O Drama de um Rei
A Realeza cristã tinha no Poder de Deus o seu limite e, simultaneamente, a sua fonte. Quanto mais se deixava repassar pela concepção da origem divina do Poder, mais o Rei cristão compreendia que estava consagrado por Deus ao bem do Povo.(...)
"Para a Razão Pura, o Rei era o grande escândalo da História (...) a Realeza tem os seus dias contados. O Rei deve morrer. / Antes da decisão ser tomada nalguma loja maçónica de Lisboa ou de Paris – antes de o Rei se chamar D. Carlos de Bragança, já a decisão fora tomada por todo o Ideologismo contemporâneo./ O Rei ia ser morto.
Henrique Barrilaro Ruas
Ao dar a este trabalho o título «O Drama de um Rei», pretendi pôr em relevo a alta qualidade humana de D. Carlos I, mas, porventura ainda mais, a grandeza do problema que esse Rei personificou: o problema da Realeza no mundo moderno.
Numa época de futilidades, em que a política se dissolvia no anedótico, El-Rei D. Carlos representa um esforço sério e implacável de fazer da acção política uma obra digna do homem.
Num tempo e num ambiente em que a Sociedade tinha perdido quase de todo o sentido do sagrado, a Realeza era o último fundamento ou, pelo menos, o claro símbolo do sentido transcendente da existência colectiva.
A morte do Rei, na sua preparação obscura e lenta, na sua execução bem visível e fulminante, e na espantosa glorificação dos assassinos, é o momento culminante de um processo longo, o processo movido simultaneamente pelo ideologismo mais ou menos filosófico, pelo burocratismo mesquinho e pelo igualitarismo destruidor.
Ao alcançarem o triunfo sangrento, os inimigos da Realeza descobriram o abismo em que se havia [ -172] de precipitar toda a Nação e todas as formas tradicionais da cultura cristã.
Quando, seis anos mais tarde, tiver início o esforço intelectual e voluntário de renovação a que se chamou Integralismo Lusitano, essa atitude da geração nova terá por ponto de partida o significado do Rei na vida do Povo e, assim, o seu pano de fundo será a tragédia do Terreiro do Paço.
Foi preciso o testemunho do sangue. Por esse alto preço conquistou Portugal o direito a um renascimento doutrinário mais inteiro que qualquer dos movimentos que no Ocidente se ergueram contra os princípios da Revolução.
Passados 50 anos sobre o início desse esforço, é justo que os que procuram continuá-lo se não recusem a mergulhar nas sombras da morte, onde o extremo do ódio e o extremo do amor parecem coexistir, e aí reconhecerem na figura ensanguentada de El-Rei D. Carlos a imagem da Pátria três vezes negada: negada pela razão pura, negada pelo espírito burocrático, negada pelo igualitarismo. Porque, ainda na morte, o Rei é a «Pátria com figura humana».
*
O drama de El-Rei D. Carlos é o drama da Realeza moderna. Esse drama desenrola-se em dois planos: no primeiro, começou um século e meio mais cedo, quando o Marquês de Pombal introduziu brutalmente no nosso País as doutrinas racionalistas do despotismo [-173] esclarecido; o segundo data de 1820, foi gravado em 1826 e tomou nova feição em Évora-Monte.
No primeiro caso, a Realeza é roubada à Nação, arrancada ao corpo vivo de uma história concreta, e projectada num além abstracto, onde fica a pairar como uma nuvem, embora uma nuvem luminosa.
No segundo caso, é a Realeza que é arrancada a si própria, esvaziada do seu conteúdo essencial, ao mesmo tempo que a Nação lhe é progressivamente arrebatada.
Em rigor poderíamos dizer que a essência da Realeza é a própria Nação tal como a história no-la oferece, viva e palpitante, complexa e limitada, poderosa e, no entanto, impotente se lhe falta a cabeça pensante e condutora.
Esvaziar a Realeza da sua própria substância é corta-la do corpo nacional.
E roubar o Rei à Nação é condenar esta a uma existência anárquica ou à alienação do seu espírito próprio, em favor de uma ideologia qualquer.
É certamente possível reconstruir ideologicamente uma Nação.
Mas essa operação equivale a substituir a alma, e só pode ter êxito à custa das liberdades pessoais e corporativas.
A alma da Nação portuguesa foi sempre definida na fórmula lapidar da Cortes de Lamego, renovada e valorizada pelas de 1641: nós somos livres; o nosso Rei é livre.
A liberdade do Rei é inseparável da liberdade dos Portugueses, mas esta só pode encontrar garantia perfeita e sentido adequado na liberdade do Rei. [-174]
Por força do despotismo iluminado, foi a liberdade do Rei que sofreu uma hipertrofia sem limite; nessa hipertrofia, porém, o Rei perdia a sua natureza e, em vez de instituição histórica aberta às outras instituições, a Realeza ficava a ser um absoluto falsamente divino, que já nem servia de modelo aos homens.
O papel exemplar do Rei na Sociedade portuguesa tradicional já não se podia cumprir. É isso que explica que a decadência social se tenha dado precisamente a partir da época em que os meios culturais e técnicos se desenvolveram grandemente.
O reinado de D. Carlos ilustra singularmente esta doutrina. Poucas vezes, na nossa história, se reuniram tantos homens superiores – nas artes, nas letras, nas ciências, na política e na administração, na economia e na técnica.
O próprio Rei era, por muito que pese a dois ou três denegridores encartados, uma personalidade singularmente dotada de inteligência e cultura, tacto diplomático, energia e destemor.
Mas, vítima de um processo antigo, o Rei pairava ainda, já não como poder, mas apenas como símbolo, numa zona etérea onde as suas altas capacidade estavam desvinculadas da Nação e mal lhe podiam servir.
A Realeza deixara de exercer a sua função essencial de instituição das instituições, órgãos dos órgãos, princípio ordenador dos outros princípios.
Por força do liberalismo triunfante em 1820, foi a liberdade dos cidadãos que se hipertrofiou sem medida. Mas essa liberdade tinha no seu carácter ilimitado o princípio da própria destruição. [-174]
(Abertas as veias, o sangue corre livre, mas essa liberdade é a sua perda...)
A liberdade do Povo salva-se na liberdade do Rei. Porque a liberdade do Rei consiste em estar preso à Nação, em fazer com ela um mesmo corpo.
A liberdade que enche os discursos e os jornais de um século romântico é uma falsa liberdade, porque não tem sentido.
Nega-se a natureza humana e, em seguida, afirma-se que o homem é inteiramente livre. Destroem-se as associações, centraliza-se a administração e, sobre as ruínas de toda a obra de séculos, lançam o homem, inteiramente livre... de si próprio.
Procura-se tirar todo o poder concreto à Realeza, única força social igualmente interessada na defesa de todas as outras, e ao mesmo tempo proclama-se a liberdade como convite ao domínio do mais forte.
Deste modo se caminhou para um desequilibro cada vez mais acentuado dos poderes económicos e dos grupos de pressão.
Esta situação levava ao absurdo de considerar a família real como um pequeno núcleo de privilegiados, cuja existência parecia tornar-se cada dia mais pesada ao erário público.
A curta duração da Monarquia liberal, juntamente com alguns factores tradicionais ainda actuantes, não permitiu que esse desequilíbrio se agravasse indefinidamente; mas a República precipitou esse processo, agravando a disparidade económico-social, como ainda há poucos anos a Seara Nova demonstrou[1] [-176].
A falsa posição do rei determinada pela Revolução de 1820 agravou-se seis anos depois, com a outorga da Carta Constitucional, que subvertia a ordem tradicional e natural da Sociedade, fazendo do Rei fundamento e critério da Constituição do Reino e tirando-lhe o seu papel de condutor do Povo.
Veio o ano de 1834, e a crise doutrinária da Realeza complica-se com a questão dinástica. Questão que não se deve hoje ressuscitar, mas que não pode ser esquecida, se quisermos compreender até ao âmago o drama de El-Rei D. Carlos.
Sabia ele bem que uma parte considerável dos melhores portugueses se recusava a admitir a sua legitimidade.
Quando se punha rudemente o problema da legitimidade do Poder Real em face de ideologias e de interesses, a questão dinástica não podia deixar de minar interiormente a Realeza estabelecida, como uma dúvida e um escrúpulo.
Tal é, nas suas linhas gerais, o drama deste Rei, grande entre os maiores, que quis servir o Povo e o Povo não conheceu.
Esse drama terminaria em tragédia, e esta pode fazer esquecer aquele. Mas quem se fixar com olhos críticos e serenos na tragédia de 1908, não terá dificuldade em compreender que ela já estava contida na crise da Realeza dos séculos XVIII e XIX, e que a revolução republicana não fez mais que exprimir em termos claros o que há muito estava implícito nas ideias e nos factos.
Com outro Rei, talvez o drama não se tivesse [-177] resolvido em tragédia, porque a personalidade de El-Rei D. Carlos era daquelas que aceitam inteiramente as responsabilidades e se erguem, no centro da sociedade a que pertencem, como ponto de convergência das linhas de força.
Como poucos soberanos dos tempos modernos, El-Rei D. Carlos teve a consciência muito clara do que é ser Rei.
Condenado a uma existência puramente simbólica, o Rei guardava o carácter essencial da Realeza de sempre: conhecia o que há de belo e de terrível naquele duro ofício de reinar de que sabiam falar os antigos mestres da política cristã.
Sabia que sempre a Realeza, em todos os enquadramentos culturais, foi vínculo entre a Natureza e o homem, e entre o homem e Deus.
Sabia que é próprio do Rei, por mais alto que suba nas esferas do pensamento e da ciência, conservar a humilde origem natural do seu poder: outros o receberão ou o conquistarão pela inteligência, pelo dinheiro ou pela força; ele deve a Coroa ao facto biológico do nascimento, e assim há-de compreender que está no mundo para servir o comum, já que entre todos foi escolhido por Deus e pela História exactamente por aquilo em que nenhum homem se distingue dos seus semelhantes.
Em El-Rei D. Carlos era muito viva a consciência da irmandade com todos os homens, sem distinções de classes ou de ideias.
Mas conhecia bem que entre a sua pessoa e a sua função se interpunha o mistério da Realeza. Desse mistério ninguém tinha o segredo, nem mesmo o Rei. [-178]
A distância que vai do profano ao sagrado é a que separa a República da Monarquia. Não é isto confundir o que é de César com o que é de Deus, mas é reconhecer que a Realeza insere um elemento do sagrado na massa do profano.
A investigação da História e da sua filosofia; a reflexão sobre as formas da vida humana colectiva e sobre os seus fundamentos – têm conduzido os estudiosos a traçar, em sábios termos de clareza e rigor, uma teoria da Realeza na origem do tempo histórico. Trabalhos profundos, de análise e de síntese, em que se distingue o do Prof. Frankfort, com o seu belo livro A Realeza e os Deuses, mostram que, na aurora da História, o Rei surge como resposta viva para o problema da Civilização. Olhando no plano mais profundo, este problema consiste em saber como é possível a inserção do homem na unidade cósmica – como ela é possível sem destruição do que há de próprio no ser humano.
Antes da hora incomparável em que surge entre os Gregos, como uma luz nova, a Filosofia, já a Humanidade trazia de bem longe a sua ânsia de saber, a terrível necessidade de explicar, a inquietação da verdade. É hoje bem conhecido no mundo culto o valor das fontes egípcias, babilónicas, hititas ou persas, como testemunho de pensamento. Ao contrário do que precipitadamente se julgou, já muito antes do Gregos, o homem, conhecendo-se como espírito, lança às coisas que o cercam o tremendo desafio para o diálogo, ou o combate, que há-de durar até ao fim dos séculos.
Em duas direcções se lança esse desafio: que é o [179] mundo? Que é o Homem? À primeira pergunta responde o pensamento pré-filosófico, com a teoria da Criação. À segunda, com a teoria da Civilização. Quer uma quer outra, são apelos ao divino. A Civilização surge como um prolongamento da Criação. E o papel que os deuses desempenham nesta é o mesmo que os reis desempenham naquela: a vitória da ordem sobre a desordem, do bem sobre o mal, do cósmico sobre o caótico. Assim, do deserto do Sara às florestas indianas, o trono, o ceptro e a coroa são símbolos divinos, e o Rei, ou é deus, como no Egipto, ou lugar-tenente dos deuses, como na Babilónia ou na Pérsia. E, para os outros homens, o vínculo com o Rei é a única via para a dignificação. Fora do Rei, não há salvação.
Subitamente, num contraste que diríamos brutal, aparece na História um novo tipo de Realeza. Cercado de todos os lados por inimigos poderosos, o Povo hebreu quer um rei. Não é a História que lho dá: ele é que o dá à História.
O Povo não encontra na Realeza a explicação para a sua presença no Mundo. O que lhe pede, não é uma teologia nem uma filosofia: é estritamente uma política. Deste modo, se há um Povo que cria a Política, é o Povo de Deus, aquele que ficou na História como o iniciador da Religião pura. É já, a séculos de distância, o anúncio da palavra de Cristo: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».
Também neste caso ímpar, no entanto, a Realeza está vinculada a Deus. A Bíblia relata o diálogo surpreendente entre Deus e o seu Povo, por intermédio [-180] de Samuel. É a Deus que o Povo pede o Rei. Sem Rei, sente-se incompleto, flutuante, errando às cegas, sem um ponto de apoio. Aqui, porém, a necessidade do Rei não tem que ver com a salvação eterna. Já os homens entendem que a salvação não é um processo cósmico, mas uma transcendência. O plano divino a que o homem quer subir não se confunde com o Oceano Primordial nem com o Firmamento das Estrelas. Espírito puro, só Deus responde, na sua transcendência absoluta, às aspirações da alma humana. E o género de perfeição digno do homem é só um: a perfeição de Deus. À medida que atira o ideal religioso do homem para alturas inacessíveis à simples natureza, o Povo hebraico destaca a Religião da Política.
Assim nos surge a nova Realeza. O Povo quer um Rei – mas não o elege. Quer que o seu Rei seja um de entre os seus – mas é a Deus que pede que o designe.
Séculos mais tarde, passada a experiência, quase sempre infeliz, do Império Cristão, a Igreja há-de fazer triunfar entre as nações jovens o ideal bíblico da Realeza: Carlos Magno terá por modelo o Rei-Profeta. Agora, porém, já o Rei é um fruto da História, um fruto natural da História.
A bênção de Deus, traçada pela mão da Hierarquia, desce sobre um puro homem, o mais forte, o mais duro, o mais audacioso. Mas a origem germânica é, para a Realeza medieval, apenas uma das faces – a face humana. A outra, a divina, não é menos essencial, e é mais esplêndida. [-181]
Quando a firmeza e clareza do Direito Romano conseguem irromper por entre o matagal do costume e do arbítrio, perfila-se na História a majestade do Rei. Percorrendo os milénios, difícil será encontrar mais perfeita floração da História. Apossou-se dela, depois, a horrível doença da unilateralidade, o delírio da Ordem, a orgia da Razão. Cevado pelas exigências do amor à Lei, o Rei dos tempos modernos encontra-se no caminho com o Racionalismo, e sofre a sua tentação ilimitada. Uma coincidência de planos leva a uma confusão infeliz. E assim o Despotismo Iluminado, em que o Rei julga estar a cumprir o máximo serviço à Grei, prepara a Revolução, em que Rei e Grei vão correr mortal perigo.
Quando o ideologismo tiver utilizado, como mero instrumento, o nome do Rei, o seu prestígio, a sua vinculação ao Povo, há-de abandoná-lo como um vestido gasto e inútil. E então, arredado do caminho o Poder encarnado, a Ideia pode lançar-se sobre o Povo indefeso. Vai começar, em cheio, a era ideológica. Ai dos homens que não se deixem moldar!
Mas uma outra coincidência infeliz se tinha dado. A Realeza cristã tinha no Poder de Deus o seu limite e, simultaneamente, a sua fonte. Quanto mais se deixava repassar pela concepção da origem divina do Poder, mais o Rei cristão compreendia que estava consagrado por Deus ao bem do Povo. E a Igreja, que lhe ensinava a alta origem da sua missão, constantemente lhe lembrava a humilde origem da sua vida. Um de entre o Povo. Um de entre os nascidos de mulher. Um de entre os degredados filhos de Eva. [-182] Um dos resgatados pelo Sangue do Cordeiro. Um de entre aqueles «muitos irmãos» de que Cristo – ensina S. Paulo – é «o Primogênito». Um de entre mil...
Eis, porém, que o Racionalismo ambiente parece dar novo fundamento à sua dignidade. Ele é o Eleito da Razão. Ou o Eleito de Deus para ouvir o sopro subtil da Razão Pura. À volta, tudo é silêncio. Só Ele ouve a voz augusta da sabedoria incriada. E essa Sabedoria incriada, tão depressa parece arrancada ao Antigo Testamento, como nascida nas páginas luminosas de Platão... Por um momento, tudo são harmonias e promessas. Nada parece perturbar o esplendor do meio-dia... Sobe no Céu o sol real, figura, símbolo máximo do Sol Divino: Osíris!
Sim: era Osíris que de novo atravessava o Céu. Mas agora já o antigo mito do Eterno Retorno não o circunscrevia, não o forçava a descer depois de subir, não o trazia misteriosamente à sepultura. Desta vez, Osíris – o Osíris cristão – cortava no Céu aberto o seu caminho aberto. Fundamentada na visão cristã do Homem, a concepção da História era agora linear, inteiramente recta... Por um momento, exactamente à hora do meio-dia, o Rei do Iluminismo brilhou no Céu da História como o Absoluto, o Perfeito, o Definitivo. Tal como se a Ciência só conhecesse o Sol meridiano, assim o Rei foi teorizado (a sua teoria foi construída) como se ele não fosse um ser histórico, mas o Ser da História, a substância inalterável da Humanidade.
Depressa o Ideologismo se cansou desta construção arbitrária. E a Realeza foi tratada, não já como uma instituição geradora de um regímen, não já como [-183] o esteio sólido das liberdades e a regra viva do Bem Comum, mas como mera sobrevivência de tempos bárbaros, quase uma gárgula grotesca num edifício clássico.
... Porque tudo agora parecia clássico; tudo se recortava segundo linhas puras, como uma lei de Justiniano ou um verso de Horácio... Só o Rei dava uma nota de disformidade no desenho sem mancha. Só a sua presença embaraçava a Razão no esforço nobre de teorizar. Só ele trazia um peso corpóreo, uma raiz biológica – e ao mesmo tempo (porquê ao mesmo tempo?!) aquela estranha, surpreendente chamada para um mundo de mistério! Só ele se envolvia no manto. Só a sua cadeira se chamava trono. Só o seu chapéu tinha o nome e a forma de uma coroa. Só a sua bengala ainda se parecia com o cajado do pastor e se escondia no estranho nome de ceptro...
Para a Razão Pura, o Rei era o grande escândalo da História. Que relação lógica pode haver entre nascer e governar – ou entre governar e ter uma coroa? Porquê esta origem biológica e esta pretensão teológica? Porque há-de o Rei nascer do instinto e viver em liturgia? Infra-racional e, ao mesmo tempo, supra-racional!?
À Razão Pura, nada disto faz sentido. Logo, a Realeza tem os seus dias contados. O Rei deve morrer.
Antes da decisão ser tomada nalguma loja maçónica de Lisboa ou de Paris – antes de o Rei se chamar D. Carlos de Bragança, já a decisão fora tomada por todo o Ideologismo contemporâneo.
O Rei ia ser morto. [-184]
O mundo antigo conheceu a morte ritual do Rei. Mas essa morte era apenas o momento negativo de um processo eminentemente positivo.
O mundo medieval transfigurou a morte. Mas era sempre para a vida que o olhar se dirigia.
A morte decretada pelo Racionalismo era a morte definitiva do Rei. A morte como expressão do ódio. Nada mais que a morte.
Mas entre o Rei e a morte interpunha-se uma força à primeira vista invencível: o amor do Povo. O Povo amava o Rei. Através de toda a nossa História, sempre o Povo amou o Rei. A história da Fundação, da crise da Independência e da Restauração revelam, de maneira inequívoca, não apenas o anseio popular da liberdade, mas o apelo ao Rei; não apenas o Poder Real, servindo uma vontade individual e plasmando massas informes, mas o Rei como a expressão mais perfeita da vontade popular. Essa unidade do Rei com o Povo perpetua-se pelos séculos além e, apesar de todas as crises e de todos os equívocos, atinge, praticamente intacta, os primeiros anos deste século.
O espírito ideológico não tinha ainda extravasado de um círculo restrito de intelectuais e de políticos. Para o conjunto da Nação, o Rei era ainda o Pai.
Começou então um processo de separação violenta, que teria como instrumento a Imprensa.
O mito da Opinião Pública, criado como de propósito, vai arrebatar a consciência nacional, lançando-a num caminho que não era o seu. Uma campanha maciça de calúnias, em que as meias-verdades justificavam mentiras totais, encontra o Povo Português desprevenido. Qualquer defeito do homem torna-se [-185] crime do Rei. Nunca os portugueses julgaram ser habitualmente governados por Santos; mas, quando toda a fraqueza ou o mais pequeno erro do Príncipe é apregoado aos quatro ventos, o Povo escandaliza-se. Foi sempre grande, entre os simples, o prestígio da palavra escrita, quer fosse texto de escritura, quer regra jurídica, quer amostra de ciência. Pouco a pouco, vastas camadas da população foram atingidas. Sensíveis, uns, aos argumentos de «escárnio e mal-dizer»; outros, à força da moda – muitos portugueses de todas as classes começaram a duvidar. Aquele que Deus lhes tinha dado era, afinal, um sibarita, um gozador da vida – um «sultão» (como ainda há dias, numa página inverosínil de história, alguém chamou a outro Rei de Portugal...). O «primeiro magistrado» - na gíria burocratizante da época – era afinal o último, o pior dos servidores da Nação... Como noutras épocas e lugares tem acontecido, as justas, nobres palavras de louvor à Autoridade eram já tomadas como louvaminhas de lisonjeiros ou simples fórmulas rotineiras de cortesia bolorenta.
Já o Rei não sente pulsar o coração do Povo – porque, antes, por imposição e interposição de políticos sisudos, o Povo deixara de ouvir pulsar o coração do Rei.
Verdadeiramente, no dealbar deste século, o Rei é uma sombra; é, na expressão de alguém, um cadáver que se sobrevive. E, no entanto, que alta figura, a de El-Rei! Mostram-no aos olhos serenos da História documentos sem número, em que D. Carlos I se revela a corpo inteiro. «Um caso exemplar de Humanismo [-186] Português» - lhe chamou, certeiramente, o Dr. Carlos Soveral.
Pois é essa nobre figura de príncipe português que nós vemos debater-se numa agonia moral e política de muitos anos – ele, cuja agonia física não seria contada por nenhum tempo!
El-Rei olha à sua volta, e sente-se prisioneiro. Prisioneiro da História, prisioneiro da Nação – está bem que o seja. Para isso é Rei. Mas são outras as cadeias que o prendem. D. Carlos I está preso no Sistema, preso na dourada prisão de uma corte inútil, na malha subtil de uma Constituição envelhecida; preso na decrepitude de um tempo sem alma; preso na pior das cadeias – no silêncio, na ausência, ou na indiferença dos seus. De quando em quando, vemos vencer esse terrível isolamento uma voz austera e, ao mesmo tempo, amiga, a voz de um Oliveira Martins ou de um Mouzinho de Albuquerque. Depois, tudo regressa ao mesmo silêncio. O Povo não conhece o Rei. O Rei, sim, conhece o Povo, sabe que ele é bom – mas já não o sente junto de si.
A liberdade de mentir e caluniar continua a progredir. Está quase pronta a sua obra. D. Carlos não reclama. Pode pedir ao Presidente do Conselho (José Luciano de Castro) que proíba os jornais de propalar notícias alarmantes a respeito da epidemia de cólera que enlutou a cidade do Porto. Mas não pede que se ponha cobro à campanha de vilezas que o atingem.
Com uma serenidade invencível, El-Rei prossegue o seu caminho. Desde o limiar do Trono, habituou-se a ser mal julgado – por vezes pelos que a maior preparação pareciam ter para uma adequada visão dos [-187] factos políticos. À crise profunda da Aliança Inglesa; às exigências de uma efectiva presença no Ultramar – El-Rei responde com prontidão e sabedoria, com energia e bom senso. Mas o mundo emaranhado do Terreiro do Paço, por muito que ele o conheça, acabará por perdê-lo. D. Carlos conhece o intriguista; mas não conhece a intriga. Conhece o vilão; mas não a vilania. Conhece o desleal; mas só pratica a lealdade.
Chegada a hora das decisões extremas, o Rei não recua perante nenhuma responsabilidade. Quer a constituição que ele seja irresponsável; D. Carlos I assume a plena responsabilidade dos seus actos. Incompreendido por quase todos os grandes chefes monárquicos, El-Rei escolhe o caminho mais difícil – o caminho do poder pessoal.
Havia anos que esse caminho lhe era apontado por homens de alta inteligência e dedicação ao bem público, entre os quais Moniz Barreto, Oliveira Martins e próprio doutrinador republicano Basílio Teles.
Não se pode esquecer, como António Sardinha tão insistentemente acentuou, que, a certa altura da vida portuguesa, os melhores republicanos se juntaram aos melhores monárquicos – não, Deus meu!, para instaurar um sistema híbrido, mas para investigar em comum as raízes da Pátria e as condições apropriadas à sua renovação. Os trabalhos de um Alberto Sampaio ou de um Martins Sarmento encontram-se com os de um Ricardo Severo e de todo o grupo esplêndido da «Portugália». Alguma coisa desse esforço honesto e fecundo atravessou a barreira da política falsa, e [- 188] ofereceu ainda a El-Rei, pela voz de Oliveira Martins, fundamentos sólidos de uma acção renovadora e progressiva. Mas logo os profissionais da política impediram a continuação da tentativa. De qualquer modo, ficou no ar, como esperança do Bem Comum, a hipótese de um governo real a introduzir e a sustentar uma política nova.
Quando, porém, D. Carlos julgou chegada a hora decisiva, em que qualquer nova espera seria mortal para o País, eram muito outras e bem piores as circunstâncias políticas. Os republicanos históricos, que, apesar da aventura trágica do 31 de Janeiro a que alguns deles andaram ligados, tinham conservado uma dignidade e um equilíbrio de bom estilo português, viram-se substituídos por profissionais da arruaça, simples demagogos de meias-letras, que lançaram sobre o País uma maré-cheia de ódio.
Acompanhados em coro por muitos políticos monárquicos, esses homens geraram um clima de ódio em que só por acaso ou por milagre não correria sangue português.
Correu, de facto, sangue português, e, como era lógico, como estava previsto pela história dos últimos dois séculos, esse sangue foi o sangue do Rei.
Nenhum outro podia servir melhor de testemunho. Ao ver o Rei cair, muitos haviam de compreender que um mistério se ocultava naquela existência tão discutida e tão odiada. Não era apenas uma forte personalidade, que Deus cumulara de dons magníficos, que assim desaparecia, ainda na casa dos 40 anos, da Sociedade portuguesa. Era o Rei que morria, na [ - 189] plenitude da sua majestade. Ninguém podia substituí-lo no sacrifício. Ninguém. Por isso El-Rei recusa ficar em Vila Viçosa quando é em Lisboa que o esperam. Recusa os suaves prazeres da vida que tanto amava, para vir mergulhar, de cabeça erguida e peito descoberto, no próprio lugar onde sé cruzavam o espírito ideológico, o espírito burocrático, o espírito igualitário de destruição. Para dar testemunho ao Povo, escolhe exactamente, apesar de todos os avisos, o Terreiro do Paço. Porque o Terreiro do paço não é simplesmente a selva fechada dos ódios e das intrigas. É também a antiga habitação dos Reis. É o lugar eleito onde o primeiro monarca da Dinastia conheceu a glória da Aclamação.
Aí deve surgir o Rei dos tempos novos. Deve trazer na alma a lembrança do Passado, mas nos olhos a luz do Futuro. Há-de ter no coração intemorato o sangue que fez a História; mas a mão há-de querer indicar o caminho a alguém.
*
Passados anos, o gesto audaz do Rei será recolhido e obedecido por aqueles que sobre si tomaram o encargo de renovar a Pátria.
A hora do resgate havia de soar. Nenhuma acção política viria a ser possível sem passar pela meditação da Pátria. Mas, se é certo que o Verbo havia de estar no princípio, nenhuma meditação sobre a Pátria poderia dispensar o amor.
[1] No seu número dedicado aos 50 anos da República, (1971).
(In Gil Vicente, Setembro-Outubro de 1965; reed. in A liberdade e o Rei, Lisboa, 1971, pp. 172-190)
Ao dar a este trabalho o título «O Drama de um Rei», pretendi pôr em relevo a alta qualidade humana de D. Carlos I, mas, porventura ainda mais, a grandeza do problema que esse Rei personificou: o problema da Realeza no mundo moderno.
Numa época de futilidades, em que a política se dissolvia no anedótico, El-Rei D. Carlos representa um esforço sério e implacável de fazer da acção política uma obra digna do homem.
Num tempo e num ambiente em que a Sociedade tinha perdido quase de todo o sentido do sagrado, a Realeza era o último fundamento ou, pelo menos, o claro símbolo do sentido transcendente da existência colectiva.
A morte do Rei, na sua preparação obscura e lenta, na sua execução bem visível e fulminante, e na espantosa glorificação dos assassinos, é o momento culminante de um processo longo, o processo movido simultaneamente pelo ideologismo mais ou menos filosófico, pelo burocratismo mesquinho e pelo igualitarismo destruidor.
Ao alcançarem o triunfo sangrento, os inimigos da Realeza descobriram o abismo em que se havia [ -172] de precipitar toda a Nação e todas as formas tradicionais da cultura cristã.
Quando, seis anos mais tarde, tiver início o esforço intelectual e voluntário de renovação a que se chamou Integralismo Lusitano, essa atitude da geração nova terá por ponto de partida o significado do Rei na vida do Povo e, assim, o seu pano de fundo será a tragédia do Terreiro do Paço.
Foi preciso o testemunho do sangue. Por esse alto preço conquistou Portugal o direito a um renascimento doutrinário mais inteiro que qualquer dos movimentos que no Ocidente se ergueram contra os princípios da Revolução.
Passados 50 anos sobre o início desse esforço, é justo que os que procuram continuá-lo se não recusem a mergulhar nas sombras da morte, onde o extremo do ódio e o extremo do amor parecem coexistir, e aí reconhecerem na figura ensanguentada de El-Rei D. Carlos a imagem da Pátria três vezes negada: negada pela razão pura, negada pelo espírito burocrático, negada pelo igualitarismo. Porque, ainda na morte, o Rei é a «Pátria com figura humana».
*
O drama de El-Rei D. Carlos é o drama da Realeza moderna. Esse drama desenrola-se em dois planos: no primeiro, começou um século e meio mais cedo, quando o Marquês de Pombal introduziu brutalmente no nosso País as doutrinas racionalistas do despotismo [-173] esclarecido; o segundo data de 1820, foi gravado em 1826 e tomou nova feição em Évora-Monte.
No primeiro caso, a Realeza é roubada à Nação, arrancada ao corpo vivo de uma história concreta, e projectada num além abstracto, onde fica a pairar como uma nuvem, embora uma nuvem luminosa.
No segundo caso, é a Realeza que é arrancada a si própria, esvaziada do seu conteúdo essencial, ao mesmo tempo que a Nação lhe é progressivamente arrebatada.
Em rigor poderíamos dizer que a essência da Realeza é a própria Nação tal como a história no-la oferece, viva e palpitante, complexa e limitada, poderosa e, no entanto, impotente se lhe falta a cabeça pensante e condutora.
Esvaziar a Realeza da sua própria substância é corta-la do corpo nacional.
E roubar o Rei à Nação é condenar esta a uma existência anárquica ou à alienação do seu espírito próprio, em favor de uma ideologia qualquer.
É certamente possível reconstruir ideologicamente uma Nação.
Mas essa operação equivale a substituir a alma, e só pode ter êxito à custa das liberdades pessoais e corporativas.
A alma da Nação portuguesa foi sempre definida na fórmula lapidar da Cortes de Lamego, renovada e valorizada pelas de 1641: nós somos livres; o nosso Rei é livre.
A liberdade do Rei é inseparável da liberdade dos Portugueses, mas esta só pode encontrar garantia perfeita e sentido adequado na liberdade do Rei. [-174]
Por força do despotismo iluminado, foi a liberdade do Rei que sofreu uma hipertrofia sem limite; nessa hipertrofia, porém, o Rei perdia a sua natureza e, em vez de instituição histórica aberta às outras instituições, a Realeza ficava a ser um absoluto falsamente divino, que já nem servia de modelo aos homens.
O papel exemplar do Rei na Sociedade portuguesa tradicional já não se podia cumprir. É isso que explica que a decadência social se tenha dado precisamente a partir da época em que os meios culturais e técnicos se desenvolveram grandemente.
O reinado de D. Carlos ilustra singularmente esta doutrina. Poucas vezes, na nossa história, se reuniram tantos homens superiores – nas artes, nas letras, nas ciências, na política e na administração, na economia e na técnica.
O próprio Rei era, por muito que pese a dois ou três denegridores encartados, uma personalidade singularmente dotada de inteligência e cultura, tacto diplomático, energia e destemor.
Mas, vítima de um processo antigo, o Rei pairava ainda, já não como poder, mas apenas como símbolo, numa zona etérea onde as suas altas capacidade estavam desvinculadas da Nação e mal lhe podiam servir.
A Realeza deixara de exercer a sua função essencial de instituição das instituições, órgãos dos órgãos, princípio ordenador dos outros princípios.
Por força do liberalismo triunfante em 1820, foi a liberdade dos cidadãos que se hipertrofiou sem medida. Mas essa liberdade tinha no seu carácter ilimitado o princípio da própria destruição. [-174]
(Abertas as veias, o sangue corre livre, mas essa liberdade é a sua perda...)
A liberdade do Povo salva-se na liberdade do Rei. Porque a liberdade do Rei consiste em estar preso à Nação, em fazer com ela um mesmo corpo.
A liberdade que enche os discursos e os jornais de um século romântico é uma falsa liberdade, porque não tem sentido.
Nega-se a natureza humana e, em seguida, afirma-se que o homem é inteiramente livre. Destroem-se as associações, centraliza-se a administração e, sobre as ruínas de toda a obra de séculos, lançam o homem, inteiramente livre... de si próprio.
Procura-se tirar todo o poder concreto à Realeza, única força social igualmente interessada na defesa de todas as outras, e ao mesmo tempo proclama-se a liberdade como convite ao domínio do mais forte.
Deste modo se caminhou para um desequilibro cada vez mais acentuado dos poderes económicos e dos grupos de pressão.
Esta situação levava ao absurdo de considerar a família real como um pequeno núcleo de privilegiados, cuja existência parecia tornar-se cada dia mais pesada ao erário público.
A curta duração da Monarquia liberal, juntamente com alguns factores tradicionais ainda actuantes, não permitiu que esse desequilíbrio se agravasse indefinidamente; mas a República precipitou esse processo, agravando a disparidade económico-social, como ainda há poucos anos a Seara Nova demonstrou[1] [-176].
A falsa posição do rei determinada pela Revolução de 1820 agravou-se seis anos depois, com a outorga da Carta Constitucional, que subvertia a ordem tradicional e natural da Sociedade, fazendo do Rei fundamento e critério da Constituição do Reino e tirando-lhe o seu papel de condutor do Povo.
Veio o ano de 1834, e a crise doutrinária da Realeza complica-se com a questão dinástica. Questão que não se deve hoje ressuscitar, mas que não pode ser esquecida, se quisermos compreender até ao âmago o drama de El-Rei D. Carlos.
Sabia ele bem que uma parte considerável dos melhores portugueses se recusava a admitir a sua legitimidade.
Quando se punha rudemente o problema da legitimidade do Poder Real em face de ideologias e de interesses, a questão dinástica não podia deixar de minar interiormente a Realeza estabelecida, como uma dúvida e um escrúpulo.
Tal é, nas suas linhas gerais, o drama deste Rei, grande entre os maiores, que quis servir o Povo e o Povo não conheceu.
Esse drama terminaria em tragédia, e esta pode fazer esquecer aquele. Mas quem se fixar com olhos críticos e serenos na tragédia de 1908, não terá dificuldade em compreender que ela já estava contida na crise da Realeza dos séculos XVIII e XIX, e que a revolução republicana não fez mais que exprimir em termos claros o que há muito estava implícito nas ideias e nos factos.
Com outro Rei, talvez o drama não se tivesse [-177] resolvido em tragédia, porque a personalidade de El-Rei D. Carlos era daquelas que aceitam inteiramente as responsabilidades e se erguem, no centro da sociedade a que pertencem, como ponto de convergência das linhas de força.
Como poucos soberanos dos tempos modernos, El-Rei D. Carlos teve a consciência muito clara do que é ser Rei.
Condenado a uma existência puramente simbólica, o Rei guardava o carácter essencial da Realeza de sempre: conhecia o que há de belo e de terrível naquele duro ofício de reinar de que sabiam falar os antigos mestres da política cristã.
Sabia que sempre a Realeza, em todos os enquadramentos culturais, foi vínculo entre a Natureza e o homem, e entre o homem e Deus.
Sabia que é próprio do Rei, por mais alto que suba nas esferas do pensamento e da ciência, conservar a humilde origem natural do seu poder: outros o receberão ou o conquistarão pela inteligência, pelo dinheiro ou pela força; ele deve a Coroa ao facto biológico do nascimento, e assim há-de compreender que está no mundo para servir o comum, já que entre todos foi escolhido por Deus e pela História exactamente por aquilo em que nenhum homem se distingue dos seus semelhantes.
Em El-Rei D. Carlos era muito viva a consciência da irmandade com todos os homens, sem distinções de classes ou de ideias.
Mas conhecia bem que entre a sua pessoa e a sua função se interpunha o mistério da Realeza. Desse mistério ninguém tinha o segredo, nem mesmo o Rei. [-178]
A distância que vai do profano ao sagrado é a que separa a República da Monarquia. Não é isto confundir o que é de César com o que é de Deus, mas é reconhecer que a Realeza insere um elemento do sagrado na massa do profano.
A investigação da História e da sua filosofia; a reflexão sobre as formas da vida humana colectiva e sobre os seus fundamentos – têm conduzido os estudiosos a traçar, em sábios termos de clareza e rigor, uma teoria da Realeza na origem do tempo histórico. Trabalhos profundos, de análise e de síntese, em que se distingue o do Prof. Frankfort, com o seu belo livro A Realeza e os Deuses, mostram que, na aurora da História, o Rei surge como resposta viva para o problema da Civilização. Olhando no plano mais profundo, este problema consiste em saber como é possível a inserção do homem na unidade cósmica – como ela é possível sem destruição do que há de próprio no ser humano.
Antes da hora incomparável em que surge entre os Gregos, como uma luz nova, a Filosofia, já a Humanidade trazia de bem longe a sua ânsia de saber, a terrível necessidade de explicar, a inquietação da verdade. É hoje bem conhecido no mundo culto o valor das fontes egípcias, babilónicas, hititas ou persas, como testemunho de pensamento. Ao contrário do que precipitadamente se julgou, já muito antes do Gregos, o homem, conhecendo-se como espírito, lança às coisas que o cercam o tremendo desafio para o diálogo, ou o combate, que há-de durar até ao fim dos séculos.
Em duas direcções se lança esse desafio: que é o [179] mundo? Que é o Homem? À primeira pergunta responde o pensamento pré-filosófico, com a teoria da Criação. À segunda, com a teoria da Civilização. Quer uma quer outra, são apelos ao divino. A Civilização surge como um prolongamento da Criação. E o papel que os deuses desempenham nesta é o mesmo que os reis desempenham naquela: a vitória da ordem sobre a desordem, do bem sobre o mal, do cósmico sobre o caótico. Assim, do deserto do Sara às florestas indianas, o trono, o ceptro e a coroa são símbolos divinos, e o Rei, ou é deus, como no Egipto, ou lugar-tenente dos deuses, como na Babilónia ou na Pérsia. E, para os outros homens, o vínculo com o Rei é a única via para a dignificação. Fora do Rei, não há salvação.
Subitamente, num contraste que diríamos brutal, aparece na História um novo tipo de Realeza. Cercado de todos os lados por inimigos poderosos, o Povo hebreu quer um rei. Não é a História que lho dá: ele é que o dá à História.
O Povo não encontra na Realeza a explicação para a sua presença no Mundo. O que lhe pede, não é uma teologia nem uma filosofia: é estritamente uma política. Deste modo, se há um Povo que cria a Política, é o Povo de Deus, aquele que ficou na História como o iniciador da Religião pura. É já, a séculos de distância, o anúncio da palavra de Cristo: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».
Também neste caso ímpar, no entanto, a Realeza está vinculada a Deus. A Bíblia relata o diálogo surpreendente entre Deus e o seu Povo, por intermédio [-180] de Samuel. É a Deus que o Povo pede o Rei. Sem Rei, sente-se incompleto, flutuante, errando às cegas, sem um ponto de apoio. Aqui, porém, a necessidade do Rei não tem que ver com a salvação eterna. Já os homens entendem que a salvação não é um processo cósmico, mas uma transcendência. O plano divino a que o homem quer subir não se confunde com o Oceano Primordial nem com o Firmamento das Estrelas. Espírito puro, só Deus responde, na sua transcendência absoluta, às aspirações da alma humana. E o género de perfeição digno do homem é só um: a perfeição de Deus. À medida que atira o ideal religioso do homem para alturas inacessíveis à simples natureza, o Povo hebraico destaca a Religião da Política.
Assim nos surge a nova Realeza. O Povo quer um Rei – mas não o elege. Quer que o seu Rei seja um de entre os seus – mas é a Deus que pede que o designe.
Séculos mais tarde, passada a experiência, quase sempre infeliz, do Império Cristão, a Igreja há-de fazer triunfar entre as nações jovens o ideal bíblico da Realeza: Carlos Magno terá por modelo o Rei-Profeta. Agora, porém, já o Rei é um fruto da História, um fruto natural da História.
A bênção de Deus, traçada pela mão da Hierarquia, desce sobre um puro homem, o mais forte, o mais duro, o mais audacioso. Mas a origem germânica é, para a Realeza medieval, apenas uma das faces – a face humana. A outra, a divina, não é menos essencial, e é mais esplêndida. [-181]
Quando a firmeza e clareza do Direito Romano conseguem irromper por entre o matagal do costume e do arbítrio, perfila-se na História a majestade do Rei. Percorrendo os milénios, difícil será encontrar mais perfeita floração da História. Apossou-se dela, depois, a horrível doença da unilateralidade, o delírio da Ordem, a orgia da Razão. Cevado pelas exigências do amor à Lei, o Rei dos tempos modernos encontra-se no caminho com o Racionalismo, e sofre a sua tentação ilimitada. Uma coincidência de planos leva a uma confusão infeliz. E assim o Despotismo Iluminado, em que o Rei julga estar a cumprir o máximo serviço à Grei, prepara a Revolução, em que Rei e Grei vão correr mortal perigo.
Quando o ideologismo tiver utilizado, como mero instrumento, o nome do Rei, o seu prestígio, a sua vinculação ao Povo, há-de abandoná-lo como um vestido gasto e inútil. E então, arredado do caminho o Poder encarnado, a Ideia pode lançar-se sobre o Povo indefeso. Vai começar, em cheio, a era ideológica. Ai dos homens que não se deixem moldar!
Mas uma outra coincidência infeliz se tinha dado. A Realeza cristã tinha no Poder de Deus o seu limite e, simultaneamente, a sua fonte. Quanto mais se deixava repassar pela concepção da origem divina do Poder, mais o Rei cristão compreendia que estava consagrado por Deus ao bem do Povo. E a Igreja, que lhe ensinava a alta origem da sua missão, constantemente lhe lembrava a humilde origem da sua vida. Um de entre o Povo. Um de entre os nascidos de mulher. Um de entre os degredados filhos de Eva. [-182] Um dos resgatados pelo Sangue do Cordeiro. Um de entre aqueles «muitos irmãos» de que Cristo – ensina S. Paulo – é «o Primogênito». Um de entre mil...
Eis, porém, que o Racionalismo ambiente parece dar novo fundamento à sua dignidade. Ele é o Eleito da Razão. Ou o Eleito de Deus para ouvir o sopro subtil da Razão Pura. À volta, tudo é silêncio. Só Ele ouve a voz augusta da sabedoria incriada. E essa Sabedoria incriada, tão depressa parece arrancada ao Antigo Testamento, como nascida nas páginas luminosas de Platão... Por um momento, tudo são harmonias e promessas. Nada parece perturbar o esplendor do meio-dia... Sobe no Céu o sol real, figura, símbolo máximo do Sol Divino: Osíris!
Sim: era Osíris que de novo atravessava o Céu. Mas agora já o antigo mito do Eterno Retorno não o circunscrevia, não o forçava a descer depois de subir, não o trazia misteriosamente à sepultura. Desta vez, Osíris – o Osíris cristão – cortava no Céu aberto o seu caminho aberto. Fundamentada na visão cristã do Homem, a concepção da História era agora linear, inteiramente recta... Por um momento, exactamente à hora do meio-dia, o Rei do Iluminismo brilhou no Céu da História como o Absoluto, o Perfeito, o Definitivo. Tal como se a Ciência só conhecesse o Sol meridiano, assim o Rei foi teorizado (a sua teoria foi construída) como se ele não fosse um ser histórico, mas o Ser da História, a substância inalterável da Humanidade.
Depressa o Ideologismo se cansou desta construção arbitrária. E a Realeza foi tratada, não já como uma instituição geradora de um regímen, não já como [-183] o esteio sólido das liberdades e a regra viva do Bem Comum, mas como mera sobrevivência de tempos bárbaros, quase uma gárgula grotesca num edifício clássico.
... Porque tudo agora parecia clássico; tudo se recortava segundo linhas puras, como uma lei de Justiniano ou um verso de Horácio... Só o Rei dava uma nota de disformidade no desenho sem mancha. Só a sua presença embaraçava a Razão no esforço nobre de teorizar. Só ele trazia um peso corpóreo, uma raiz biológica – e ao mesmo tempo (porquê ao mesmo tempo?!) aquela estranha, surpreendente chamada para um mundo de mistério! Só ele se envolvia no manto. Só a sua cadeira se chamava trono. Só o seu chapéu tinha o nome e a forma de uma coroa. Só a sua bengala ainda se parecia com o cajado do pastor e se escondia no estranho nome de ceptro...
Para a Razão Pura, o Rei era o grande escândalo da História. Que relação lógica pode haver entre nascer e governar – ou entre governar e ter uma coroa? Porquê esta origem biológica e esta pretensão teológica? Porque há-de o Rei nascer do instinto e viver em liturgia? Infra-racional e, ao mesmo tempo, supra-racional!?
À Razão Pura, nada disto faz sentido. Logo, a Realeza tem os seus dias contados. O Rei deve morrer.
Antes da decisão ser tomada nalguma loja maçónica de Lisboa ou de Paris – antes de o Rei se chamar D. Carlos de Bragança, já a decisão fora tomada por todo o Ideologismo contemporâneo.
O Rei ia ser morto. [-184]
O mundo antigo conheceu a morte ritual do Rei. Mas essa morte era apenas o momento negativo de um processo eminentemente positivo.
O mundo medieval transfigurou a morte. Mas era sempre para a vida que o olhar se dirigia.
A morte decretada pelo Racionalismo era a morte definitiva do Rei. A morte como expressão do ódio. Nada mais que a morte.
Mas entre o Rei e a morte interpunha-se uma força à primeira vista invencível: o amor do Povo. O Povo amava o Rei. Através de toda a nossa História, sempre o Povo amou o Rei. A história da Fundação, da crise da Independência e da Restauração revelam, de maneira inequívoca, não apenas o anseio popular da liberdade, mas o apelo ao Rei; não apenas o Poder Real, servindo uma vontade individual e plasmando massas informes, mas o Rei como a expressão mais perfeita da vontade popular. Essa unidade do Rei com o Povo perpetua-se pelos séculos além e, apesar de todas as crises e de todos os equívocos, atinge, praticamente intacta, os primeiros anos deste século.
O espírito ideológico não tinha ainda extravasado de um círculo restrito de intelectuais e de políticos. Para o conjunto da Nação, o Rei era ainda o Pai.
Começou então um processo de separação violenta, que teria como instrumento a Imprensa.
O mito da Opinião Pública, criado como de propósito, vai arrebatar a consciência nacional, lançando-a num caminho que não era o seu. Uma campanha maciça de calúnias, em que as meias-verdades justificavam mentiras totais, encontra o Povo Português desprevenido. Qualquer defeito do homem torna-se [-185] crime do Rei. Nunca os portugueses julgaram ser habitualmente governados por Santos; mas, quando toda a fraqueza ou o mais pequeno erro do Príncipe é apregoado aos quatro ventos, o Povo escandaliza-se. Foi sempre grande, entre os simples, o prestígio da palavra escrita, quer fosse texto de escritura, quer regra jurídica, quer amostra de ciência. Pouco a pouco, vastas camadas da população foram atingidas. Sensíveis, uns, aos argumentos de «escárnio e mal-dizer»; outros, à força da moda – muitos portugueses de todas as classes começaram a duvidar. Aquele que Deus lhes tinha dado era, afinal, um sibarita, um gozador da vida – um «sultão» (como ainda há dias, numa página inverosínil de história, alguém chamou a outro Rei de Portugal...). O «primeiro magistrado» - na gíria burocratizante da época – era afinal o último, o pior dos servidores da Nação... Como noutras épocas e lugares tem acontecido, as justas, nobres palavras de louvor à Autoridade eram já tomadas como louvaminhas de lisonjeiros ou simples fórmulas rotineiras de cortesia bolorenta.
Já o Rei não sente pulsar o coração do Povo – porque, antes, por imposição e interposição de políticos sisudos, o Povo deixara de ouvir pulsar o coração do Rei.
Verdadeiramente, no dealbar deste século, o Rei é uma sombra; é, na expressão de alguém, um cadáver que se sobrevive. E, no entanto, que alta figura, a de El-Rei! Mostram-no aos olhos serenos da História documentos sem número, em que D. Carlos I se revela a corpo inteiro. «Um caso exemplar de Humanismo [-186] Português» - lhe chamou, certeiramente, o Dr. Carlos Soveral.
Pois é essa nobre figura de príncipe português que nós vemos debater-se numa agonia moral e política de muitos anos – ele, cuja agonia física não seria contada por nenhum tempo!
El-Rei olha à sua volta, e sente-se prisioneiro. Prisioneiro da História, prisioneiro da Nação – está bem que o seja. Para isso é Rei. Mas são outras as cadeias que o prendem. D. Carlos I está preso no Sistema, preso na dourada prisão de uma corte inútil, na malha subtil de uma Constituição envelhecida; preso na decrepitude de um tempo sem alma; preso na pior das cadeias – no silêncio, na ausência, ou na indiferença dos seus. De quando em quando, vemos vencer esse terrível isolamento uma voz austera e, ao mesmo tempo, amiga, a voz de um Oliveira Martins ou de um Mouzinho de Albuquerque. Depois, tudo regressa ao mesmo silêncio. O Povo não conhece o Rei. O Rei, sim, conhece o Povo, sabe que ele é bom – mas já não o sente junto de si.
A liberdade de mentir e caluniar continua a progredir. Está quase pronta a sua obra. D. Carlos não reclama. Pode pedir ao Presidente do Conselho (José Luciano de Castro) que proíba os jornais de propalar notícias alarmantes a respeito da epidemia de cólera que enlutou a cidade do Porto. Mas não pede que se ponha cobro à campanha de vilezas que o atingem.
Com uma serenidade invencível, El-Rei prossegue o seu caminho. Desde o limiar do Trono, habituou-se a ser mal julgado – por vezes pelos que a maior preparação pareciam ter para uma adequada visão dos [-187] factos políticos. À crise profunda da Aliança Inglesa; às exigências de uma efectiva presença no Ultramar – El-Rei responde com prontidão e sabedoria, com energia e bom senso. Mas o mundo emaranhado do Terreiro do Paço, por muito que ele o conheça, acabará por perdê-lo. D. Carlos conhece o intriguista; mas não conhece a intriga. Conhece o vilão; mas não a vilania. Conhece o desleal; mas só pratica a lealdade.
Chegada a hora das decisões extremas, o Rei não recua perante nenhuma responsabilidade. Quer a constituição que ele seja irresponsável; D. Carlos I assume a plena responsabilidade dos seus actos. Incompreendido por quase todos os grandes chefes monárquicos, El-Rei escolhe o caminho mais difícil – o caminho do poder pessoal.
Havia anos que esse caminho lhe era apontado por homens de alta inteligência e dedicação ao bem público, entre os quais Moniz Barreto, Oliveira Martins e próprio doutrinador republicano Basílio Teles.
Não se pode esquecer, como António Sardinha tão insistentemente acentuou, que, a certa altura da vida portuguesa, os melhores republicanos se juntaram aos melhores monárquicos – não, Deus meu!, para instaurar um sistema híbrido, mas para investigar em comum as raízes da Pátria e as condições apropriadas à sua renovação. Os trabalhos de um Alberto Sampaio ou de um Martins Sarmento encontram-se com os de um Ricardo Severo e de todo o grupo esplêndido da «Portugália». Alguma coisa desse esforço honesto e fecundo atravessou a barreira da política falsa, e [- 188] ofereceu ainda a El-Rei, pela voz de Oliveira Martins, fundamentos sólidos de uma acção renovadora e progressiva. Mas logo os profissionais da política impediram a continuação da tentativa. De qualquer modo, ficou no ar, como esperança do Bem Comum, a hipótese de um governo real a introduzir e a sustentar uma política nova.
Quando, porém, D. Carlos julgou chegada a hora decisiva, em que qualquer nova espera seria mortal para o País, eram muito outras e bem piores as circunstâncias políticas. Os republicanos históricos, que, apesar da aventura trágica do 31 de Janeiro a que alguns deles andaram ligados, tinham conservado uma dignidade e um equilíbrio de bom estilo português, viram-se substituídos por profissionais da arruaça, simples demagogos de meias-letras, que lançaram sobre o País uma maré-cheia de ódio.
Acompanhados em coro por muitos políticos monárquicos, esses homens geraram um clima de ódio em que só por acaso ou por milagre não correria sangue português.
Correu, de facto, sangue português, e, como era lógico, como estava previsto pela história dos últimos dois séculos, esse sangue foi o sangue do Rei.
Nenhum outro podia servir melhor de testemunho. Ao ver o Rei cair, muitos haviam de compreender que um mistério se ocultava naquela existência tão discutida e tão odiada. Não era apenas uma forte personalidade, que Deus cumulara de dons magníficos, que assim desaparecia, ainda na casa dos 40 anos, da Sociedade portuguesa. Era o Rei que morria, na [ - 189] plenitude da sua majestade. Ninguém podia substituí-lo no sacrifício. Ninguém. Por isso El-Rei recusa ficar em Vila Viçosa quando é em Lisboa que o esperam. Recusa os suaves prazeres da vida que tanto amava, para vir mergulhar, de cabeça erguida e peito descoberto, no próprio lugar onde sé cruzavam o espírito ideológico, o espírito burocrático, o espírito igualitário de destruição. Para dar testemunho ao Povo, escolhe exactamente, apesar de todos os avisos, o Terreiro do Paço. Porque o Terreiro do paço não é simplesmente a selva fechada dos ódios e das intrigas. É também a antiga habitação dos Reis. É o lugar eleito onde o primeiro monarca da Dinastia conheceu a glória da Aclamação.
Aí deve surgir o Rei dos tempos novos. Deve trazer na alma a lembrança do Passado, mas nos olhos a luz do Futuro. Há-de ter no coração intemorato o sangue que fez a História; mas a mão há-de querer indicar o caminho a alguém.
*
Passados anos, o gesto audaz do Rei será recolhido e obedecido por aqueles que sobre si tomaram o encargo de renovar a Pátria.
A hora do resgate havia de soar. Nenhuma acção política viria a ser possível sem passar pela meditação da Pátria. Mas, se é certo que o Verbo havia de estar no princípio, nenhuma meditação sobre a Pátria poderia dispensar o amor.
[1] No seu número dedicado aos 50 anos da República, (1971).
(In Gil Vicente, Setembro-Outubro de 1965; reed. in A liberdade e o Rei, Lisboa, 1971, pp. 172-190)