanto às suas afinidades com o mito de Artur, como o facto apontado da fatídica puella de Clunia, emancipam-no prontamente dessa indicada ascendência israelita. Os elementos bíblicos que transitaram para a religião sebástica forneceu-lhos a mística cristã. Na hora de Seiscentos, em que aparecia o opúsculo de Lucindo Lusitano, (Luís Marinho de Azevedo), em favor de D. João IV, - El Principe encubierto, manifestado en quatro discursos políticos exclamados al rei D. Philippe IV de Castilla, Lisboa, 1642, corria também em Madrid El principe escondido (Meditaciones, de la vida oculta de Cristo, de los doce hasta los treinta años), por fr. Marcos Calderon, Geral dos Mercedários e Pregador de Felipe IV. A linguagem do nosso mito nacionalista ajusta-se, pois, à linguagem simbólica da Igreja. Não carecemos, por
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isso, de degenerar o que é flama acesa do nosso génio numa superstição passiva sem dignidade nem grandeza.
Mas eu referia-me à sibila de Clunia, - à fatidica puella, mencionada por Menéndez y Pelayo. Não passou ela despercebida ao nosso infatigável Martins Sarmento (1833-1899). Em nota a pags. 273-274 dos seus Argonautas (Subsídios para a história antiga do Ocidente ) consigna o doutíssimo arqueólogo : - “Para completar a sua obra, não seria estranho que os druídas semeassem a promessa dum libertador. Não há notícias deste messianismo na Galia; mas vamos encontrá-lo na Espanha, na Cantabria, onde menos se esperava. Quando Galba subiu ao trono, viu-se nele o libertador do mundo, profetizado dois séculos antes por uma virgem cantábrica ( Suetonio, Galba, IX) ... O noroeste da Espanha foi talvez o refugio de muitos Ligures da Galia e da Inglaterra. ¿É de alguns destes países que vem o misterioso messianismo dos Cantabros.?” Se Martins Sarmento atendesse à irmandade em costumes e instituições de Lusitanos, Galaicos, Astures e Cantabros, expressamente testemunhada por Strabão, não carecia de formular a sua pergunta. A fatidica puella de Clunia insere-se no mesmo fundo étnico, de que derivou depois o Encoberto. E tão autóctone tal substractum se nos revela, que, relacionando-o com os primitivos cânticos galaicos, Menéndez y Pelayo, para provar o indigenato destes, sublinha sabiamente nele uma ausência total de carácter bélico. ¿Pretendo eu, por meu lado, sustentar que o Sebastianismo, como expressão dum determinado estado psíquico, seja afirmação exclusivada árvore genealógica em que a grei portuguesa se entronca? De modo nenhum. Decerto que Sebastianismo, propriamente dito, é apenas nosso, mercê da figura histórica que o corporizou. Mas a ânsia messianista que o inspira pertence ao património sentimental e místico da humanidade. Acontece, porém, que, se em muitos povos ou raças há excepcionalmente um herói salvador que, derrotado, volverá um dia, para resgate e apoteose dos seus,- isto desde as fundas idades poéticas até as portas da eras contemporâneas, em Portugal a crença no Encoberto torna-se a feição predominante duma sociedade e duma época, com aquele valor de condensação energética, conferido modernamente por Georges Sorel aos «mitos», que se apressa a não confundir com as «utopias». Baseado na teoria de Georges Sorel, reflexiona Vilfredo Pareto:
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- “Il n'existe dans l'histoire aucun peuple grand, fort, prospère, cher lequel on ne trouve les sentiments profonds et actifs qui se manifestent par un idéal, une religion, un mythe, une foi. Tout peuple, - avança Pareto - , ou ces sentiments s'affaiblissent est en voie de décadence. Bien des petits peuples sont devenues grandes parce qu'ils avaient foi en eux mêmes; un peuple qui perd cette foi est tout prés de la ruine.” O Sebastianismo, como mito nacionalista, não era, no momento agudo de Seiscentos, senão a fé exasperada da nação portuguesa em si própria. O que no Sebastianismo crepitasse de vesânia ou estultícia, como o regresso de D. Sebastião, - forma tangivel da «religião da Esperança » para o vulgar das gentes, nobre e logicamente o combateu o vigoroso espirito seiscentista. Nada melhor no-lo ensina do que a lápide famosa da «Porta do Nó» em Vila Viçosa, - lápide comemorativa da aclamação de D. João IV. Reza a inscrição, transposta a vernáculo: - “Esta é a fatal porta dos Nós. João poderoso livra-me com a espada do nó da Espanha. Desfaz Alexandre o nó para imperar como rei na redondeza da terra; o meu rei o desata para empunhar os scetros do Rei Encoberto. Ano de 1654.” Tal é o sentido preciso, - a definição histórica do mito sebástico. Portugal identifica-se ao rei perdido, mas imortal. D. João IV, retomando o lugar de D. Sebastião, dá realidade ao mito e volve-o em acto permanente e vivo. Com razão declara Vilfredo Pareto que "dans la vie des peuples, rien n'est aussi réel et pratique que l'idéal." Na vida do nosso povo, o Sebastianismo é a "personificação" desse ideal que o alimenta, - ideal de que o "milagre de Ourique" traduz igualmente um outro aspecto, uma outra face.
Salienta ainda Vilfredo Pareto que “la realité de l'idéal ne se trouve pas en soi-même, mais dans les sentiments qu'il révèle”, acrescentando que “le contenu logique de l'idéal importe peu. Ce qui importe beaucoup plus c'est l'étal psychique qu'il révèle, dont il est un symptôme.” Eis o problema do Sebastianismo em relação ao século XVII. Rectificando a Oliveira Martins, pretende mestre Bruno no seu Encoberto que o historiador confundiu “dois factores diferenciados diversificadamente: o do sebastianismo e o do messianismo em Portugal; o primeiro considerado irrisório e pertença de maniáticos; o segundo, reputado intangível, como
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inviolável timbre da dignidade colectiva. Um, além da adaptação de profecias estranhas, deriva das trovas de Bandarra; o outro fundamentava-se, além da tradição nacional, anónima, no juramento de D. Afonso Henriques.” Enganava-se, porém, redondamente o afanoso publicista portuense! O messianismo é que, duma maneira ou outra, representa no desenvolvimento de todos os povos um traço geral e comum. O Sebastianismo, pelo contrário, determina a feição especial que semelhante fenómeno adquiriu em Portugal. Não há que separá-lo, portanto, da exaltação nacionalista que falsifica as actas de Almacave e utiliza mais tarde, nos combates diplomáticos da Restauração, as miragens eruditas de fr. Bernardo de Brito na sua Monarquia Lusitana.
Vimos já como a lápide de Vila Viçosa concretiza o significado oportunista do Encoberto. O mesmo propósito conduz à modificação da estrofe célebre do Bandarra:
«Saya? Saya esse Infante
Bem andante?
O seu nome he Dom foam:
Correrlheam o Pendam,
E o Guiam,
Poderoso & triumphante. »
Por
«Saya? Saya esse Infante
Bem andante?
O seu nome he Dom Joam.»
De resto, bem antes da Restauração, o cristão-novo Manuel Bocarro Francês não fugia de apregoar, como sebastianista confesso, embora D. Sebastião que não tivesse morrido em Alcácer, Rei haveriamos nê-le, - não na sua pessoa, “mas no sangue da sua raça”. Tal é a linha dorsal do sebastianismo da Restauração, que no seu manifesto El principe encubierto Luís Marinho de Azevedo inclui na comparação feliz do Encoberto, abrangido pela fórmula - D. Sebastião ao D. João VI = ao Deus ignoto dos atenienses, em quem a gentilidade prestava culto antecipado à
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unidade do Deus Criador.”
Motivo para extensas lucubrações, o Sebastianismo, como «religião da Esperança» e como «mito nacional», não merece os desdéns dos que objectiva e racionalisticamente se ocuparam dele, desde o confuso e babilónico José Pereira de Sampaio (Bruno) a J. Lúcio de Azevedo e António Sérgio. Urge, porém, que o ilibemos das constantes ampliações romanescas que a cada hora o adulteram, tornando-o em têta esfalfada duma não menos esfalfada bastardia lírica. Antes de tudo, no Sebastianismo revela-se, transfigura-se, a aptidão universalista do génio nacional. É semelhante aptidão o sinal peculiar e próprio da alma hispânica. Ainda recentemente Oswaldo Spengler, tão afamado pelas suas teorias catastróficas acerca do futuro da «civilização ocidental», asseverava que os «espanhóis», primeiro que ingleses e prussianos, souberam dar à civilização europeia ideias universais. Tais ideias resumem-se no ideal católico, que a Península desposou como seu, ditando-o e servindo-o como uma projecção da sua fisionomia espiritual. A designação de Spengler: - «espanhóis» é preciso corrigi-la por «hispânicos », para que, mais exacta, abranja assim «portugueses» e «castelhanos». Ora a tendência espontânea para a hegemonia mundial, equivalente ao ville zur Macht faustiano, que Oswaldo Spengler reconhece nos «hispânicos», entrega-nos a chave da concepção sebastianista.
Se o temperamento dogmático e seco do castelhano, como nascido e medrado nas solidões pensativas do Meseta, o empurra para manifestações exclusivamente individuais e individualistas, como o D. Quijote, as gentes da ribeira atlântica, dispondo duma outra sociabilidade e senhoras duma feição lírica inconfundível, encontrariam no relevo duma criação anónima o herói que lhes personificasse as aspirações, a um tempo comunitárias e imperialistas. A condição especial do Luso dentro da família peninsular, objecto de longos debates, fixa-se tipicamente no caso do Sebastianismo. Claro que "Sebastianismo" significa e importa um conjunto de sentimentos e de forças morais que excede a figura restrita de D. Sebastião, o qual foi o seu condensador. Entrelaçando agudamente a origem da crença sebástica com as entranhadas raízes do lirismo português, nota
[....p. 67..../...p. 68...]
algures Menéndez y Pelayo:- “No es vana la antigua tradición que pone en Portugal o en Galicia la cuna del Amadis y de la mayor parte de los primitivos libros de caballerias, derivación muy libre y muy españolisada de los cuentos galeses y armoricanos. Alli debieron nacer por la misma ley de misterioso atavismo celtico que llevó a los portugueses à la conquista del Mar Tenebroso, fascinados por el espejismo de las islas encantadas y de la leyenda de S. Brandam, y que à través de los siglos renueva hasta en sus minimos pormenores el mesianismo del Rey Artur, rex quondam resque futurus, en la esperanza nunca desfallecida y siempre renaciente, de los que todavia aguardan en dia de niebla por la foz del Tajo al Rey Don Sebastian, redentor de su raza y fundador del sexto (sic) imperio apocalyptico.”
O parentesco evidente do mito do Encoberto com o mito do Rei Artur obrigava Menéndez y Pelayo a recorrer para um recuado fundo étnico, que o insigne polígrafo qualificava de "céltico", forçado pelo celticismo erudito da época em que escrevia. Sem discutirmos agora qual a natureza desse substractum étnico, - se céltico, se ligure, ou se até ibérico, convém recordar que na sua Historia de los heterodoxos españoles, Menéndez y Pelayo, encostado a um passo célebre de Suetonio, nos fala duma sibila de Clunia, - fatidica puella, que prometera à sua tribu oprimida um salvador no futuro. Para os que se gastam a denunciar o Sebastianismo como uma afloração espúria do messianismo judaico, tanto às suas afinidades com o mito de Artur, como o facto apontado da fatídica puella de Clunia, emancipam-no prontamente dessa indicada ascendência israelita. Os elementos bíblicos que transitaram para a religião sebástica forneceu-lhos a mística cristã. Na hora de Seiscentos, em que aparecia o opúsculo de Lucindo Lusitano, (Luís Marinho de Azevedo), em favor de D. João IV, - El Principe encubierto, manifestado en quatro discursos políticos exclamados al rei D. Philippe IV de Castilla, Lisboa, 1642, corria também em Madrid El principe escondido (Meditaciones, de la vida oculta de Cristo, de los doce hasta los treinta años), por fr. Marcos Calderon, Geral dos Mercedários e Pregador de Felipe IV. A linguagem do nosso mito nacionalista ajusta-se, pois, à linguagem simbólica da Igreja. Não carecemos, por
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isso, de degenerar o que é flama acesa do nosso génio numa superstição passiva sem dignidade nem grandeza.
Mas eu referia-me à sibila de Clunia, - à fatidica puella, mencionada por Menéndez y Pelayo. Não passou ela despercebida ao nosso infatigável Martins Sarmento (1833-1899). Em nota a pags. 273-274 dos seus Argonautas (Subsídios para a história antiga do Ocidente ) consigna o doutíssimo arqueólogo : - “Para completar a sua obra, não seria estranho que os druídas semeassem a promessa dum libertador. Não há notícias deste messianismo na Galia; mas vamos encontrá-lo na Espanha, na Cantabria, onde menos se esperava. Quando Galba subiu ao trono, viu-se nele o libertador do mundo, profetizado dois séculos antes por uma virgem cantábrica ( Suetonio, Galba, IX) ... O noroeste da Espanha foi talvez o refugio de muitos Ligures da Galia e da Inglaterra. ¿É de alguns destes países que vem o misterioso messianismo dos Cantabros.?” Se Martins Sarmento atendesse à irmandade em costumes e instituições de Lusitanos, Galaicos, Astures e Cantabros, expressamente testemunhada por Strabão, não carecia de formular a sua pergunta. A fatidica puella de Clunia insere-se no mesmo fundo étnico, de que derivou depois o Encoberto. E tão autóctone tal substractum se nos revela, que, relacionando-o com os primitivos cânticos galaicos, Menéndez y Pelayo, para provar o indigenato destes, sublinha sabiamente nele uma ausência total de carácter bélico. ¿Pretendo eu, por meu lado, sustentar que o Sebastianismo, como expressão dum determinado estado psíquico, seja afirmação exclusivada árvore genealógica em que a grei portuguesa se entronca? De modo nenhum. Decerto que Sebastianismo, propriamente dito, é apenas nosso, mercê da figura histórica que o corporizou. Mas a ânsia messianista que o inspira pertence ao património sentimental e místico da humanidade. Acontece, porém, que, se em muitos povos ou raças há excepcionalmente um herói salvador que, derrotado, volverá um dia, para resgate e apoteose dos seus,- isto desde as fundas idades poéticas até as portas da eras contemporâneas, em Portugal a crença no Encoberto torna-se a feição predominante duma sociedade e duma época, com aquele valor de condensação energética, conferido modernamente por Georges Sorel aos «mitos», que se apressa a não confundir com as «utopias». Baseado na teoria de Georges Sorel, reflexiona Vilfredo Pareto:
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- “Il n'existe dans l'histoire aucun peuple grand, fort, prospère, cher lequel on ne trouve les sentiments profonds et actifs qui se manifestent par un idéal, une religion, un mythe, une foi. Tout peuple, - avança Pareto - , ou ces sentiments s'affaiblissent est en voie de décadence. Bien des petits peuples sont devenues grandes parce qu'ils avaient foi en eux mêmes; un peuple qui perd cette foi est tout prés de la ruine.” O Sebastianismo, como mito nacionalista, não era, no momento agudo de Seiscentos, senão a fé exasperada da nação portuguesa em si própria. O que no Sebastianismo crepitasse de vesânia ou estultícia, como o regresso de D. Sebastião, - forma tangivel da «religião da Esperança » para o vulgar das gentes, nobre e logicamente o combateu o vigoroso espirito seiscentista. Nada melhor no-lo ensina do que a lápide famosa da «Porta do Nó» em Vila Viçosa, - lápide comemorativa da aclamação de D. João IV. Reza a inscrição, transposta a vernáculo: - “Esta é a fatal porta dos Nós. João poderoso livra-me com a espada do nó da Espanha. Desfaz Alexandre o nó para imperar como rei na redondeza da terra; o meu rei o desata para empunhar os scetros do Rei Encoberto. Ano de 1654.” Tal é o sentido preciso, - a definição histórica do mito sebástico. Portugal identifica-se ao rei perdido, mas imortal. D. João IV, retomando o lugar de D. Sebastião, dá realidade ao mito e volve-o em acto permanente e vivo. Com razão declara Vilfredo Pareto que "dans la vie des peuples, rien n'est aussi réel et pratique que l'idéal." Na vida do nosso povo, o Sebastianismo é a "personificação" desse ideal que o alimenta, - ideal de que o "milagre de Ourique" traduz igualmente um outro aspecto, uma outra face.
Salienta ainda Vilfredo Pareto que “la realité de l'idéal ne se trouve pas en soi-même, mais dans les sentiments qu'il révèle”, acrescentando que “le contenu logique de l'idéal importe peu. Ce qui importe beaucoup plus c'est l'étal psychique qu'il révèle, dont il est un symptôme.” Eis o problema do Sebastianismo em relação ao século XVII. Rectificando a Oliveira Martins, pretende mestre Bruno no seu Encoberto que o historiador confundiu “dois factores diferenciados diversificadamente: o do sebastianismo e o do messianismo em Portugal; o primeiro considerado irrisório e pertença de maniáticos; o segundo, reputado intangível, como
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inviolável timbre da dignidade colectiva. Um, além da adaptação de profecias estranhas, deriva das trovas de Bandarra; o outro fundamentava-se, além da tradição nacional, anónima, no juramento de D. Afonso Henriques.” Enganava-se, porém, redondamente o afanoso publicista portuense! O messianismo é que, duma maneira ou outra, representa no desenvolvimento de todos os povos um traço geral e comum. O Sebastianismo, pelo contrário, determina a feição especial que semelhante fenómeno adquiriu em Portugal. Não há que separá-lo, portanto, da exaltação nacionalista que falsifica as actas de Almacave e utiliza mais tarde, nos combates diplomáticos da Restauração, as miragens eruditas de fr. Bernardo de Brito na sua Monarquia Lusitana.
Vimos já como a lápide de Vila Viçosa concretiza o significado oportunista do Encoberto. O mesmo propósito conduz à modificação da estrofe célebre do Bandarra:
«Saya? Saya esse Infante
Bem andante?
O seu nome he Dom foam:
Correrlheam o Pendam,
E o Guiam,
Poderoso & triumphante. »
Por
«Saya? Saya esse Infante
Bem andante?
O seu nome he Dom Joam.»
De resto, bem antes da Restauração, o cristão-novo Manuel Bocarro Francês não fugia de apregoar, como sebastianista confesso, embora D. Sebastião que não tivesse morrido em Alcácer, Rei haveriamos nê-le, - não na sua pessoa, “mas no sangue da sua raça”. Tal é a linha dorsal do sebastianismo da Restauração, que no seu manifesto El principe encubierto Luís Marinho de Azevedo inclui na comparação feliz do Encoberto, abrangido pela fórmula - D. Sebastião ao D. João VI = ao Deus ignoto dos atenienses, em quem a gentilidade prestava culto antecipado à
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unidade do Deus Criador.”
(...)
E não se me leve por exagêro tamanho apêgo à explanação do mito sebástico. Ele é decisivo na constituição desse admirável estado de espírito, que animou o Portugal-Restaurado, enchendo de nacionalismo criador o caluniado século XVII. Século de prosa, - de análise, portanto, ele é, entre todos, o século da «cultura portuguesa».
E não se me leve por exagêro tamanho apêgo à explanação do mito sebástico. Ele é decisivo na constituição desse admirável estado de espírito, que animou o Portugal-Restaurado, enchendo de nacionalismo criador o caluniado século XVII. Século de prosa, - de análise, portanto, ele é, entre todos, o século da «cultura portuguesa».
(António Sardinha, "Século XVII", in Lusitania - Revista de Estudos Portugueses, Vol. II, Fasc. I, Setembro de 1924, pp. 57-78)
(*) António Manuel Ferreira Deusdado (Rio Frio, Bragança, 7 de Abril de 1858 – Lisboa, 21 de Dezembro de 1918). Em 1915, Ferreira-Deusdado saudou os jovens do Integralismo Lusitano, quando estes se lançaram contra as aspirações imperiais de Afonso XIII de Espanha, no ciclo de conferências da Liga Naval acerca da “Questão Ibérica”, com palavras muito efusivas: “O viridente lábaro hasteado pelo Integralismo Lusitano está formando legiões. O número cresce cada dia. Ontem era uma centúria, hoje é um manípulo, amanhá é uma coorte e a seguir será uma legião invencível". Em 1916, Ferreira Deusdado saudou também o livro Epopeia da Planície de António Sardinha, que lhe veio a dedicar o seu livro de ensaios: - Ao ritmo da Ampulheta (1924). Ferreira Deusdado e António Sardinha partilhavam o ideário monárquico e municipalista.
(*) António Manuel Ferreira Deusdado (Rio Frio, Bragança, 7 de Abril de 1858 – Lisboa, 21 de Dezembro de 1918). Em 1915, Ferreira-Deusdado saudou os jovens do Integralismo Lusitano, quando estes se lançaram contra as aspirações imperiais de Afonso XIII de Espanha, no ciclo de conferências da Liga Naval acerca da “Questão Ibérica”, com palavras muito efusivas: “O viridente lábaro hasteado pelo Integralismo Lusitano está formando legiões. O número cresce cada dia. Ontem era uma centúria, hoje é um manípulo, amanhá é uma coorte e a seguir será uma legião invencível". Em 1916, Ferreira Deusdado saudou também o livro Epopeia da Planície de António Sardinha, que lhe veio a dedicar o seu livro de ensaios: - Ao ritmo da Ampulheta (1924). Ferreira Deusdado e António Sardinha partilhavam o ideário monárquico e municipalista.