A Restauração de Portugal
Marcelo Caetano
(DISCURSO PRONUNCIADO NO DIA 1 DE DEZEMBRO NA JUVENTUDE CATÓLICA DE LISBOA)
Senhor Presidente:
Minhas senhoras:
Meus senhores:
Entre as coisas a que voto um profundo horror figuram a retórica e o lugar-comum. Feita esta declaração já V.as Ex.as avaliam a dificuldade com que falo da Restauração de 1640, acontecimento histórico de que a retórica comicieira se apossou para o envolver em farfalhudos tropos e transformar em espantalho terrificante do "patrioteirismo» de que nos fala o Eça fazendo dele um imenso, bafiento e impossível lugar-comum.
De facto, usa-se dizer, neste dia solene de regozijo nacional, alçada a voz no meio da praça pública repleta de multidão e dos acordes do hino em que a charanga dos bombeiros é exímia, que o dia 1 de Dezembro pôs termo “ao cativeiro humilhante iniciado com a usurpação de Filipe II”.
Esta é a ideia que está vulgarizada e que logo nos ocorria quando nas páginas da seleta portuguesa liamos o trecho clássico em que o escritor nos diz que "amanheceu risonho e alegre o dia 1 de Dezembro de 1640..." Imagine-se o embaraço do nacionalista consciencioso forçado pela verdade histórica a declarar que nem a dominação espanhola foi para nós um cativeiro em todos os 60 anos que durou, (Note-se que vemos a questão no seu aspeto histórico, isto é, aceitando os factos tais quais são. Não aplaudimos, porém, a união com a Espanha em 1580. Apesar de nos tratar bem, a Espanha, naturalmente, pretendia absorver-nos) nem o rei Filipe II "usurpou" a coroa de Portugal!
A USURPAÇÃO DE FILIPE II E O CATIVEIRO ESPANHOL
Permita-se-me que, ao de leve, me refira a estes dois erros tão geralmente aceites que só modernamente têm sido corrigidos, graças aos esforços dos historiadores libertados das influências românticas e do desejo dos efeitos verborreicos.
Mas que rajadas de eloquência se perdem!
A verdade, porém, é que Filipe II de Espanha constituía em 1580 a única solução legítima e a única solução consentânea com os interesses nacionais.
Única solução legítima visto que a ele cabia por direito a coroa vaga por morte do débil Cardeal-rei; única solução nacional porque, não só o Prior do Crato, judeu e corrupto, não tinha qualidades nem meios para governar o país nesse momento de crise, como também os Duques de Bragança não podiam de momento organizar a resistência contra Castela e impor a sua autoridade no reino desmantelado.
Restava Filipe II. Proclamado rei em Portugal, em cortes portuguesas e segundo as nossas leis, não tem o seu advento nenhuma das características da ocupação violenta sem direito, concorrendo nele todas as circunstâncias necessárias para que se desse a «justiça de aquisição» da soberania.
E perder-se-ia a independência portuguesa, começou então o cativeiro?
Não o julguemos. Constituiu-se uma monarquia dualista, isto é, subsistiam os dois Estados com os seus órgãos e suas leis, apenas ligados pela pessoa do Rei. Assim no-lo diz, resumindo com felicidade tudo quanto a análise dos documentos e dos factos nos ensina, o venerando Frei Francisco Brandão, co-autor da “Monarquia Lusitana” pregando o Discurso gratulatório sobre o dia da felice restituição y aclamação da Majestade del-Rey D. João IV N. S.
«Nas Crónicas de S. Francisco se conta que estando o Seráfico Patriarca em Portugal vaticinara que nunca este Reyno havia de ser unido a Castela. Muitos, que, sem considerar as cousas as desestimam, negavam esta predição, vendo que entrou Filipe Segundo na herança do Reyno: mas ainda assi sustentava o doutíssimo Padre Frey Lucas Wandingo, cronista da mesma ordem, ser verdadeira a profecia do Santo, porque ainda que unidos os Reynos de Portugal é Castela en um herdeiro, entre si eram distintos, tanto que os naturais de um Reyno se reputavam por estrangeiros no outro; a moeda era diferente, e as provisões se passavam em diferentes línguas, em forma que se não podiam chamar Reynos unidos». (Cit. por Sardinha, A Aliança Peninsular, p. 278 n.)
Quantos factos se não poderiam apresentar para ilustrar esta passagem do erudito alcobacense? Nem os dois primeiros filipes se comportavam para connosco em Reys estranhos e cruéis senão em soberanos próprios e nacionais. Bastará assinalar-se a «Jornada de Vassalos», luzidíssima expedição que em 1624 partiu para libertar a Baía do jugo dos holandeses e que Elísio de Carvalho com tanto colorido nos conta no seu livro «Lauréis insignes» como já, antes o fizera o nosso D. Francisco Manuel. A Bahia foi libertada e Elísio de Carvalho — belo espírito que Deus já chamou a si - diz-nos que grande parte da nobreza brasileira entronca nos fidalgos que, tendo ido na armada, se fixaram em terras de Santa Cruz.
Outro facto demonstrativo do respeito em que eram tidas as liberdades portuguesas está, por muito paradoxal que isto pareça, na causa próxima da revolução de 1640: a reação anti castelhana toma corpo em virtude da intenção manifestada pelo Conde Duque de Olivares de fazer de Portugal uma província de Espanha. Socorro-me de novo a Fr. Francisco Brandão que diz no seu Discurso: «Intentou nos dous anos passados a soberba Castela apertar mais o ponto e fazer, que esta união de Reynos que havia na pessoa do injusto possuidor, estivesse também entre os mesmos Reynos. Aqui acudiu S. Francisco, e mostrou com efeito o entendimento da sua profecia, que era não ser Portugal nunca unido a Castela, e assim quando naquele Reyno pretendiam a união de ambos, executámos nós a separação…» (loc. cit.)
Um terceiro facto bem à vista está na facilidade com que em Portugal e na Espanha se fazia a propaganda das doutrinas, profecias e mitos favoráveis à restauração de Portugal. Todos fechavam os olhos... E, no entanto, foram essas doutrinas e esses mitos que, fizeram a revolução. Detenhamo-nos sobre elas alguns minutos, para brevemente fixarmos os seus pontos essenciais.
DOUTRINAS DA RESTAURAÇÃO
As doutrinas políticas que prepararam e justificaram a Restauração, têm para nós o duplo interesse de serem imensamente curiosas como construção jurídica e infinitamente interessantes como doutrinas da mais pura ortodoxia católica. (Modernamente a Santa Sé tem manifestado o seu desacordo com elas. Cf. as encíclicas “Diuturnum”, “Immortale Dei” e “Libertas protestantissimum” - acrescentou Marcelo Caetano em nota de rodapé)
Fundamentalmente, consistiam nas ideias de Santo Tomás, comentadas e sistematizadas pelo grande «Doctor Eximius", Francisco Suárez, professor da nossa Universidade de Coimbra durante vinte anos e um dos maiores teólogos que se contam entre os seguidores mais ou menos fiéis da doutrina do angélico doutor.
Segundo os teóricos da Restauração - plêiade brilhantíssima em que têm larga representação as murças universitárias - o poder vem de Deus, como diz o Apóstolo, porque Deus é a causa primeira de todas as coisas. Assim, ao criar a sociedade surge por direito natural o poder que é indispensável para a sua conservação e progresso. Não é ele concedido a um ou ouro homem, e, portanto, reside na coletividade. Esta é que em virtude dum pacto pode transferir o seu exercício—e não o alienar como dizia Suarez - para um dos seus membros, e temos a monarquia, ou para alguns, e temos a aristocracia.
Ao rei incumbe então o "oficio de reinar". Ofício duro, como lhe chamou um dos nossos príncipes, ofício que consiste em fazer justiça, defender os seus súbditos e em conservar e aumentar o reino que lhe foi confiado. Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum — disse-o Santo Tomás, elegantemente traduzido pelo nosso João Pinto Ribeiro: "Os Reys não foram criados e ordenados para sua utilidade e proveito, se não em beneficio, e prol do Reyno».
Desde que o monarca deixe de respeitar o pacto que houve entre ele e a república, oprimindo os seus vassalos e deixando de buscar a sua felicidade, converte-se em «tirano no governo» que em linguagem da escola se chama tirano quoad administrationem - sendo lícito à coletividade a sua deposição, privando-o do reino e tirando-lhe o poder que lhe deu e que ele não soube usar. É o direito à sedição, proclamado e justificado e que o Dr. Velasco de Gouveia definia dizendo que "não é sedicioso, antes lícito ao povo resistir ao Rey Tirano ou que tiranicamente governa".
Estão já V.as Ex.as a ver a Revolução de 1640 juridicamente explicada: os Filipes não eram reis tiranos, como no princípio afirmei, visto como eram legítimos soberanos de Portugal. Não se dava, pois, a tirania quoad titulum. Mas governavam tiranicamente, contrariando os interesses da Nação Portuguesa que o Conde Duque de Olivares pretendia, para maior vexame, reduzir à categoria de uma província espanhola. "Maldito governo— diz algures João Pinto Ribeiro, revolucionário e jurista — maldito governo que põe, sua segurança em desprezo de Vassalos honrados; errada resolução do Rey, que despreza a língua daqueles a que governa e manda, não havendo maior firmeza entre vassalos e Rey, que falarem a mesma língua e
saberem que o entendem e são entendidos dele.…"
Eis, meus senhores, em duas palavras as doutrinas defendidas por uma brilhantíssima pleiade de escritores que formam a mais notável escola portuguesa de direito público.
Pois bem: dentre eles, não quero deixar de citar dois nomes demonstrativos da benignidade do governo castelhano e do grande amor que tinham a Portugal: dois padres, ambos doutores de Coimbra. que, em Espanha escreveram defendendo as doutrinas da Restauração. São eles os Drs. Fr. Serafim de Freitas e João Salgado de Araújo.
Serafim de Freitas, lente em Valladolid e frade da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, é autor duma calorosa apologia do poder do Pontífice sobre as coisas temporais, a propósito da liberdade dos mares. A respeito do seu «De justo imperio Lusitanorum Asiático» escrevia o erudíto Visconde de Santarém que era um fortissimo manifesto contra Castela "mostrando bem como a revolução de 1640 se preparava muitos anos antes" (o livro é de 1625). E o Visconde continua: "Não deixa de ser curiosa, entretanto, a circunstância de o governo espanhol consentir na impressão da obra e tanto mais que o A. era lente de cánones na Universidade de Valladolid». (Inéditos, p. 200).
Que diria o eminente geógrafo se soubesse que o governo espanhol tinha em grande conta o frade português, rodeando-o de atenções e premiando-lhe os serviços!
Quanto ao Dr. Salgado de Araújo, abade de Pera, diz dele D. Francisco Manuel que era "de engenho agudo e ânimo atrevido de tal sorte, que fazia virtude de se opor aos fortes e fulminar contra eles". Pois estando em Madrid e nas boas graças do Rei, escreveu em espanhol a Ley Regia de Portugal onde defende as doutrinas que acima referimos, ilustrando o seu livro com numerosos exemplos tirados da vida dos Reys de Portugal que logo de início elogia grandemente, afirmando nunca ter havido em Portugal um soberano absolutamente mau, coisa de que nenhuma outra nação se poderia gabar. E a obra correu, e chegou até nós...
A Revolução de 1640 preparou-se, portanto, num ambiente de larga tolerância e com inteligência e ponderação. Mas, meus senhores, quem conhece as multidões e a sua psicologia especial, assunto apaixonante e cujo conhecimento é precioso aos condutores de homens, sabe que não são as doutrinas, as construções científicas, os princípios refletidos e secamente formulados que podem fazer uma Revolução.
Uma Revolução exige qualquer coisa mais: exige um estado de espírito especial, exige entusiasmo e fé. Se os doutores da Revolução justificaram sábia e abundantemente para o escol da sociedade portuguesa o passo que se ia dar, foram os padres, principalmente os jesuítas e os frades de Alcobaça que levaram o povo à expulsão dos Filipes. Porque maneira? Criando mitos.
TEORIA DOS MITOS. O SEBASTIANISMO. O MILAGRE DE OURIQUE E AS CORTES DE LAMEGO
Foi Georges Sorel, sindicalista revolucionário francês e um dos mais belos espíritos que a França tem tido nos últimos anos, quem, em páginas cheias de colorido e de talento, criou a teoria dos mitos, hoje já um precioso elemento para a interpretação da história.
A História, meus senhores, tem sido vítima de toda a espécie de atentados, conscientes e inconscientes, resultantes da visão errada de espíritos simplistas que tudo resolvem facilmente, e da deturpação propositada daqueles que a convertem em instrumento dos seus ódios ou em serva das suas ambições.
Eu recordo a indignação retumbante de certo professor de História que tive nos meus tempos do liceu, ao falar na falsificação despudorada e torpe dos frades de Alcobaça. As patranhas da "Monarquia Lusitana» eram apregoadas em tom escarninho e com comentários destinados a fazer rir. Eu tinha então por Fr. Bernardo de Brito e pelos seus continuadores um desprezo imenso, um desprezo sobranceiro, de homem de bem ofendido pela prática à sua vista, dum ato digno de eterna reprovação...
E, no entanto, reconheço hoje que essas mentiras piedosas foram um dos mais poderosos elementos para a Restauração.
As Revoluções, disse eu já, não se fazem com tratados de direito. Então... é necessário, diz Sorel, fazer apelo a conjuntos de imagens capazes de evocarem em bloco e apenas por intuição, antes de qualquer análise refletida, a massa dos sentimentos que estão comprometidos na luta que se quere travar. Esses conjuntos de imagens são-nos fornecidos pelo mito, construção que se ergue num futuro indeterminado, mas que passa a constituir a preocupação constante do povo, do partido ou da classe que o adota. E Sorel exemplifica com a parúsia dos cristãos - exemplo que, claro está, não nos serve — e com a greve geral dos sindicalistas revolucionários.
Ora, meus senhores, que foi o Sebastianismo senão um mito, exatamente nas condições em que o define Sorel, isto é, uma representação psíquica "graças à qual a razão, as esperanças e a perceção dos factos particulares parecem constituir uma unidade indivisível?" (Réflexions sur la violence, p. 181).
Que é, afinal, a história da promessa de Ourique aproveitada e propagada na Restauração? (O milagre de Ourique não estando reconhecido pela igreja, pode ser, sem sombra de heresia, considerado como um mito na história) Que são as frases heroicas dos cavaleiros de Santa Maria de Almacave e os seus protestos violentos? O que é o sonho do Quinto Império?
Tudo isto, meus senhores, constitui o elemento que imediatamente atuou com eficácia na alma popular, trazendo como consequência a restauração de 1640. É que lá dizia o Bandarra:
Sáia, sáia êsse infante
Bem andante
O seu nome he Dom João
CONCLUSÃO: PORTUGAL E A ESPANHA
É tempo, porém, de terminar. Foquei apenas, neste despretensioso arrazoado, alguns dos mais interessantes assuntos que ao estudioso são sugeridos pela data que se comemora hoje. Resta-me dizer-vos qual o meu pensar quanto ao caracter das relações que devem unir Portugal à Espanha.
A 24 de Setembro um jornal francês publicava a seguinte local:
La Société des Nations, d'après Buré, a l'Avenir, aura pour mission de sanctionner la loi du plus fort:
On sait que l'Allemagne, purifiée par le baptême genevois, peut dorénavant prétendre à l'obtention des mandats coloniaux. Prudente, elle n'a point encore fait valoir ses droits, mais elle ne les laissera pas prescrire, on peut en être convaincu. Qu'elle ait seulement pris racine à Genève, et vous verrez comme elle mènera rondement son affaire !
Mais où trouver des terres libres?
Le Portugal sera, si l'on en croit le Manchester Guardian, offert en holocauste au salut du Reich. Voilà qui fera perdre toute gaieté aux compatriotes de Camoens! Leurs représentants à Genève ont d'abord cru que la nouvelle était sans fondement ; mais ils sont allés aux renseignements et «leur enquête, nous dit notre ami Maurice Muret, dans la Nation belge, ne les a pas rassurés. Dame, ils peuvent tout craindre de leurs chers alliés britanniques. La Manchester Guardian ne fait en somme que reprendre le vieux projet du très pieux et très loyal lord Grey qui, á la veille de la guerre, proposait déjà á Berlín, en signe d'alliance, le partage du domaine colonial des Portugais — « peuple de régicides et d'athées », indigne de toute considération. Le marché fut jugé «insensé» par le Kaiser lui-même qui traita de « vieille femme» son ambassadeur à Londres, prêt à le conclure.
Ross e Schultz, propalavam nos seus relatórios canalhas, acusações infundadas e tendenciosas.
Nada de novo vos direi. Eu desejaria pôr diante dos olhos de cada um de V.as Ex.as esse maravilhoso livro cheio de alma que é a Aliança Peninsular. Nele, António Sardinha, meu muito querido e amado mestre, põe o problema com a clareza de sempre e resolve-o com um sentido maravilhoso de realidade e de verdade.
De facto, meus senhores, há um equívoco velho entre as duas nações peninsulares. Elas que cumpriram uma mesma missão apostólica, que tiveram em dado momento da civilização um mesmo papel cultural, e um mesmo destino histórico, encontram-se espiritualmente divorciadas por antigas questões, por velhos dissentimentos.
Cada uma das nações independente e livre, sem nenhuma espécie de limitação política; mas ambas cooperando numa mesma grandiosa tarefa, que Oliveira Martins entrevia nas últimas páginas da sua História da Civilização Ibérica - eis o nosso ideal.
Deixámo-nos prender, demasiadamente, pela França, país de onde até hoje só nos veio perdição, e que, aquando das guerras napoleónicas nos fez mais dano com o barbarismo dos seus exércitos e a corrupção das nossas instituições, do que 60 anos de rei Castelhano. Parece-me agora ouvir a queixa dorida de Ruben Dário:
Bebiendo la esparcida salva francesa
Con nuestra boca indígena semi-española
Dia a día cantamos la Marsellesa
Para acabar danzando la Carmañola.
Dia a dia se vão afrancesando mais os nossos usos, os nossos costumes, as nossas palavras, os gostos, as ideias e as almas; imitamos servilmente os costureiros franceses, no corpo e no espírito. E a França é um país desorganizado e desorientado, turbulento e errante, à espera que o Senhor se compadeça dele para de novo o fazer o instrumento da sua vontade. Entretanto, perdem-se lá todas as virtudes individuais e sociais, esquecendo-se todos os dias os ensinamentos cristãos. A França afoga-se em literatura exclamando numa última atitude: Qualis artifex pereo! - Que artista vai morrer!
Mais perto de nós, a Espanha renasce poderosamente. Lá, afirma-se como há três seculos o espírito católico, de submissão incondicional à Igreja e ao Papa. Não nos esqueçamos que no seculo XVII os escritores peninsulares, Suarez à frente, defendiam a teoria da origem popular do poder para servirem o Papa contra os Reis que pretendiam impor a Reforma aos seus súbditos, isto não obstante ser a Espanha uma monarquia que eles prezavam e amavam como nos seus escritos mostram. Foi a Península a pátria da Escolástica e é aos dois povos peninsulares que está reservada de novo a grande missão de restaurar as nações em Cristo.
Há ainda quem tenha herdado das gerações românticas o medo pavoroso de que a Espanha tente absorver-nos. Há ainda quem nos fale seriamente e com sentida indignação no «perigo espanhol». E há ainda, cá e lá, quem amadureça o plano de uma União Ibérica.
Quanto a estes últimos, desenganemos as suas esperanças afirmando sempre e em toda a parte com altivez que somos e seremos livres até à consumação dos seculos. Mas não lhes dêmos demasiada importância, porque a não têm.
E pelo que diz respeito aos primeiros, ofereçamos à meditação deles uma página sensata de António Sardinha que V.as Ex.as me permitirão que leia para concluir:
"Cuido desonroso para nós, admitir quaisquer violentos intuitos de conquista por parte da Espanha. E desonroso para nós, porque concebê-los significa nenhuma confiança na vitalidade e no génio próprio de Portugal. Se esse patriotismo tumultuário e tantas vezes retórico, que cifra o penhor da nossa independência na irredutibilidade e no antagonismo com a Espanha quiser refletir um pouco, achará sem custo que à Espanha atual, mesmo que se lhe tornasse possível, a conquista ou a incorporação de Portugal não lhe convinha de maneira alguma. Não se anula pela força das armas a herança solidíssima de oito seculos de existência autónoma, com uma história, uma literatura e uma capacidade de resistência, como a de Portugal. A Espanha moderna, nas várias tendências centrifugas que lhe ameaçam a unidade, possui já bastantes agentes dissociativos para que haja de lhes multiplicar a força, metendo-se numa aventura que lhe seria inteiramente fatal. Não! O que à Espanha convém; o que à Espanha se impõe como exigência impreterível para recuperar a sua perdida supremacia é o acercamento, é o abraço fraternal connosco. Quem o entende de forma diferente fecha-se aos conselhos da inteligência e às indicações do patriotismo sensato”.
Tenho dito.
EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA
O singelo e despretensioso discurso que aí fica chamou a atenção de várias pessoas zelosas da integridade nacional; deu mesmo origem a um artigo do sr. conselheiro Fernando de Sousa, na Época, e a uma subsequente troca de explicações em que tudo se esclareceu. Parece-me bem declarar aqui, que, apesar de admirador fervoroso da moderna Espanha e principalmente da futura Espanha, repúdio qualquer combinação política entre as duas nações peninsulares tendo por objeto constituir uma «União ibérica» sob qualquer das formas de «monarquia dualista» ou «república federativa». Com um acento perfeitamente quixotesco aconselho no discurso discutido a que respondamos aos iberistas com a altiva declaração de que Portugal será livre até à consumação dos séculos. Assim o creio na minha fé nacionalista e na minha convicção de que se operará uma reforma intelectual e moral na gente portuguesa. Nem outra coisa eu podia dizer no dia 1 de Dezembro ou noutro qualquer dia, depois da resposta insofismável que dei ao inquérito do Jornal do Comércio e das Colónias, que este número reproduz.
(Marcelo Caetano, “Restauração de Portugal”, Ordem Nova, Lisboa, nº 9-10, Novembro- Dezembro de 1926, pp. 303-314.)
Referências / Fontes citadas:
(DISCURSO PRONUNCIADO NO DIA 1 DE DEZEMBRO NA JUVENTUDE CATÓLICA DE LISBOA)
Senhor Presidente:
Minhas senhoras:
Meus senhores:
Entre as coisas a que voto um profundo horror figuram a retórica e o lugar-comum. Feita esta declaração já V.as Ex.as avaliam a dificuldade com que falo da Restauração de 1640, acontecimento histórico de que a retórica comicieira se apossou para o envolver em farfalhudos tropos e transformar em espantalho terrificante do "patrioteirismo» de que nos fala o Eça fazendo dele um imenso, bafiento e impossível lugar-comum.
De facto, usa-se dizer, neste dia solene de regozijo nacional, alçada a voz no meio da praça pública repleta de multidão e dos acordes do hino em que a charanga dos bombeiros é exímia, que o dia 1 de Dezembro pôs termo “ao cativeiro humilhante iniciado com a usurpação de Filipe II”.
Esta é a ideia que está vulgarizada e que logo nos ocorria quando nas páginas da seleta portuguesa liamos o trecho clássico em que o escritor nos diz que "amanheceu risonho e alegre o dia 1 de Dezembro de 1640..." Imagine-se o embaraço do nacionalista consciencioso forçado pela verdade histórica a declarar que nem a dominação espanhola foi para nós um cativeiro em todos os 60 anos que durou, (Note-se que vemos a questão no seu aspeto histórico, isto é, aceitando os factos tais quais são. Não aplaudimos, porém, a união com a Espanha em 1580. Apesar de nos tratar bem, a Espanha, naturalmente, pretendia absorver-nos) nem o rei Filipe II "usurpou" a coroa de Portugal!
A USURPAÇÃO DE FILIPE II E O CATIVEIRO ESPANHOL
Permita-se-me que, ao de leve, me refira a estes dois erros tão geralmente aceites que só modernamente têm sido corrigidos, graças aos esforços dos historiadores libertados das influências românticas e do desejo dos efeitos verborreicos.
Mas que rajadas de eloquência se perdem!
A verdade, porém, é que Filipe II de Espanha constituía em 1580 a única solução legítima e a única solução consentânea com os interesses nacionais.
Única solução legítima visto que a ele cabia por direito a coroa vaga por morte do débil Cardeal-rei; única solução nacional porque, não só o Prior do Crato, judeu e corrupto, não tinha qualidades nem meios para governar o país nesse momento de crise, como também os Duques de Bragança não podiam de momento organizar a resistência contra Castela e impor a sua autoridade no reino desmantelado.
Restava Filipe II. Proclamado rei em Portugal, em cortes portuguesas e segundo as nossas leis, não tem o seu advento nenhuma das características da ocupação violenta sem direito, concorrendo nele todas as circunstâncias necessárias para que se desse a «justiça de aquisição» da soberania.
E perder-se-ia a independência portuguesa, começou então o cativeiro?
Não o julguemos. Constituiu-se uma monarquia dualista, isto é, subsistiam os dois Estados com os seus órgãos e suas leis, apenas ligados pela pessoa do Rei. Assim no-lo diz, resumindo com felicidade tudo quanto a análise dos documentos e dos factos nos ensina, o venerando Frei Francisco Brandão, co-autor da “Monarquia Lusitana” pregando o Discurso gratulatório sobre o dia da felice restituição y aclamação da Majestade del-Rey D. João IV N. S.
«Nas Crónicas de S. Francisco se conta que estando o Seráfico Patriarca em Portugal vaticinara que nunca este Reyno havia de ser unido a Castela. Muitos, que, sem considerar as cousas as desestimam, negavam esta predição, vendo que entrou Filipe Segundo na herança do Reyno: mas ainda assi sustentava o doutíssimo Padre Frey Lucas Wandingo, cronista da mesma ordem, ser verdadeira a profecia do Santo, porque ainda que unidos os Reynos de Portugal é Castela en um herdeiro, entre si eram distintos, tanto que os naturais de um Reyno se reputavam por estrangeiros no outro; a moeda era diferente, e as provisões se passavam em diferentes línguas, em forma que se não podiam chamar Reynos unidos». (Cit. por Sardinha, A Aliança Peninsular, p. 278 n.)
Quantos factos se não poderiam apresentar para ilustrar esta passagem do erudito alcobacense? Nem os dois primeiros filipes se comportavam para connosco em Reys estranhos e cruéis senão em soberanos próprios e nacionais. Bastará assinalar-se a «Jornada de Vassalos», luzidíssima expedição que em 1624 partiu para libertar a Baía do jugo dos holandeses e que Elísio de Carvalho com tanto colorido nos conta no seu livro «Lauréis insignes» como já, antes o fizera o nosso D. Francisco Manuel. A Bahia foi libertada e Elísio de Carvalho — belo espírito que Deus já chamou a si - diz-nos que grande parte da nobreza brasileira entronca nos fidalgos que, tendo ido na armada, se fixaram em terras de Santa Cruz.
Outro facto demonstrativo do respeito em que eram tidas as liberdades portuguesas está, por muito paradoxal que isto pareça, na causa próxima da revolução de 1640: a reação anti castelhana toma corpo em virtude da intenção manifestada pelo Conde Duque de Olivares de fazer de Portugal uma província de Espanha. Socorro-me de novo a Fr. Francisco Brandão que diz no seu Discurso: «Intentou nos dous anos passados a soberba Castela apertar mais o ponto e fazer, que esta união de Reynos que havia na pessoa do injusto possuidor, estivesse também entre os mesmos Reynos. Aqui acudiu S. Francisco, e mostrou com efeito o entendimento da sua profecia, que era não ser Portugal nunca unido a Castela, e assim quando naquele Reyno pretendiam a união de ambos, executámos nós a separação…» (loc. cit.)
Um terceiro facto bem à vista está na facilidade com que em Portugal e na Espanha se fazia a propaganda das doutrinas, profecias e mitos favoráveis à restauração de Portugal. Todos fechavam os olhos... E, no entanto, foram essas doutrinas e esses mitos que, fizeram a revolução. Detenhamo-nos sobre elas alguns minutos, para brevemente fixarmos os seus pontos essenciais.
DOUTRINAS DA RESTAURAÇÃO
As doutrinas políticas que prepararam e justificaram a Restauração, têm para nós o duplo interesse de serem imensamente curiosas como construção jurídica e infinitamente interessantes como doutrinas da mais pura ortodoxia católica. (Modernamente a Santa Sé tem manifestado o seu desacordo com elas. Cf. as encíclicas “Diuturnum”, “Immortale Dei” e “Libertas protestantissimum” - acrescentou Marcelo Caetano em nota de rodapé)
Fundamentalmente, consistiam nas ideias de Santo Tomás, comentadas e sistematizadas pelo grande «Doctor Eximius", Francisco Suárez, professor da nossa Universidade de Coimbra durante vinte anos e um dos maiores teólogos que se contam entre os seguidores mais ou menos fiéis da doutrina do angélico doutor.
Segundo os teóricos da Restauração - plêiade brilhantíssima em que têm larga representação as murças universitárias - o poder vem de Deus, como diz o Apóstolo, porque Deus é a causa primeira de todas as coisas. Assim, ao criar a sociedade surge por direito natural o poder que é indispensável para a sua conservação e progresso. Não é ele concedido a um ou ouro homem, e, portanto, reside na coletividade. Esta é que em virtude dum pacto pode transferir o seu exercício—e não o alienar como dizia Suarez - para um dos seus membros, e temos a monarquia, ou para alguns, e temos a aristocracia.
Ao rei incumbe então o "oficio de reinar". Ofício duro, como lhe chamou um dos nossos príncipes, ofício que consiste em fazer justiça, defender os seus súbditos e em conservar e aumentar o reino que lhe foi confiado. Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum — disse-o Santo Tomás, elegantemente traduzido pelo nosso João Pinto Ribeiro: "Os Reys não foram criados e ordenados para sua utilidade e proveito, se não em beneficio, e prol do Reyno».
Desde que o monarca deixe de respeitar o pacto que houve entre ele e a república, oprimindo os seus vassalos e deixando de buscar a sua felicidade, converte-se em «tirano no governo» que em linguagem da escola se chama tirano quoad administrationem - sendo lícito à coletividade a sua deposição, privando-o do reino e tirando-lhe o poder que lhe deu e que ele não soube usar. É o direito à sedição, proclamado e justificado e que o Dr. Velasco de Gouveia definia dizendo que "não é sedicioso, antes lícito ao povo resistir ao Rey Tirano ou que tiranicamente governa".
Estão já V.as Ex.as a ver a Revolução de 1640 juridicamente explicada: os Filipes não eram reis tiranos, como no princípio afirmei, visto como eram legítimos soberanos de Portugal. Não se dava, pois, a tirania quoad titulum. Mas governavam tiranicamente, contrariando os interesses da Nação Portuguesa que o Conde Duque de Olivares pretendia, para maior vexame, reduzir à categoria de uma província espanhola. "Maldito governo— diz algures João Pinto Ribeiro, revolucionário e jurista — maldito governo que põe, sua segurança em desprezo de Vassalos honrados; errada resolução do Rey, que despreza a língua daqueles a que governa e manda, não havendo maior firmeza entre vassalos e Rey, que falarem a mesma língua e
saberem que o entendem e são entendidos dele.…"
Eis, meus senhores, em duas palavras as doutrinas defendidas por uma brilhantíssima pleiade de escritores que formam a mais notável escola portuguesa de direito público.
Pois bem: dentre eles, não quero deixar de citar dois nomes demonstrativos da benignidade do governo castelhano e do grande amor que tinham a Portugal: dois padres, ambos doutores de Coimbra. que, em Espanha escreveram defendendo as doutrinas da Restauração. São eles os Drs. Fr. Serafim de Freitas e João Salgado de Araújo.
Serafim de Freitas, lente em Valladolid e frade da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, é autor duma calorosa apologia do poder do Pontífice sobre as coisas temporais, a propósito da liberdade dos mares. A respeito do seu «De justo imperio Lusitanorum Asiático» escrevia o erudíto Visconde de Santarém que era um fortissimo manifesto contra Castela "mostrando bem como a revolução de 1640 se preparava muitos anos antes" (o livro é de 1625). E o Visconde continua: "Não deixa de ser curiosa, entretanto, a circunstância de o governo espanhol consentir na impressão da obra e tanto mais que o A. era lente de cánones na Universidade de Valladolid». (Inéditos, p. 200).
Que diria o eminente geógrafo se soubesse que o governo espanhol tinha em grande conta o frade português, rodeando-o de atenções e premiando-lhe os serviços!
Quanto ao Dr. Salgado de Araújo, abade de Pera, diz dele D. Francisco Manuel que era "de engenho agudo e ânimo atrevido de tal sorte, que fazia virtude de se opor aos fortes e fulminar contra eles". Pois estando em Madrid e nas boas graças do Rei, escreveu em espanhol a Ley Regia de Portugal onde defende as doutrinas que acima referimos, ilustrando o seu livro com numerosos exemplos tirados da vida dos Reys de Portugal que logo de início elogia grandemente, afirmando nunca ter havido em Portugal um soberano absolutamente mau, coisa de que nenhuma outra nação se poderia gabar. E a obra correu, e chegou até nós...
A Revolução de 1640 preparou-se, portanto, num ambiente de larga tolerância e com inteligência e ponderação. Mas, meus senhores, quem conhece as multidões e a sua psicologia especial, assunto apaixonante e cujo conhecimento é precioso aos condutores de homens, sabe que não são as doutrinas, as construções científicas, os princípios refletidos e secamente formulados que podem fazer uma Revolução.
Uma Revolução exige qualquer coisa mais: exige um estado de espírito especial, exige entusiasmo e fé. Se os doutores da Revolução justificaram sábia e abundantemente para o escol da sociedade portuguesa o passo que se ia dar, foram os padres, principalmente os jesuítas e os frades de Alcobaça que levaram o povo à expulsão dos Filipes. Porque maneira? Criando mitos.
TEORIA DOS MITOS. O SEBASTIANISMO. O MILAGRE DE OURIQUE E AS CORTES DE LAMEGO
Foi Georges Sorel, sindicalista revolucionário francês e um dos mais belos espíritos que a França tem tido nos últimos anos, quem, em páginas cheias de colorido e de talento, criou a teoria dos mitos, hoje já um precioso elemento para a interpretação da história.
A História, meus senhores, tem sido vítima de toda a espécie de atentados, conscientes e inconscientes, resultantes da visão errada de espíritos simplistas que tudo resolvem facilmente, e da deturpação propositada daqueles que a convertem em instrumento dos seus ódios ou em serva das suas ambições.
Eu recordo a indignação retumbante de certo professor de História que tive nos meus tempos do liceu, ao falar na falsificação despudorada e torpe dos frades de Alcobaça. As patranhas da "Monarquia Lusitana» eram apregoadas em tom escarninho e com comentários destinados a fazer rir. Eu tinha então por Fr. Bernardo de Brito e pelos seus continuadores um desprezo imenso, um desprezo sobranceiro, de homem de bem ofendido pela prática à sua vista, dum ato digno de eterna reprovação...
E, no entanto, reconheço hoje que essas mentiras piedosas foram um dos mais poderosos elementos para a Restauração.
As Revoluções, disse eu já, não se fazem com tratados de direito. Então... é necessário, diz Sorel, fazer apelo a conjuntos de imagens capazes de evocarem em bloco e apenas por intuição, antes de qualquer análise refletida, a massa dos sentimentos que estão comprometidos na luta que se quere travar. Esses conjuntos de imagens são-nos fornecidos pelo mito, construção que se ergue num futuro indeterminado, mas que passa a constituir a preocupação constante do povo, do partido ou da classe que o adota. E Sorel exemplifica com a parúsia dos cristãos - exemplo que, claro está, não nos serve — e com a greve geral dos sindicalistas revolucionários.
Ora, meus senhores, que foi o Sebastianismo senão um mito, exatamente nas condições em que o define Sorel, isto é, uma representação psíquica "graças à qual a razão, as esperanças e a perceção dos factos particulares parecem constituir uma unidade indivisível?" (Réflexions sur la violence, p. 181).
Que é, afinal, a história da promessa de Ourique aproveitada e propagada na Restauração? (O milagre de Ourique não estando reconhecido pela igreja, pode ser, sem sombra de heresia, considerado como um mito na história) Que são as frases heroicas dos cavaleiros de Santa Maria de Almacave e os seus protestos violentos? O que é o sonho do Quinto Império?
Tudo isto, meus senhores, constitui o elemento que imediatamente atuou com eficácia na alma popular, trazendo como consequência a restauração de 1640. É que lá dizia o Bandarra:
Sáia, sáia êsse infante
Bem andante
O seu nome he Dom João
CONCLUSÃO: PORTUGAL E A ESPANHA
É tempo, porém, de terminar. Foquei apenas, neste despretensioso arrazoado, alguns dos mais interessantes assuntos que ao estudioso são sugeridos pela data que se comemora hoje. Resta-me dizer-vos qual o meu pensar quanto ao caracter das relações que devem unir Portugal à Espanha.
A 24 de Setembro um jornal francês publicava a seguinte local:
La Société des Nations, d'après Buré, a l'Avenir, aura pour mission de sanctionner la loi du plus fort:
On sait que l'Allemagne, purifiée par le baptême genevois, peut dorénavant prétendre à l'obtention des mandats coloniaux. Prudente, elle n'a point encore fait valoir ses droits, mais elle ne les laissera pas prescrire, on peut en être convaincu. Qu'elle ait seulement pris racine à Genève, et vous verrez comme elle mènera rondement son affaire !
Mais où trouver des terres libres?
Le Portugal sera, si l'on en croit le Manchester Guardian, offert en holocauste au salut du Reich. Voilà qui fera perdre toute gaieté aux compatriotes de Camoens! Leurs représentants à Genève ont d'abord cru que la nouvelle était sans fondement ; mais ils sont allés aux renseignements et «leur enquête, nous dit notre ami Maurice Muret, dans la Nation belge, ne les a pas rassurés. Dame, ils peuvent tout craindre de leurs chers alliés britanniques. La Manchester Guardian ne fait en somme que reprendre le vieux projet du très pieux et très loyal lord Grey qui, á la veille de la guerre, proposait déjà á Berlín, en signe d'alliance, le partage du domaine colonial des Portugais — « peuple de régicides et d'athées », indigne de toute considération. Le marché fut jugé «insensé» par le Kaiser lui-même qui traita de « vieille femme» son ambassadeur à Londres, prêt à le conclure.
Ross e Schultz, propalavam nos seus relatórios canalhas, acusações infundadas e tendenciosas.
Nada de novo vos direi. Eu desejaria pôr diante dos olhos de cada um de V.as Ex.as esse maravilhoso livro cheio de alma que é a Aliança Peninsular. Nele, António Sardinha, meu muito querido e amado mestre, põe o problema com a clareza de sempre e resolve-o com um sentido maravilhoso de realidade e de verdade.
De facto, meus senhores, há um equívoco velho entre as duas nações peninsulares. Elas que cumpriram uma mesma missão apostólica, que tiveram em dado momento da civilização um mesmo papel cultural, e um mesmo destino histórico, encontram-se espiritualmente divorciadas por antigas questões, por velhos dissentimentos.
Cada uma das nações independente e livre, sem nenhuma espécie de limitação política; mas ambas cooperando numa mesma grandiosa tarefa, que Oliveira Martins entrevia nas últimas páginas da sua História da Civilização Ibérica - eis o nosso ideal.
Deixámo-nos prender, demasiadamente, pela França, país de onde até hoje só nos veio perdição, e que, aquando das guerras napoleónicas nos fez mais dano com o barbarismo dos seus exércitos e a corrupção das nossas instituições, do que 60 anos de rei Castelhano. Parece-me agora ouvir a queixa dorida de Ruben Dário:
Bebiendo la esparcida salva francesa
Con nuestra boca indígena semi-española
Dia a día cantamos la Marsellesa
Para acabar danzando la Carmañola.
Dia a dia se vão afrancesando mais os nossos usos, os nossos costumes, as nossas palavras, os gostos, as ideias e as almas; imitamos servilmente os costureiros franceses, no corpo e no espírito. E a França é um país desorganizado e desorientado, turbulento e errante, à espera que o Senhor se compadeça dele para de novo o fazer o instrumento da sua vontade. Entretanto, perdem-se lá todas as virtudes individuais e sociais, esquecendo-se todos os dias os ensinamentos cristãos. A França afoga-se em literatura exclamando numa última atitude: Qualis artifex pereo! - Que artista vai morrer!
Mais perto de nós, a Espanha renasce poderosamente. Lá, afirma-se como há três seculos o espírito católico, de submissão incondicional à Igreja e ao Papa. Não nos esqueçamos que no seculo XVII os escritores peninsulares, Suarez à frente, defendiam a teoria da origem popular do poder para servirem o Papa contra os Reis que pretendiam impor a Reforma aos seus súbditos, isto não obstante ser a Espanha uma monarquia que eles prezavam e amavam como nos seus escritos mostram. Foi a Península a pátria da Escolástica e é aos dois povos peninsulares que está reservada de novo a grande missão de restaurar as nações em Cristo.
Há ainda quem tenha herdado das gerações românticas o medo pavoroso de que a Espanha tente absorver-nos. Há ainda quem nos fale seriamente e com sentida indignação no «perigo espanhol». E há ainda, cá e lá, quem amadureça o plano de uma União Ibérica.
Quanto a estes últimos, desenganemos as suas esperanças afirmando sempre e em toda a parte com altivez que somos e seremos livres até à consumação dos seculos. Mas não lhes dêmos demasiada importância, porque a não têm.
E pelo que diz respeito aos primeiros, ofereçamos à meditação deles uma página sensata de António Sardinha que V.as Ex.as me permitirão que leia para concluir:
"Cuido desonroso para nós, admitir quaisquer violentos intuitos de conquista por parte da Espanha. E desonroso para nós, porque concebê-los significa nenhuma confiança na vitalidade e no génio próprio de Portugal. Se esse patriotismo tumultuário e tantas vezes retórico, que cifra o penhor da nossa independência na irredutibilidade e no antagonismo com a Espanha quiser refletir um pouco, achará sem custo que à Espanha atual, mesmo que se lhe tornasse possível, a conquista ou a incorporação de Portugal não lhe convinha de maneira alguma. Não se anula pela força das armas a herança solidíssima de oito seculos de existência autónoma, com uma história, uma literatura e uma capacidade de resistência, como a de Portugal. A Espanha moderna, nas várias tendências centrifugas que lhe ameaçam a unidade, possui já bastantes agentes dissociativos para que haja de lhes multiplicar a força, metendo-se numa aventura que lhe seria inteiramente fatal. Não! O que à Espanha convém; o que à Espanha se impõe como exigência impreterível para recuperar a sua perdida supremacia é o acercamento, é o abraço fraternal connosco. Quem o entende de forma diferente fecha-se aos conselhos da inteligência e às indicações do patriotismo sensato”.
Tenho dito.
EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA
O singelo e despretensioso discurso que aí fica chamou a atenção de várias pessoas zelosas da integridade nacional; deu mesmo origem a um artigo do sr. conselheiro Fernando de Sousa, na Época, e a uma subsequente troca de explicações em que tudo se esclareceu. Parece-me bem declarar aqui, que, apesar de admirador fervoroso da moderna Espanha e principalmente da futura Espanha, repúdio qualquer combinação política entre as duas nações peninsulares tendo por objeto constituir uma «União ibérica» sob qualquer das formas de «monarquia dualista» ou «república federativa». Com um acento perfeitamente quixotesco aconselho no discurso discutido a que respondamos aos iberistas com a altiva declaração de que Portugal será livre até à consumação dos séculos. Assim o creio na minha fé nacionalista e na minha convicção de que se operará uma reforma intelectual e moral na gente portuguesa. Nem outra coisa eu podia dizer no dia 1 de Dezembro ou noutro qualquer dia, depois da resposta insofismável que dei ao inquérito do Jornal do Comércio e das Colónias, que este número reproduz.
(Marcelo Caetano, “Restauração de Portugal”, Ordem Nova, Lisboa, nº 9-10, Novembro- Dezembro de 1926, pp. 303-314.)
Referências / Fontes citadas:
- São Tomás de Aquino
- Francisco Suárez
- João Pinto Ribeiro
- Velasco de Gouveia
- 1625 - Frei Serafim de Freitas - De Iusto Imperio Lusitarorum Asiatico
- 1627 - João Salgado de Araújo, 15-- 1644? – Ley regia de Portugal: primera parte, 1627. https://bibdigital.fd.uc.pt/H-A-7-8/H-A-7-8_item1/P5.html
- 1642 - Frei Francisco Brandão, Discurso gratulatório sobre o dia da felice restituição y aclamação da Majestade del-Rey D. João IV N. S.https://purl.pt/14210
- 1880 - Oliveira Martins, História da Civilização Ibérica, 2ª ed. emendada.https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=coo.31924028543456&seq=5
- 1908 - George Sorel, Réflexions sur la violence. https://cras31.info/IMG/pdf/sorel_reflexions_violence.pdf
- 1924 - Elísio de Carvalho, Lauréis insignes
- 1924 - António Sardinha, A Aliança Peninsular
- 1881 - CARTA ENCÍCLICA DIUTURNUM ILLUD (29 de Junho de 1881) DO SUMO PONTÍFICE LEÃO XIII sobre a Autoridade Política - hf_l-xiii_enc_29061881_diuturnum.pdf
- 1885 - CARTA ENCÍCLICA IMMORTALE DEI (1 de Novembro de 1885) DO SUMO PONTÍFICE LEÃO XIII sobre a Constituição Cristã dos Estados - hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei.pdf
- 1888- CARTA ENCÍCLICA LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM (20 de Junho de 1888) SUMO PONTÍFICE LEÓN XIII sobre a Liberdade e o Liberalismo - hf_l-xiii_enc_20061888_libertas.pdf
Em 1940, Joaquim Leitão fez um inventário da documentação existente acerca das Cortes portuguesas - Côrtes do Reino de Portugal. Inventário da documentação existente servindo de catálogo da exposição documental e bibliográfica, Lisboa, Assembleia Nacional, 1940).
Marcelo Caetano viria a dedicar especial atenção às Cortes Medievais portuguesas:
Marcelo Caetano viria a dedicar especial atenção às Cortes Medievais portuguesas:
- 1941 - "As Cortes de 1385", Revista Portuguesa de História, Coimbra, 5, 1941
- 1953 - As Cortes de Leiria de 1254. Memória Comemorativa do VII Centenário, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953
- 1963 - "Subsídios para a História das Cortes Medievais Portuguesas", Bracara Augusta, 14-15, 1963, pp. 139-160
- 1981 - História do Direito Português. I – Fontes, Direito Público. 1140-1495, Lisboa, Editorial Verbo, 1981