Os Candidatos Independentes por Lisboa prefeririam não tratar do Ultramar como de um problema específico, que a alguém pudesse aparecer como problema marginal da Nação Portuguesa. Julgam, porém, de seu dever expor as razões que os levam a considerar o problema ultramarino um problema essencial da Nação.
A experiência recente tem demonstrado três modos de ver o Ultramar, cada um deles correspondente a uma atitude.
Pelo fim do Século XIX, a influência dominante de concepções estranhas, vindas de uma Europa sequiosa de matérias-primas e em plena euforia da civilização técnica, introduziu entre nós a ideia ou o sentimento confuso de que as terras ultramarinas eram coisa para possuir e explorar. A acção heróica dos soldados de África deu beleza e nobreza àquela hora; El-Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe compreenderam profundamente o significado do Ultramar. Mas a política geral e suas teorias reflectiam a mentalidade colonialista. E a verdade é que essa mentalidade se manteve, em certos sectores, até aos nossos dias. É ela que explica, em grande parte, a substituição do Ministério do Ultramar pelo das Colónias depois da proclamação da República, um certo colonialismo administrativo e económico que chegou, em alguns momentos da política republicana, a revelar traços de discriminação racial. E, contra o que seria lícito esperar, os frutos políticos do 28 de Maio não tiveram o sabor tradicional: foi o Acto Colonial que, em 1931, consagrou uma linha dualista. Havia, mais que nunca, a Metrópole e o Ultramar – nós e eles – É esta a política do verbo ter.
Havemos de confessar que, apesar do muito que se fez, desde 1961, para arrepiar caminho, ainda hoje uma boa parte das atitudes e dos sentimentos traduz esta atitude de posse.
A segunda atitude tem uma origem recente e outra remota. Foi também pelos fins do Século XIX que se criou a ideia, em si mesma sedutora, de que nas terras ultramarinas se estava a fazer ou se devia fazer uma sementeira de valores portugueses, ou de valores culturais e civilizacionais que tinham Portugal como veículo. Mas, quando a semente germinasse, Portugal devia retirar-se. Ficariam, sim, por toda a parte difundidos os sinais de uma presença espiritual ou material – algumas pedras, alguns nomes, usos e costumes, uma língua – porventura uma fé. Numa atitude generosa e aberta, esta política conjuga em todos os modos e tempos o verbo estar.
Nos dias que correm, todos conhecemos esta concepção do Ultramar. O Ultramar como um grande cenário, semelhante ao vasto mundo por onde o português passou. Ao pesado, grosseiro colonialismo da primeira atitude, opõe-se a leveza do gesto do semeador. E é inegável que esse multiforme estar português no Mundo corresponde a uma vocação profunda daquele pequeno Povo de um milhão de almas que, no Século XV, iniciou a Civilização Ecuménica. Mas a política ultramarina do verbo estar tende a confundir (no limite, confunde) Angola ou Timor com o Brasil ou Ceilão. Para os defensores (nem sempre bem conscientes) dessa política de Presença, os portugueses estão em Lourenço Marques ou em Luanda – e até podem estar para ficar por um tempo indeterminado – mas, no fundo, estão lá como peregrinos que são de todo o mundo, para quem qualquer terra serve para erguer o cântico da saudade e do amor.
É fácil reconhecer esta atitude culturalista em muitos traços da mentalidade contemporânea, numa certa recusa do compromisso total, num certo duvidar das razões portuguesas, numa perpétua interrogação ou inquietação, que leva portugueses de inegável patriotismo a negar ou condenar a existência de um Estado português unitário e soberano a abranger igualmente as terras timorenses ou as terras açoreanas. Cremos que seria gravemente injusto acusar de traição consciente e decidida homens que assim amam valores nacionais e se revêem nesses sinais portugueses largamente dispersos por todas as praias e todos os rios. Para eles, porém, o Ultramar não está ainda descoberto.
Há uma terceira forma de considerar o Ultramar. Aquela, exactamente, que logicamente nos levaria a não versá-lo como tema. É a política do verbo ser. Não há Portugal e o Ultramar. Mas Portugal é Ultramar. E seria bem fácil olhar o conjunto da nossa história como uma tensão ultramarina. É evidente que não é possível afirmar que a relação entre Portugal e Ultramar é uma relação de identidade, sem ter presente a História e a sua evolução. Houve tempo em que o nome de Portugal se referia apenas a este quadrilátero da beira hispânica. Como houve tempo em que esse nome não cobria mais que um pequeno território à volta do Porto... E o que é hoje, o que afirmamos que é hoje o Ultramar português não tinha nenhuma relação física ou humana com Portugal. É a História, não como conjunto de factos mas como tempo vivo, que fez de Portugal uma nação ultramarina e cismarina (e onde o cis e o ultra são reversíveis, como já o sabia o rei D. Afonso V, em certo pormenor de Chancelaria). Mas essa obra da História aí está diante do Mundo e diante dos nossos próprios olhos: a Nação Portuguesa actual é exactamente esse fruto da História.
Ninguém desconhece que, no interior mesmo do que definimos como política do ter, a Constituição de 1933 soube insistir nesta verdade: o território português é constituído por... E segue a longa enumeração, que não tem paralelo em nenhuma outra constituição de qualquer Estado. E não se diga que a fórmula do Art.° 1.° (o terrível verbo «pertencer») tem aí o significado colonialista; pois que o que a Portugal «pertence» começa por ser «o Continente e arquipélagos da Madeira e dos Açores»... Trata-se, portanto, de um modo jurídico de referir a um ponto equidistante de todas as parcelas, a um centro político, ao Estado como entidade soberana, todos e cada um dos territórios que, a partir dele, são igualmente da totalidade. Neste ponto, como aliás em muitos outros, a nossa Constituição, que está longe de ser perfeita, corrige muito da própria política feita à sombra dela...
Como a própria História o demonstra, foi este princípio de identidade que prevaleceu no processo secular de relações recíprocas entre o velho Reino do Ocidente e os diversos reinos, de variadíssima importância, que foram entrando no circuito da mesma economia, da mesma política, do mesmo espírito. Apesar de todas as infiltrações da mentalidade colonialista, o que a República de 1910 herdou dos Reis de Portugal foi uma Nação constituída por terras e povos da Europa, da África e do Oriente. Tudo isso se referia ao Rei como centro e símbolo de soberania. A proclamação do regime republicano parece ter provocado em muitos a vaga impressão de que a soberania do Ultramar passava a pertencer à população do Continente, que de algum modo substituía o Rei.
Em vez de fazer a fácil crítica desta atitude semiconsciente, parece preferível reflectir sobre a situação actual e defender as linhas gerais de uma política justa.
Não é segredo para ninguém que a política de firmeza perante os adversários declarados da integridade ultramarna foi precedida de um longo período de aparente desinteresse, apesar dos claros e duros avisos feitos por homens da envergadura de um Paiva Couceiro. À administração distante de uma quinta meio esquecida, seguiu-se o esforço colossal de defesa militar e diplomática, conduzida com intransigência intratável. E não há dúvida de que, para esse esforço ciclópico, se utilizaram, com mais ou menos autenticidade e dosagens variáveis com o tempo, as três políticas possíveis e realmente expressas: a política do ter – e foi todo o clamor do «Angola é nossa» e, com menos arruído, toda a presença maciça de capitais pressurosos –; a política do estar – e foi a orquestração dos argumentos culturais –; mas também a política do ser, nem sempre feliz na companhia das outras, mas em todo o caso suficientemente clara e terminante para tornar possível a resistência de hoje.
Estamos, de facto, em plena resistência. E só é de desejar que, para a fazer vitoriosamente, se possa dispensar a aliança, não já da nobre e subtil política do estar, com seus valores de cultura e de civilização, mas a da odiosa política do ter, que, salvas as pobres e afinal honrosas excepções dos primários, oculta interesses pouco limpos ou pelo menos uma visão materialista da vida e do Homem.
Estamos em plena resistência. E é tempo de convocar a gente portuguesa de qualquer latitude ou cor ou religião ou grau de saber e de riqueza, para um trabalho seriíssimo de estudo, de acção multiforme, de esclarecimento intelectual e moral.
Todo este esforço de resistência seria pouco menos que inútil se, esquecendo-nos de quem somos, afivelássemos a máscara do mercenário. É de voluntários que Portugal precisa: de voluntários que não deixem de o ser bem no íntimo, mesmo quando cumprem, segundo as leis, o seu serviço militar. Não precisa de mercenários; e sobretudo repugna-lhe o espectáculo degradante – se a Pátria hoje tivesse rosto – de alguém ser mercenário sem o querer. Não estamos a falar para que não nos entendam: queremos dizer precisamente que é inaceitável a existência de uma situação (diremos com mais justiça uma tendência) para fazer dos soldados de Portugal mercenários ao serviço de interesses. Estamos certos de que qualquer Governo português que preze este nome – como é o caso do Governo que nos rege – tudo fará para impedir esta vileza. Mas pensamos que não é demais que os portugueses do comum se disponham, até por seus próprios meios, a conseguir o mesmo efeito.
Estamos em plena resistência. Entre a política do ser, do estar e do ter, as hesitações fazem-se cada dia mais graves. Se acreditamos que o Ultramar é Portugal, que é a identidade que os relaciona, temos de ser coerentes até ao fim. Temos de trabalhar pelo pleno desenvolvimento de todas as parcelas do todo nacional, sem qualquer espécie de discriminação. Temos de estar dispostos – todos os que habitamos este além-mar da Africa e do Oriente – a ver chegar aos mais altos postos da Administração e da Cultura e da vida económica elementos cada vez mais numerosos de populações sedentas de saber e de justiça. Temos de procurar colaborar com essas populações na obra imensa de integrar em Portugal tudo quanto é português, não como quem procede, linearmente, a uma assimilação, mas como quem constrói, arquitectonicamente, um edifício. Mais ainda: temos de reconhecer que esse edifício não é feito de pedras ou de cimento: está vivo, é feito de gente. E temos então de ajudar cada uma dessas pedras a ser gente. A sentir-se e a saber-se gente. A reclamar dos outros – que podemos ser nós próprios – o estatuto de gente. A sentir na carne e na alma o sabor da independência. Não o sabor amargo das independências que mutilam, mas aquele mesmo sabor que para nós – dirigimo-nos ao Eleitorado de Lisboa – tem a palavra independência. E, sem querermos jogar com as palavras quando é de Portugal e do Homem português que se trata –, talvez não seja por acaso que a Lista Independente de Lisboa pretende afirmar alto e bom som que só conhece um modo português de Portugal ser independente: é que todos os portugueses sejam igualmente Independentes na sua pátria.
Daqui deriva tudo. E nós sabemos que são, principalmente, deveres.
Deveres para com os povos e os homens que, em qualquer terra portuguesa, padeçam necessidades, sofram injustiça, estejam mergulhados na ignorância.
Deveres para com aquelas autoridades – gentílicas ou de origem europeia – que, em terras do Ultramar, procuram, com sorte vária, cumprir uma função de promoção humana.
Deveres para com esta juventude que sai constantemente do meio de nós, das nossas casas, dos nossos campos, das nossas escolas, deixando a enxada ou o martelo, o livro ou o simples gosto de viver, para cumprir a defesa. Deveres para com os que morrem e os que voltam – e para os que voltam o saber como integrar na vida corrente quem passou a experiência ímpar da Guerra.
Deveres para com os governantes e os legisladores. Para com os que escrevem, pensam, criam beleza, amam a Deus nos homens; porque também eles têm necessidade de apoio e compreensão.
Nesta hora de resistência nacional, as próprias eleições deveriam passar para segundo plano. Mas há uma razão fortíssima para que não passem: Há uma razão fortíssima para as levar a sério e tudo fazer para que ninguém, por pretexto nenhum – nem sequer a defesa nacional – as leve a brincar. Essa razão – já o dissemos noutro documento – é esta: «A INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL PASSA PELA DIGNIDADE DOS PORTUGUESES».
(Manifesto dos Candidatos Independentes, sobre o Ultramar, Lisboa, CEM, 1969; texto de Henrique Barrilaro Ruas, apresentado como Manifesto da Comissão Eleitoral Monárquica (CEM).
A experiência recente tem demonstrado três modos de ver o Ultramar, cada um deles correspondente a uma atitude.
Pelo fim do Século XIX, a influência dominante de concepções estranhas, vindas de uma Europa sequiosa de matérias-primas e em plena euforia da civilização técnica, introduziu entre nós a ideia ou o sentimento confuso de que as terras ultramarinas eram coisa para possuir e explorar. A acção heróica dos soldados de África deu beleza e nobreza àquela hora; El-Rei D. Carlos e o Príncipe D. Luís Filipe compreenderam profundamente o significado do Ultramar. Mas a política geral e suas teorias reflectiam a mentalidade colonialista. E a verdade é que essa mentalidade se manteve, em certos sectores, até aos nossos dias. É ela que explica, em grande parte, a substituição do Ministério do Ultramar pelo das Colónias depois da proclamação da República, um certo colonialismo administrativo e económico que chegou, em alguns momentos da política republicana, a revelar traços de discriminação racial. E, contra o que seria lícito esperar, os frutos políticos do 28 de Maio não tiveram o sabor tradicional: foi o Acto Colonial que, em 1931, consagrou uma linha dualista. Havia, mais que nunca, a Metrópole e o Ultramar – nós e eles – É esta a política do verbo ter.
Havemos de confessar que, apesar do muito que se fez, desde 1961, para arrepiar caminho, ainda hoje uma boa parte das atitudes e dos sentimentos traduz esta atitude de posse.
A segunda atitude tem uma origem recente e outra remota. Foi também pelos fins do Século XIX que se criou a ideia, em si mesma sedutora, de que nas terras ultramarinas se estava a fazer ou se devia fazer uma sementeira de valores portugueses, ou de valores culturais e civilizacionais que tinham Portugal como veículo. Mas, quando a semente germinasse, Portugal devia retirar-se. Ficariam, sim, por toda a parte difundidos os sinais de uma presença espiritual ou material – algumas pedras, alguns nomes, usos e costumes, uma língua – porventura uma fé. Numa atitude generosa e aberta, esta política conjuga em todos os modos e tempos o verbo estar.
Nos dias que correm, todos conhecemos esta concepção do Ultramar. O Ultramar como um grande cenário, semelhante ao vasto mundo por onde o português passou. Ao pesado, grosseiro colonialismo da primeira atitude, opõe-se a leveza do gesto do semeador. E é inegável que esse multiforme estar português no Mundo corresponde a uma vocação profunda daquele pequeno Povo de um milhão de almas que, no Século XV, iniciou a Civilização Ecuménica. Mas a política ultramarina do verbo estar tende a confundir (no limite, confunde) Angola ou Timor com o Brasil ou Ceilão. Para os defensores (nem sempre bem conscientes) dessa política de Presença, os portugueses estão em Lourenço Marques ou em Luanda – e até podem estar para ficar por um tempo indeterminado – mas, no fundo, estão lá como peregrinos que são de todo o mundo, para quem qualquer terra serve para erguer o cântico da saudade e do amor.
É fácil reconhecer esta atitude culturalista em muitos traços da mentalidade contemporânea, numa certa recusa do compromisso total, num certo duvidar das razões portuguesas, numa perpétua interrogação ou inquietação, que leva portugueses de inegável patriotismo a negar ou condenar a existência de um Estado português unitário e soberano a abranger igualmente as terras timorenses ou as terras açoreanas. Cremos que seria gravemente injusto acusar de traição consciente e decidida homens que assim amam valores nacionais e se revêem nesses sinais portugueses largamente dispersos por todas as praias e todos os rios. Para eles, porém, o Ultramar não está ainda descoberto.
Há uma terceira forma de considerar o Ultramar. Aquela, exactamente, que logicamente nos levaria a não versá-lo como tema. É a política do verbo ser. Não há Portugal e o Ultramar. Mas Portugal é Ultramar. E seria bem fácil olhar o conjunto da nossa história como uma tensão ultramarina. É evidente que não é possível afirmar que a relação entre Portugal e Ultramar é uma relação de identidade, sem ter presente a História e a sua evolução. Houve tempo em que o nome de Portugal se referia apenas a este quadrilátero da beira hispânica. Como houve tempo em que esse nome não cobria mais que um pequeno território à volta do Porto... E o que é hoje, o que afirmamos que é hoje o Ultramar português não tinha nenhuma relação física ou humana com Portugal. É a História, não como conjunto de factos mas como tempo vivo, que fez de Portugal uma nação ultramarina e cismarina (e onde o cis e o ultra são reversíveis, como já o sabia o rei D. Afonso V, em certo pormenor de Chancelaria). Mas essa obra da História aí está diante do Mundo e diante dos nossos próprios olhos: a Nação Portuguesa actual é exactamente esse fruto da História.
Ninguém desconhece que, no interior mesmo do que definimos como política do ter, a Constituição de 1933 soube insistir nesta verdade: o território português é constituído por... E segue a longa enumeração, que não tem paralelo em nenhuma outra constituição de qualquer Estado. E não se diga que a fórmula do Art.° 1.° (o terrível verbo «pertencer») tem aí o significado colonialista; pois que o que a Portugal «pertence» começa por ser «o Continente e arquipélagos da Madeira e dos Açores»... Trata-se, portanto, de um modo jurídico de referir a um ponto equidistante de todas as parcelas, a um centro político, ao Estado como entidade soberana, todos e cada um dos territórios que, a partir dele, são igualmente da totalidade. Neste ponto, como aliás em muitos outros, a nossa Constituição, que está longe de ser perfeita, corrige muito da própria política feita à sombra dela...
Como a própria História o demonstra, foi este princípio de identidade que prevaleceu no processo secular de relações recíprocas entre o velho Reino do Ocidente e os diversos reinos, de variadíssima importância, que foram entrando no circuito da mesma economia, da mesma política, do mesmo espírito. Apesar de todas as infiltrações da mentalidade colonialista, o que a República de 1910 herdou dos Reis de Portugal foi uma Nação constituída por terras e povos da Europa, da África e do Oriente. Tudo isso se referia ao Rei como centro e símbolo de soberania. A proclamação do regime republicano parece ter provocado em muitos a vaga impressão de que a soberania do Ultramar passava a pertencer à população do Continente, que de algum modo substituía o Rei.
Em vez de fazer a fácil crítica desta atitude semiconsciente, parece preferível reflectir sobre a situação actual e defender as linhas gerais de uma política justa.
Não é segredo para ninguém que a política de firmeza perante os adversários declarados da integridade ultramarna foi precedida de um longo período de aparente desinteresse, apesar dos claros e duros avisos feitos por homens da envergadura de um Paiva Couceiro. À administração distante de uma quinta meio esquecida, seguiu-se o esforço colossal de defesa militar e diplomática, conduzida com intransigência intratável. E não há dúvida de que, para esse esforço ciclópico, se utilizaram, com mais ou menos autenticidade e dosagens variáveis com o tempo, as três políticas possíveis e realmente expressas: a política do ter – e foi todo o clamor do «Angola é nossa» e, com menos arruído, toda a presença maciça de capitais pressurosos –; a política do estar – e foi a orquestração dos argumentos culturais –; mas também a política do ser, nem sempre feliz na companhia das outras, mas em todo o caso suficientemente clara e terminante para tornar possível a resistência de hoje.
Estamos, de facto, em plena resistência. E só é de desejar que, para a fazer vitoriosamente, se possa dispensar a aliança, não já da nobre e subtil política do estar, com seus valores de cultura e de civilização, mas a da odiosa política do ter, que, salvas as pobres e afinal honrosas excepções dos primários, oculta interesses pouco limpos ou pelo menos uma visão materialista da vida e do Homem.
Estamos em plena resistência. E é tempo de convocar a gente portuguesa de qualquer latitude ou cor ou religião ou grau de saber e de riqueza, para um trabalho seriíssimo de estudo, de acção multiforme, de esclarecimento intelectual e moral.
Todo este esforço de resistência seria pouco menos que inútil se, esquecendo-nos de quem somos, afivelássemos a máscara do mercenário. É de voluntários que Portugal precisa: de voluntários que não deixem de o ser bem no íntimo, mesmo quando cumprem, segundo as leis, o seu serviço militar. Não precisa de mercenários; e sobretudo repugna-lhe o espectáculo degradante – se a Pátria hoje tivesse rosto – de alguém ser mercenário sem o querer. Não estamos a falar para que não nos entendam: queremos dizer precisamente que é inaceitável a existência de uma situação (diremos com mais justiça uma tendência) para fazer dos soldados de Portugal mercenários ao serviço de interesses. Estamos certos de que qualquer Governo português que preze este nome – como é o caso do Governo que nos rege – tudo fará para impedir esta vileza. Mas pensamos que não é demais que os portugueses do comum se disponham, até por seus próprios meios, a conseguir o mesmo efeito.
Estamos em plena resistência. Entre a política do ser, do estar e do ter, as hesitações fazem-se cada dia mais graves. Se acreditamos que o Ultramar é Portugal, que é a identidade que os relaciona, temos de ser coerentes até ao fim. Temos de trabalhar pelo pleno desenvolvimento de todas as parcelas do todo nacional, sem qualquer espécie de discriminação. Temos de estar dispostos – todos os que habitamos este além-mar da Africa e do Oriente – a ver chegar aos mais altos postos da Administração e da Cultura e da vida económica elementos cada vez mais numerosos de populações sedentas de saber e de justiça. Temos de procurar colaborar com essas populações na obra imensa de integrar em Portugal tudo quanto é português, não como quem procede, linearmente, a uma assimilação, mas como quem constrói, arquitectonicamente, um edifício. Mais ainda: temos de reconhecer que esse edifício não é feito de pedras ou de cimento: está vivo, é feito de gente. E temos então de ajudar cada uma dessas pedras a ser gente. A sentir-se e a saber-se gente. A reclamar dos outros – que podemos ser nós próprios – o estatuto de gente. A sentir na carne e na alma o sabor da independência. Não o sabor amargo das independências que mutilam, mas aquele mesmo sabor que para nós – dirigimo-nos ao Eleitorado de Lisboa – tem a palavra independência. E, sem querermos jogar com as palavras quando é de Portugal e do Homem português que se trata –, talvez não seja por acaso que a Lista Independente de Lisboa pretende afirmar alto e bom som que só conhece um modo português de Portugal ser independente: é que todos os portugueses sejam igualmente Independentes na sua pátria.
Daqui deriva tudo. E nós sabemos que são, principalmente, deveres.
Deveres para com os povos e os homens que, em qualquer terra portuguesa, padeçam necessidades, sofram injustiça, estejam mergulhados na ignorância.
Deveres para com aquelas autoridades – gentílicas ou de origem europeia – que, em terras do Ultramar, procuram, com sorte vária, cumprir uma função de promoção humana.
Deveres para com esta juventude que sai constantemente do meio de nós, das nossas casas, dos nossos campos, das nossas escolas, deixando a enxada ou o martelo, o livro ou o simples gosto de viver, para cumprir a defesa. Deveres para com os que morrem e os que voltam – e para os que voltam o saber como integrar na vida corrente quem passou a experiência ímpar da Guerra.
Deveres para com os governantes e os legisladores. Para com os que escrevem, pensam, criam beleza, amam a Deus nos homens; porque também eles têm necessidade de apoio e compreensão.
Nesta hora de resistência nacional, as próprias eleições deveriam passar para segundo plano. Mas há uma razão fortíssima para que não passem: Há uma razão fortíssima para as levar a sério e tudo fazer para que ninguém, por pretexto nenhum – nem sequer a defesa nacional – as leve a brincar. Essa razão – já o dissemos noutro documento – é esta: «A INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL PASSA PELA DIGNIDADE DOS PORTUGUESES».
(Manifesto dos Candidatos Independentes, sobre o Ultramar, Lisboa, CEM, 1969; texto de Henrique Barrilaro Ruas, apresentado como Manifesto da Comissão Eleitoral Monárquica (CEM).