Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
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...uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder
...
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas.
- Mário Saraiva
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...uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder
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Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas.
- Mário Saraiva
Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa
- Antero de Quental
- Antero de Quental
NOTA PREAMBULAR
Dado que a generalidade do povo português não estuda política, os conhecimentos que dela tem chegam-lhe pela leitura dos periódicos, ou pelo que ouve nos aparelhos de rádio. Mas essa escola insere-se numa pedagogia medíocre, unifacetada, que não o esclarece, que nada lhe ensina de novo. Por idêntico motivo tão pouco pode esperar dos mentores do regime.
A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!
Num mundo em que as outras ciências avançam aceleradamente, a ciência política faz exceção: não progride; ficou estagnada.
É impossível ignorar-se que nas últimas décadas as condições de vida se modificaram profundamente e que as forças sociais se deslocaram, enfraquecendo umas e adquirindo outras relevante importância. A crescente industrialização com a inerente dependência da técnica, as poderosas associações de trabalho-operário e empresarial -, os novos moldes de gestão adequados aos condicionalismos do comércio mundial, são factos marcantes de uma presença que não pode mais ser ignorada ou desprezada. A par disto, as regras de convivência sociopolítica teimam em conservar-se imobilizadas.
Será admissível este desfasamento?
Será admissível este atraso da teoria ideológica frente às realidades?
Eis o problema dramático da hora presente.
Se é verdade que no século passado a questão política se punha, para os homens de pensamento, em termos especulativos de análise crítica e de inteligência, hoje a questão política defronta o imperativo perigoso dos factos irremovíveis. Os fundamentos da organização estatal de há muito que não são válidos. A legalidade existente tem mostrado não servir o bem-comum.
Uma revisão constitucional profundamente diferente nos conceitos, revolucionária no sentido construtivo, adaptada ao modo de ser português, é uma exigência impreterível.
As páginas que se seguem foram animadas desse pensamento e não terão outro mérito senão o de tentarem romper a espessa cortina de fumo que encurta o horizonte do país político, e de vencer a ignara passividade que o desalenta e não lhe deixa ver as razões da Esperança.
Não serão mais do que um ponto de partida as ideias expostas? Pois bem, o necessário, neste momento, é libertarmo-nos das amarras que nos prendem e, exatamente, partir em busca de melhores normas de vida nacional.
Foi este ensaio escrito há bastante tempo e ficou demoradamente à espera de ser editado. Entretanto não foi revisto, o que pode refletir-se na falta de uma ou outra citação, de uma ou outra referência de datas mais recentes, o que, no entanto, julgamos de somenos importância. O leitor atento, a dar-se conta disso, achará aí, afinal, somente a confirmação do que já vai exposto. Todavia um apontamento apenas, e muito breve, ao novo texto constitucional.
Sobre as cláusulas de destituição do chefe do Estado este repete o disposto na Constituição de 1976, isto é, que o Presidente somente perde o cargo por abandono voluntário do país ou em consequência de condenação por crimes praticados no exercício de funções.
Verifica-se que esta Constituição de 1982, tal como a anterior, não considera as hipóteses de incúria e de inabilidade, de nocivo procedimento, nem sequer a de doença mental declarada durante o mandato.
A omissão revela uma imprevidência grave, quanto mais não seja no ponto de vista da teoria democrática.
Março de 1983
O autor
A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental!
Num mundo em que as outras ciências avançam aceleradamente, a ciência política faz exceção: não progride; ficou estagnada.
É impossível ignorar-se que nas últimas décadas as condições de vida se modificaram profundamente e que as forças sociais se deslocaram, enfraquecendo umas e adquirindo outras relevante importância. A crescente industrialização com a inerente dependência da técnica, as poderosas associações de trabalho-operário e empresarial -, os novos moldes de gestão adequados aos condicionalismos do comércio mundial, são factos marcantes de uma presença que não pode mais ser ignorada ou desprezada. A par disto, as regras de convivência sociopolítica teimam em conservar-se imobilizadas.
Será admissível este desfasamento?
Será admissível este atraso da teoria ideológica frente às realidades?
Eis o problema dramático da hora presente.
Se é verdade que no século passado a questão política se punha, para os homens de pensamento, em termos especulativos de análise crítica e de inteligência, hoje a questão política defronta o imperativo perigoso dos factos irremovíveis. Os fundamentos da organização estatal de há muito que não são válidos. A legalidade existente tem mostrado não servir o bem-comum.
Uma revisão constitucional profundamente diferente nos conceitos, revolucionária no sentido construtivo, adaptada ao modo de ser português, é uma exigência impreterível.
As páginas que se seguem foram animadas desse pensamento e não terão outro mérito senão o de tentarem romper a espessa cortina de fumo que encurta o horizonte do país político, e de vencer a ignara passividade que o desalenta e não lhe deixa ver as razões da Esperança.
Não serão mais do que um ponto de partida as ideias expostas? Pois bem, o necessário, neste momento, é libertarmo-nos das amarras que nos prendem e, exatamente, partir em busca de melhores normas de vida nacional.
Foi este ensaio escrito há bastante tempo e ficou demoradamente à espera de ser editado. Entretanto não foi revisto, o que pode refletir-se na falta de uma ou outra citação, de uma ou outra referência de datas mais recentes, o que, no entanto, julgamos de somenos importância. O leitor atento, a dar-se conta disso, achará aí, afinal, somente a confirmação do que já vai exposto. Todavia um apontamento apenas, e muito breve, ao novo texto constitucional.
Sobre as cláusulas de destituição do chefe do Estado este repete o disposto na Constituição de 1976, isto é, que o Presidente somente perde o cargo por abandono voluntário do país ou em consequência de condenação por crimes praticados no exercício de funções.
Verifica-se que esta Constituição de 1982, tal como a anterior, não considera as hipóteses de incúria e de inabilidade, de nocivo procedimento, nem sequer a de doença mental declarada durante o mandato.
A omissão revela uma imprevidência grave, quanto mais não seja no ponto de vista da teoria democrática.
Março de 1983
O autor
Índice
CONCEITO DE DEMOCRACIA
A palavra "Democracia" é amplamente utilizada em política, mas o seu significado é frequentemente impreciso e variado. Democracia significa o governo conforme a vontade do povo. A verdadeira democracia permite ao povo escolher livremente o seu governo e governantes, sem imposição de um regime específico. No entanto, a prática democrática atual limita essa escolha a partidos políticos. Este texto discute a necessidade de repensar a democracia para além dos partidos e considera outros modelos de representação democrática que atendam melhor às necessidades dos povos.
O VALOR DO VOTO
Uma crítica do sistema de sufrágio universal igualitário, por não ser racional nem realista. Propõe um novo conceito de voto consciente e idóneo, onde o eleitor vota nas questões e pessoas com as quais está diretamente relacionado e no seu meio conhecido. Defende a substituição do sufrágio massificado por um sufrágio fracionado e específico, baseado em afinidades regionais, profissionais ou espirituais. Esta mudança daria autonomia ao voto, tornando-o menos manipulável pelos partidos políticos. Os partidos, por sua vez, continuariam a eleger seus representantes, mas dentro de um sistema de Representação Social redefinido.
PARTIDOCRACIA
Uma crítica da partidocracia, em que se argumenta que, embora o actual regime se apresente como sendo uma democracia, na verdade é controlada por uma elite de líderes partidários, distanciados do povo. Os partidos políticos surgem de ideias de elite e são mantidos por uma classe dirigente que manipula congressos e decisões, resultando numa oligarquia. Defende que uma verdadeira democracia se deve basear no poder popular de base, como autarquias locais e sindicatos, e que os partidos políticos, ao dominarem a representação, afastam-se da realidade e das necessidades do país. Questiona também a legitimidade dos partidos quando estes se subordinam a associações internacionais, comprometendo a soberania nacional. Por fim, critica a alternância no poder em regimes partidocráticos, como visto em várias repúblicas, que leva à instabilidade e ineficácia governativa.
FALÊNCIA DO REGIME PARTIDOCRÁTICO
A falência do sistema partidocrático revela-se na repetição de crises ministeriais e na incapacidade do sistema de partidos em resolver problemas governativos. A falta de apoio parlamentar e os governos formados por compromissos superficiais levam à instabilidade e à ineficácia administrativa. A ideia de um programa comum entre partidos é irrealista e uma ameaça à identidade partidária. A luta pelo poder entre partidos resulta em conflitos internos, perda de autoridade, ruína económica e social, e decadência nacional. [Em 1983, o governo PS-PSD, dirigido por Mário Soares, pediu a segunda intervenção do FMI, desde 1974, para salvar o Estado português da bancarrota]. A Instituição Real pode ser confiável pela sua independência dos partidos e continuidade no poder, mas não se deve esperar muito dela em regime partidocrático. A história portuguesa mostrou que, seja em regime de partido único ou em pluripartidarismo, sobreveio sempre o declínio e o caos. Além disso, comparando a situação atual com eventos históricos em Portugal, Espanha, França e Itália, verifica-se que o partidarismo levou a regimes autoritários e ditaduras. A partidocracia, por sua natureza divisiva, conduz inevitavelmente ao fracasso, enquanto a união e cooperação são essenciais para a prosperidade nacional.
PENSAMENTO RENOVADOR
Discussão acerca da crise da partidocracia, com críticas a partir de diferentes perspectivas políticas, das chamadas "direitas" e "esquerdas". Fernandez de la Mora e Roger Garaudy concordam que os partidos políticos tradicionais falham em representar efetivamente as sociedades contemporâneas. Outros pensadores, incluindo Edgar Faure, Pierre Mendes France e Raymond Aron, apontam a necessidade de uma nova organização política que priorize o debate de ideias sobre a luta partidária. É também mencionada a inspiração de modelos alternativos, como a "Democracia Direta" na Jugoslávia, que enfatiza a participação direta dos cidadãos. Conclui-se que a crise da partidocracia está amplamente reconhecida e há um movimento crescente em direção a formas mais autênticas e representativas de governança.
LUGAR AO SINDICALISMO
Partindo do livro Para a História do Socialismo em Portugal, de Alexandre Vieira, é sumariada a resistência dos sindicalistas contra a influência dos partidos políticos na 1ª República, destacando a independência defendida pela União Operária Nacional desde o Congresso Operário de Tomar em 1914. Nessa época, os sindicalistas desconfiavam dos benefícios de alianças políticas evidenciando que os trabalhadores confiavam apenas em seu próprio esforço coletivo. Em contraste, o sindicalismo actual [1983] na Europa ocidental é uma mera simulação sob o domínio da partidocracia; no Leste europeu, onde a liberdade é escassa, assiste-se, porém, ao ressurgimento inesperado do sindicalismo independente na Polónia. Este capítulo conclui destacando a importância de uma relação colaborativa entre empregadores e trabalhadores nas empresas, conforme defendido pelos Papas João XXIII e João Paulo II - os sindicatos devem focar-se na defesa dos direitos dos trabalhadores, sem se tornarem instrumentos de luta partidária. Rejeitando a ideia marxista da luta de classes, são destacados os ideais de justiça social e convivência pacífica. O ensaio sobre As Eleições de Oliveira Martins e o livro Paixão e Graça da Terra, em especial o ensaio-conferência intitulado "A Lei do Trabalho", de Luís de Almeida Braga, são referências fundamentais. A colaboração sindical deve ser garantida para assegurar o bom funcionamento das empresas e a segurança de todos na “viagem da vida”.
A REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Acerca da estrutura e eficácia da representação parlamentar. A Assembleia da República deve refletir a sociedade e a verdadeira democracia e liberdade funda-se na genuinidade dessa representação. Critica a ideia das representações bicamerais, argumentando que uma câmara única mista, combinando delegações orgânicas e regionais com representação política, seria mais eficaz e representativa. As câmaras exclusivamente políticas são previsíveis e ideologicamente determinadas e influenciadas, enquanto uma câmara mista proporcionaria um poder moderador e uma representação mais justa da comunidade nacional. A atual Assembleia da República não é suficiente para resolver questões de extrema importância nacional. É dado um flagrante exemplo: a Constituição de 1982 permite a permanência no cargo de um Presidente da República que tenha cometido crimes fora do exercício das suas funções. Em contraste, a doutrina e experiência monárquica, apresenta exemplos históricos de regência e deposição, como em 1385 e 1440, através da legitimidade das Cortes Gerais da Nação. Impõe-se restabelecer uma representação autêntica da sociedade, recuperando antigos modos de representação. A representação ideológica da partidocracia está desligada das populações, defendendo-se uma representação social partindo das realidades comuns.
A REPRESENTAÇÃO NACIONAL
Oliveira Martins argumentou que a representação das forças sociais pelo Parlamento não é nacional porque não abrange o longo histórico da nação. Aqui se destaca que uma chefia nacional precisa de permanência e continuidade, qualidades da Dinastia Real, e não dos Presidentes da República, cuja legitimidade pode ser contestada e cujo mandato é temporário. Aqui também se sublinha a necessidade de um poder apolítico e nacional para as Forças Armadas, o Poder Judicial e a Diplomacia, indicando a Dinastia Real como a melhor solução para garantir a independência, imparcialidade e confiança nesses setores.
OUTRA DEMOCRACIA
É necessária uma modernização do Estado, propondo-se uma representação baseada em agrupamentos sociais. Os partidos políticos são motivados por interesses eleitorais e demagógicos, daí resultando decisões contraditórias e prejudiciais ao interesse nacional. Com deputados escolhidos dentro dos seus agrupamentos sociais, é possível evitar os vícios da partidocracia e promover uma política mais justa e eficaz. A descentralização é uma forma de tornar a política mais próxima das reais necessidades da população. É necessária uma nova ordem política para revitalizar a nação.
CONCEITO DE DEMOCRACIA
A palavra "Democracia" é amplamente utilizada em política, mas o seu significado é frequentemente impreciso e variado. Democracia significa o governo conforme a vontade do povo. A verdadeira democracia permite ao povo escolher livremente o seu governo e governantes, sem imposição de um regime específico. No entanto, a prática democrática atual limita essa escolha a partidos políticos. Este texto discute a necessidade de repensar a democracia para além dos partidos e considera outros modelos de representação democrática que atendam melhor às necessidades dos povos.
O VALOR DO VOTO
Uma crítica do sistema de sufrágio universal igualitário, por não ser racional nem realista. Propõe um novo conceito de voto consciente e idóneo, onde o eleitor vota nas questões e pessoas com as quais está diretamente relacionado e no seu meio conhecido. Defende a substituição do sufrágio massificado por um sufrágio fracionado e específico, baseado em afinidades regionais, profissionais ou espirituais. Esta mudança daria autonomia ao voto, tornando-o menos manipulável pelos partidos políticos. Os partidos, por sua vez, continuariam a eleger seus representantes, mas dentro de um sistema de Representação Social redefinido.
PARTIDOCRACIA
Uma crítica da partidocracia, em que se argumenta que, embora o actual regime se apresente como sendo uma democracia, na verdade é controlada por uma elite de líderes partidários, distanciados do povo. Os partidos políticos surgem de ideias de elite e são mantidos por uma classe dirigente que manipula congressos e decisões, resultando numa oligarquia. Defende que uma verdadeira democracia se deve basear no poder popular de base, como autarquias locais e sindicatos, e que os partidos políticos, ao dominarem a representação, afastam-se da realidade e das necessidades do país. Questiona também a legitimidade dos partidos quando estes se subordinam a associações internacionais, comprometendo a soberania nacional. Por fim, critica a alternância no poder em regimes partidocráticos, como visto em várias repúblicas, que leva à instabilidade e ineficácia governativa.
FALÊNCIA DO REGIME PARTIDOCRÁTICO
A falência do sistema partidocrático revela-se na repetição de crises ministeriais e na incapacidade do sistema de partidos em resolver problemas governativos. A falta de apoio parlamentar e os governos formados por compromissos superficiais levam à instabilidade e à ineficácia administrativa. A ideia de um programa comum entre partidos é irrealista e uma ameaça à identidade partidária. A luta pelo poder entre partidos resulta em conflitos internos, perda de autoridade, ruína económica e social, e decadência nacional. [Em 1983, o governo PS-PSD, dirigido por Mário Soares, pediu a segunda intervenção do FMI, desde 1974, para salvar o Estado português da bancarrota]. A Instituição Real pode ser confiável pela sua independência dos partidos e continuidade no poder, mas não se deve esperar muito dela em regime partidocrático. A história portuguesa mostrou que, seja em regime de partido único ou em pluripartidarismo, sobreveio sempre o declínio e o caos. Além disso, comparando a situação atual com eventos históricos em Portugal, Espanha, França e Itália, verifica-se que o partidarismo levou a regimes autoritários e ditaduras. A partidocracia, por sua natureza divisiva, conduz inevitavelmente ao fracasso, enquanto a união e cooperação são essenciais para a prosperidade nacional.
PENSAMENTO RENOVADOR
Discussão acerca da crise da partidocracia, com críticas a partir de diferentes perspectivas políticas, das chamadas "direitas" e "esquerdas". Fernandez de la Mora e Roger Garaudy concordam que os partidos políticos tradicionais falham em representar efetivamente as sociedades contemporâneas. Outros pensadores, incluindo Edgar Faure, Pierre Mendes France e Raymond Aron, apontam a necessidade de uma nova organização política que priorize o debate de ideias sobre a luta partidária. É também mencionada a inspiração de modelos alternativos, como a "Democracia Direta" na Jugoslávia, que enfatiza a participação direta dos cidadãos. Conclui-se que a crise da partidocracia está amplamente reconhecida e há um movimento crescente em direção a formas mais autênticas e representativas de governança.
LUGAR AO SINDICALISMO
Partindo do livro Para a História do Socialismo em Portugal, de Alexandre Vieira, é sumariada a resistência dos sindicalistas contra a influência dos partidos políticos na 1ª República, destacando a independência defendida pela União Operária Nacional desde o Congresso Operário de Tomar em 1914. Nessa época, os sindicalistas desconfiavam dos benefícios de alianças políticas evidenciando que os trabalhadores confiavam apenas em seu próprio esforço coletivo. Em contraste, o sindicalismo actual [1983] na Europa ocidental é uma mera simulação sob o domínio da partidocracia; no Leste europeu, onde a liberdade é escassa, assiste-se, porém, ao ressurgimento inesperado do sindicalismo independente na Polónia. Este capítulo conclui destacando a importância de uma relação colaborativa entre empregadores e trabalhadores nas empresas, conforme defendido pelos Papas João XXIII e João Paulo II - os sindicatos devem focar-se na defesa dos direitos dos trabalhadores, sem se tornarem instrumentos de luta partidária. Rejeitando a ideia marxista da luta de classes, são destacados os ideais de justiça social e convivência pacífica. O ensaio sobre As Eleições de Oliveira Martins e o livro Paixão e Graça da Terra, em especial o ensaio-conferência intitulado "A Lei do Trabalho", de Luís de Almeida Braga, são referências fundamentais. A colaboração sindical deve ser garantida para assegurar o bom funcionamento das empresas e a segurança de todos na “viagem da vida”.
A REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Acerca da estrutura e eficácia da representação parlamentar. A Assembleia da República deve refletir a sociedade e a verdadeira democracia e liberdade funda-se na genuinidade dessa representação. Critica a ideia das representações bicamerais, argumentando que uma câmara única mista, combinando delegações orgânicas e regionais com representação política, seria mais eficaz e representativa. As câmaras exclusivamente políticas são previsíveis e ideologicamente determinadas e influenciadas, enquanto uma câmara mista proporcionaria um poder moderador e uma representação mais justa da comunidade nacional. A atual Assembleia da República não é suficiente para resolver questões de extrema importância nacional. É dado um flagrante exemplo: a Constituição de 1982 permite a permanência no cargo de um Presidente da República que tenha cometido crimes fora do exercício das suas funções. Em contraste, a doutrina e experiência monárquica, apresenta exemplos históricos de regência e deposição, como em 1385 e 1440, através da legitimidade das Cortes Gerais da Nação. Impõe-se restabelecer uma representação autêntica da sociedade, recuperando antigos modos de representação. A representação ideológica da partidocracia está desligada das populações, defendendo-se uma representação social partindo das realidades comuns.
A REPRESENTAÇÃO NACIONAL
Oliveira Martins argumentou que a representação das forças sociais pelo Parlamento não é nacional porque não abrange o longo histórico da nação. Aqui se destaca que uma chefia nacional precisa de permanência e continuidade, qualidades da Dinastia Real, e não dos Presidentes da República, cuja legitimidade pode ser contestada e cujo mandato é temporário. Aqui também se sublinha a necessidade de um poder apolítico e nacional para as Forças Armadas, o Poder Judicial e a Diplomacia, indicando a Dinastia Real como a melhor solução para garantir a independência, imparcialidade e confiança nesses setores.
OUTRA DEMOCRACIA
É necessária uma modernização do Estado, propondo-se uma representação baseada em agrupamentos sociais. Os partidos políticos são motivados por interesses eleitorais e demagógicos, daí resultando decisões contraditórias e prejudiciais ao interesse nacional. Com deputados escolhidos dentro dos seus agrupamentos sociais, é possível evitar os vícios da partidocracia e promover uma política mais justa e eficaz. A descentralização é uma forma de tornar a política mais próxima das reais necessidades da população. É necessária uma nova ordem política para revitalizar a nação.
CONCEITO DE DEMOCRACIA
Em política, na linguagem corrente, a palavra mais largamente utilizada é hoje, sem dúvida, - Democracia. Por isso que anda tão explorada e se apresenta de sentido o mais impreciso e variado. Na realidade não a vemos nós igualmente aplicada aos mais diversos e opostos regimes?
Democracia, simplesmente dita, ou pleonasticamente adjetivada de popular, democracia individualista, ou democracia orgânica, democracia como substantivo, é um rótulo comum que tanto tem sentido para designar o tradicional rotativismo inglês como os esquerdismos «progressistas» (pseudo progressivos), a sociedade capitalista americana, como os monopólios totalitários dos Estados comunistas, o pluripartidismo dos países europeus do ocidente, como as ditaduras de partido único de leste, as autocracias vitalícias de algumas nações, como a anarquia de outras, etc., etc.
A confusão tem sido grande e vem de longe. Já Alexandre Herculano, o desiludido Herculano da invasão do Mindelo, deixou dito, com a franqueza que lhe era peculiar: «tenho lido muitas vezes a palavra democracia; tenho-a ouvido proferir outras tantas. O que nunca li nem ouvi, foi uma definição precisa e rigorosa dela. Não falo, já se vê, da definição filológica do dicionário». [Cartas, tomo I, p. 209 ]
Na renovada popularidade que o desfecho da última guerra mundial lhe proporcionou, a «Democracia» emergiu triunfalista dos destroços e do confusionismo, revestida de uma concepção mítica; por conseguinte ainda mais indefinida e nebulosa do que nunca; e além disso contraditória nalgumas modalidades em que se apresenta, todas elas intituladas igualmente de democráticas. Mas se efetivamente, não se consegue ver definida formalmente a Democracia, isto é, fixá-la numa única forma padrão, há que aceitar essa realidade, compreendê-la, interpretá-la e daí concluir.
Para tratar da Democracia torna-se necessário, antes de tudo, apreender o seu sentido e partir dele, com uma noção firmada, para o campo concreto da política formal. Portanto põe-se-nos, à partida, esta questão basilar: o que deve entender-se por Democracia?
A esta pergunta responde o conceito universalmente aceite: diz-se que existe democracia quando o governo do povo é conforme à sua vontade.
De outro modo: a vontade do povo é soberana, é a fonte da legitimidade dos governos, nada se lhe podendo antepor ou sobrepor-se-lhe.
Daqui resulta imediatamente que o conceito de Democracia não pode condicionar-se ou submeter-se a um determinado formalismo, mas sim, e unicamente, ao consenso popular. O que caracteriza e autentifica a Democracia é, exclusivamente, a estrita obediência ao querer do povo.
A imposição de um único e predeterminado regime governativo é, claramente, antidemocrática, pois que de antemão retira ao povo o poder e a liberdade de escolher, isto é, nega-lhe a elementar soberania, a qual é o princípio inalienável da Democracia.
E então é caso de perguntar: que outro poder se pode invocar para tal, acima e a anteceder a vontade do Povo?
Em nome de que espécie de poder democrático (note-se bem, de poder democrático) se pode coartar, constranger ou anular a soberania do povo? Haverá uma resposta a esta pergunta?
De uma simples observação ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, a um especificado regime.
Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.
Contra, ou fora disto, sob invocação democrática, tudo será contrafação, falsificação, ou sofisma da Democracia.
Politicamente vive-se uma ilusão de democracia. Ao povo limita-se a opção dentro da concorrência eleitoral estabelecida entre partidos políticos, mas na realidade subtrai-se-lhe o primeiro direito democrático, que é o de dizer se é o regime de partidos políticos que quer ou se prefere um regime diferente. Esta circunstância assemelha-se a um caso anedótico. Num restaurante moderno anuncia-se em grandes letras luminosas que o cliente tem a faculdade de escolher a comida que mais lhe agrade, mas o criado põe-lhe nas mãos uma lista da qual constam vários pratos, cozinhados diferentemente, é certo, apresentado com nomes diversos e atrativos, mas somente da mesma espécie de peixe - carapaus. Poderá elegê-los em frituras, em assado, de escabeche, etc., mas sempre carapaus, como nas eleições pode eleger um partido da esquerda, da direita, do centro, dos «ultras», etc., mas sempre um partido político. A tais limites se confina a soberania do povo nas democracias mais liberais que por aí há.
Estamos defronte de um ponto crucial que importa olhar com clarividência.
A opinião perentória dos profissionais da política é a de que a Democracia é inseparável da forma partidocrática; de que esta lhe é inerente; que somente pode conceber-se como democrático o regime dos partidos políticos, e que apenas deste pressuposto em diante funciona a soberania do povo.
Esta restritiva maneira de ver implica logo um contrassenso: o de forçar a aceitação democrática do regime partidarista, ainda que seja do desagrado do povo, ainda que repudiado por ele.
A questão é fácil de esclarecer. Basta que não nos alheemos da definição de Democracia. Democrático, em cada tempo e em cada lugar, será o regime que o povo, nesse tempo e nesse lugar, quiser, e só esse.
Pode, decerto, a partidocracia ser regime democrático se tiver por si o voto aprovativo do povo, mas pode não o ser, se tiver contra si o voto do povo.
É exclusivamente o ditame do povo que confere e atesta a democraticidade ao Estado e à governação. Resulta, portanto, que qualquer esquema de governo é suscetível de ser democrático, ou não o ser, agora ou no futuro, aqui ou além. É o povo, com o seu voto pleno, que tem poder idóneo para o dizer.
Se, na verdade, o conceito de Democracia não está, nem pode estar adstrito a uma exclusiva forma de governo, temos por bem de concluir que a aparente confusão inicial desaparece.
Pese a quem pesar, tanto poderá ser legitimamente democrático o capitalismo liberal americano, como o comunismo ou o fascismo, os pluripartidarismos, como as ditaduras de partido único, desde que, é bem de ver, obedeçam à condição de derivarem da vontade livremente expressa dos respetivos povos. Esta é a cláusula obrigatória que importa bem assegurar. A observação insofismável deste requisito é que é indispensável para que tal governo ou tal regime se considerem democráticos. Com o que dizemos não se escandalizem os inimigos de todas as opressões políticas! Crer que a Democracia é, por doutrina, penhor da liberdade de opinião mostra um erro de ignorância. Revela que se confunde Democracia com Liberalismo. Noutro lugar ["Liberalismo", in Às Portas da Cidade - Crítica e Doutrina, Lisboa, 1976, pp. 33-38] já tivemos oportunidade de apontar a categórica distinção, de conteúdo e de objetivos, das duas ideologias. A Democracia consagra o absolutismo das maiorias; o Liberalismo preocupa-se em defender os direitos das minorias.
Passando do domínio da teoria à prática, a história dos povos a cada passo vai demonstrando que a Democracia, e nas formas mais genuínas, pode não ser respeitadora das liberdades políticas. Para avivar ideias basta que recordemos duas páginas de incontestável realismo.
A primeira, colhida da Revolução Francesa, pioneira mundial das democracias modernas, a mais eloquente imagem da democracia direta, a que alguns chamam a autêntica, a qual teve o seu expoente mais significativo na época da Comuna. Nela, como se sabe, foram completamente postergados não só os direitos cívicos, as liberdades políticas, como juntamente as mais elementares prerrogativas humanas. Lembre-se, por exemplo, este mandato: «O Tribunal criminal estabelecido em Arras julgará em primeiro lugar, revolucionariamente, os acusados que se distinguem pelos seus bens ou possibilidades». Comenta o eminente historiador Pierre Gaxote: «Os seus bens ou possibilidades! São suspeitos os que possuem e são suspeitos ainda os que podem vir a possuir. Desta maneira a guilhotina não pára. Em seis semanas foram executados, em Cambrai, 149 cidadãos e 392 em Arras» (A Revolução Francesa, Porto, 1945, p. 265; Pierre Gaxote, La Révolution française, Paris, Arthème Fayard, 1928, pp. 380-381].
Depois da de Luís XVI, muitos milhares de cabeças inocentes caíram por toda a democratizada França, em espetáculos horrendos de selvajaria. Cumprindo-se o adágio dos tempos, a Revolução acabou por devorar os seus próprios chefes. Danton e Robespierre, cabecilhas responsáveis e discricionários da plebe, tiveram a mesma sorte das suas vítimas degoladas.
Desta página, em que a Democracia foi tragédia ignominiosa de sangue e de morte, passemos à outra, radicalmente diferente, mas onde, também, a liberdade das oposições foi letra morta - a democracia nazista.
Radicalmente diferente porque o seu advento se processou na ordem constitucional. Democracia porque, vencedora de eleições insuspeitas (realizadas por um governo ao qual era oposição), o poder foi-lhe entregue em conformidade com as regras democráticas. Se, relativamente à página anterior, a invocação da atmosfera revolucionária que a França sofreu pode ter algum cabimento, a Alemanha nazi formou-se em completa e indiscutível constitucionalidade. Hitler foi encarregue do governo pelo Presidente da República na consequência naturalíssima de o seu partido ter alcançado a maioria. A sua legitimidade democrática foi perfeita.
Outro tanto não se pode dizer de qualquer de todos os regimes comunistas existentes, apesar de se autodenominarem «Democracias populares», porque não provieram de eleições, porque foram impostos pela força, e na maior parte dos casos impostos e sustentados por exércitos estrangeiros. E, sobretudo, porque lhes falta, a autentificá-los, a aprovação voluntária e livre dos seus povos, condição esta indispensável da Democracia.
Mas, voltando ao fenómeno alemão, uma vez governante Hitler ilegalizou todos os outros partidos? Foi uma realidade, como foi uma realidade tê-lo feito com fundamento democrático, isto é, com o apoio maioritário do povo alemão que, ao elegê-lo, elegeu, ipso facto o ideário político que iria ser posto em prática.
Foi uma ditadura partidária o governo hitleriano? Mas quem poderá afirmar que uma ditadura não é democrática se ela for a expressão política da vontade da maioria?
A questão está bem clara. O poder em Democracia não se identifica necessariamente com o acatamento da liberdade política e pluripartidária.
Nesta «Democracia exemplar» que vai arruinando Portugal, não é verdade que, logo à partida, foram declarados inconstitucionais, ou ilegais, e proibidos, alguns partidos de «direita»? E qual o pretexto aduzido? O espantoso e cínico pretexto de que esses partidos seriam contrários às liberdades partidárias... Desta singular maneira provava a «exemplar democracia portuguesa» o seu amor às liberdades políticas!... E, todavia, não se interditou o estalinismo que, toda a gente sabe, significa totalitarismo de partido único.
Afinal foi isto Democracia, ou não?
Seriamente cremos que sim, a acreditarmos na vaga popular de adesão ao 25 de Abril que por aqueles dias se levantou. A questão é sempre a mesma: onde existe vontade maioritária do Povo, existe Democracia.
A ideologia que se arvora como defensora e garante dos direitos das oposições e da permanência das liberdades, é o Liberalismo.
Era costume no século XIX e nos princípios deste falar-se em Liberal-Democracia. Reconhecia-se então a necessidade de corrigir a doutrina democrática, no tocante ao seu fluir automático para os despotismos das maiorias. A par da Democracia, o Liberalismo deveria ter esse efeito preventivo. Assim se pensava. Breve, porém, se verificou a sua incapacidade, porque o fator democrático, na feição partidocrática em que se exercia, era muito mais forte do que o fator liberal e sobre este predominava, à vontade. Não que, para isso, lhe fosse preciso sair da legalidade, visto que, no Parlamento, as leis convenientes eram aprovadas pela sua maioria.
Na prática o Liberalismo não resultava quanto era desejado, mas em todo o caso permanecia como uma afirmação de princípios e representava uma barreira moral. A expressão liberal-democracia tem, pois, um sentido profundamente diferente daquele que se extrai do simples vocábulo Democracia.
Nos anos 40 deu-se uma curiosa mutação. Embora confessando-se fiéis aos seus princípios, os políticos do ocidente deixaram de usar a expressão Liberal-Democracia, bastante significativa, para falarem singelamente de Democracia, palavra imprecisa e dúbia. Porquê? Ora há aqui uma historieta. Exatamente tornava-se-lhes útil aproveitar essa imprecisão, essa dubiez. Aliadas numa guerra a que não tardaram em revestir de uma feição fortemente ideológica, abraçadas na vitória final, as liberais-democracias ocidentais e a campeã americana, com a antípoda Rússia, antiliberal e totalitarista, haveriam de inventar qualquer coisa, qualquer ideal aparentemente comum, que servisse para se apresentarem irmanadas, no jeito de justificarem uma aliança que não podia deixar de ser vista como espúria.
O composto ideológico liberal-democracia, tão caro aos governantes do ocidente, não prestava, claro está, por causa do parceiro Estaline que o não seguia, mas a simples tabuleta Democracia, porque não?
O ditador soviético aproveitava habilmente a oferta. Não continha ela o reconhecimento implícito de que o seu regime era democrático, isto é, que tinha consigo a vontade do povo, como sempre proclamara?
Estava deste modo encontrado o arranjo necessário para os «quatro grandes» se apresentarem no palco do mundo aos espectadores esparvoados pelas propagandas, como sendo portadores da felicidade universal. E desaparecera, assim, o Liberalismo da linguagem corrente.
Entretanto os anos passaram e à euforia do fim da Guerra sucedeu a desarmonia atual que, para os observadores atentos, não era difícil de prever desde o início. A cisão refletiu-se logo no restabelecimento de terminologias diferentes para um e outro lado. Os governos marxistas chamaram a si o título pleonástico de «democracias populares» e os outros passaram a chamar-se «democracias pluralistas».
Concretamente, às «democracias populares» para provarem que são democracias, continua a faltar-lhes a votação popular justificativa. Frente às «democracias pluralistas» mantém-se a objeção do seu «pluralismo» ser arbitrariamente limitativo, excluindo certos partidos.
Quem examinar um a um os governos que se apelidam de democráticos encontrará em muitos, na sua origem, ou no seu exercício, a negação do princípio democrático.
Naturalmente que um governo pode perder, no exercício, a democraticidade de origem, como pode acontecer o inverso, ganhar no exercício a democraticidade que não esteve na sua origem. Em qualquer caso o único padrão autêntico da Democracia é sempre o voto. Para cada regime e governo há que verificar se, em votação livre, dispõe do apoio maioritário do povo. Se o tiver, será veridicamente democrático esse regime ou esse governo, seja de que forma for; se o não tiver em caso nenhum poderá considerar-se democrático. É impossível fugir daqui.
E porventura poderia conceber-se uma democracia que desprezasse ou contrariasse a vontade expressa do povo?
Estamos numa forma de Democracia que tem como base os partidos políticos. Anda por aí muito expendida a ideia, errada ideia, de que a Democracia é inseparável do jogo dos partidos. Mas esta convicção está em flagrante contradição à essência da democracia!
Se à vontade popular antepomos e sobrepomos sistemas predeterminados e obrigatórios, e é o caso, como parece do regime de partidos, então é evidente que não existe o direito de escolher formas de governo e, portanto, que não existe um poder democrático.
É imperioso que a inteligência do Homem-Novo denuncie o preconceito abstruso de que a Democracia tem de restringir-se, inevitavelmente, a uma forma taxativa, fixa, imutável - a dos partidos políticos, estes, que há século e meio tão maus resultados nos têm dado. Torna-se forçoso banir esse obscurantismo.
É necessário libertar a Política dos falsos dogmatismos que iludem o espírito e bloqueiam a marcha ansiosa dos povos na procura de melhores métodos de vida social.
Sim!, há outras modalidades de Democracia.
As páginas que se seguem são de sereno estudo, de análise e de reflexão, tendentes à definição de uma Nova Ordem Política.
A constituição de uma ordem política atualizada, recetiva aos ensinamentos das experiências vividas, cremos que é hoje a mais instante exigência do Bem-Comum Nacional. Uma solução verdadeiramente alternativa.
Democracia, simplesmente dita, ou pleonasticamente adjetivada de popular, democracia individualista, ou democracia orgânica, democracia como substantivo, é um rótulo comum que tanto tem sentido para designar o tradicional rotativismo inglês como os esquerdismos «progressistas» (pseudo progressivos), a sociedade capitalista americana, como os monopólios totalitários dos Estados comunistas, o pluripartidismo dos países europeus do ocidente, como as ditaduras de partido único de leste, as autocracias vitalícias de algumas nações, como a anarquia de outras, etc., etc.
A confusão tem sido grande e vem de longe. Já Alexandre Herculano, o desiludido Herculano da invasão do Mindelo, deixou dito, com a franqueza que lhe era peculiar: «tenho lido muitas vezes a palavra democracia; tenho-a ouvido proferir outras tantas. O que nunca li nem ouvi, foi uma definição precisa e rigorosa dela. Não falo, já se vê, da definição filológica do dicionário». [Cartas, tomo I, p. 209 ]
Na renovada popularidade que o desfecho da última guerra mundial lhe proporcionou, a «Democracia» emergiu triunfalista dos destroços e do confusionismo, revestida de uma concepção mítica; por conseguinte ainda mais indefinida e nebulosa do que nunca; e além disso contraditória nalgumas modalidades em que se apresenta, todas elas intituladas igualmente de democráticas. Mas se efetivamente, não se consegue ver definida formalmente a Democracia, isto é, fixá-la numa única forma padrão, há que aceitar essa realidade, compreendê-la, interpretá-la e daí concluir.
Para tratar da Democracia torna-se necessário, antes de tudo, apreender o seu sentido e partir dele, com uma noção firmada, para o campo concreto da política formal. Portanto põe-se-nos, à partida, esta questão basilar: o que deve entender-se por Democracia?
A esta pergunta responde o conceito universalmente aceite: diz-se que existe democracia quando o governo do povo é conforme à sua vontade.
De outro modo: a vontade do povo é soberana, é a fonte da legitimidade dos governos, nada se lhe podendo antepor ou sobrepor-se-lhe.
Daqui resulta imediatamente que o conceito de Democracia não pode condicionar-se ou submeter-se a um determinado formalismo, mas sim, e unicamente, ao consenso popular. O que caracteriza e autentifica a Democracia é, exclusivamente, a estrita obediência ao querer do povo.
A imposição de um único e predeterminado regime governativo é, claramente, antidemocrática, pois que de antemão retira ao povo o poder e a liberdade de escolher, isto é, nega-lhe a elementar soberania, a qual é o princípio inalienável da Democracia.
E então é caso de perguntar: que outro poder se pode invocar para tal, acima e a anteceder a vontade do Povo?
Em nome de que espécie de poder democrático (note-se bem, de poder democrático) se pode coartar, constranger ou anular a soberania do povo? Haverá uma resposta a esta pergunta?
De uma simples observação ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, a um especificado regime.
Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.
Contra, ou fora disto, sob invocação democrática, tudo será contrafação, falsificação, ou sofisma da Democracia.
Politicamente vive-se uma ilusão de democracia. Ao povo limita-se a opção dentro da concorrência eleitoral estabelecida entre partidos políticos, mas na realidade subtrai-se-lhe o primeiro direito democrático, que é o de dizer se é o regime de partidos políticos que quer ou se prefere um regime diferente. Esta circunstância assemelha-se a um caso anedótico. Num restaurante moderno anuncia-se em grandes letras luminosas que o cliente tem a faculdade de escolher a comida que mais lhe agrade, mas o criado põe-lhe nas mãos uma lista da qual constam vários pratos, cozinhados diferentemente, é certo, apresentado com nomes diversos e atrativos, mas somente da mesma espécie de peixe - carapaus. Poderá elegê-los em frituras, em assado, de escabeche, etc., mas sempre carapaus, como nas eleições pode eleger um partido da esquerda, da direita, do centro, dos «ultras», etc., mas sempre um partido político. A tais limites se confina a soberania do povo nas democracias mais liberais que por aí há.
Estamos defronte de um ponto crucial que importa olhar com clarividência.
A opinião perentória dos profissionais da política é a de que a Democracia é inseparável da forma partidocrática; de que esta lhe é inerente; que somente pode conceber-se como democrático o regime dos partidos políticos, e que apenas deste pressuposto em diante funciona a soberania do povo.
Esta restritiva maneira de ver implica logo um contrassenso: o de forçar a aceitação democrática do regime partidarista, ainda que seja do desagrado do povo, ainda que repudiado por ele.
A questão é fácil de esclarecer. Basta que não nos alheemos da definição de Democracia. Democrático, em cada tempo e em cada lugar, será o regime que o povo, nesse tempo e nesse lugar, quiser, e só esse.
Pode, decerto, a partidocracia ser regime democrático se tiver por si o voto aprovativo do povo, mas pode não o ser, se tiver contra si o voto do povo.
É exclusivamente o ditame do povo que confere e atesta a democraticidade ao Estado e à governação. Resulta, portanto, que qualquer esquema de governo é suscetível de ser democrático, ou não o ser, agora ou no futuro, aqui ou além. É o povo, com o seu voto pleno, que tem poder idóneo para o dizer.
Se, na verdade, o conceito de Democracia não está, nem pode estar adstrito a uma exclusiva forma de governo, temos por bem de concluir que a aparente confusão inicial desaparece.
Pese a quem pesar, tanto poderá ser legitimamente democrático o capitalismo liberal americano, como o comunismo ou o fascismo, os pluripartidarismos, como as ditaduras de partido único, desde que, é bem de ver, obedeçam à condição de derivarem da vontade livremente expressa dos respetivos povos. Esta é a cláusula obrigatória que importa bem assegurar. A observação insofismável deste requisito é que é indispensável para que tal governo ou tal regime se considerem democráticos. Com o que dizemos não se escandalizem os inimigos de todas as opressões políticas! Crer que a Democracia é, por doutrina, penhor da liberdade de opinião mostra um erro de ignorância. Revela que se confunde Democracia com Liberalismo. Noutro lugar ["Liberalismo", in Às Portas da Cidade - Crítica e Doutrina, Lisboa, 1976, pp. 33-38] já tivemos oportunidade de apontar a categórica distinção, de conteúdo e de objetivos, das duas ideologias. A Democracia consagra o absolutismo das maiorias; o Liberalismo preocupa-se em defender os direitos das minorias.
Passando do domínio da teoria à prática, a história dos povos a cada passo vai demonstrando que a Democracia, e nas formas mais genuínas, pode não ser respeitadora das liberdades políticas. Para avivar ideias basta que recordemos duas páginas de incontestável realismo.
A primeira, colhida da Revolução Francesa, pioneira mundial das democracias modernas, a mais eloquente imagem da democracia direta, a que alguns chamam a autêntica, a qual teve o seu expoente mais significativo na época da Comuna. Nela, como se sabe, foram completamente postergados não só os direitos cívicos, as liberdades políticas, como juntamente as mais elementares prerrogativas humanas. Lembre-se, por exemplo, este mandato: «O Tribunal criminal estabelecido em Arras julgará em primeiro lugar, revolucionariamente, os acusados que se distinguem pelos seus bens ou possibilidades». Comenta o eminente historiador Pierre Gaxote: «Os seus bens ou possibilidades! São suspeitos os que possuem e são suspeitos ainda os que podem vir a possuir. Desta maneira a guilhotina não pára. Em seis semanas foram executados, em Cambrai, 149 cidadãos e 392 em Arras» (A Revolução Francesa, Porto, 1945, p. 265; Pierre Gaxote, La Révolution française, Paris, Arthème Fayard, 1928, pp. 380-381].
Depois da de Luís XVI, muitos milhares de cabeças inocentes caíram por toda a democratizada França, em espetáculos horrendos de selvajaria. Cumprindo-se o adágio dos tempos, a Revolução acabou por devorar os seus próprios chefes. Danton e Robespierre, cabecilhas responsáveis e discricionários da plebe, tiveram a mesma sorte das suas vítimas degoladas.
Desta página, em que a Democracia foi tragédia ignominiosa de sangue e de morte, passemos à outra, radicalmente diferente, mas onde, também, a liberdade das oposições foi letra morta - a democracia nazista.
Radicalmente diferente porque o seu advento se processou na ordem constitucional. Democracia porque, vencedora de eleições insuspeitas (realizadas por um governo ao qual era oposição), o poder foi-lhe entregue em conformidade com as regras democráticas. Se, relativamente à página anterior, a invocação da atmosfera revolucionária que a França sofreu pode ter algum cabimento, a Alemanha nazi formou-se em completa e indiscutível constitucionalidade. Hitler foi encarregue do governo pelo Presidente da República na consequência naturalíssima de o seu partido ter alcançado a maioria. A sua legitimidade democrática foi perfeita.
Outro tanto não se pode dizer de qualquer de todos os regimes comunistas existentes, apesar de se autodenominarem «Democracias populares», porque não provieram de eleições, porque foram impostos pela força, e na maior parte dos casos impostos e sustentados por exércitos estrangeiros. E, sobretudo, porque lhes falta, a autentificá-los, a aprovação voluntária e livre dos seus povos, condição esta indispensável da Democracia.
Mas, voltando ao fenómeno alemão, uma vez governante Hitler ilegalizou todos os outros partidos? Foi uma realidade, como foi uma realidade tê-lo feito com fundamento democrático, isto é, com o apoio maioritário do povo alemão que, ao elegê-lo, elegeu, ipso facto o ideário político que iria ser posto em prática.
Foi uma ditadura partidária o governo hitleriano? Mas quem poderá afirmar que uma ditadura não é democrática se ela for a expressão política da vontade da maioria?
A questão está bem clara. O poder em Democracia não se identifica necessariamente com o acatamento da liberdade política e pluripartidária.
Nesta «Democracia exemplar» que vai arruinando Portugal, não é verdade que, logo à partida, foram declarados inconstitucionais, ou ilegais, e proibidos, alguns partidos de «direita»? E qual o pretexto aduzido? O espantoso e cínico pretexto de que esses partidos seriam contrários às liberdades partidárias... Desta singular maneira provava a «exemplar democracia portuguesa» o seu amor às liberdades políticas!... E, todavia, não se interditou o estalinismo que, toda a gente sabe, significa totalitarismo de partido único.
Afinal foi isto Democracia, ou não?
Seriamente cremos que sim, a acreditarmos na vaga popular de adesão ao 25 de Abril que por aqueles dias se levantou. A questão é sempre a mesma: onde existe vontade maioritária do Povo, existe Democracia.
A ideologia que se arvora como defensora e garante dos direitos das oposições e da permanência das liberdades, é o Liberalismo.
Era costume no século XIX e nos princípios deste falar-se em Liberal-Democracia. Reconhecia-se então a necessidade de corrigir a doutrina democrática, no tocante ao seu fluir automático para os despotismos das maiorias. A par da Democracia, o Liberalismo deveria ter esse efeito preventivo. Assim se pensava. Breve, porém, se verificou a sua incapacidade, porque o fator democrático, na feição partidocrática em que se exercia, era muito mais forte do que o fator liberal e sobre este predominava, à vontade. Não que, para isso, lhe fosse preciso sair da legalidade, visto que, no Parlamento, as leis convenientes eram aprovadas pela sua maioria.
Na prática o Liberalismo não resultava quanto era desejado, mas em todo o caso permanecia como uma afirmação de princípios e representava uma barreira moral. A expressão liberal-democracia tem, pois, um sentido profundamente diferente daquele que se extrai do simples vocábulo Democracia.
Nos anos 40 deu-se uma curiosa mutação. Embora confessando-se fiéis aos seus princípios, os políticos do ocidente deixaram de usar a expressão Liberal-Democracia, bastante significativa, para falarem singelamente de Democracia, palavra imprecisa e dúbia. Porquê? Ora há aqui uma historieta. Exatamente tornava-se-lhes útil aproveitar essa imprecisão, essa dubiez. Aliadas numa guerra a que não tardaram em revestir de uma feição fortemente ideológica, abraçadas na vitória final, as liberais-democracias ocidentais e a campeã americana, com a antípoda Rússia, antiliberal e totalitarista, haveriam de inventar qualquer coisa, qualquer ideal aparentemente comum, que servisse para se apresentarem irmanadas, no jeito de justificarem uma aliança que não podia deixar de ser vista como espúria.
O composto ideológico liberal-democracia, tão caro aos governantes do ocidente, não prestava, claro está, por causa do parceiro Estaline que o não seguia, mas a simples tabuleta Democracia, porque não?
O ditador soviético aproveitava habilmente a oferta. Não continha ela o reconhecimento implícito de que o seu regime era democrático, isto é, que tinha consigo a vontade do povo, como sempre proclamara?
Estava deste modo encontrado o arranjo necessário para os «quatro grandes» se apresentarem no palco do mundo aos espectadores esparvoados pelas propagandas, como sendo portadores da felicidade universal. E desaparecera, assim, o Liberalismo da linguagem corrente.
Entretanto os anos passaram e à euforia do fim da Guerra sucedeu a desarmonia atual que, para os observadores atentos, não era difícil de prever desde o início. A cisão refletiu-se logo no restabelecimento de terminologias diferentes para um e outro lado. Os governos marxistas chamaram a si o título pleonástico de «democracias populares» e os outros passaram a chamar-se «democracias pluralistas».
Concretamente, às «democracias populares» para provarem que são democracias, continua a faltar-lhes a votação popular justificativa. Frente às «democracias pluralistas» mantém-se a objeção do seu «pluralismo» ser arbitrariamente limitativo, excluindo certos partidos.
Quem examinar um a um os governos que se apelidam de democráticos encontrará em muitos, na sua origem, ou no seu exercício, a negação do princípio democrático.
Naturalmente que um governo pode perder, no exercício, a democraticidade de origem, como pode acontecer o inverso, ganhar no exercício a democraticidade que não esteve na sua origem. Em qualquer caso o único padrão autêntico da Democracia é sempre o voto. Para cada regime e governo há que verificar se, em votação livre, dispõe do apoio maioritário do povo. Se o tiver, será veridicamente democrático esse regime ou esse governo, seja de que forma for; se o não tiver em caso nenhum poderá considerar-se democrático. É impossível fugir daqui.
E porventura poderia conceber-se uma democracia que desprezasse ou contrariasse a vontade expressa do povo?
Estamos numa forma de Democracia que tem como base os partidos políticos. Anda por aí muito expendida a ideia, errada ideia, de que a Democracia é inseparável do jogo dos partidos. Mas esta convicção está em flagrante contradição à essência da democracia!
Se à vontade popular antepomos e sobrepomos sistemas predeterminados e obrigatórios, e é o caso, como parece do regime de partidos, então é evidente que não existe o direito de escolher formas de governo e, portanto, que não existe um poder democrático.
É imperioso que a inteligência do Homem-Novo denuncie o preconceito abstruso de que a Democracia tem de restringir-se, inevitavelmente, a uma forma taxativa, fixa, imutável - a dos partidos políticos, estes, que há século e meio tão maus resultados nos têm dado. Torna-se forçoso banir esse obscurantismo.
É necessário libertar a Política dos falsos dogmatismos que iludem o espírito e bloqueiam a marcha ansiosa dos povos na procura de melhores métodos de vida social.
Sim!, há outras modalidades de Democracia.
As páginas que se seguem são de sereno estudo, de análise e de reflexão, tendentes à definição de uma Nova Ordem Política.
A constituição de uma ordem política atualizada, recetiva aos ensinamentos das experiências vividas, cremos que é hoje a mais instante exigência do Bem-Comum Nacional. Uma solução verdadeiramente alternativa.
O VALOR DO VOTO
Dizem os cartazes democráticos: «O voto é uma arma na mão do povo». E, na verdade, uma arma potentíssima, pois que do voto se faz depender inteiramente a orientação a seguir na vida nacional.
Como para todas as armas, é necessário saber usá-la, sem o que se torna perigoso o seu uso. Desastres dramáticos, catástrofes irreparáveis podem resultar de uma imprevidência ou da ignorância do seu manejo. Ponto delicado este.
O voto geral, igualitário, é o princípio e a base da Democracia dos partidos políticos. A maioria numérica dos votos manda e, por doutrina, é indiscutível a obediência que lhe é devida. Quer isto dizer que o democratismo acredita plenamente, e por igual, na competência de todos os votantes, isto é, confia na sua sabedoria política; porque consultar os indivíduos por meio do voto e tomar como boa a opinião emitida, pressupõe isso mesmo, que se lhes reconhece a necessária idoneidade para o fazer. Não partir deste princípio seria uma incomensurável estupidez, porque equivaleria a pedir à ignorância em pessoa, uma resposta sábia. Mas a teoria democrática do sufrágio geral e igualitário é claro que pressupõe uma esclarecida consciência na resposta dos votos: consciência dos problemas que abarcam os complexos aspetos da Política na diversidade de cada uma das suas componentes, sobre filosofia dos sistemas, organização do Estado, modelos de sociologia, métodos de economia, etc., etc. Crê, assim, num suficiente nível de cultura política - necessariamente humanista -- da massa eleitoral. Não o cremos nós. E daqui, ab initio, a nossa discordância com este género de eleições.
Onde estará a razão?
Porventura será crível que a massa popular, ao menos na sua maioria, possua preparação cultural bastante para pronunciar-se responsavelmente sobre as matérias sumamente importantes e decisivas que, implicitamente, são pedidas no ato, aparentemente simples, de deitar um papel numa caixa?
Não será difícil responder a esta interrogação, que é fundamental. Cada um de nós conhece centenas ou milhares de pessoas com quem convivemos dia a dia, desde o contínuo da repartição, do trabalhador rural, dos operários da construção e serventes, dos empregados do comércio, etc., etc., e, infelizmente para o caso, podemos subir à vontade na escala social, até aqueles, e àquelas, que possuem um qualquer curso de instrução. São pessoas das mais variadas profissões e de diversos sectores sociais. De todas, quantas delas leem, ou leram, livros e revistas doutrinários de sociologia, de economia, de política geral, enfim, interessadas em se documentarem, com espírito analítico e crítico, capaz de informarem solidamente uma opinião?
Quantas pessoas, dessas centenas ou milhares, têm um conhecimento suficiente da problemática política para legitimar a sua opção de voto?
Quantos votantes têm consciência do alcance do seu ato de votar?
Entre milhares - e lembremo-nos do nível dos eleitores conhecidos na nossa aldeia, no nosso meio de trabalho, na rua da nossa vila ou cidade - quantos seriam capazes de justificar e manter em termos de compreensão a sua opinião expressa no boletim de voto?
A teoria do democratismo, pelo dogma do absolutismo da Igualdade, toma como certo que todos os votos têm o mesmo valor, por isso que lhes dá um valor numérico.
E realmente esta concepção corresponde à verdade?
Na «ciência» do sufrágio geral igualitário admite-se como de igual capacidade e com o mesmo merecimento, tanto o voto de um sábio, como o de um ignorante, tanto o de um homem inteligente, como o de um idiota. Admite-se este pasmoso disparate na mitologia do democratismo, mas, paradoxalmente, não o admitem na vida prática os seus teorizantes ou mitólogos. O escritor inglês Aldous Huxley apontou a este fenómeno o seguinte comentário que, embora comezinho, contém uma hábil força de comunicação. «Que todos os homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez, o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Os editores não imprimem todas as obras que lhes chegam às mãos. E quando são precisos funcionários públicos, até os governos mais democráticos fazem uma seleção cuidadosa entre os seus súbditos teoricamente iguais. Em tempos normais, portanto, estamos perfeitamente certos de que os homens não são iguais. Mas quando, num país democrático, pensamos ou agimos politicamente, não estamos menos certos de que os homens são iguais. Ou, pelo menos - o que na prática vem a ser a mesma coisa - procedemos como se estivéssemos certos da igualdade dos homens». (Sobre Democracia e outros Estudos, pág. 17.)
Esta tese do igualitarismo coloca-nos defronte do ponto basilar do democratismo que a Europa obscurecida teima em seguir, e que deslumbra a mediocridade do nosso país.
Ao menos se os eleitores válidos constituíssem uma maioria que, em última hipótese, pudesse neutralizar a invalidade dos restantes... Mas, lamentavelmente, todos sabemos que não.
E então neste panorama corrupto e crítico do votismo, que ideias nos ficam para pensar?
Que outro modo de fazer eleições para que estas, sendo praticadas por toda a população, o fossem com conhecimento de causa?
Que alternativa séria se nos apresenta?
Existe, na realidade, um processo que possa transformar os votos moralmente inválidos do democratismo, em votos idóneos? Este, o caminho. E temos nele uma proposta a considerar.
Entendemos que o sufrágio universal igualitário será de manter apenas em relação a assuntos especificados que, por sua natureza, sejam acessíveis à generalidade dos cidadãos (caso de referendos, por exemplo). No mais, que as votações, abrangendo, sim, a totalidade dos cidadãos, sejam diferenciadas e parceladas em conformidade com as aptidões e as vivências dos votantes. Desta forma se respeitarão as potencialidades reais do voto.
Cada um, por menor que seja a sua capacidade de formar opinião a respeito das questões da Coisa Pública Nacional, de certeza que será capaz de opinar, espontâneo e convicto, não só sobre as questões da pequena coisa pública, que é a comunidade em que se movimenta, mas também sobre os seus vizinhos, porque não deixa de ter, delas e deles, a sua própria maneira de ver.
Não custa a perceber que, por exemplo, um agricultor iletrado da raia transmontana se sinta muito embaraçado para, motu próprio, escolher quatro ou cinco deputados à Assembleia da República, e ainda mais, obviamente, ao ser chamado a eleger um Presidente, como também não custa a perceber que o mesmo, e sem grandes dificuldades, fundamente preferências na votação de representantes da associação agrícola a que pertence, a fim de tratarem dos problemas e dificuldades que lhes são comuns. Igualmente no que diga respeito a outros interesses do espaço regional que conhece.
A visibilidade política e social das pessoas é variável e dependente de fatores intrínsecos. Transpondo os limites desses fatores de visibilidade, corre-se o risco de votar «às cegas». E este é o primeiro defeito e nele está o perigo imanente do sufrágio geral igualitário.
Não se deduza apressadamente que pensamos em coartar o direito de voto a algum estrato social. O que nos preocupa é tornar o voto no que deve ser: num ato consciente, voluntário, interessado.
O menosprezo, o alheamento do voto, se não gera abstenção, permite que ele seja manobrado. E o voto que se dá, ou que se troca por qualquer coisa. Contrariamente, a consciencialização do ato de votar dificulta ou impede a manipulação por parte dos agentes partidários, o fator que mais desvirtua a eleição. Votos conduzidos não serão de esperar de eleitores que sabem o que querem, e por que querem. Pela mesma razão não cabem aí influências comicieiras e demagógicas. Os comícios propagandísticos, nos termos em que habitualmente são feitos, agem pela impressão das ideias primárias, pela emoção que os oradores possam causar, pelo aliciamento das promessas vãs, e não pelos fundamentos seguros da ciência, da experiência, ou do raciocínio inteligente. Dirigem-se aos eleitores sem opinião formada, e, na maioria, incapazes de formar uma opinião própria. Estes, sem opção formada, deveriam, em boa doutrina, quedarem-se na abstenção. Pois o que se verifica é que esta massa flutuante, impreparada para votar, hesitante por isso mesmo às solicitações dos partidos é, não raramente, a que faz desequilibrar a balança eleitoral, a que, induzida pelos últimos apelos propagandísticos, acaba por decidir dos resultados.
Quantas vezes, contrariando previsões e sondagens, são os indecisos que ditam inesperadas vitórias! Cautelosamente já as Galups costumam precaver-se nos seus cálculos, fazendo-os subordinar, em última hipótese, ao acaso dos votos dos eleitores irresolutos e vacilantes até ao derradeiro momento.
E então, diga-se com franqueza, pode admitir-se como bom um sistema de votação dependente de incógnitas de semelhante natureza?
Nesta conjuntura ou, antes, nesta disjuntura apresentam-se de imediato dois caminhos a seguir: ou adaptar a população às exigências do sistema, ou adaptar o sistema às faculdades da população. O primeiro caminho é o apontado pelos dogmáticos do sistema; o segundo é, a nosso ver, o que atende às realidades. Em face do primeiro caso parece sensato que o sistema (puramente teórico) nunca deveria ser aplicado antes de conseguida a necessária preparação das pessoas a que se destinava.
O primeiro caminho, ainda hoje defendido, fia-se no «progresso indefinido» e na crença de que será, não só possível, como não muito afastado o tempo em que a população adquira um nível pessoal de cultura equivalente, capaz de justificar a igual valorização dos votos.
Semelhante nivelamento jamais passará de uma utopia. Não poderia imaginar-se senão feita por baixo e, portanto, não comportaria a existência de elites. Mas como seriam possíveis uma instrução e uma cultura sem elites, um ensino sem mestres?
Pôr todas as cabeças no mesmo nível, cortando aos de espírito superior os seus dons intelectivos e a curiosidade intuitiva de saber?
Repare-se como não se pode condescender muito com estas ideias sem entrar nos domínios do ridículo e do absurdo.
Esse nivelamento era o que Rousseau citava, logo à entrada do «Contrato Social», como lógico e indispensável para fundamentar a sua teoria democratista, todavia nivelamento em que, paradoxalmente, não acreditava. E assim prevenia que ninguém pensasse em pôr em prática as suas ideias, pois que não eram imaginadas para os homens, a não ser que se desse o impossível de todos se tornarem sábios e santos.
Mas deixemos as fantasias loucas e sigamos o segundo caminho, o que nos leva ao centro da vida coletiva. Aqui, cada português, fixado numa cidade ou na província, situou as suas atividades, criou interesses, integrou-se no meio, sentindo física e espiritualmente os cuidados comuns da sua gente. Aqui traçou os projetos do seu desejo, levantou as esperanças do seu futuro, ligou-se à terra e ao trabalho, aqui, em suma, montou o seu viver. Não importa a projeção da sua personalidade, se grande, se pequena, mas a vivência pessoal e o fenómeno de osmose social a que está sujeito. Este, o protótipo do cidadão trabalhador.
Não é, seguramente, conhecedor de estudos de filosofia político-social e nem sequer se dará conta das subtilezas de certas propagandas partidárias, mas, em compensação, conhece bem os problemas das suas ocupações, as necessidades da. terra em que reside, as qualidades pessoais dos seus vizinhos.
Não possuirá preparação suficiente para votar em esquemas ideológicos e sentirá ser-lhe estranho escolher desconhecidos como deputados políticos pelo círculo eleitoral que Ihe destinaram e que também não conhece na sua extensão.
Mas teria consciência - isso sim! - no uso do voto se este se referisse às coisas e às pessoas do meio em que se move e com as quais está diretamente relacionado. Estaria apto a escolher, como representante, um camarada de trabalho, no seu sindicato, um colega da profissão que exerce, um consócio da sociedade ou do clube em que está inscrito, um agremiado de associação agrícola, comercial, industrial a que pertence, etc., como uns conterrâneos para a Junta de Freguesia, ou outros para camaristas do Município.
A competência requer saber e conhecimento. Por sua vez a ignorância e o desconhecimento geram a incompetência, mãe de todos os erros, origem de muitos males.
Aí está a ideia do voto certo, do voto idóneo!
O voto consciente há de ser exercido na alçada da compreensão do votante.
Não pode conceber-se competência para votar fora do espaço conhecido de quem vota. E, todavia, concebe-a a teoria do sufrágio universal igualitário! Teoria cretina porque além de irracional é irrealista.
Evidentemente que um novo e lógico conceito de votar está subjacente à demolidora crítica que ao atual sistema move, de há muito, o pensamento culto dos sociólogos. O sufrágio massificado, de que o democratismo propiciamente se sustenta — e em que simultaneamente se avilta! - será forçado, pela verdade e justiça dos tempos, a dar lugar a um sufrágio fracionado, particularizado, especificado. O círculo comum do voto deverá ser substituído por círculos diferenciados, estabelecidos em equilíbrio pelas afinidades regionais, profissionais, ou de ordem espiritual dos votantes. Então será chamado a um lugar proeminente o sindicalismo, lugar a que tem direito e que sempre lhe tem sido negado, ou, para melhor dizer, de que sempre foi espoliado. Adiante nos ocuparemos particularmente deste assunto.
É de prever que o projeto defronte uma oposição de vida ou de morte da parte do poder oligárquico dos dirigentes dos partidos políticos. O motivo dessa oposição salta a vista. Tornando-se, pelo modo descrito, consciente e interessado o voto popular, deixando de fazer-se em massa desorganizada, para se efetuar em órgãos sociais de natureza específica, deixará automaticamente de ser manobrável. De serventuário e dependente dos partidos políticos, o voto específico passa a gozar da autonomia que lhe é devida.
E os partidos? - estou a ouvir, aqui do lado, a pergunta... Pois os partidos políticos, «parceiros sociais» que são, elegerão, como os outros, entre os seus filiados, deputados próprios à assembleia legislativa. Nada mais simples, nem mais natural, nem mais justo. Necessariamente isto pressupõe uma nova conceção do papel dos partidos e da Representação Social. Noutro lugar teremos ocasião de nos determos nestes pontos.
PARTIDOCRACIA
O regime correntemente chamado democrático, estruturado, como o vemos, nos partidos políticos não goza da exclusividade de ser a Democracia. Pode ser, tão somente, uma sua forma ou variante, a da partidocracia, o que é bastante diferente. Rigorosamente, democracia e partidocracia são de essências distintas, inclusive com tendência a antagonistas. E senão observemos como se formam partidos políticos. Estes caracterizam-se pelo seu ideário social, económico, político propriamente dito, etc. Têm a sua origem, portanto, em ideias. Ideias que filósofos ou pensadores criaram e com as quais construíram teorias. Teorias que profissionais da política perfilharam e sistematizaram em programas de partido. Provêm os partidos, por conseguinte de elites do pensamento e do estudo, de pequenos grupos de líderes, por vezes apenas de oportunistas, lançados do campo especulativo para a ação prática. E assim como começam os partidos, assim irão seguindo, sempre dirigidos por um restrito grupo de elementos de escol do pensamento ou de ação. À massa popular de aderentes e filiados cabe o papel de apoiantes; aos diretórios, a função de comandarem.
Os partidos políticos constroem-se, pois, de cima para baixo. E mantêm-se da mesma forma, conduzidos de cima. As personagens das cúpulas constituem uma classe dentro do partido, distanciadas da classe popular das bases.
Dir-se-á que se organizam congressos e plenários, abertos a todos os filiados, para livre discussão e votações? Porém, e como é natural, tais congressos ou plenários são organizados pelos dirigentes e, naturalmente, também, manipulados por eles nas moções adrede apresentadas à votação. De qualquer maneira facto bem notório é que o poder dos partidos políticos anda sempre na mão de poucos - os dirigentes - e que, por conseguinte, a política do país será sempre manobrada por umas dezenas de indivíduos, no conjunto. A partidocracia reduz-se, assim, a uma oligarquia - a dos chefes partidários. E desta forma o regime dos partidos políticos cria uma nova classe de mando - a dos políticos profissionais - limitando-se o povo a desempenhar o papel de comparsa, indispensável nesta encenação de democracia.
Quão longe estamos dos poderes populares de base, sem os quais não se concebe um verdadeiro poder democrático... Poderes populares de base são as autarquias locais (freguesias, municípios, regiões) reconhecidas e operantes nas suas autonomias; são as organizações sindicais, claro está, se libertas de tutelas dos partidos políticos; são as associações económicas, agremiações do comércio, da indústria, da agricultura, etc., são as instituições morais, religiosas, escolares, etc., são, em suma, todos os corpos intermédios da nação. E sobre estas bases que deve ser construído o Estado democrático moderno. Mas quais os seus lugares de direito num Estado estruturado em partidos políticos, como este que vigora? Em algum lugar de representação e de decisão no Estado partidocrático se situa o país que existe, o país que vive e trabalha, o país real?
Não será a partidocracia a negação do país real? Ou, pelo menos, a abstração dele?
Provavelmente, de algum lado, pode objetar-se, citando a contagem total dos votos dados aos partidos, que as eleições mostram estar a maioria da população integrada no regime partidarista. Responderíamos que esta objeção, ou este argumento, sofre de uma distorção. As votações nos partidos não devem ser entendidas como qualquer espécie de referendo sobre a base partidarista do Estado. Votar num partido ou noutro é, no caso, a única alternativa permitida; uma opção condicionada a um âmbito limitado. Votar nestas circunstâncias resume-se, para muitos, a escolher «do mal o menos». É a teoria do «voto útil». E o caso patente nas eleições presidenciais onde os monárquicos, pelo facto de usarem aí o direito de voto, o fazem como cidadãos, simplesmente em razão de uma preferência entre candidatos, sem que esse ato implique uma adesão à forma republicana. Nesta ordem de ideias seria de muito mais interesse conhecer-se quantos portugueses estão filiados nos partidos, a par de quantos portugueses não estão filiados em partidos. Será possível esta revelação? Os números por estes meio colhidos poderiam dizer-nos alguma coisa de mais real sobre a adesão, ou não adesão, do País ao regime de partidos políticos. Aliás restaria sempre uma incógnita, uma natural suspeita sobre quantas filiações seriam sinceras, determinadas por sentimentos ideológicos, ou, por outra, quantas filiações não teriam por móbil fundamentalmente os interesses materiais e oportunistas que as inscrições nos partidos fomentam e satisfazem.
Numa outra dimensão, num plano diferente, para além e acima do contencioso doméstico há, neste capítulo, que ter em conta uma realidade de crescente relevância. Trata-se das ligações e fortes dependências dos principais partidos a associações internacionais. São públicas as ligações e de consideráveis efeitos essas dependências. As internacionais - comunista, socialista, da social-democracia e da democracia cristã -, assumem atualmente capital importância na política de muitos países. As alienações dos partidos que em cada país lhes pertencem, embora sejam de grau variável, tendem a aumentar em relação às respetivas organizações centrais e quanto mais acentuado é o totalitarismo ideológico da sua internacional, maiores se tornam as dependências de cada partido membro.
Em face das conexões e compromissos desta natureza que transmutam mais ou menos certos partidos intitulados de democráticos e de nacionais em «departamentos» de poderosos organismos externos, é-se levado naturalmente a perguntar se os conceitos de democraticidade e de nacionalidade não sofrerão alterações tais que comprometam a legitimidade daqueles títulos.
Sabendo-se, de antemão, que os partidos são dirigidos pelas cúpulas, e como estas mantêm conúbios com outras cúpulas partidárias de além-fronteiras, ou simplesmente a elas se submetem, o mais elementar espírito de exame obriga, cada vez mais, a reconsiderar em que medida os partidos funcionam efetivamente como representações estrangeiras no país, ou como poderes políticos populares nacionais.
Na verdade obedecem os partidos políticos aos requisitos de um autêntico órgão popular de base, como o será, por exemplo, um sindicato livre, ou uma câmara eleita entre os vizinhos de um município?
Na sequência desta interrogação uma outra se nos põe. Será lógico e será justo que os partidos políticos arrogando-se de toda a representatividade popular, (sendo esta falsa) usufruam de todos os poderes de soberania de aí consequentes? Que sejam eles, e só eles, a constituírem a Câmara representativa e legislativa com comando nos Governos? Isto é a Partidocracia. E acaso corresponderá ela a uma visão realista da vida de um país e do labor quotidiano do seu povo?
A teoria política da partidocracia ignora a existência, na comunidade nacional, de atividades que, pelas suas particularidades e fins específicos, nada têm de comum com partidos políticos e que têm necessidade de direitos de partidos representativos. Citamos desde já o seguinte. Nesta região predominantemente agrícola onde nos situamos a produção significativa é o vinho. Muitos problemas que diretamente lhe dizem respeito, desde a regulamentação do plantio, aos fornecimentos de adubos e pesticidas, à comercialização e à exportação, em cada ano são objecto de diplomas regulamentares emanados de uma Câmara que, pela sua formação estritamente política, é constituída por elementos estranhos à viticultura e ignorantes dos seus problemas. Não há aí uma voz esclarecedora, legitimamente autorizada, a expor as suas razões, as razões do sector populacional diretamente interessado nos assuntos.
Igual e absurda exclusão se aplica aos agricultores em geral, como também à indústria, ao comércio, etc., etc., a todos os sectores da vida económica, laboral, espiritual, social, do país. É óbvia a impossibilidade de os partidos políticos preencherem estas importantíssimas lacunas inconcebíveis de uma sociedade atualizada. Pois, em hipótese, qual seria o partido político representante dos agricultores e o dos industriais, e o das profissões? Acaso algum partido político se poderia identificar com os respetivos interesses específicos?
Porventura algum partido político poderia ajustar-se a uma associação de jornalistas e homens de letras? E ao professorado? E aos quadros técnicos?
Os operários não encontrarão, através do sindicalismo livre, os seus verdadeiros partidos?
Continuar as referências seria o mesmo que mencionar os partidos naturais integrantes da vida social. Estes partidos naturais, ou sindicatos, ou grémios, ou ordens, as associações de diversa natureza, reclamam num Estado de Direito, o lugar que justamente lhes compete na própria estrutura do Estado.
A ideia insofismável de democracia somente se realiza por meio de uma representação completa e legítima. E esta tem de ser uma representação direta, não escamoteada pelos políticos profissionais. A «descoberta» que estes, ultimamente, fizeram dos «Parceiros Sociais», sem deixar de ser desfrutável, é bastante sintomática de ter chegado a hora de substituição do decrépito parlamentarismo, para despontar uma era renovadora.
Os «parceiros sociais» não são senão a prefiguração de um novo sistema representativo. Então, através deste renovado sistema serão apurados os lídimos representantes do povo.
O povo... só por meio das suas organizações próprias, do trabalho e outras, o povo adquire personalidade e autoridade capazes de se fazer ouvir. No sufrágio geral individualista o povo transforma-se em massa constituída por pessoas isoladas, mais influenciáveis às propagandas, por conseguinte, e que, desprovidas de um objetivo que lhes seja peculiar, se tornam presa fácil das formações partidárias.
É altura de dizer que o pluralismo político, que ora nos oferecem como sendo a melhor dádiva do democratismo, serve, sem dúvida, à classe política, mas não serve ao povo. Ao pluralismo partidocrático opomos nós o pluralismo social.
Evidentemente que estas ideias não são do agrado dos senhores da política. É claríssimo. Adiante voltaremos mais detidamente a este assunto, que é basilar no nosso ponto de vista. Entretanto continuemos a apreciar a partidocracia. O que podemos esperar dela? O que nos oferece?
Nas falas autorizadas dos seus catedráticos, oferece-nos, como coisa magnífica, as «alternâncias no poder». Aí temos exatamente o Rotativismo de negregada memória, o qual, nos fins do século passado foi o grande alvo a que se dirigiam as críticas gerais, as invetivas das oposições parlamentares, os ataques preferidos da primeira geração republicana.
Pois, como se nada se tivesse passado na vida do nosso país, aí temos os democratistas de hoje a dizer bem do rotativismo, a elogiá-lo, tal como se tratasse de uma virtuosa novidade.
O heróico «comandante» Paiva Couceiro costumava desabafar: - «Ah, se esta gente conhecesse a história!...» Mas não a conhece. Verdade seja que a gente nova não é inteiramente culpada desta ignorância, pois que uma das primeiras medidas dos desaportuguesados que se apoderaram do mando, na impossibilidade de torcerem mais as deduções que tiravam da história, foi a de suprimirem o seu estudo nas escolas. Eles bem sabiam porque o fizeram.
Apontam-nos a alternância partidária no poder como se daí resultasse o bem do país? Mas em que consiste essa alternância do poder? Quando muito, na substituição de um projecto governamental por um outro, que, por sua vez, há de ser substituído por um diverso, e assim sucessivamente; projetos sem viabilidades de execução, pois que as próprias alternâncias se encarregam de as tornar impossíveis, por carência de tempo para o efeito necessário.
Alternância do poder, em partidocracia, assemelha-se a um fazer e desfazer de feira, sempre com os mesmos altifalantes e os mesmos locutores, em aliciantes ofertas de concorrência. É um passar de governo a oposição, de oposição para governo, e assim por diante, numa luta permanente. Mudanças a breves prazos, porque as ações governativas responsabilizam, desgastam, nunca satisfazem em tudo, e, consequentemente, acarretam perdas de votos, e as oposições, na atitude favorável e sempre lucrativa de críticas, crescem para o poder com facilidade.
A alternância no Poder (é intolerável que se esqueça!) tivemo-la nós, na máxima perfeição, durante a 1ª República. De 1910 a 1926, nesses dezasseis anos de exemplaríssimo regime de alternâncias, contaram-se quarenta e tantas mudanças de governo, o que deu para cada ministério a duração média de quatro meses e meio, aproximadamente. Porventura se poderá querer melhor? Pois foi precisamente dessa cadência desaustinada (que, todavia, a classe política «deste país» parece não ver!) que se gerou a reação natural do «28 de Maio».
Vamos assistindo nesta 3ª República a uma reedição formal da 1ª República: análogos os métodos, as mesmas falsas alternativas, igual supremacia dos interesses pessoais e partidários sobre os interesses da comunidade, num mortal afundamento nacional. E tudo está esquecido, de que as mesmas causas, no mesmo meio, produzem os mesmos efeitos.
Com uma impressionante infantilidade, que no adulto vem a exprimir debilidade mental, lembram e alegam os convictos partidocratas que o sistema é bastante capaz de funcionar regularmente, citando como exemplos comprovativos, a Inglaterra e os demais países do norte europeu. Fazem-se esquecidos, porém, de que esses países onde a partidocracia se vai aguentando, mas mal, são de outra gente e de que são monarquias. Duas circunstâncias relevantes a ter na devida consideração. Outra gente, outro o meio social, povos de temperamento diferente dos meridionais. Gente fleumática, mais calma e fria nos seus sentimentos, ponderada nas reacções, conservadora de feitio, gente menos emotiva e menos arrebatada do que a gente latina.
Povos com inteligente compreensão e respeito pelas instituições tradicionais, mais conscientes das realidades, menos dados a fantasias, mais ordeiros, por conseguinte. As disputas eleitorais raras vezes atingem neles as violências que são comuns entre nós outros. Deixam poucas sequelas nas relações sociais, não sujam as paredes das casas, nem conspurcam as pedras dos monumentos. Legalistas por escrúpulo, não fazem revoluções, nem praticam golpes de Estado por hábito. Não são, portanto, estes os países apropriados a fornecerem-nos exemplos de comportamento partidocrático. Esses exemplos devem ser colhidos nos povos da nossa raça. E aí qual é a lição irrefutável dos factos? Pois vejamos isso.
A segunda República espanhola, de regime partidocrático como as nossas, que vigorou de 14 de Abril de 1931 a 17 de Julho de 1936, conheceu 18 governos. Os cinco anos da sua existência dão para cada ministério uma média de vida inferior a 4 meses. Atribulado movimento de alternâncias, como se vê. O prémio, lógico, foi a terrível guerra civil que enlutou a Espanha, e depois uma ditadura.
A França, na 3ª República, em 72 anos, teve 105 ministérios, confirmando as médias, e confirmando também a fatalidade dos resultados. Ao fim, sofreu a mais desastrosa derrota militar da sua história e um regime ditatorial também.
E na Itália? A seguir à Guerra e com o restabelecimento da partidocracia, vai no 41º governo; sem partidos maioritários, atravessando demoradas crises ministeriais, socorre-se do expediente das coligações, cada vez mais difíceis e improfícuas. A nação italiana, sem ordem, sem autoridades que valham, sem segurança pública, campo aberto à violência dos grupos extremistas, lembra, a cada passo, a época do pré-fascismo.
Se nos quiséssemos dar ao trabalho de indagar do que na matéria se tem passado nas Américas, herdeiras do sangue latino e praticantes do democratismo europeu, encontraríamos plena confirmação da regra política: as mesmas causas, nos mesmos meios humanos, produzem os mesmos efeitos.
Mas voltemo-nos para o nosso Portugal, que é o que mais nos importa.
Vai esta 3ª República, partidocrática como a 1ª, jovem de nascimento, velha no espírito nos oito anos de idade e no seu 14º governo (seis provisórios, mais oito constitucionais). A situação caótica do país, em todos os aspetos, fala por si. Aliás os partidos, por umas razões ou outras, pronunciam-se acordes neste sentido, especialmente quando discursam das bancadas da oposição. E, em boa verdade, não poderá acusar-se de isto ter acontecido por insuficiência de mudanças de governo - essas virtuosas alternâncias da boa doutrina democratista. Em 8 anos, 14 ministérios, convenhamos que não vai nada fora da regra dos tempos. Apenas se verifica a outra regra: que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos.
Ao denunciarmos a debilidade e a efemeridade que invariavelmente atingem os governos da partidocracia e os impedem de realizar obras de vulto, ou sequer de traçarem planos de futuro, não se vá supor que, implicitamente, sustentamos algum pensamento de imobilismo. A instabilidade e o imobilismo governativos são ambos produto de partidocracia. A primeira, do pluripartidismo; o segundo, do partidismo único. E não se olvide que o regime de partido único é, logicamente, o estádio final da luta interpartidária, pela vitória do partido mais forte.
A questão determinante é que, entre a desordem administrativa, que é o preço comprovado da liberdade política na partidocracia pluralista e a ordem materialista do partido único, que nos custa a asfixia cívica, isto é, entre o democratismo dos partidos liberais e o democratismo do partido totalitário não temos hipótese de uma boa escolha.
Na crise continuada dos governos, que não é senão a crise permanente do sistema, atua um fator decisivo, o qual está na sua formação especificamente político-partidista. Em partidocracia formam-se governos de conveniência dos partidos que assumem o poder; não se formam governos de competências nacionais. Isto é intuitivo. Os elementos de maior atividade partidária são sempre os escolhidos para dirigir os ministérios e para ocupar os principais lugares do Estado, e estes elementos nem sempre são, para o efeito, os de mais real valor dos existentes no país. Qualidades políticas de propagandistas e de demagogos diferem muito das qualidades de estadistas. Os indivíduos mais dinâmicos, sobressaindo como aguerridos lutadores no parlamento ou nos comícios, podem não ser os mais notáveis no saber ou no pensamento, em suma, os mais categorizados para a acção governativa. E não o são no geral. Contudo o leader político não pode esquivar-se à escolha desses, que foram os diligentes colaboradores no partido, para colaboradores no Governo. Como seria possível se muitos deles, os principais, pelo menos, tinham como certo, e justo, que a tomada do poder pelo partido implicitamente os levava às cadeiras dos ministérios? Acaso não teriam sido eles os destacados obreiros da vitória?
Fazer abortar esses projetos pessoais, cuja efetivação seria para muitos o motivo primordial dos seus empenhamentos no partido, acarretaria, sem dúvida, consequências graves e fáceis de prever em prejuízo do leader e da potencialidade do partido. Hipótese, por conseguinte, que nem o senso comum, nem a observação da prática política justificam.
Invariavelmente, na partidocracia todos os lugares de nomeação reservam-se para os políticos ligados ao partido. E não só os lugares de nomeação como, por impudente artifício, até os de eleição. O artigo 154º da Constituição, que trata da Assembleia da República, é disto comprovativo: «As candidaturas são apresentadas, nos termos da lei, pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação».
Este artigo, como se lê, põe a Assembleia exclusivamente no domínio dos partidos. Impede qualquer tentativa de representação aos portugueses que estão fora das organizações partidárias, e estes portugueses são, mau grado o desejo dos partidocratas, a maioria da população.
Regime que desta maneira exclui a maioria do povo, coloca-se fora da legitimidade democrática e condena-se ele-próprio à ineficácia e à inviabilidade. É o que acontece à nossa atual partidocracia.
As crises no plano ministerial são consequências da crise do regime.
Os valores humanos nacionais, individuais ou de pessoas coletivas, deixam de ser aproveitados para dar satisfação às ambições dos apaniguados dos partidos. É essa a lei inviolada da partidocracia.
Disse alguém de espírito tão inquieto como fulgurante, e cuja amizade muito prezei, que «se é certo haver, e haverá sempre, quem se queira servir dos Partidos como alavanca dos seus interesses pessoais, não se poderá afirmar com justiça que os Partidos não possam ser todavia um ato voluntário, criador de atos de interesse público, uma ideia moral em marcha, uma dedicação, uma fé!
Os Partidos podem encarnar no Povo a expressão da sua colaboração com o Poder. Colaboração tão indispensável como difícil». Porque, em certa medida, assim também o possamos entender é que admitimos o direito da sua presença na Assembleia Representativa juntamente com todos os órgãos sociais de natureza apolítica. A utilidade dos Partidos como Associações cívicas, escolas de estudo para os problemas nacionais, centros de informação permanente da opinião pública, é compreensível. Como provocadores de subversão e como clientelas sôfregas, é que não. Também não monopolistas da representação social e do poder legislativo.
Rolão Preto - é esse alguém de quem falo - escrevia, (Carta aberta ao Doutor Marcello Caetano, 1972) justamente apreensivo, numa encruzilhada de incertezas. O perigo de um golpe extremista marxista adensava-se num horizonte presumível. Tendo «a Política como a arte do possível» e não vendo, para o imediato, outra viabilidade a opor à perspetiva ameaçadora senão a abertura à liberdade dos partidos, Rolão Preto, impulsionado pela sua fé, pensava: - «os Partidos podem ser a ideia que caminha sem cessar rasgando horizontes para que o homem passe». Mas poderão os partidos políticos ser essa «ideia» sincera de esclarecimento, ser «a expressão de uma colaboração com o Poder»? Aqui se inscreve a esperança de uns, a dúvida de outros, a descrença de muitos.
Estamos convictos de que dependerá da resposta que os Partidos forem capazes de dar a estas interrogações a possibilidade do seu enquadramento nas estruturas do Estado Moderno.
Os partidos políticos constroem-se, pois, de cima para baixo. E mantêm-se da mesma forma, conduzidos de cima. As personagens das cúpulas constituem uma classe dentro do partido, distanciadas da classe popular das bases.
Dir-se-á que se organizam congressos e plenários, abertos a todos os filiados, para livre discussão e votações? Porém, e como é natural, tais congressos ou plenários são organizados pelos dirigentes e, naturalmente, também, manipulados por eles nas moções adrede apresentadas à votação. De qualquer maneira facto bem notório é que o poder dos partidos políticos anda sempre na mão de poucos - os dirigentes - e que, por conseguinte, a política do país será sempre manobrada por umas dezenas de indivíduos, no conjunto. A partidocracia reduz-se, assim, a uma oligarquia - a dos chefes partidários. E desta forma o regime dos partidos políticos cria uma nova classe de mando - a dos políticos profissionais - limitando-se o povo a desempenhar o papel de comparsa, indispensável nesta encenação de democracia.
Quão longe estamos dos poderes populares de base, sem os quais não se concebe um verdadeiro poder democrático... Poderes populares de base são as autarquias locais (freguesias, municípios, regiões) reconhecidas e operantes nas suas autonomias; são as organizações sindicais, claro está, se libertas de tutelas dos partidos políticos; são as associações económicas, agremiações do comércio, da indústria, da agricultura, etc., são as instituições morais, religiosas, escolares, etc., são, em suma, todos os corpos intermédios da nação. E sobre estas bases que deve ser construído o Estado democrático moderno. Mas quais os seus lugares de direito num Estado estruturado em partidos políticos, como este que vigora? Em algum lugar de representação e de decisão no Estado partidocrático se situa o país que existe, o país que vive e trabalha, o país real?
Não será a partidocracia a negação do país real? Ou, pelo menos, a abstração dele?
Provavelmente, de algum lado, pode objetar-se, citando a contagem total dos votos dados aos partidos, que as eleições mostram estar a maioria da população integrada no regime partidarista. Responderíamos que esta objeção, ou este argumento, sofre de uma distorção. As votações nos partidos não devem ser entendidas como qualquer espécie de referendo sobre a base partidarista do Estado. Votar num partido ou noutro é, no caso, a única alternativa permitida; uma opção condicionada a um âmbito limitado. Votar nestas circunstâncias resume-se, para muitos, a escolher «do mal o menos». É a teoria do «voto útil». E o caso patente nas eleições presidenciais onde os monárquicos, pelo facto de usarem aí o direito de voto, o fazem como cidadãos, simplesmente em razão de uma preferência entre candidatos, sem que esse ato implique uma adesão à forma republicana. Nesta ordem de ideias seria de muito mais interesse conhecer-se quantos portugueses estão filiados nos partidos, a par de quantos portugueses não estão filiados em partidos. Será possível esta revelação? Os números por estes meio colhidos poderiam dizer-nos alguma coisa de mais real sobre a adesão, ou não adesão, do País ao regime de partidos políticos. Aliás restaria sempre uma incógnita, uma natural suspeita sobre quantas filiações seriam sinceras, determinadas por sentimentos ideológicos, ou, por outra, quantas filiações não teriam por móbil fundamentalmente os interesses materiais e oportunistas que as inscrições nos partidos fomentam e satisfazem.
Numa outra dimensão, num plano diferente, para além e acima do contencioso doméstico há, neste capítulo, que ter em conta uma realidade de crescente relevância. Trata-se das ligações e fortes dependências dos principais partidos a associações internacionais. São públicas as ligações e de consideráveis efeitos essas dependências. As internacionais - comunista, socialista, da social-democracia e da democracia cristã -, assumem atualmente capital importância na política de muitos países. As alienações dos partidos que em cada país lhes pertencem, embora sejam de grau variável, tendem a aumentar em relação às respetivas organizações centrais e quanto mais acentuado é o totalitarismo ideológico da sua internacional, maiores se tornam as dependências de cada partido membro.
Em face das conexões e compromissos desta natureza que transmutam mais ou menos certos partidos intitulados de democráticos e de nacionais em «departamentos» de poderosos organismos externos, é-se levado naturalmente a perguntar se os conceitos de democraticidade e de nacionalidade não sofrerão alterações tais que comprometam a legitimidade daqueles títulos.
Sabendo-se, de antemão, que os partidos são dirigidos pelas cúpulas, e como estas mantêm conúbios com outras cúpulas partidárias de além-fronteiras, ou simplesmente a elas se submetem, o mais elementar espírito de exame obriga, cada vez mais, a reconsiderar em que medida os partidos funcionam efetivamente como representações estrangeiras no país, ou como poderes políticos populares nacionais.
Na verdade obedecem os partidos políticos aos requisitos de um autêntico órgão popular de base, como o será, por exemplo, um sindicato livre, ou uma câmara eleita entre os vizinhos de um município?
Na sequência desta interrogação uma outra se nos põe. Será lógico e será justo que os partidos políticos arrogando-se de toda a representatividade popular, (sendo esta falsa) usufruam de todos os poderes de soberania de aí consequentes? Que sejam eles, e só eles, a constituírem a Câmara representativa e legislativa com comando nos Governos? Isto é a Partidocracia. E acaso corresponderá ela a uma visão realista da vida de um país e do labor quotidiano do seu povo?
A teoria política da partidocracia ignora a existência, na comunidade nacional, de atividades que, pelas suas particularidades e fins específicos, nada têm de comum com partidos políticos e que têm necessidade de direitos de partidos representativos. Citamos desde já o seguinte. Nesta região predominantemente agrícola onde nos situamos a produção significativa é o vinho. Muitos problemas que diretamente lhe dizem respeito, desde a regulamentação do plantio, aos fornecimentos de adubos e pesticidas, à comercialização e à exportação, em cada ano são objecto de diplomas regulamentares emanados de uma Câmara que, pela sua formação estritamente política, é constituída por elementos estranhos à viticultura e ignorantes dos seus problemas. Não há aí uma voz esclarecedora, legitimamente autorizada, a expor as suas razões, as razões do sector populacional diretamente interessado nos assuntos.
Igual e absurda exclusão se aplica aos agricultores em geral, como também à indústria, ao comércio, etc., etc., a todos os sectores da vida económica, laboral, espiritual, social, do país. É óbvia a impossibilidade de os partidos políticos preencherem estas importantíssimas lacunas inconcebíveis de uma sociedade atualizada. Pois, em hipótese, qual seria o partido político representante dos agricultores e o dos industriais, e o das profissões? Acaso algum partido político se poderia identificar com os respetivos interesses específicos?
Porventura algum partido político poderia ajustar-se a uma associação de jornalistas e homens de letras? E ao professorado? E aos quadros técnicos?
Os operários não encontrarão, através do sindicalismo livre, os seus verdadeiros partidos?
Continuar as referências seria o mesmo que mencionar os partidos naturais integrantes da vida social. Estes partidos naturais, ou sindicatos, ou grémios, ou ordens, as associações de diversa natureza, reclamam num Estado de Direito, o lugar que justamente lhes compete na própria estrutura do Estado.
A ideia insofismável de democracia somente se realiza por meio de uma representação completa e legítima. E esta tem de ser uma representação direta, não escamoteada pelos políticos profissionais. A «descoberta» que estes, ultimamente, fizeram dos «Parceiros Sociais», sem deixar de ser desfrutável, é bastante sintomática de ter chegado a hora de substituição do decrépito parlamentarismo, para despontar uma era renovadora.
Os «parceiros sociais» não são senão a prefiguração de um novo sistema representativo. Então, através deste renovado sistema serão apurados os lídimos representantes do povo.
O povo... só por meio das suas organizações próprias, do trabalho e outras, o povo adquire personalidade e autoridade capazes de se fazer ouvir. No sufrágio geral individualista o povo transforma-se em massa constituída por pessoas isoladas, mais influenciáveis às propagandas, por conseguinte, e que, desprovidas de um objetivo que lhes seja peculiar, se tornam presa fácil das formações partidárias.
É altura de dizer que o pluralismo político, que ora nos oferecem como sendo a melhor dádiva do democratismo, serve, sem dúvida, à classe política, mas não serve ao povo. Ao pluralismo partidocrático opomos nós o pluralismo social.
Evidentemente que estas ideias não são do agrado dos senhores da política. É claríssimo. Adiante voltaremos mais detidamente a este assunto, que é basilar no nosso ponto de vista. Entretanto continuemos a apreciar a partidocracia. O que podemos esperar dela? O que nos oferece?
Nas falas autorizadas dos seus catedráticos, oferece-nos, como coisa magnífica, as «alternâncias no poder». Aí temos exatamente o Rotativismo de negregada memória, o qual, nos fins do século passado foi o grande alvo a que se dirigiam as críticas gerais, as invetivas das oposições parlamentares, os ataques preferidos da primeira geração republicana.
Pois, como se nada se tivesse passado na vida do nosso país, aí temos os democratistas de hoje a dizer bem do rotativismo, a elogiá-lo, tal como se tratasse de uma virtuosa novidade.
O heróico «comandante» Paiva Couceiro costumava desabafar: - «Ah, se esta gente conhecesse a história!...» Mas não a conhece. Verdade seja que a gente nova não é inteiramente culpada desta ignorância, pois que uma das primeiras medidas dos desaportuguesados que se apoderaram do mando, na impossibilidade de torcerem mais as deduções que tiravam da história, foi a de suprimirem o seu estudo nas escolas. Eles bem sabiam porque o fizeram.
Apontam-nos a alternância partidária no poder como se daí resultasse o bem do país? Mas em que consiste essa alternância do poder? Quando muito, na substituição de um projecto governamental por um outro, que, por sua vez, há de ser substituído por um diverso, e assim sucessivamente; projetos sem viabilidades de execução, pois que as próprias alternâncias se encarregam de as tornar impossíveis, por carência de tempo para o efeito necessário.
Alternância do poder, em partidocracia, assemelha-se a um fazer e desfazer de feira, sempre com os mesmos altifalantes e os mesmos locutores, em aliciantes ofertas de concorrência. É um passar de governo a oposição, de oposição para governo, e assim por diante, numa luta permanente. Mudanças a breves prazos, porque as ações governativas responsabilizam, desgastam, nunca satisfazem em tudo, e, consequentemente, acarretam perdas de votos, e as oposições, na atitude favorável e sempre lucrativa de críticas, crescem para o poder com facilidade.
A alternância no Poder (é intolerável que se esqueça!) tivemo-la nós, na máxima perfeição, durante a 1ª República. De 1910 a 1926, nesses dezasseis anos de exemplaríssimo regime de alternâncias, contaram-se quarenta e tantas mudanças de governo, o que deu para cada ministério a duração média de quatro meses e meio, aproximadamente. Porventura se poderá querer melhor? Pois foi precisamente dessa cadência desaustinada (que, todavia, a classe política «deste país» parece não ver!) que se gerou a reação natural do «28 de Maio».
Vamos assistindo nesta 3ª República a uma reedição formal da 1ª República: análogos os métodos, as mesmas falsas alternativas, igual supremacia dos interesses pessoais e partidários sobre os interesses da comunidade, num mortal afundamento nacional. E tudo está esquecido, de que as mesmas causas, no mesmo meio, produzem os mesmos efeitos.
Com uma impressionante infantilidade, que no adulto vem a exprimir debilidade mental, lembram e alegam os convictos partidocratas que o sistema é bastante capaz de funcionar regularmente, citando como exemplos comprovativos, a Inglaterra e os demais países do norte europeu. Fazem-se esquecidos, porém, de que esses países onde a partidocracia se vai aguentando, mas mal, são de outra gente e de que são monarquias. Duas circunstâncias relevantes a ter na devida consideração. Outra gente, outro o meio social, povos de temperamento diferente dos meridionais. Gente fleumática, mais calma e fria nos seus sentimentos, ponderada nas reacções, conservadora de feitio, gente menos emotiva e menos arrebatada do que a gente latina.
Povos com inteligente compreensão e respeito pelas instituições tradicionais, mais conscientes das realidades, menos dados a fantasias, mais ordeiros, por conseguinte. As disputas eleitorais raras vezes atingem neles as violências que são comuns entre nós outros. Deixam poucas sequelas nas relações sociais, não sujam as paredes das casas, nem conspurcam as pedras dos monumentos. Legalistas por escrúpulo, não fazem revoluções, nem praticam golpes de Estado por hábito. Não são, portanto, estes os países apropriados a fornecerem-nos exemplos de comportamento partidocrático. Esses exemplos devem ser colhidos nos povos da nossa raça. E aí qual é a lição irrefutável dos factos? Pois vejamos isso.
A segunda República espanhola, de regime partidocrático como as nossas, que vigorou de 14 de Abril de 1931 a 17 de Julho de 1936, conheceu 18 governos. Os cinco anos da sua existência dão para cada ministério uma média de vida inferior a 4 meses. Atribulado movimento de alternâncias, como se vê. O prémio, lógico, foi a terrível guerra civil que enlutou a Espanha, e depois uma ditadura.
A França, na 3ª República, em 72 anos, teve 105 ministérios, confirmando as médias, e confirmando também a fatalidade dos resultados. Ao fim, sofreu a mais desastrosa derrota militar da sua história e um regime ditatorial também.
E na Itália? A seguir à Guerra e com o restabelecimento da partidocracia, vai no 41º governo; sem partidos maioritários, atravessando demoradas crises ministeriais, socorre-se do expediente das coligações, cada vez mais difíceis e improfícuas. A nação italiana, sem ordem, sem autoridades que valham, sem segurança pública, campo aberto à violência dos grupos extremistas, lembra, a cada passo, a época do pré-fascismo.
Se nos quiséssemos dar ao trabalho de indagar do que na matéria se tem passado nas Américas, herdeiras do sangue latino e praticantes do democratismo europeu, encontraríamos plena confirmação da regra política: as mesmas causas, nos mesmos meios humanos, produzem os mesmos efeitos.
Mas voltemo-nos para o nosso Portugal, que é o que mais nos importa.
Vai esta 3ª República, partidocrática como a 1ª, jovem de nascimento, velha no espírito nos oito anos de idade e no seu 14º governo (seis provisórios, mais oito constitucionais). A situação caótica do país, em todos os aspetos, fala por si. Aliás os partidos, por umas razões ou outras, pronunciam-se acordes neste sentido, especialmente quando discursam das bancadas da oposição. E, em boa verdade, não poderá acusar-se de isto ter acontecido por insuficiência de mudanças de governo - essas virtuosas alternâncias da boa doutrina democratista. Em 8 anos, 14 ministérios, convenhamos que não vai nada fora da regra dos tempos. Apenas se verifica a outra regra: que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos.
Ao denunciarmos a debilidade e a efemeridade que invariavelmente atingem os governos da partidocracia e os impedem de realizar obras de vulto, ou sequer de traçarem planos de futuro, não se vá supor que, implicitamente, sustentamos algum pensamento de imobilismo. A instabilidade e o imobilismo governativos são ambos produto de partidocracia. A primeira, do pluripartidismo; o segundo, do partidismo único. E não se olvide que o regime de partido único é, logicamente, o estádio final da luta interpartidária, pela vitória do partido mais forte.
A questão determinante é que, entre a desordem administrativa, que é o preço comprovado da liberdade política na partidocracia pluralista e a ordem materialista do partido único, que nos custa a asfixia cívica, isto é, entre o democratismo dos partidos liberais e o democratismo do partido totalitário não temos hipótese de uma boa escolha.
Na crise continuada dos governos, que não é senão a crise permanente do sistema, atua um fator decisivo, o qual está na sua formação especificamente político-partidista. Em partidocracia formam-se governos de conveniência dos partidos que assumem o poder; não se formam governos de competências nacionais. Isto é intuitivo. Os elementos de maior atividade partidária são sempre os escolhidos para dirigir os ministérios e para ocupar os principais lugares do Estado, e estes elementos nem sempre são, para o efeito, os de mais real valor dos existentes no país. Qualidades políticas de propagandistas e de demagogos diferem muito das qualidades de estadistas. Os indivíduos mais dinâmicos, sobressaindo como aguerridos lutadores no parlamento ou nos comícios, podem não ser os mais notáveis no saber ou no pensamento, em suma, os mais categorizados para a acção governativa. E não o são no geral. Contudo o leader político não pode esquivar-se à escolha desses, que foram os diligentes colaboradores no partido, para colaboradores no Governo. Como seria possível se muitos deles, os principais, pelo menos, tinham como certo, e justo, que a tomada do poder pelo partido implicitamente os levava às cadeiras dos ministérios? Acaso não teriam sido eles os destacados obreiros da vitória?
Fazer abortar esses projetos pessoais, cuja efetivação seria para muitos o motivo primordial dos seus empenhamentos no partido, acarretaria, sem dúvida, consequências graves e fáceis de prever em prejuízo do leader e da potencialidade do partido. Hipótese, por conseguinte, que nem o senso comum, nem a observação da prática política justificam.
Invariavelmente, na partidocracia todos os lugares de nomeação reservam-se para os políticos ligados ao partido. E não só os lugares de nomeação como, por impudente artifício, até os de eleição. O artigo 154º da Constituição, que trata da Assembleia da República, é disto comprovativo: «As candidaturas são apresentadas, nos termos da lei, pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação».
Este artigo, como se lê, põe a Assembleia exclusivamente no domínio dos partidos. Impede qualquer tentativa de representação aos portugueses que estão fora das organizações partidárias, e estes portugueses são, mau grado o desejo dos partidocratas, a maioria da população.
Regime que desta maneira exclui a maioria do povo, coloca-se fora da legitimidade democrática e condena-se ele-próprio à ineficácia e à inviabilidade. É o que acontece à nossa atual partidocracia.
As crises no plano ministerial são consequências da crise do regime.
Os valores humanos nacionais, individuais ou de pessoas coletivas, deixam de ser aproveitados para dar satisfação às ambições dos apaniguados dos partidos. É essa a lei inviolada da partidocracia.
Disse alguém de espírito tão inquieto como fulgurante, e cuja amizade muito prezei, que «se é certo haver, e haverá sempre, quem se queira servir dos Partidos como alavanca dos seus interesses pessoais, não se poderá afirmar com justiça que os Partidos não possam ser todavia um ato voluntário, criador de atos de interesse público, uma ideia moral em marcha, uma dedicação, uma fé!
Os Partidos podem encarnar no Povo a expressão da sua colaboração com o Poder. Colaboração tão indispensável como difícil». Porque, em certa medida, assim também o possamos entender é que admitimos o direito da sua presença na Assembleia Representativa juntamente com todos os órgãos sociais de natureza apolítica. A utilidade dos Partidos como Associações cívicas, escolas de estudo para os problemas nacionais, centros de informação permanente da opinião pública, é compreensível. Como provocadores de subversão e como clientelas sôfregas, é que não. Também não monopolistas da representação social e do poder legislativo.
Rolão Preto - é esse alguém de quem falo - escrevia, (Carta aberta ao Doutor Marcello Caetano, 1972) justamente apreensivo, numa encruzilhada de incertezas. O perigo de um golpe extremista marxista adensava-se num horizonte presumível. Tendo «a Política como a arte do possível» e não vendo, para o imediato, outra viabilidade a opor à perspetiva ameaçadora senão a abertura à liberdade dos partidos, Rolão Preto, impulsionado pela sua fé, pensava: - «os Partidos podem ser a ideia que caminha sem cessar rasgando horizontes para que o homem passe». Mas poderão os partidos políticos ser essa «ideia» sincera de esclarecimento, ser «a expressão de uma colaboração com o Poder»? Aqui se inscreve a esperança de uns, a dúvida de outros, a descrença de muitos.
Estamos convictos de que dependerá da resposta que os Partidos forem capazes de dar a estas interrogações a possibilidade do seu enquadramento nas estruturas do Estado Moderno.
FALÊNCIA DO REGIME PARTIDOCRÁTICO
De cada vez que se abre uma crise ministerial apressam-se os políticos a contestar que não, que não se trata de uma crise de regime, mas tão somente da necessidade de reajustamento das forças políticas no governo. Mas essas crises repetidas que outra coisa são, senão manifestações crónicas da inaptidão e do fracasso do sistema artificioso e antinatural dos partidos políticos? E se não vejamos.
As quedas de governo são fundamentalmente originadas por falta de apoio parlamentar, como o são também as dificuldades em formar novos governos. Não existindo, como em geral não existe, um partido com representação maioritária, os elencos ministeriais constituem-se por via de acordos e de compromissos superficiais entre partidos, em todo o caso à custa de algumas cedências de conteúdo programático. Nestas condições formam-se governos de gestão, de despacho banal, impossibilitados de tomarem resoluções de fundo, dadas as divergências conceptuais e ideológicas que caracterizam os partidos que os formam. Mas, para além dos adiamentos conseguidos, surgem fatalmente os momentos agudos, por imposição inevitável dos problemas governativos a obrigarem às resoluções suspensas, onde o consenso é difícil ou impossível. Abre-se aí a crise, ante o confronto de opiniões irredutíveis, frente à incompatibilidade dos princípios e a impossibilidade de acordo e, por conseguinte, a desagregação do conluio governamental.
Quando, com certa insistência, ouvimos os apelos presidenciais, ou outros, aos partidos desavindos para que se congreguem num programa comum (reminiscências da União Nacional salazarista?) não sabemos em que pensar: se na ingenuidade da intenção que inspira esses apelos, se no irrealismo que patenteiam.
Cada partido político tem o seu ideário, os seus projetos, um programa próprio e característico, necessariamente diferente dos programas dos outros partidos. E na diferença dos programas que os partidos se identificam. São essas diferenças as suas razões de ser. A condescendência na adoção de um programa comum, porventura eclético aos olhos estranhos, significaria da parte dos partidos contratantes, como que um esvaziamento ideológico, uma renúncia à sua identidade. Pedir tal coisa é, na verdade, pedir o impossível aos partidos e revela um irrealismo infantil. Em partidocracia os partidos são o que são, e como tal devem ser tomados e respeitados. A preferência pelo sistema obriga logicamente a aceitar o jogo livre dos partidos e daí todas as consequências. Quem se meta a influente político tem a obrigação antecipada de saber o que é a partidocracia e o que dela resulta. A propósito lembra-nos um deputado da antiga «ala liberal», cujo apelido anda carregado de responsabilidades, confessar, publicamente, que sempre ouvira dizer em sua casa, ser mau o partidarismo, mas achava que ele próprio, só vendo-o com os seus olhos, poderia ter uma opinião pessoal segura. Talvez que, agora já a tenha formado. Citamos o caso porque é o protótipo de muitos e novos senhores da classe política, ignorantes das experiências havidas, para os quais, pelo visto, seria indispensável (e justificável...) assistirem em pessoa à exibição dos vários regimes e sistemas, a fim de se elucidarem e fazerem a sua escolha.
Absurda coisa! Seria então legítimo o direito de cada geração assistir à repetição dos mesmos ensaios. E não haveria tempo de passar dessas repetições... bizarro discernimento!
Singular maneira de pensar!
Para semelhantes cerebrações é evidente que não existe cultura política, nem lhes parece fazer falta.
Se não fossem ignorados os ensinamentos da História, haveria de estar presente e claro nos espíritos que foi a partidocracia monárquica a causadora da queda da Realeza em 1910 e que foi a partidocracia republicana que no 28 de Maio de 1926 fez cair a 1ª República; que foi ainda a modalidades autocrática do regime partidarista sem partidos da 2ª República que levou ao 25 de Abril de 1974, e que (fatal como o destino!) há de ser a partidocracia atual que há de enterrar, bem fundo, esta 3ª República.
Não é preciso ser profeta para esta previsão. Basta atender à regra geral. A partidocracia republicana espanhola conduziu à Guerra Civil e depois à ditadura franquista. Já no reinado de Afonso XIII a agitação dos partidos políticos provocara, em 1923, a ditadura do general Primo de Rivera.
Na 3ª República francesa foi o partidarismo sem norte que levou ao presidencialismo de De Gaule, e só não se implantou uma ditadura militar porque De Gaule a impediu.
E na Itália? Mussolini e o Fascismo não foram o epílogo do regime anárquico dos partidos? Cabe aqui o testemunho insuspeito de Cunha Leal: «A Itália sofreu as piores e mais fundas convulsões a que só agora Mussolini está começando a pôr termo». (In As Minhas Memórias, 1967. Vol. II, pág. 463.)
E de novo a nossa irmã latina se debate em circunstâncias muito parecidas com as de 1922-24, sendo-lhe cada vez mais difícil a formação e sustentação de ministérios dentro do quadro parlamentar, isto para não falarmos no caos social.
Já vimos como a média quase constante de duração dos governos em todas as partidocracias latinas não ultrapassa os seis meses, espaço de tempo que não permite executar qualquer obra, por muito diligentes e aptos que sejam os governantes.
A instabilidade governativa gera a quebra da autoridade, a agitação social, a impraticabilidade de qualquer plano de grandeza, a indisciplina nos serviços públicos, a ruína económica e financeira do Estado, a gestão limitada a medidas de expediente e levada «à deriva» dos acontecimentos. Com a desordem geral entra-se na insegurança de pessoas e bens, e na decadência nacional.
Estas perspetivas sombrias não são de surpreender senão para as pessoas mal informadas. Não têm nada de pendor pessimista; são perspetivas realistas, abonadas na sua veracidade pelas repetidas experiências registadas na História. Apontemos dois interessantes testemunhos em duas épocas distantes, mas semelhantes.
Impressionado com a deplorável conjuntura a que a decomposição do partidarismo, o chamado «constitucionalismo» levava o país, e que definiria como «a República já feita», escrevia Eça de Queiroz: - «Enquanto à Causa Pública, que te direi? O conhecimento que aí ganhei na primavera dos fatores políticos, não é bastante já para me explicar a anarquia atual. Deve aí haver fatores novos, novos elementos de decomposição que me escapam. Em todo o caso, não vejo senão uma solução simplista - uma tirania.
É necessário um sabre, tendo ao lado um pensamento.
Tu és capaz de ser o homem que pensa - mas onde está o homem que acutila?». (Correspondência, 3ª Edição, pág. 209.)
Eça dirigia-se ao seu querido João Pedro, que além de confrade nas letras se revelava homem de Estado, como o foi no seu alto e superior espírito de político, e a quem, por isso, chamava, com ironia amiga, «Messias para uso constitucional». (Ob. cit., pag. 141.)
O epíteto tinha determinado cabimento. Oliveira Martins era possuidor de ideias construtivas, renovadoras, situadas acima dos conceitos rotineiros. Essas ideias, verdadeiramente restauradoras, Oliveira Martins tornou-as públicas num notável opúsculo intitulado «As Eleições», que a classe política do seu tempo, igual às que se lhe seguiram, se encarregou de abafar eficazmente. Teve este estudo uma 2ª edição em 1946, com a mesma sorte da primeira. Adiante teremos oportunidade de lhe fazer mais detalhada referência.
Eça de Queiroz conhecia-lhe o pensamento edificante e para remédio da «anarquia atual» não hesitava em sugerir uma «tirania» que substituísse a partidocracia dominante, para pôr em prática esse pensamento.
Supomos que este alvitre, não de um qualquer anónimo, mas de Eça de Queiroz, é bem significativo e expressivo do estado de coisas e da disposição que tal estado provocava.
Da partidocracia fim de século, demos um salto à partidocracia da 1ª República.
Ouçamos de novo um dos seus últimos e ativos intervenientes, justamente considerado pelo seu idealismo e pelo desassombro das suas atitudes - Cunha Leal. Poucas palavras Ihe bastam para nos dar um panorama da situação existente no seu tempo: «O descrédito do Poder Executivo produz as vertigens das quedas ministeriais, como se uma rajada de desvairamento nos tivesse transformado o cérebro. E, assim, não há continuidade administrativa. É o caos na vida pública». (Eu, os Políticos e a Nação, pág. 145.)
Desse caos terrível dá-nos Cunha Leal uma rápida e vincada imagem: «Depois do 19 de Outubro de 1921, a República agonizava. Em Lisboa as feras ululavam, rondando os Ministérios. Acordava a gente, de manhã, sem poder prever o que sucederia, à noite. Adormecia, à noite, sem calcular quais seriam os sucessos da manhã, tudo eram sombras e incertezas». (Idem, pág. 137.) E acrescentava: «temos, por último, a incapacidade dos políticos, na qual nem é bom falar» (As Minhas Memórias, pág. 460.) «O Presidente da República, Dr. António José de Almeida, medindo bem o alcance das suas responsabilidades, baldadamente se afadigava a aconselhar a todos calma e tranquilidade. A desordem estava nos espíritos e nas ruas e ameaçava galgar por cima dele». (Eu, os Políticos e a Nação, pág. 137.)
Como estes, muitos outros autorizados testemunhos poderíamos trazer para aqui. O que interessa, todavia, é ter presente que é da estrutura partidária, da acérrima luta dos partidos, que deriva a debilidade governativa, o descalabro da administração pública, o mal-estar social, a ruína da nação e o ódio entre os homens.
E acaso será possível evitar, ou ao menos moderar essas lutas, como nas circunstâncias costumam aconselhar os Presidentes?
A compreensão do funcionamento do sistema esclarece bem que não, que não é possível. Sendo, como é, o objetivo primeiro de cada grupo partidário a tomada do poder, o seu método de ação começa pelo ataque, por todos os meios disponíveis, contra o partido adversário que governa, tentando dificultar-lhe a vida e forçá-lo à demissão. E é, evidentemente, o que sempre fazem os partidos de oposição. Nem poderiam proceder de outra maneira sob pena de desistirem das suas concepções políticas e, portanto, de se demitirem de partido. E mais devemos atender a que essa guerra aberta e cega dos partidos oposicionistas ao que é governo será tanto mais persistente e violenta, quanto mais forte for a convicção de cada partido na sua verdade política.
Ora, ocorre perguntar: e pretender contrariar a própria natureza do sistema não será, implicitamente, andar perto de contestar o sistema?
O que mais impressiona, quanto ao regime dos partidos é que não se veja que a luta estabelecida entre eles não tem um fim. Ou se tem, esse fim é pior do que o estado de luta, porque terminará na ditadura do partido que na luta vence todos os outros.
É profundamente lamentável a soma enorme de energias (e de dinheiro) que se consome nas contendas inter-partidos, somas desperdiçadas a fomentarem divisões fratricidas e sentimentos de ódio, que, ao invés, bom seria que fossem postas em proveito e serviço da comunidade nacional.
Quem observa logo vê como as atividades partidárias são ajustadas ao ponto de vista eleitoralista. O que sobretudo importa aos partidos é ganharem votos ou, pelo menos, não os perderem. Assim estarão visceralmente voltados para a demagogia, a qual dificilmente se conjuga com a austeridade devida aos gastos públicos e aos interesses superiores da Nação.
É fartamente conhecida a prontidão com que os partidos, como clientelas que são, ao tomarem o mando, encaixam os seus apaniguados em lugares adrede criados, e supérfluos, no Estado. Naturalmente que uns mais descaradamente do que outros. Ficou escandalosamente célebre, na 1ª República, aquela publicação dos 30 suplementos ao Diário do Governo, de 10 de Maio de 1919, cujas páginas foram totalmente preenchidas com nomeações para quadros do funcionalismo público de cerca de 17000 adeptos do Partido Democrático, que era o de Afonso Costa.
Quem se lembra?
A este partido referiu-se Cunha Leal nos seguintes termos: «O Partido Democrático, que pesa, de forma descomunal, sobre a Nação, transformou-se numa Sociedade de Socorros Mútuos em que, para se ser auxiliado, basta apenas a apresentação da carta de filiação, com dispensa de documentos comprovativos de competência e honestidade». (As Minhas Memórias, Vol. II, pág. 463.)
E assim é que, hoje mesmo, quase todos os serviços dependentes do Estado estão superlotadíssimos de empregados, note-se que não dizemos trabalhadores ou servidores, que absorvem verbas incomportáveis ao orçamento deficitário, e isto por obra e graça da partidocracia imperante.
A questão cruciante das Finanças, que a todas as outras questões se impõe, é, como se sabe, a do déficit pavoroso e anualmente crescente: Que se conheça parece que existem apenas dois processos de vencer o déficit: aumentar receitas e diminuir despesas. O primeiro processo tem sido exemplarmente seguido com agravamento de impostos, com alienações patrimoniais e com a obtenção de sucessivos e vultuosos empréstimos. Mas reduzir despesas? Que partido está aí que se queira arriscar a propor a redução de despesas?
Algum se dispõe a arrostar com o odioso que fatalmente provocariam as restrições adequadas?
Encontra-se aqui o problema insuperável para os partidos, e porque o interesse partidário se opõe, também neste caso, ao interesse nacional.
Afigura-se extremamente difícil, para não dizer impossível, minorar os prejuízos do funcionamento dos partidos.
Algo, neste sentido, poderá esperar-se de uma prática corretiva dos Presidentes?
Mas os Presidentes sofrem, exatamente como os Partidos, dos mesmos defeitos de transitoriedade de ação e da nefasta dependência dos votos, que lhe deram a eleição e lhe são precisos para uma eventual reeleição.
Com certa margem de êxito poderia confiar-se na Realeza em virtude de ser independente dos partidos, e da perenidade no exercício do Poder, que a faz natural guardadora da continuidade na execução dos projetos nacionais. Em todo o caso, não se deve esperar muito das possibilidades de um monarca no regime partidocrático.
O Poder moderador que o Democratismo consigna ao Rei, digamos, em vez de poder, a função moderadora, apresenta-se fraca de meios para debelar as virulências que os partidos em guerra desencadeiam entre si. Aquelas ondas de desordem que, no dizer de Cunha Leal, ameaçavam galgar sobre o popularizado Presidente da República, igualmente podem ameaçar o Rei que as defronte.
A exaltação das ruas, nestes climas meridionais como o nosso, pode levar a desordem aos extremos. Além de que, capaz de irreverências por deseducação política, falta ao nosso povo o senso frio dos nórdicos. Esse senso que, ainda não há muito, guiou os operários ingleses, perante a ameaçadora subida de preços, a pedirem o congelamento dos seus salários para assim travarem aquela subida.
Em Lisboa seria imaginável uma atitude idêntica?
O que se vê são manifestações comandadas por demagogos, a exigirem acréscimos nos salários concomitantemente com decréscimos nos preços das coisas, como se conhecessem o segredo duma laboração mais cara produzir mais barato... Quando o absurdo dessas manifestações consegue mobilizar e conduzir milhares de populares, o que poderá, em consciência, esperar-se do voto de tais manifestantes? E lembrarmo-nos nós que esse voto é o fundamento legitimado do regime...
Se quisermos resumir diremos que a causa primeira, originária de todas as outras que no conjunto inevitavelmente conduzem ao fracasso da partidocracia, se encontra na base motora do sistema.
Os partidos movem-se na direção do Poder, e movem-se, portanto, em concorrência uns contra os outros, em rivalidade, em disputa dos meios de acesso ao governo. Em vez do princípio de colaboração e de entre ajuda, com vista ao bem geral da comunidade, a partidocracia assenta na divisão hostil, na agressividade entre partidos, nas suas lutas constantes e intérminas.
É evidente que uma população em que os seus filhos gastam o melhor das suas energias em guerrearem-se mutuamente é uma população fatalmente condenada à decadência. Como é evidente que só o trabalho pacífico e cooperante conduz o Povo à prosperidade e ao engrandecimento. A história universal demonstra que os regimes divisionistas por essência levam invariavelmente a fins negativos do bem-estar e que, pelo contrário, os regimes que se inspiram na união e a preservam são os regimes que tornam fortes e progressivas as nações. A nossa própria história o comprova muito particularmente.
1834 - O Partidarismo. «A partir desta altura, a nossa História toma carácter diferente. Esfuma-se, entre querelas e embates de fações, o vulto dominante da Pátria, como realidade viva, superior a todas, em que se concretizam os altos deveres e os altos fervores coletivos. O cristal quebra-se em mil estilhaços - e cada grupo, ou cada chefe de grupo, mira-se nesse estilhaço, supõe ver nele a totalidade. A lei do individualismo é essa: caos, dissídio, pulverização. Na base, um falso, dissolvente conceito, do homem, desligado dos valores transcendentes e desligado, ao mesmo tempo, do real imediato, quotidiano». Homem «ser isolado, cortado das raízes; um ser inviável». (História de Portugal, 4ª ed., p. 620.) Palavras estas concisas e exatas do ilustre historiador João Ameal. E assim tem sido, com intermitências, improfícuas, afinal, até à derrocada que nos arrasta para um abismo.
Século XV - A Idade de Oiro. Quando o pequeno Portugal, de pouco mais de um milhão de habitantes, adquiriu a sua maioridade, foi uno, e conseguiu o inacreditável: ser uma das nações mais influentes e a potência maior do mundo. A gesta heróica dos Descobrimentos realizou-se porque os portugueses de então não viviam fechados num individualismo materialista, mas como pessoas integradas no destino comum que a Pátria seguia.
Por certo o leitor terá na memória o poema de Fernando Pessoa, de quando a primeira nau portuguesa desvendava o Mar Tenebroso e defrontava o furibundo Adamastor, que, em voz monstruosa, interpelava: Aqui «Quem é que ousou entrar» (?), «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» «Quem vem poder o que só eu posso»?. E a resposta do homem do leme, transido de medo, é certo, mas com ânimo inabalável:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o monstrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!» (Mensagem", 9ª ed., pp. 62-63.)
Magnífica imagem do poeta!
O que foi a força invencível da unidade de um Povo - todos por um e um por todos! Esse um, o Rei-Perfeito, que era, no dizer de um outro nosso inspiradíssimo poeta «a Pátria com figura humana!» (António Sardinha, Pequena Casa Lusitana, p. 40).
Quem não poderá entender que cada sistema e cada regime leva consigo intrínsecas predeterminações distintas? Umas levantam alto a glória das Pátrias; outras afundam-nas no caos e na vergonha.
As quedas de governo são fundamentalmente originadas por falta de apoio parlamentar, como o são também as dificuldades em formar novos governos. Não existindo, como em geral não existe, um partido com representação maioritária, os elencos ministeriais constituem-se por via de acordos e de compromissos superficiais entre partidos, em todo o caso à custa de algumas cedências de conteúdo programático. Nestas condições formam-se governos de gestão, de despacho banal, impossibilitados de tomarem resoluções de fundo, dadas as divergências conceptuais e ideológicas que caracterizam os partidos que os formam. Mas, para além dos adiamentos conseguidos, surgem fatalmente os momentos agudos, por imposição inevitável dos problemas governativos a obrigarem às resoluções suspensas, onde o consenso é difícil ou impossível. Abre-se aí a crise, ante o confronto de opiniões irredutíveis, frente à incompatibilidade dos princípios e a impossibilidade de acordo e, por conseguinte, a desagregação do conluio governamental.
Quando, com certa insistência, ouvimos os apelos presidenciais, ou outros, aos partidos desavindos para que se congreguem num programa comum (reminiscências da União Nacional salazarista?) não sabemos em que pensar: se na ingenuidade da intenção que inspira esses apelos, se no irrealismo que patenteiam.
Cada partido político tem o seu ideário, os seus projetos, um programa próprio e característico, necessariamente diferente dos programas dos outros partidos. E na diferença dos programas que os partidos se identificam. São essas diferenças as suas razões de ser. A condescendência na adoção de um programa comum, porventura eclético aos olhos estranhos, significaria da parte dos partidos contratantes, como que um esvaziamento ideológico, uma renúncia à sua identidade. Pedir tal coisa é, na verdade, pedir o impossível aos partidos e revela um irrealismo infantil. Em partidocracia os partidos são o que são, e como tal devem ser tomados e respeitados. A preferência pelo sistema obriga logicamente a aceitar o jogo livre dos partidos e daí todas as consequências. Quem se meta a influente político tem a obrigação antecipada de saber o que é a partidocracia e o que dela resulta. A propósito lembra-nos um deputado da antiga «ala liberal», cujo apelido anda carregado de responsabilidades, confessar, publicamente, que sempre ouvira dizer em sua casa, ser mau o partidarismo, mas achava que ele próprio, só vendo-o com os seus olhos, poderia ter uma opinião pessoal segura. Talvez que, agora já a tenha formado. Citamos o caso porque é o protótipo de muitos e novos senhores da classe política, ignorantes das experiências havidas, para os quais, pelo visto, seria indispensável (e justificável...) assistirem em pessoa à exibição dos vários regimes e sistemas, a fim de se elucidarem e fazerem a sua escolha.
Absurda coisa! Seria então legítimo o direito de cada geração assistir à repetição dos mesmos ensaios. E não haveria tempo de passar dessas repetições... bizarro discernimento!
Singular maneira de pensar!
Para semelhantes cerebrações é evidente que não existe cultura política, nem lhes parece fazer falta.
Se não fossem ignorados os ensinamentos da História, haveria de estar presente e claro nos espíritos que foi a partidocracia monárquica a causadora da queda da Realeza em 1910 e que foi a partidocracia republicana que no 28 de Maio de 1926 fez cair a 1ª República; que foi ainda a modalidades autocrática do regime partidarista sem partidos da 2ª República que levou ao 25 de Abril de 1974, e que (fatal como o destino!) há de ser a partidocracia atual que há de enterrar, bem fundo, esta 3ª República.
Não é preciso ser profeta para esta previsão. Basta atender à regra geral. A partidocracia republicana espanhola conduziu à Guerra Civil e depois à ditadura franquista. Já no reinado de Afonso XIII a agitação dos partidos políticos provocara, em 1923, a ditadura do general Primo de Rivera.
Na 3ª República francesa foi o partidarismo sem norte que levou ao presidencialismo de De Gaule, e só não se implantou uma ditadura militar porque De Gaule a impediu.
E na Itália? Mussolini e o Fascismo não foram o epílogo do regime anárquico dos partidos? Cabe aqui o testemunho insuspeito de Cunha Leal: «A Itália sofreu as piores e mais fundas convulsões a que só agora Mussolini está começando a pôr termo». (In As Minhas Memórias, 1967. Vol. II, pág. 463.)
E de novo a nossa irmã latina se debate em circunstâncias muito parecidas com as de 1922-24, sendo-lhe cada vez mais difícil a formação e sustentação de ministérios dentro do quadro parlamentar, isto para não falarmos no caos social.
Já vimos como a média quase constante de duração dos governos em todas as partidocracias latinas não ultrapassa os seis meses, espaço de tempo que não permite executar qualquer obra, por muito diligentes e aptos que sejam os governantes.
A instabilidade governativa gera a quebra da autoridade, a agitação social, a impraticabilidade de qualquer plano de grandeza, a indisciplina nos serviços públicos, a ruína económica e financeira do Estado, a gestão limitada a medidas de expediente e levada «à deriva» dos acontecimentos. Com a desordem geral entra-se na insegurança de pessoas e bens, e na decadência nacional.
Estas perspetivas sombrias não são de surpreender senão para as pessoas mal informadas. Não têm nada de pendor pessimista; são perspetivas realistas, abonadas na sua veracidade pelas repetidas experiências registadas na História. Apontemos dois interessantes testemunhos em duas épocas distantes, mas semelhantes.
Impressionado com a deplorável conjuntura a que a decomposição do partidarismo, o chamado «constitucionalismo» levava o país, e que definiria como «a República já feita», escrevia Eça de Queiroz: - «Enquanto à Causa Pública, que te direi? O conhecimento que aí ganhei na primavera dos fatores políticos, não é bastante já para me explicar a anarquia atual. Deve aí haver fatores novos, novos elementos de decomposição que me escapam. Em todo o caso, não vejo senão uma solução simplista - uma tirania.
É necessário um sabre, tendo ao lado um pensamento.
Tu és capaz de ser o homem que pensa - mas onde está o homem que acutila?». (Correspondência, 3ª Edição, pág. 209.)
Eça dirigia-se ao seu querido João Pedro, que além de confrade nas letras se revelava homem de Estado, como o foi no seu alto e superior espírito de político, e a quem, por isso, chamava, com ironia amiga, «Messias para uso constitucional». (Ob. cit., pag. 141.)
O epíteto tinha determinado cabimento. Oliveira Martins era possuidor de ideias construtivas, renovadoras, situadas acima dos conceitos rotineiros. Essas ideias, verdadeiramente restauradoras, Oliveira Martins tornou-as públicas num notável opúsculo intitulado «As Eleições», que a classe política do seu tempo, igual às que se lhe seguiram, se encarregou de abafar eficazmente. Teve este estudo uma 2ª edição em 1946, com a mesma sorte da primeira. Adiante teremos oportunidade de lhe fazer mais detalhada referência.
Eça de Queiroz conhecia-lhe o pensamento edificante e para remédio da «anarquia atual» não hesitava em sugerir uma «tirania» que substituísse a partidocracia dominante, para pôr em prática esse pensamento.
Supomos que este alvitre, não de um qualquer anónimo, mas de Eça de Queiroz, é bem significativo e expressivo do estado de coisas e da disposição que tal estado provocava.
Da partidocracia fim de século, demos um salto à partidocracia da 1ª República.
Ouçamos de novo um dos seus últimos e ativos intervenientes, justamente considerado pelo seu idealismo e pelo desassombro das suas atitudes - Cunha Leal. Poucas palavras Ihe bastam para nos dar um panorama da situação existente no seu tempo: «O descrédito do Poder Executivo produz as vertigens das quedas ministeriais, como se uma rajada de desvairamento nos tivesse transformado o cérebro. E, assim, não há continuidade administrativa. É o caos na vida pública». (Eu, os Políticos e a Nação, pág. 145.)
Desse caos terrível dá-nos Cunha Leal uma rápida e vincada imagem: «Depois do 19 de Outubro de 1921, a República agonizava. Em Lisboa as feras ululavam, rondando os Ministérios. Acordava a gente, de manhã, sem poder prever o que sucederia, à noite. Adormecia, à noite, sem calcular quais seriam os sucessos da manhã, tudo eram sombras e incertezas». (Idem, pág. 137.) E acrescentava: «temos, por último, a incapacidade dos políticos, na qual nem é bom falar» (As Minhas Memórias, pág. 460.) «O Presidente da República, Dr. António José de Almeida, medindo bem o alcance das suas responsabilidades, baldadamente se afadigava a aconselhar a todos calma e tranquilidade. A desordem estava nos espíritos e nas ruas e ameaçava galgar por cima dele». (Eu, os Políticos e a Nação, pág. 137.)
Como estes, muitos outros autorizados testemunhos poderíamos trazer para aqui. O que interessa, todavia, é ter presente que é da estrutura partidária, da acérrima luta dos partidos, que deriva a debilidade governativa, o descalabro da administração pública, o mal-estar social, a ruína da nação e o ódio entre os homens.
E acaso será possível evitar, ou ao menos moderar essas lutas, como nas circunstâncias costumam aconselhar os Presidentes?
A compreensão do funcionamento do sistema esclarece bem que não, que não é possível. Sendo, como é, o objetivo primeiro de cada grupo partidário a tomada do poder, o seu método de ação começa pelo ataque, por todos os meios disponíveis, contra o partido adversário que governa, tentando dificultar-lhe a vida e forçá-lo à demissão. E é, evidentemente, o que sempre fazem os partidos de oposição. Nem poderiam proceder de outra maneira sob pena de desistirem das suas concepções políticas e, portanto, de se demitirem de partido. E mais devemos atender a que essa guerra aberta e cega dos partidos oposicionistas ao que é governo será tanto mais persistente e violenta, quanto mais forte for a convicção de cada partido na sua verdade política.
Ora, ocorre perguntar: e pretender contrariar a própria natureza do sistema não será, implicitamente, andar perto de contestar o sistema?
O que mais impressiona, quanto ao regime dos partidos é que não se veja que a luta estabelecida entre eles não tem um fim. Ou se tem, esse fim é pior do que o estado de luta, porque terminará na ditadura do partido que na luta vence todos os outros.
É profundamente lamentável a soma enorme de energias (e de dinheiro) que se consome nas contendas inter-partidos, somas desperdiçadas a fomentarem divisões fratricidas e sentimentos de ódio, que, ao invés, bom seria que fossem postas em proveito e serviço da comunidade nacional.
Quem observa logo vê como as atividades partidárias são ajustadas ao ponto de vista eleitoralista. O que sobretudo importa aos partidos é ganharem votos ou, pelo menos, não os perderem. Assim estarão visceralmente voltados para a demagogia, a qual dificilmente se conjuga com a austeridade devida aos gastos públicos e aos interesses superiores da Nação.
É fartamente conhecida a prontidão com que os partidos, como clientelas que são, ao tomarem o mando, encaixam os seus apaniguados em lugares adrede criados, e supérfluos, no Estado. Naturalmente que uns mais descaradamente do que outros. Ficou escandalosamente célebre, na 1ª República, aquela publicação dos 30 suplementos ao Diário do Governo, de 10 de Maio de 1919, cujas páginas foram totalmente preenchidas com nomeações para quadros do funcionalismo público de cerca de 17000 adeptos do Partido Democrático, que era o de Afonso Costa.
Quem se lembra?
A este partido referiu-se Cunha Leal nos seguintes termos: «O Partido Democrático, que pesa, de forma descomunal, sobre a Nação, transformou-se numa Sociedade de Socorros Mútuos em que, para se ser auxiliado, basta apenas a apresentação da carta de filiação, com dispensa de documentos comprovativos de competência e honestidade». (As Minhas Memórias, Vol. II, pág. 463.)
E assim é que, hoje mesmo, quase todos os serviços dependentes do Estado estão superlotadíssimos de empregados, note-se que não dizemos trabalhadores ou servidores, que absorvem verbas incomportáveis ao orçamento deficitário, e isto por obra e graça da partidocracia imperante.
A questão cruciante das Finanças, que a todas as outras questões se impõe, é, como se sabe, a do déficit pavoroso e anualmente crescente: Que se conheça parece que existem apenas dois processos de vencer o déficit: aumentar receitas e diminuir despesas. O primeiro processo tem sido exemplarmente seguido com agravamento de impostos, com alienações patrimoniais e com a obtenção de sucessivos e vultuosos empréstimos. Mas reduzir despesas? Que partido está aí que se queira arriscar a propor a redução de despesas?
Algum se dispõe a arrostar com o odioso que fatalmente provocariam as restrições adequadas?
Encontra-se aqui o problema insuperável para os partidos, e porque o interesse partidário se opõe, também neste caso, ao interesse nacional.
Afigura-se extremamente difícil, para não dizer impossível, minorar os prejuízos do funcionamento dos partidos.
Algo, neste sentido, poderá esperar-se de uma prática corretiva dos Presidentes?
Mas os Presidentes sofrem, exatamente como os Partidos, dos mesmos defeitos de transitoriedade de ação e da nefasta dependência dos votos, que lhe deram a eleição e lhe são precisos para uma eventual reeleição.
Com certa margem de êxito poderia confiar-se na Realeza em virtude de ser independente dos partidos, e da perenidade no exercício do Poder, que a faz natural guardadora da continuidade na execução dos projetos nacionais. Em todo o caso, não se deve esperar muito das possibilidades de um monarca no regime partidocrático.
O Poder moderador que o Democratismo consigna ao Rei, digamos, em vez de poder, a função moderadora, apresenta-se fraca de meios para debelar as virulências que os partidos em guerra desencadeiam entre si. Aquelas ondas de desordem que, no dizer de Cunha Leal, ameaçavam galgar sobre o popularizado Presidente da República, igualmente podem ameaçar o Rei que as defronte.
A exaltação das ruas, nestes climas meridionais como o nosso, pode levar a desordem aos extremos. Além de que, capaz de irreverências por deseducação política, falta ao nosso povo o senso frio dos nórdicos. Esse senso que, ainda não há muito, guiou os operários ingleses, perante a ameaçadora subida de preços, a pedirem o congelamento dos seus salários para assim travarem aquela subida.
Em Lisboa seria imaginável uma atitude idêntica?
O que se vê são manifestações comandadas por demagogos, a exigirem acréscimos nos salários concomitantemente com decréscimos nos preços das coisas, como se conhecessem o segredo duma laboração mais cara produzir mais barato... Quando o absurdo dessas manifestações consegue mobilizar e conduzir milhares de populares, o que poderá, em consciência, esperar-se do voto de tais manifestantes? E lembrarmo-nos nós que esse voto é o fundamento legitimado do regime...
Se quisermos resumir diremos que a causa primeira, originária de todas as outras que no conjunto inevitavelmente conduzem ao fracasso da partidocracia, se encontra na base motora do sistema.
Os partidos movem-se na direção do Poder, e movem-se, portanto, em concorrência uns contra os outros, em rivalidade, em disputa dos meios de acesso ao governo. Em vez do princípio de colaboração e de entre ajuda, com vista ao bem geral da comunidade, a partidocracia assenta na divisão hostil, na agressividade entre partidos, nas suas lutas constantes e intérminas.
É evidente que uma população em que os seus filhos gastam o melhor das suas energias em guerrearem-se mutuamente é uma população fatalmente condenada à decadência. Como é evidente que só o trabalho pacífico e cooperante conduz o Povo à prosperidade e ao engrandecimento. A história universal demonstra que os regimes divisionistas por essência levam invariavelmente a fins negativos do bem-estar e que, pelo contrário, os regimes que se inspiram na união e a preservam são os regimes que tornam fortes e progressivas as nações. A nossa própria história o comprova muito particularmente.
1834 - O Partidarismo. «A partir desta altura, a nossa História toma carácter diferente. Esfuma-se, entre querelas e embates de fações, o vulto dominante da Pátria, como realidade viva, superior a todas, em que se concretizam os altos deveres e os altos fervores coletivos. O cristal quebra-se em mil estilhaços - e cada grupo, ou cada chefe de grupo, mira-se nesse estilhaço, supõe ver nele a totalidade. A lei do individualismo é essa: caos, dissídio, pulverização. Na base, um falso, dissolvente conceito, do homem, desligado dos valores transcendentes e desligado, ao mesmo tempo, do real imediato, quotidiano». Homem «ser isolado, cortado das raízes; um ser inviável». (História de Portugal, 4ª ed., p. 620.) Palavras estas concisas e exatas do ilustre historiador João Ameal. E assim tem sido, com intermitências, improfícuas, afinal, até à derrocada que nos arrasta para um abismo.
Século XV - A Idade de Oiro. Quando o pequeno Portugal, de pouco mais de um milhão de habitantes, adquiriu a sua maioridade, foi uno, e conseguiu o inacreditável: ser uma das nações mais influentes e a potência maior do mundo. A gesta heróica dos Descobrimentos realizou-se porque os portugueses de então não viviam fechados num individualismo materialista, mas como pessoas integradas no destino comum que a Pátria seguia.
Por certo o leitor terá na memória o poema de Fernando Pessoa, de quando a primeira nau portuguesa desvendava o Mar Tenebroso e defrontava o furibundo Adamastor, que, em voz monstruosa, interpelava: Aqui «Quem é que ousou entrar» (?), «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» «Quem vem poder o que só eu posso»?. E a resposta do homem do leme, transido de medo, é certo, mas com ânimo inabalável:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o monstrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!» (Mensagem", 9ª ed., pp. 62-63.)
Magnífica imagem do poeta!
O que foi a força invencível da unidade de um Povo - todos por um e um por todos! Esse um, o Rei-Perfeito, que era, no dizer de um outro nosso inspiradíssimo poeta «a Pátria com figura humana!» (António Sardinha, Pequena Casa Lusitana, p. 40).
Quem não poderá entender que cada sistema e cada regime leva consigo intrínsecas predeterminações distintas? Umas levantam alto a glória das Pátrias; outras afundam-nas no caos e na vergonha.
PENSAMENTO RENOVADOR
O descrédito irreparável e generalizado em que caiu o regime partidocrático vem, desde ha muito, da parte dos sociólogos e dos pensadores políticos da vanguarda, a ser objeto de censuras e demolidoras críticas, precursoras de um regime sucedâneo.
Num interessante livro, expendido em edições várias, G. Fernandez de la Mora apontava já há anos esta evidente realidade. «Os partidos políticos estão em crise; como é notório em França, sua pátria de origem e de adoção. Essa crise provém da incapacidade que tem para servir o princípio representativo, e da pouca eficácia para a gestão governativa. Oligarquização interna e instabilidade política são as duas causas principais da decadência do partidarismo. Por acréscimo, a forma partidária assim afetada é a ideológica». (O Crepúsculo das Ideologias, ed. "Ulisseia", p. 163.)
Depois de comentar o efeito mentalmente alienatório das ideologias e de frisar não poder ignorar-se o facto de que «há séculos de história real sem ideologias», o autor prossegue com as seguintes considerações. «As ciências naturais progridem impulsionadas pelo diálogo entre os seus cultores e pelo confronto das hipóteses com a realidade. Em geral, inteiramente à margem das ideologias. Porque não há de progredir do mesmo modo o saber político? As lutas ideológicas, pelo seu carácter apaixonado, simplista e multitudinário, são as menos propícias para a síntese, o esclarecimento e o diálogo. Não são, propriamente, processos hermenêuticos, mas sim endurecedores».
Em conclusão, o autor de «O Crepúsculo das Ideologias» define o seu pensamento. «Além do pluralismo ideológico, há o pluralismo das ideias, e é ele que anima a autêntica vida intelectual». A sua tese intitula-a de «ideocracia» isto é, a da supremacia das ideias à das ideologias. «Não é a tecnocracia. Não é um novo ideologismo». (Ob. cit., pág. 27.)
Provavelmente de algum lado se há de exprimir a reserva de que Fernandez de la Mora, antigo ministro de Franco, é um homem de formação direitista. Concordamos. Mas, para contrabalançar ouçamos agora uma voz da extrema-esquerda. É do comunista Roger Garaudy a página que vamos transcrever. «Durante um longo período, as diversas classes e camadas sociais, na França, tomaram efetivamente consciência de si-próprias e organizaram-se através dos partidos possuidores dos meios de organização e de educação: não apenas frações parlamentares estáveis e representantes em assembleias locais, mas jornais próprios a cada partido para difundir a sua ideologia, um aparelho capaz de manter uma propaganda oral e de organizar ações.
Atualmente, e correspondendo a uma tal definição, quase não existe mais do que o Partido Comunista e, em menor grau, o Partido Socialista.
Em contrapartida, importantes camadas sociais não se exprimem já através de partidos políticos.
É um facto: Todos os jornais que eram a expressão permanente da ideologia de um partido, com exceção de L'Humanité, desapareceram e os aparelhos - ainda aqui com exceção do Partido Comunista, e de uma forma esporádica, do Partido Socialista -, reduziram-se a estados-maiores nacionais, sem implantação sólida da base, salvo durante os períodos eleitorais, e modificando-se, desintegrando-se, reagrupando-se, segundo os acontecimentos e as correntes de opinião». (A Grande Viragem do Socialismo, pp. 263-264.)
Na sequência desta análise Garaudy afirma perentoriamente: «As grandes correntes ou os grandes movimentos que exprimem mais ou menos confusamente os interesses e as aspirações de diversas camadas sociais não se cristalizam já, de maneira permanente, sob a forma estruturada de grandes partidos». E completa o seu depoimento com a seguinte observação: «As organizações sindicais ou profissionais, as formas mais diversas de associação, desempenham a partir de agora um papel mais importante que os partidos políticos no sentido tradicional da expressão». (Idem, p. 265)
Não será impressionante e significativa para o leitor a aproximação, senão identidade, dos dois pareceres transcritos, provenientes de personalidades destacadas politicamente em polos opostos?
Talvez que também de Garaudy estejamos a ouvir, porventura do mesmo lado..., uma observação depreciativa, tanto que ele foi expulso, por heterodoxia, do Partido Comunista, onde fora deputado, senador, membro do Comité Central, da Comissão Política, etc. E verdade. E foi expulso exatamente por ser um pensador e pensar - o que não é admissível ao dogmatismo da ideologia marxista; foi realmente expulso após a publicação do livro a que no estamos a reportar, e no qual teve a ousadia de estampar a seguinte heresia: «O complexo burocrático-militar da U. R. S. S. não pode continuar a impor indefinidamente aos países socialistas vizinhos um modelo de Socialismo e estruturas que só se conseguem à custa da opressão da Polícia e do Exército».
Não nos aparecem só dos extremos as expressões intencionais de inconformismo com as envelhecidas formas do partidarismo político e de procura de um novo regime. Igualmente do centro do democratismo se levantam vozes, embora titubeantes, nesse sentido. O conhecido político francês Edgar Faure lança, em 1970, a iniciativa de «Um Novo Contrato Social». (Ob. cit. p. 171) A epígrafe é sugestiva e, sinceramente, parece-nos que ela vale mais por si do que o enunciado que lhe segue. Aliás não era de esperar muito de pensamento inovador de um político acorrentado e viciado na prática da partidocracia. Em todo o caso, reflete-se no seu espírito um vislumbre de nova luz, e é curioso como coincide (ou concorda, por conhecê-la?) com a tese da «ideocracia» de Fernandez de la Mora. Escreve E. Faure: «Nos domínios decisivos de que depende o nosso futuro, o debate de ideias deve ter prioridade sobre o combate entre partidos.
O concerto entre maioria e oposição deve passar a ser coisa natural, e a abertura a uma maioria baseada em ideias não deve excluir nenhuma boa vontade». (Para um Novo Contrato Social, Ed. "Futura", p. 16.)
Descontada a eiva democratista de que será difícil libertar-se, o político mostra compreender um facto importante quando reconhece: «Embora tenhamos entrado na era científica, a política tem dificuldade em atingir a idade da razão.»
Diagnóstico exato. O democratismo lida com os indivíduos massificados, e as massas não se comportam, nem pelo saber, nem pela inteligência; deixam-se conduzir pelos sentimentos, ao sabor das propagandas demagógicas. Demais, os dirigentes dos partidos nada costumam fazer para evitar que assim aconteça.
Vindo de onde vem, E. Faure chega a surpreender-nos com as perspetivas que descobre no horizonte das suas ideias. Ouçamo-lo. «A nossa proposta é inspirada pela preocupação de não deixar que os acontecimentos fiquem sujei-tos ao acaso e a simples reflexos condicionados das maiorias artificiais, procurando suscitar, de comum acordo, a procura de maiorias que sejam operacionais por terem apoiado os diagnósticos e as soluções dos grandes problemas. Dentro desta ótica, é particularmente importante que sejam incluídas neste acordo as forças vivas da nação - quadros, intelectuais, sindicalistas, dirigentes de empresas, universitários, etc., - que procuram o mesmo que nós procuramos, mas que desconfiam, tradicionalmente ou ocasionalmente, da classe política». (Ob. cit., p. 17.)
É sintomático da gravidade da crise que afeta o regime partidocrático e da aproximação dos tempos de mudança o facto de serem os «praticantes» da política a dar o sinal de alerta. O então presidente dos Estados Unidos, Carter, quando da sua visita oficial à capital francesa, «propôs a definição de uma nova ordem para a democracia, proposta esta formulada durante o discurso que proferiu no Palácio dos Congressos de Paris». (Diário de Notícias de 5-1-78.)
O anfitrião Valery Giscard d'Estaing, seis meses depois era, por sua vez, recebido em Lisboa e, no seu primeiro discurso, pronunciou-se também no mesmo sentido. Disse: «Falta ainda uma expressão moderna a dar às democracias». (Dos jornais de Lisboa de 20-7-78.)
Mas Giscard não se explicou, cremos que por incapacidade de o fazer. Ele tinha já publicado um livro político em 1976 (Democratie Française, Ed. Fayard.) e que, perante a expectativa, foi dececionante para quem procurou nas suas páginas alguma imaginação reconstrutiva. Giscard d'Estaing, efetivamente, não escreveu um livro de ideias; apresentou uma espécie de relatório de governo, do que fez e do que tencionava fazer, e pouco mais. Limitou-se a verificar uma crise de há muito verificada, sem lhe apontar qualquer hipótese de solução. Ora isto é ínfimo para o estadista de um grande país, que ainda por cima ambiciona desempenhar um lugar de chefia na política internacional. Mas verifiquemo-lo, transcrevendo-lhe a opinião sobre a crise das formas dominantes:
«O papel das ideologias é fornecer explicações que permitam analisar a realidade, a fim de orientar a ação. Contudo, as ideologias tradicionais, marxismo e liberalismo clássico, já não satisfazem a primeira condição.
Como esperar delas que possam cumprir a segunda função?
Esses dois sistemas de pensamento opõem-se há mais de cem anos, o que, para a nossa época, parece surpreendente.
Nos outros domínios do conhecimento ou da investigação, por exemplo, nas ciências físicas, químicas e biológicas, as teorias elaboradas no século passado foram várias vezes revistas e modificadas, e essa revisão é considerada, não apenas como normal, mas como o ato científico por excelência.
Isso deve-se ao fato de que o liberalismo clássico e o marxismo escapam amplamente ao domínio científico.
A paixão, muito mais do que a razão, conservou-os até hoje, embora sejam cada vez menos representativos das realidades observáveis nas nossas sociedades, e cada vez menos adaptados à solução das nossas dificuldades concretas.» (Ob. cit., p. 39.)]
Partindo desta análise realista, torna-se então desconforme que o político com responsabilidades de governante que é Giscard não aponte uma saída para a crise. O motivo desta falta, e da incoerência que revela, supomos encontrá-lo no apego preconcebido às velhas formas, de que a dedicatória que estampou na portada do livro «Pour Marianne et pour Gavroche» é suficientemente expressiva.
Anteriormente a Giscard d'Estaing, e avançando em propostas de solução da crise que está a sepultar a partidocracia política, outro e experimentado estadista francês, Pierre Mendes France, expôs o seu pensamento nos termos seguintes.
«Outrora, a dupla representação repousava, por um lado, numa Assembleia Nacional ou Câmara de Deputados, que exprimia principalmente as tendências políticas e os partidos, e, por outro lado, num Senado, representando as circunscrições departamentais, mas também, e em primeiro lugar, os meios rurais e as notabilidades locais.
Um sistema do mesmo tipo pode ser utilizado para fins muito diferentes: será suficiente orientá-lo para realidades mais evoluídas. Ao passo que as obrigações do Estado aumentam num vasto sector cuja substância está urdida de realidades económicas e sociais, os partidos assistiram à recente promoção, a seu lado, de jovens forças democráticas que traduzem estas realidades.
Se a Assembleia do sufrágio universal continua a exprimir, tal como no passado, as correntes ideológicas que se opõem no País, a segunda Assembleia será concebida de molde a representar os grupos sociais e os interesses profissionais, forças novas às quais o Estado deve reconhecer um papel e que devem participar do seu funcionamento.
Tais ideias chocarão os democratas da escala tradicional. A estes é preciso lembrar que no século XX a atividade dos órgãos do Estado se destina cada vez mais aos assuntos económicos, à produção, à repartição, e que um Parlamento do tipo clássico está mal preparado para os abordar; só tem tendência para OS considerar sob o ângulo eleitoral, que é fraco para resistir aos grupos de pressão, e que um suficiente domínio da vida económica condiciona a existência e o funcionamento de um Poder verdadeiramente democrático».
Mendes France conclui o seu pensamento:
«Por todas estas razões, ao lado da Assembleia que exprima as diferenças políticas e ideológicas, a presença de grupos socioprofissionais tornou-se necessária, no seio de uma segunda Assembleia dotada de efetivos poderes.
A partir de então, cada indivíduo fica representado duplamente e sob duas formas diferentes. Em primeiro lugar, sob o ângulo das suas aspirações e dos seus desejos políticos, através do sufrágio universal; sob o ângulo do seu papel económico e profissional, da sua classe, no seio de uma Assembleia que confronte todos os produtores e consumidores que constituem a coletividade». (A República Moderna, Ed. "Europa América", p. 98 e ss.)
Afinal, como acaba de ser verificado, o autor preconizava para o seu país, nada mais do que o mesmo arranjo que Salazar já ensaiava então em Portugal, com a simbiose da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa. O resultado dessa tentativa conhecemo-lo nós através da experiência a que assistimos, e que foi uma falência. Falência devida ao despotismo, fácil de prever, da classe política que, logo de início, sufocou e mistificou a representação do trabalho.
A política praticada no sentido ideológico, como hoje se pratica, é sempre despótica e absorvente.
Para se conseguir o desejado saneamento social é, pois, imprescindível, antes de tudo, confinar a política, e quem diz a política diz a classe política, aos seus limites naturais.
O sociólogo Raymond Aron, ao tratar dos problemas do reformismo democrático, e salvaguardando a importância da representação partidista, que nós igualmente prezamos, desde que ela não se exorbite das funções úteis que lhe cabem, anota exatamente esse ponto preciso de partida.
«A despolitização, que estaria mais exatamente designada com o nome de desideologização, é o facto a partir do qual os reformadores desenvolvem os seus temas». (Ensayo sobre las Liberdades, Ed. "Alianza", Madrid, p. 176.)
Noutra página R. Aron deixa esta sua concordância de opinião: «A fórmula, lançada por Edgar Faure, de um novo contrato social, simboliza bastante bem esse novo estado de espírito». (Obra cit., p. 185.)
Num outro sector do pensamento francês encontramos mais uma voz concordante. E de Maurice Jallut no seu estudo «Propositions pour un Nouveau Régime» (Les Cahiers de L'Ordre Français, pág. 94.). Traduzimos: - «Uma representação do país real será então uma representação destes dois elementos essenciais que são o território, ou mais precisamente a província, e a profissão. Uma tal representação opõe-se fundamentalmente à representação da nação tal como a fazem os dogmas da soberania do povo e da separação dos poderes. Ela restitui o eleitor ao seu meio natural».
A título de curiosidade juntamos ao coro que temos ouvido a voz harmónica de um poeta da nossa terra, pouco dado às políticas e que por isso tem um sabor especial.
Teixeira de Pascoaes, do seu refúgio das margens do Tâmega, entre outras palavras duras dirigidas às organizações partidárias, escreveu o seguinte: «Os Municípios devem ser o ponto de contacto entre a Família e a Pátria, dimanando o Estado diretamente daqueles, sem os terríveis intermediários que têm o nome de partidos, fações, clientelas, etc.». (Arte de ser português, 3ª Ed., p. 57.) «... e a representação nacional, tornando-se mais legítima, não enfermaria dos males do nosso atual parlamentarismo estrangeirado na sua origem e roído de todos os defeitos». (Idem, p. 60.)
Seria fácil, colhendo de autores estrangeiros alongar as citações: todas acordes na linha renovadora do pensamento que revelam. Terminamo-las aqui com uma que, pela sua proveniência, nos parece revestir-se de um particular significado. Vem da Jugoslávia, laboratório único de uma interessante experiência. Ouçamos: «Os jugoslavos consideram o sistema de vários partidos como um anacronismo para as condições que são as suas. Tem-se por muito tempo pretendido que entre o sistema de vários partidos e o sistema de partido único não existia uma terceira via possível. Ora esta terceira via existe. É a da democracia direta, da democracia de participação. O nosso ideal não é o sistema de partido, qualquer que ele seja. Nós tendemos a passar também esta forma de mediação, esta alienação da política». (Milojko Drulovic - L'Autogestion à L'Epreuve, Ed. Fayard, p. 155.)
Fala o autor de Democracia Directa como via de alternativa ao Democratismo. Não enjeitamos a ideia. Tanto quanto ela pode praticar-se na Administração pública, é a que se preconiza como forma de futuro, num retorno à nossa tradição. A democracia dos Municípios com os seus forais, das prerrogativas das Associações profissionais, da autarquia dos corpos intermédios e, em suma, da descentralização administrativa.
Alexandre Herculano, o sábio historiador da ordem antiga, com igual cuidado ao que pôs no estudo dos textos medievais, analisou a partidocracia - novidade para a sua época - e logo viu e preveniu: «Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências [Descentralizadoras]. Seria o suicídio». «É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais». (Opúsculos, 3ª Ed., tomo II, p. 238-239.)
O aviso de Herculano é a voz antecipada da inteligência portuguesa.
A Partidocracia, acossada pela aragem renovadora, sentindo fugir-lhe o tapete debaixo dos pés, fala agora de descentralização, como fala de parceiros sociais. Sinais de anuência ou de engodo? Por enquanto parecem apenas de ardilosa tentativa para ganhar tempo.
Democracia Direta, íamos dizendo, implica representação sem tutelas, sem distorções, sem intermediários estranhos, e que corresponda à voz autêntica da população na realidade da sua vida quotidiana, liberta de pressões alheias.
Tanto basta que cada homem se pronuncie das suas próprias posições, sobre os assuntos que lhe dizem respeito, que o interessam e dos quais tem naturalmente, conhecimento. Esta ideia é uma negação do sufrágio geral igualitário do democratismo, isto é, das votações feitas, comandadas e utilizadas em seu proveito pela classe política. E a doutrina da eleição diversificada, do voto de qualidade, da representação dos órgãos sociais, integrada, portanto, na tradição nacional. Mas é também a da votação inteligível em qualquer parte. Huxley, o escritor que já citámos, corrobora: «Muitas pessoas estão interessadas na política local ou vocacional que afeta as suas vidas diárias. E não estão somente interessadas nelas; estão bem qualificadas para tratar destes pequenos problemas com êxito. Mas poucos, pelo contrário, estão interessados na política nacional e internacional; e ainda menos são qualificados para tratar dos altos problemas da estatística». (Obra cit., p. 115.)
A condenação do votismo nivelador e dos seus processos de transformação dos povos em massasmanejáveis, é de há muito uma constante no escol dos nossos escritores. Já em pleno século XIX, diante das provas exibidas pela partidocracia constitucionalista, foi severa a crítica, e a rejeição sistema, da parte dos mais destacados componentes da notável tertúlia de «Os Vencidos».
Da pena, a tantos títulos brilhante de Ramalho Ortigão, saiu o seguinte trecho exemplar de crítica analítica: «A política converteu-se em uma vasta associação de intriga, em que os sócios combinam dividir-se em diversos grupos, cuja missão é impelirem-se e repelirem-se sucessivamente uns aos outros, até que a cada um deles chegue o mais frequentemente que for possível a vez de entrar e sair do governo.
Nos pequenos períodos que decorrem entre a chegada e a partida de cada ministério o grupo respetivo renova-se, depondo alguns dos seus membros nos cargos públicos que vagaram e recrutando novos adeptos candidatos aos lugares que vierem a vagar». (As Farpas, 1887, tomo III, pp. 9-10.)
Não custa a reconhecer que, efetivamente, as coisas não mudaram muito de quando, há 100 anos atrás, Ramalho Ortigão as viu, e porque a apreciação se mantém com atualidade, aqui a recordamos. Mais tarde, nesse volume interessantíssimo que são as Últimas Farpas, onde foram recolhidas as crónicas da República do 5 de Outubro, o autor diria «entre monarquia constitucional parlamentar e república parlamentar constitucional não distingo diferença - a não ser - entre o princípio da eleição e o da hereditariedade». Ramalho visava, portanto, o democratismo que lhes foi comum, e que exprobrou: «o que me repugna num e noutro dos dois regimes é a embusteira tirania do sufrágio em que ambos eles se baseiam, e a consequente interferência da néscia razão da urna na solução de problemas tão melindrosamente científicos, como o da governação dos homens.
O votismo e o parlamentarismo são, em Portugal pelo menos, os agentes mais perniciosamente destrutivos de toda a competência administrativa». (Últimas Farpas, 1946, pp. 15-16.)
A conclusão lógica deste esclarecido estado de espírito encontra-se expressa naquela dignificante confissão mental que é a sua admirável Carta de Um Velho a Um Novo, e em que Ramalho Ortigão adere publicamente à doutrina do Integralismo Lusitano.
De Antero de Quental, atormentado idealista que tanto se entregou à filosofia política, podemos resumir o seu pensamento anti-democratista nos seguintes extratos: «À medida que essa sociedade burguesa, transformando-se surdamente, entrou em decomposição, os partidos saídos dela e que a representavam perderam também gradualmente a sua atualidade social: os partidos transformaram-se em bandos, enquanto os seus programas, a princípio jurídicos, se foram reduzindo ao estado de frases de convenção duma retórica tradicional». «Tais partidos, cuja permanência só se explica pelo estado de torpor e inércia a que a incubação dum mundo novo condena momentaneamente a sociedade, são o caput mortuum da política burguesa e nada mais». (Carta de Antero de Quental, pp. 92-93.)
Depois da celebrada geração de 80 coube ao grupo integralista, formado nos bancos escolares de Coimbra, nos princípios deste século, a honra, e o mérito, de levantar bem alto o estandarte da inteligência portuguesa. A imprescindibilidade da transformação do Estado democratista, oriundo das fantasiosas teorias de Rousseau e do ciclone devastador da Revolução Francesa, e a sua reintegração na linha tradicional evolutiva, isto é, na ordem natural orgânica, foi que orientou a denodada ação desse grupo admirável de homens novos recém-entrados na vida política.
António Sardinha, fervoroso apóstolo do reaportuguesamento, apontou o desvio suicida que progressivamente ia perdendo a nação portuguesa: «A sociedade, expulsa dos seus moldes naturais, lançou-se então no caminho da desconexão e da anarquia, já nas relações dos indivíduos para com os indivíduos, já nas relações dos indivíduos para com o Estado. Entre os indivíduos e o Estado desapareceu, em nome de uma liberdade teórica e sem fundamentos, a verdadeira multidão de organismos intermediários que limitavam outrora a ação central do poder e facilitavam perante ele a defesa legítima dos outros interesses sociais.
Não inventariemos agora as consequências que resultaram da utopia revolucionária. Rotas as ligações do sangue e da terra com a obra comum do passado, a sociedade entrou a considerar-se como composta unicamente dos cidadãos existentes que, na frase célebre de alguém, nasciam como que enjeitados e morriam como que celibatários. Na falta de continuidade que só os regimes baseados na tradição nos garantem por meio das famílias, das comunas e das corporações, o vento da Revolução desenvolveu-se depressa, gerando no mais duro dos materialismos a vitória da força sobre o direito, o predomínio do lucro sobre a honra». (As Monarquias de Amanhã, in Durante a Fogueira, pp. 98-99.)
Insistindo, continua o lucidíssimo autor de Ao princípio era o Verbo: - «A ordem burguesa é o Estado napoleónico» - nós hoje diríamos, é o Estado socialista - «com a sua omnipotência burocrática e centralizadora, fazendo da sociedade uma larga administração, em que a posse do poder consiste no seu monopólio e na sua conquista por um partido mais atrevido que os outros». (Ibidem, pp. 102-103.)
Monárquico por conclusão, pelo raciocínio e pelas lições da História, António Sardinha sucintamente rematava a sua firmada convicção: «Só uma manifesta confusão mental levou, com efeito, a acreditar que as formas democráticas de governo dispunham, por virtude inata, duma superioridade indiscutível sobre todas as outras. O grande ludíbrio desmascara-se, enfim! E a monarquia nos aparece, com a frescura das coisas imortais, como o único sistema capaz de realizar a autoridade, a continuidade nas direções governativas, deixando aos órgãos legislativos e administrativos a liberdade, a autonomia e a fiscalização». (Ibidem, p. 102.)
Secundando a doutrinação do Integralismo Lusitano, de que, entre outros, foram pares os notáveis escritores José Pequito Rebelo, Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, Alberto de Monsaraz, Rolão Preto, salientou-se a Acção Realista encabeçada por Alfredo Pimenta. Erudito e intemerato lutador de Portugalidade deixou-nos este uma vasta obra de crítica acerba ao democratismo que diagnosticou como «o grande mal do século» (Contra a Democracia, 1949, p. 22.), gerador do «regime de guerra civil». (Elementos da História de Portugal, p. 499.) Contou Alfredo Pimenta, entre os seus mais destacados colaboradores, os nomes brilhantes de João Ameal e Caetano Beirão.
Nesta breve, muito breve retrospetiva do anti-democratismo no nosso país, não seria justo terminar sem uma referência aos escritores contra-revolucionários do século XIX, como o Marquês de Penalva, José Agostinho de Macedo, José Acúrcio das Neves, Visconde de Santarém, Gouveia Pinto, Fr. Fortunato de S. Boaventura, José da Gama e Castro que, sacrificadamente, em inúmeras páginas de irrespondível argumentação crítica verberaram o regime democratista, regime estrangeiro, imposto ao povo português.
Para não nos alongarmos, citamos apenas um, José Agostinho de Macedo. Escreveu o vigoroso panfletário: - «Não pode haver maior desgraça para o estado social que obrigarem-se os homens, que por muitos séculos se governaram de uma maneira, que repentinamente se governem de outra, conforme o arbítrio, e fantasia de poucos». (Fernando Campos, O Pensamento contra-revolucionário em Portugal, Vol I, p. 59.) E, lamentava-se: «De 1807 para cá perdemos o sossego, porque perdemos a união, e no momento em que se declararam partidos, acabou-se a ventura dos portugueses». (O Desengano, N.º 19, p. 11.)
Seria uma imperdoável omissão fechar esta resenha sem ao menos mencionar a eminente personalidade de Charles Maurras, de tal maneira a sua influência foi extensa no mundo intelectual e profunda nos espíritos. Se a França da Enciclopédia e da Revolução foi um foco contagiante, também, através da Action françaiseirradiou luminosamente o antídoto, até aos limites atingidos no universo pela cultura europeia.
A cruzada contra a irracionalidade nefasta do democratismo vem numa longa sequência e tem sido, por vezes, tormentosa, mas, exultemos!
Aproxima-se de muito perto um novo século e, nas reações afirmativas dos arautos do pensamento renovador, ele já se anuncia, indubitável, como o século redentor da inteligência política.
LUGAR AO SINDICALISMO
A história do Sindicalismo em Portugal - enquanto houve verdadeiros sindicalistas! - foi a de uma luta constante com os partidos políticos que pretendiam dominá-lo e absorvê-lo. Não admira que assim tivesse sido porque sindicalismo e partidocracia nada têm de comum. Bem compreendidos chocam-se pela razão de serem antagónicos nos aspetos essenciais.
O velho e indefetível lutador que foi o operário tipógrafo Alexandre Vieira, ao historiar o movimento sindicalista no nosso país, começa por declarar o que se segue:
- «É de justiça salientar que se ficou devendo ao Partido Socialista - que se fundara como agrupamento propriamente partidário pelo ano de 1872 e de que foi das principais figuras José Fontana - uma considerável atividade, conduzida no propósito de fortalecer as Associações de classe, nas quais atuavam muitos dos elementos filiados nos respetivos centros».
«Mas a circunstância de um bom número de socialistas ter pretendido então - e posteriormente também - subordinar a ação sindical às diretrizes partidárias prejudicou consideravelmente o exercício regular da primeira, o que levou alguns dos mais activos e inconformistas elementos do operariado militante a formarem núcleos anarquistas». (Alexandre Vieira, Para a História do Socialismo em Portugal, ed. "Seara Nova", 1947, p. 22.)
Aqui ocorre-nos um pensamento: Poderá interpretar-se este anarquismo nascente como uma oposição radical à estrutura partidocrática dominante do Estado?
Foi em 5 de Setembro de 1909 que se realizou em Lisboa o 1º Congresso Sindicalista. Na tese aí apresentada, «onde se encontra expresso o pensamento dos organismos sindicais» organizadores do Congresso, intitulada Organização Sindical, encontra-se, por motivo óbvio, o seguinte parecer: - «Lutar diretamente, sem interpostas pessoas, quer no campo profissional, quer no campo de classe». (Ob. cit., p. 46.)
Revela A. Vieira: «Em volta desta tese travou-se viva discussão, tendo o delegado Dâmaso Teixeira (de tendência socialista) apresentado uma moção em que se preconizavam as duas ações: a do Partido Socialista e a Sindical, no que foi debilmente apoiado por alguns outros elementos socialistas representados no Congresso e combatido pelo maior número de delegados. O parecer foi por fim aprovado por 27 votos, contra 1 rejeição, tendo havido 2 abstenções». (Ob. cit., pp. 47-48)
As tentativas destinadas a empalmar o Sindicalismo por parte dos interesses partidários vêm logo do início, como se vê. Estava-se então nos fins da Monarquia. Mas o Sindicalismo, embora nascente, soube, com determinação defender a sua independência.
Pouco depois vinha a República e com ela pelos efeitos de promessas da propaganda... diz A. Vieira, «estava o povo convencido de que melhoraria a sua situação. Mas como nenhuma mudança em sentido favorável se tivesse registado, começou a exteriorizar-se a impaciência dos trabalhadores pelo que quase todas as corporações operárias de Lisboa se lançaram em 1911 em sucessivas greves».
«Também em Setúbal foram para a greve os operários das fábricas de conservas, e como na ocasião as autoridades policiais tivessem exercido violências irritantes sobre os grevistas, as restantes corporações operárias da cidade deram-lhes o seu apoio, para o que contribuiu a indignação que provocou o assassínio, pela guarda republicana, de dois daqueles trabalhadores». (Ob. cit., p. 49.) E por aí começaram, escreve o mesmo depoente, «as primeiras perseguições das autoridades republicanas».
Vinha a dominar o Poder o «Partido Democrático» de Afonso Costa que, não conseguindo levar as hostes sindicalistas à sua obediência, as reprimia severamente. Uma dessas repressões foi levada a efeito quando estavam os militantes sindicalistas em reunião na Casa Sindical, onde foram cercados por «numerosas forças do exército, sem excluir artilharia»! forças comandadas pelo coronel Sá Cardoso, o qual viria mais tarde a ser presidente de um ministério afonsista. Mas passemos de novo a palavra a Alexandre Vieira: «perto das 3 horas da madrugada, tomadas todas as posições estratégicas pelas forças militares, e com os candeeiros da iluminação pública apagados, era mandado um par de parlamentários (polícias secretas) ao encontro de dois grevistas que, observando serenamente os movimentos dos sitiantes se encontravam à entrada do edifício». (Ob. cit., p. 62. Um dos grevistas era o autor que vimos citando.)
Acompanhados dos dois «polícias secretos», «de pistola em riste» foram levados à presença do coronel Sá Cardoso que «intimou a evacuação imediata do edifício, sob pena da artilharia entrar em ação». Aqui temos uma amostra interessante de como na 1ª República se respeitavam os direitos de reunião do povo trabalhador...
Claro que semelhante ultimato cortou qualquer veleidade de resistência. Mas continuemos a transcrever. - «Dentro de pouco começaram homens e mulheres, no total de umas 700 pessoas, a sair para a rua debaixo de chuva, perto das 4 horas da madrugada e metidos entre soldados da guarda republicana, estes armados de espingardas, seguindo aqueles em sucessivas levas para o Arsenal da Marinha. Uma parte dos presos tinha sido levada para a Penitenciária, recolhendo o maior número a bordo do transporte Pero de Alenquer. «A bordo do Pero de Alenquer, que não reunia condições para alojar 100 pessoas, estiveram detidas, durante uns 15 dias, cerca de 500, tendo transitado uma parte delas para a Penitenciária e para o Limoeiro, onde cinco dos mais conhecidos militantes permaneceram além de 100 dias». (Ob. cit., pp. 64-65.)
«Mais tarde, isto é, em 12 de Outubro de 1913, eram os militantes sindicalistas que estavam no Limoeiro removidos, inopinadamente, pelas 4 horas da madrugada, para o Forte da Graça, de Elvas, onde quase todos perfizeram nove meses de prisão sem culpa formada». (Ob. cit., p. 79.) O historiógrafo, um desses presos, conta a sua entrada «numa lúgubre casamata»: «e ficamos encafuados, por espaço de seis meses, numa galeria em que era necessário manter o candeeiro de petróleo aceso dia e noite!».
O que fica relatado foi apenas um dos muitos episódios das lutas incessantes travadas com o poderoso e inimigo partido Democrático, chefiado por Afonso Costa.
Como amostra da dureza do Governo em certos lances será curioso anotar um deles. Por motivos salariais declarara-se em greve o pessoal dos Correios e Telégrafos. Continuamos a transcrever A. Vieira: «Em face da atitude dos empregados dos correios e telégrafos, o Governo, repelindo a ideia da arbitragem, militarizou todo o pessoal, incluindo as mulheres... e começou por ordenar a prisão de um milhar de grevistas, mandados a seguir para vários navios de guerra» (Ob. cit., p. 115).
Como os empregados da Carris se solidarizassem com os dos Correios, Lisboa foi ocupada militarmente e o ministro da Guerra (Norton de Matos) foi «pessoalmente impor ao pessoal das estações de Santo Amaro e do Arco do Cego a saída dos elétricos, guarnecidos de tropas». (Ob. cit., p. 119.) E por este expedito processo deu por resolvida a greve...
Quanto à liberdade de imprensa (tão ofendida ela foi com prisões de jornalistas, assaltos comandados e destruições de tipografias, suspensões de jornais, etc.!) deixemos aqui o seguinte e demonstrativo testemunho extraído da obra que vimos seguindo. «Começou então a ser particularmente acossado pela sanha afonsista o semanário O Sindicalista, que, nos seus «en-têtes» e artigos, vinha exprobando com vivacidade os atropelos da oligarquia dominante, tendo sido mandadas vigiar pela polícia as oficinas onde era composto e impresso, em Lisboa, aquele jornal, no intuito de ser impedida a sua saída, motivo por que foi mister fazer compor e imprimir o semanário em várias terras da província, tendo, por essa razão e também porque os recursos materiais eram exíguos, de passar a publicar-se irregularmente.» (Ob. cit., p. 77.)
Com os traslados anteriores não se vá imaginar que temos tido o propósito de trazer para estas páginas uma panorâmica, ainda que muito reduzida, da guerra aberta, por vezes sangrenta, entre sindicalistas e agentes do democratismo. Moveu-nos, no principal, o desejo de vincar a resistência dos primeiros ante o objetivo dominador do partido político que, na época a que nos reportamos, pretendia ser tomado por «o partido dos trabalhadores».
Traçando as balizas do seu campo e não se cansando de reivindicar o princípio da independência política, a União Operária Nacional, criada no Congresso Operário de Tomar (1914), preceituava no Artigo 2º - «A União Operária Nacional não pertence a nenhuma escola política, doutrinária ou religiosa, não podendo tomar parte, coletivamente, em eleições, manifestações religiosas ou partidárias».
No 1º de Maio de 1917 encerrava-se a Conferência Operária de Lisboa com a seguinte e bastante expressiva resolução: «V - Exercer uma ação externa e eficaz contra a vida política e parlamentar no sentido de se sobrepor às ficções constitucionais e de não deixar mais os políticos profissionais e os partidos à vontade, em plena liberdade e ação deletéria, desmascarando-lhes os interesses inconfessáveis e evitando e acautelando-se contra as surpresas das coteries partidárias que levam os povos a procedimentos contrários à sua vontade». (Ob. cit., p. 103)
Na letra desta vigorosa deliberação lê-se uma sentença de divórcio entre a partidocracia, entre qualquer partido político, e a doutrina sindicalista, como também se deixa a descoberto o intento ardiloso que, no geral, preside ao partidismo.
Totalmente descrentes quanto a benefícios provenientes de alianças com a partidocracia, sem ilusões de qualquer espécie a esse respeito, os incorruptíveis sindicalistas contemporâneos da 1ª República a cada passo repetiam o aviso solene: «os trabalhadores só podem confiar no seu próprio esforço de classe, atuando coletiva e solidariamente fora da ação e influência de qualquer partido político». (Ob. cit., p. 122)
Era deste modo, com pureza de intenções, e sem misturas, nem poluições, que se pensava o Sindicalismo. Como vai distante esse tempo...
E hoje?
Hoje o espetáculo é de miserável abdicação, de ultrajante cedência.
Hoje não existe sindicalismo. E pior do que não existir é simular que existe. O que por aí se chamam organizações sindicais assemelham-se a moscas inanimadas envolvidas numa teia de aranha, quero dizer, aprisionadas na teia da política. Aliás o domínio da partidocracia conseguiu ser total e geral no mundo.
Mas, espantoso! Um clarão de alvorada surge onde menos seria de esperar: na Terra oprimida da Polónia. Ali, onde é mais difícil fazê-lo, porque não há liberdade, um povo levanta bem alto o guião do sindicalismo independente.
Walesa, o Homem, proclama que o movimento sindical não é de essência política, não tem por fim ser partido, nem governo. O «Solidariedade» reclama apenas o direito de ser livre e o lugar que lhe compete no Estado, como organização do Trabalho.
Seja qual for o resultado imediato deste assombroso levantamento do operariado polaco, sacudindo o jugo do partido governante e abandonando os «sindicatos» fantoches por ele dirigidos, a sua atitude ficará indelével na História como um grande e dignificante exemplo.
E no resto do mundo, o que irão fazer os trabalhadores pseudo sindicalizados? Vão consentir em continuar a ser tutelados por partidos políticos, como se fossem gente de menor idade? Ou prestar-se, mecanicamente, a serem «correias de transmissão»? A tolerância e a cedência têm limites que a dignidade impõe.
De um outro desvio tem de precaver-se o ideal sindicalista. Goetz Briefs aponta-o certeiramente: «Numa parte do globo vigora, em vez do sindicato, um sector intelectual alheio à classe, e que pretende representá-la». (Sindicatos de Ontem e de Hoje, Ed. Delfor, p. 44.)
A função dos sindicatos é hoje um tanto diferente do que era no princípio do século. Então o sindicato era um órgão reivindicativo perante o patronato privado. Atualmente, por motivo das nacionalizações, o patronato privado tem-se reduzido progressivamente, em número e em importância. As grandes empresas pertencem, nos nossos dias, quase todas ao Estado, pelo menos em regime de intervenção. Este é o senhor do maior número de empregos, o maior e mais poderoso patrão que o trabalhador jamais pensou servir. Além de ser capitalista inesgotável o Estado disfruta ainda do privilégio de dispor de forças coercivas (policiais), de possuir estabelecimentos prisionais, de controlar o poder judicial e os meios de comunicação. A conjuntura social mudou, pois, profundamente. O Estado moderno adquiriu uma importância como nunca a tivera.
É dentro dos quadros do Estado que tudo se resolve e que se ditam as leis do trabalho. Os partidos políticos manobram aí soberanamente; a Câmara legislativa é deles.
E por que razões não há de a Câmara ser também dos vários sindicatos? Acaso as organizações partidárias têm maior representividade humana do que as organizações sindicais? Porventura terão maior número de filiados?
Causa uma impressão estranha e custosa de compreender que sindicalizados renunciem à defesa direta dos seus próprios interesses de classe e o façam entregando-se a associações alheias. Diante desta anormal alienação dir-se-ia que foram atingidos por uma hipnose coletiva. E não despertam os trabalhadores para ver que o seu legítimo partido, partido especificamente representativo, não pode ser nenhum outro senão o sindicato em que se enquadram? Não despertam para ver que os políticos profissionais usurpam o lugar que eles, por direito natural, deveriam ter no parlamento?
Porquê darem os seus votos a deputados de partidos políticos e não os destinarem para deputados das suas associações sindicais?
Sindicalismo sem representação no Parlamento, onde os partidos políticos a têm, é sindicalismo abortado, vigarizado e ofendido. Esta não é, bem o sabemos!, a opinião dos homens dos partidos. Procurando defender as posições privilegiadas que usufruem eles vêm alegar que os vários partidos abrangem, nos programas de intenções que os definem e os distinguem, concepções não só políticas, mas também económicas, sociais, morais, etc., que têm em conta os interesses e as ideias sindicalistas e que certos partidos se ajustam à defesa de certas agremiações profissionais. Tentam assim convencer que seria uma desnecessária duplicação de representação, a sindical ao lado da partidária. Invocam ainda que, pela sua implantação, pela força, pela experiência e dinamismo adquiridos, os partidos estão aptos e indicados a incluir os sindicalizados que se integrem na sua ideologia. Toda esta argumentação, claro está, no propósito de evitarem que sejam afetados no monopólio da representatividade e do poder legislativo que detêm.
A argumentação, é bem de ver que não vale. As razões são simples de resumir:
Neste ponto tomemos um exemplo ou antes, ponhamos uma hipótese. Neste «país das uvas» como acharíamos o partido representativo dos viticultores? E qual o do comércio retalhista que, desde logo, não poderia ser o mesmo do dos produtores, nem do comércio por grosso ou exportador, cujos interesses nalguns aspetos se opõem?
Os lavradores têm interesses divergentes daqueles que têm os seus consumidores, mas os produtores agrícolas são, por sua vez, consumidores dos produtores de adubos, de pesticidas, etc., os quais, do mesmo modo são consumidores em face das empresas que lhes fornecem as matérias químicas.
Nesta amostra de complexos interesses em choque, como poderia imaginar-se a capacidade de os partidos políticos desempenharem as funções de representação requerida por cada sector? É mais do que evidente a impossibilidade de o fazerem. Aliás, como já notamos, a inspiração dos partidos políticos, desde que existem, é de outra natureza. Que a conservem, pois, que ninguém lha quer tirar, supomos nós.
Entre partidos políticos e associações profissionais poderão, caso por caso, não existir oposições ou incompatibilidades, embora as divergências de constituição e de serviços. Mas entre Partidocracia e Sindicalismo há mesmo oposição e incompatibilidade porque o regime partidocrático, absorvente e exclusivista, como é, gera essa oposição e essa incompatibilidade, por não deixar lugar à representação sindicalista.
O eminente integralista Luís de Almeida Braga, num belo estudo, cuja reedição muito útil seria fazer, anota:
«Sindicalismo e Democracia são dois polos opostos, que se excluem e neutralizam. Os sindicatos são organismos absolutamente antidemocráticos, pelo próprio facto de serem corpos sociais e agrupamentos selecionados. Enquanto numa sociedade democrática não contam senão os indivíduos, sem se conhecer das suas ocupações, no sindicato juntam-se profissionais de determinado ofício». (Paixão e Graça da Terra, p. 299)
Os políticos, numa generosidade mais que suspeita condescenderam, nos últimos tempos, em tratarem os agrupamentos do trabalho por «parceiros sociais», mas, falaciosa parceria esta em que uns parceiros têm prerrogativas que se negam aos outros... É que a velha questão permanece imutável. Tal como nos primórdios do movimento sindicalista, os partidocratas recusam-se a reconhecer a cidadania aos sindicalizados.
Os partidos políticos não toleram perder a hegemonia frente a uma independência sindicalista. Ainda agora tivemos uma dessas manifestações significativas referente aos acontecimentos da Polónia. O presidente da internacional dos partidos do «socialismo em liberdade», o Sr. Willy Brandt, marcou posição (afinal a mesma do «socialismo sem liberdade») advertindo o «Solidariedade» de que o sindicalismo deve conservar-se passivo, na dependência dos partidos, neste caso do partido único que domina a Polónia. (Dos jornais)
O antagonismo entre a Partidocracia e o Sindicalismo é um facto demais comprovado. Não há que ter ilusões. Não resta ao sindicalismo senão o caminho duro da conquista da independência. Uma nova época se abrirá depois, época de Justiça Social construída, repetimos, numa base franca de igualdade de direitos (e de deveres), de oportunidades, de fraternidade mútua, de harmonia na comunidade nacional. Estes predicados de uma sociedade justa demandam uma franca revisão de conceitos, de atitudes e de propósitos de todas as partes.
O sindicalismo, sob pena de perder a autoridade moral que lhe assiste, não pode querer para si o mesmo que censura e combate nos outros, e que seria o seu domínio de classe. O espírito de revanche é incompatível com a justiça social.
A industrialização do mundo moderno faz mudar profundamente muitas das velhas concepções. Uma delas é a do «trabalhador». No mundo antigo e artesanal a quase totalidade do trabalho era produto do esforço muscular, do homem. No presente inverteram-se as proporções e a máquina tomou o lugar de principal produtora. Mas a máquina, por sua vez, é produzida: é inventada, aperfeiçoada, assistida pelos técnicos. Estes, os técnicos das várias especialidades e categorias, partindo dos engenheiros, entraram, pois, no mundo do trabalho como seus componentes principais, adquirindo, por isso, o título legítimo de trabalhadores. Só por si este fenómeno alterou completamente os dados que, em termos simples, se punham na disjunção Capita-lismo-Operariado.
Trabalhadores são todos os homens que trabalham seja qual for a natureza das suas ocupações.
S. S. o papa João Paulo II, operário de origem, ao fazer a introdução à encíclica Laborem Exercens entendeu exatamente começar por reafirmar neste ponto a doutrina social da Igreja. «Com a palavra trabalho é indicada a atividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias». E a seguir: «o desenvolvimento industrial serve de base para se repor de um modo novo o problema do trabalho humano».
Com a extensão nominal dos quadros do trabalho, concomitantemente se repõe, para um alargamento considerável, a instituição dos sindicatos.
Uma concepção imediatamente ligada à do trabalhador, e que por isso se torna também sujeita a reformulação, é a do fundo sindicalista. O que são e o que devem ser os sindicatos?
Goetz Briefs, o autorizado sociólogo alemão, escreve: «O sindicato constitui a expressão histórica de um princípio social primitivo que pode formular-se no sentido de o homem (qualquer homem que trabalha) viver sempre dentro de uma ordem e de organismos de proteção, dentro de uma pluralidade de organismos, entre os quais os de maior relevo são a família, o município e a Igreja, aos quais cabe acrescentar a associação profissional, livremente eleita pelos seus membros e baseada no carácter voluntário». O autor prossegue na sua análise realista com as seguintes considerações: «O homem não viveu de outro modo no passado e constitui um período único da História, aquele em que foi forçado ao isolamento, como indivíduo reduzido a si mesmo, responsável por si, defensor exclusivo dos seus próprios interesses frente à concorrência dos seus semelhantes. Do Renascimento provêm as ideias do homem como indivíduo e de uma sociedade concebida como um somatório de indivíduos que se organizam «mecanicamente», segundo pactos e interesses.
Da generalização deste ideal renascentista procede o individualismo económico, cujo avanço destruiu as antigas formas em que o homem trabalhara e produzira e situa-o isolado, num mercado sem segurança». (Ob. cit., p. 81)
A situação dramática no sector do trabalho e o prejuízo dos trabalhadores começou, na verdade, com o democratismo, para continuar com os seus sucedâneos, o socialismo e o comunismo.
Conhecerão os operários (levados ao engano a festejar a Revolução Francesa) que uma das suas primeiras medidas, a lei Le Chapelier, de 14 de Junho de 1791, que proibiu «os cidadãos de profissão idêntica de se reunirem para formular regulamentos a respeito dos seus supostos interesses comuns»? E saberão que, a seguir, a Assembleia Legislativa decretou a «pena de morte para aqueles que pretendessem reconstituir as associações operárias»? Terão conhecimento de que, com a introdução das ideias do democratismo em Portugal, também aqui (por decreto de 7 de Maio de 1834), «foram extintos os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e Quatro e os Grémios dos diferentes Ofícios»? (Fernando Campos, O Princípio da Organização Corporativa através da História, 2ª ed., p. 39.)
Desfeitas as associações dos trabalhadores, ficavam estes transformados em indivíduos, presas isoladas e sem defesa dos partidos políticos, despojados dos direitos legítimos e adquiridos em séculos de história.
No que concerne ao direito de fazer greve terá a generalidade dos trabalhadores uma noção exata das situações? Antes de mais será bom manter presente a palavra da Igreja romana. Na Laborem Exercens confirma S. S. João Paulo II: «É um modo de proceder que a doutrina social católica reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites. Em relação a isto os trabalhadores deveriam ter assegurado o direito à greve, sem terem de sofrer sanções penais pessoais por nela participarem. Admitindo que se trata de um meio legítimo, deve simultaneamente relevar-se que a greve continua a ser, num certo sentido, um meio extremo. Não se pode abusar dele; e não se pode abusar dele especialmente para fazer o jogo da política».
Aqui põe o Santo Padre o dedo na ferida, visto o que se passa com os sindicatos, desviados da sua vocação e independência, reduzidos a sucursais de alguns partidos políticos.
Mas vejamos então o que vem aos trabalhadores, a respeito do direito à greve, dos lados do democratismo e dos socialismos marxistas. O democratismo começou por marcar a sua posição com a citada lei Le Chapelier tornando-a ilegal. Depois, ante o renascer do movimento sindical, seguiram-se as maiores violências. Ouçamos Lucien Rioux no seu livro Iniciação ao Sindicalismo, p. 41: «Este impulso será brutalmente interrompido, em 1871, pelo impiedoso esmagamento da Comuna de Paris. Historiador do movimento operário, Edoward Dolléans escreveu: «A repressão da Comuna foi implacável. Fez mais de 100 mil vítimas. No dia seguinte à Comuna, os militantes foram espancados, fuzilados, proscritos; as agremiações operárias, desfeitas pela guerra, pareciam ter desaparecido». Uma legislação excecional é posta em execução (14 de Março de 1872). Trata-se de proteger as populações operárias contra as desordens sociais, contra a greve, «conluio contra a ordem social», e de impedir qualquer reconstituição das organizações operárias». Isto é da história, mas é imprescindível conhecer para bem ajuizar da verdade e da coerência dos ditos e dos feitos.
É um facto notório o de os partidos de inspiração marxista fomentarem e incrementarem ações grevistas nos países onde não são governo, e as proibirem naqueles países onde governam. Não surpreende o facto a quem conhece a sua estratégia política, aliás uniforme. Mas tomemos uma panorâmica do que, nesta matéria, se passa nos «países de leste». Serve-nos de informação insuspeita o livro O Sindicalismo no Mundo, de Georges Lefranc (Publicações Europa-América", pp. 48-49; 96-98). Os dados são facilmente comprováveis em muitas outras fontes. Começando pela URSS explana o autor: - «Os dirigentes das empresas acusam os dirigentes dos sindicatos de exigir aumentos de salários, sem se preocuparem com o rendimento; os sindicatos censuram às empresas o não procurarem uma melhor técnica.
«Com os planos quinquenais, a partir de 1928, a evolução acelera-se: os interesses da produção sobrepõem-se decididamente. A planificação não deixa ao sindicato mais do que uma fraca margem de manobra. Um decreto de 7 de Setembro de 1929, restabelecendo a autoridade do chefe da empresa, proíbe aos sindicatos a ingerência na direção.
«Em Julho de 1930, o XVI Congresso do Partido Comunista encarrega os sindicatos de aumentarem o rendimento, de recorrerem aos trabalhadores de choque, de combaterem os burocratas que paralisam a emulação socialista, de formarem tribunais para julgar as infrações à disciplina, de fazerem compreender que o trabalho, num Estado socialista, exige práticas diferentes das de um Estado capitalista.
«O Partido Comunista», declara o X Congresso, «dirige estritamente toda a parte ideológica da atividade dos sindicatos; as fações comunistas dos sindicatos ficam inteiramente submetidas às comissões do Partido... A escolha do pessoal dirigente do movimento sindical deve fazer-se, bem entendido, sob controle e a direção do Partido».
Como claramente se verifica, o sindicato num Estado comunista perde a sua função reivindicativa e de defesa dos trabalhadores e muda-se para uma função reivindicativa a favor do Estado-patrão contra os trabalhadores.
Continuemos a ler o mesmo autor. «Um guia oficial editado em 1938 escreve: «Os sindicatos soviéticos... impuseram a si mesmos a tarefa de ir em auxílio dos organismos económicos e públicos que dirigem a produção, fazer apelo a cada operário e a cada empregado para obter dentro das horas de trabalho fixadas a maior produção possível e a qualidade mais alta e lutar, por todos os meios, para um maior rendimento do trabalho».
«Dentro deste quadro, as greves não poderiam existir; qualquer tentativa nesse sentido seria considerada como ato de sabotagem e como tal punida».
O quadro exposto é bastante elucidativo. É óbvio que dentro do espaço da 3ª Internacional, que Moscovo comanda, as disposições são idênticas em todos os países, e nem poderiam deixar de o ser. Vejamos uma amostra, tirada ainda do citado volume «Sindicalismo no Mundo». «A lei checoslovaca para a defesa da República, assinada pelo presidente Gottwald, prescreve todas as greves, bem como todas as sabotagens: «Todo aquele que incitar os funcionários à desobediência será passível de uma pena de 1 a 5 anos de trabalhos forçados» (art. 20º), «todo aquele que se opuser ao cumprimento das funções dos empregados do Estado será passível de uma pena de 5 a 10 anos de trabalhos forçados» (art. 21º) «todo aquele que, com o fim de lesar o Estado, não efectuar o trabalho que lhe estiver confiado, será passível de uma pena de 1 a 5 anos de trabalhos forçados» (art. 30º).
Na República Democrática Alemã «o sindicato permanece subordinado ao Partido».
Na Bulgária, idem. «Os estatutos adotados em Maio de 1966 pelo Congresso dos sindicatos búlgaros estipulam no seu preâmbulo: «Os sindicatos desenvolvem a sua atividade sob a direção do Partido Comunista Búlgaro, força organizadora e dirigente da sociedade socialista».
Na Polónia... os acontecimentos tão relevantes da atualidade dispensam referências, exceto uma. É que também o Solidariedade não escapou ao sestro da politização. Esta compreende-se aqui mais do que em qualquer outro lugar. Única força representativa e organizada que, um tanto inesperadamente, se depara ao povo polaco ao fim de tantos anos de privação de liberdades, para ela se canalizam naturalmente os protestos ao regime político e as aspirações de uma ordem social justa. Compreendem-se os motivos que acidentalmente movem importantes sectores do Solidariedade, os quais chegam ao ponto de pretenderem substituir-se ao Governo. É sempre um erro no ponto de vista doutrinário dar aos sindicatos uma feição política.
Certamente aconselhado pela hierarquia católica Wallesa encabeça a corrente de bom-senso que prevaleceu no último Congresso e que, vencidas as dificuldades conjunturais. Há de, assim é de crer, conduzir o Solidariedade no seu caminho certo - o do sindicalismo livre, com funções específicas no Estado organizado numa base de trabalho.
Porventura já se reparou com a devida atenção, que o partidarismo político propicia lugar e acesso aos mais altos postos, nos partidos e no Governo, a indivíduos inúteis, ociosos sem profissão, parasitas do trabalho alheio e que, ao contrário, na ética sindicalista apenas cabem os trabalhadores?
Não pode pensar-se numa reformulação dos problemas do Sindicalismo, tão estreitamente ligados que andam à luta de classes, sem primeiro rever um ponto básico - a teoria da mais-valia. Esta, como se sabe, tem sido exposta de uma maneira extremamente simplista: a produção de uma empresa resulta do trabalho dos seus operários, e como é do produto desse trabalho que se retiram os lucros para a entidade patronal, segue-se que os salários são, nessa parte, roubados. O mesmo é dizer que os trabalhos dos operários têm «mais valia» do que os salários que lhes são pagos.
Os lucros acumulados (sucessivamente extorquidos aos salários justos) constituem o Capital. Conclusão: o «capital é um roubo» feito aos trabalhadores, apresente-se ele em notas de banco ou em propriedades imobiliárias, e, por conseguinte, a atitude do trabalho há de ser «anticapitalista». A luta contra a classe possuidora dos bens de produção, com o fim de abolir a propriedade privada, é o caminho a seguir. Extingue-se a propriedade privada com o Socialismo, nacionalizando-a. Este o essencial da doutrina que da mais-valiase conduz ao socialismo.
Analisemos nós agora as premissas invocadas e os fundamentos reais da argumentação aduzida, certos de que hoje é muito mais fácil fazer essa análise com clarividência, porquanto a evolução socioeconómica no século atual, ao dar maior relevância a certos fatores, tirou a outros a importância magna que tinham.
Marx congeminou a teoria da mais-valia em relação às condições da sua época, a qual se caracterizava por uma atividade preponderante de manufatura. Esta circunstância é muito importante a reter. A quase totalidade do trabalho era humano, quer na agricultura, que ocupava a maioria dos braços, quer na incipiente indústria, ainda não muito afastada, nos métodos, da artesanal. Com a entrada avassaladora das novas máquinas e da eletrónica no mundo do trabalho, modificou-se profundamente a conjuntura; reduziu-se muitíssimo o esforço muscular do operário que, de agente produtor de trabalho passou a assistente da máquina trabalhadora.
Antecedendo esta transmutação já tinha surgido uma nova categoria de trabalhadores - a dos inventores e dos técnicos - (nova classe?), precisamente a originadora desta transmutação. Inventores e técnicos, imprescindíveis desde então na evolução industrial, subiram, pela natureza própria do seu labor, à direção e aos comandos do trabalho. A par do consequente crescimento da produtividade, especialmente da industrial, desenvolveu-se um outro sector colaborante da produção - o do Comércio (mais uma classe?). Desnecessário na fase ultrapassada da produção por encomenda, tornava-se agora absolutamente indispensável para dar o preciso escoamento aos produtos fabricados, quer colocando-os no consumo interno, quer dirigindo-os para a exportação.
Dar-se-á o caso desses operários, que de boa-fé se prestam a fazer os jogos grevistas de certos partidos políticos, terem refletido nos efeitos catastróficos que adviriam para a empresa que os sustenta, se esta fosse visada com greves e boicotes da parte dos comerciantes distribuidores, o que provocaria o armazenamento crescente dos produtos, a paralisação de vendas, a suspensão de recebimentos e as consequentes dificuldades nos pagamentos de salários? Talvez esses operários, iludidos pelos slogans de propaganda, não tenham aprofundado estas questões que tão diretamente lhes dizem respeito... Se o fizessem, com espírito livre de preconceitos, decerto haveriam de verificar que não será na luta de classes (afinal trabalhadores contra trabalhadores) que prosperam as empresas e se abrem postos de trabalho. E é na situação económica da empresa que se insere o interesse do trabalhador. De organismos falidos e de cofres vazios nunca será avisado esperar grandes proventos.
Mas não passemos daqui sem abordar uma face do explorado tema que é o capital.
Sempre que se nos depara o obstinado ataque de que é alvo, nós perguntamos a nós mesmo como é concebível pôr uma organização produtora a funcionar sem capital. Também o conceito de capital, para além das várias interpretações que dele se têm extraído, mudou significativamente. Após o desenvolvimento das sociedades por ações deixou de ser aquele, e único, a que Marx se referia. Como notou Bernstein, com estas sociedades por ações «tornou-se possível conciliar a produção em grande empresa com a dispersão do seu capital, permitindo certas formas de participação dos trabalhadores» como autênticos componentes capitalistas.
Apesar do avanço esclarecedor de um século sobre as obsoletas e falhadas teorias de Marx persiste, e ainda assaz difundida, a confiança na estatização de todos os meios de produção como o antídoto do capitalismo liberal. Presume-se desta forma extinguir pela raiz os males da economia capitalista. De facto, apenas se substitui o capitalismo particular pelo capitalismo do Estado. Para melhor, ou para pior?
Raciocinemos. Será preferível a alternativa de haver muitos patrões por onde escolher o local e a espécie de trabalho e manter a possibilidade de discutir a remuneração, sabendo que acima do patronato se pode contar com um Estado fiscalizador, para quem é possível apelar e pedir justiça, ou será preferível fazer do Estado o único e indiscutível patrão, senhor de todo o capital, patrão sem concorrência, o que lhe permite marcar todas as condições de trabalho, com a agravante de ser ele o detentor superior de todos os poderes?
A opção, por enquanto, é nossa. Não o será jamais a partir da hora em que o Estado se faça totalitário, porque então pode acontecer que nem a liberdade de emigrar e procurar melhores condições de trabalho no estrangeiro seja permitida... e o saltar do muro fronteiriço será o encontro quase certo com a morte. Citemos ainda Goetz Briefs: «Por experiências antigas e modernas deveria saber-se que a coletivização dos meios de produção significa a coletivização do homem. No coletivismo impõe-se como necessidade absoluta o coletivo. Mas o preço é caro. Quem fala hoje do valor e da dignidade do homem - e os sindicatos é assim que fazem - dita a sua sentença, implicitamente contra o coletivismo». (Ob. cit., p. 60) Registe-se esta confissão de Garaudy: «Com o capitalismo monopolista do Estado, o capitalismo não mudou fundamentalmente de natureza». (A Grande Viragem do Socialismo, Publicações D. Quixote, p. 254.)
Espairecendo pensamentos tristes ocorre-nos a lembrança de um divertido episódio passado numa viagem turística que nos fez atravessar um «país do leste» europeu, por sinal considerado o mais ortodoxo dos países comunistas. Enquanto o autocarro nos transportava de uma cidade a outra, um jovem, adjunto da nossa guia, aproveitou o ensejo para, sem que ninguém lho pedisse, expor ao microfone alguns pontos da Constituição Política que os regia. Após um largo tempo de preleção ofereceu-se para prestar qualquer esclarecimento complementar que algum passageiro porventura quisesse pedir. Umas tantas perguntas sem interesse foram feitas e respondidas, até que alguém o interpelou assim: «Num país como o vosso, onde não há contribuições prediais, nem industriais, nem de transações, etc., pela razão óbvia da não existência da propriedade privada, e que constituem a fonte maior de receitas nos países em que vivemos, onde vai o vosso Estado buscar as receitas necessárias para fazer face aos encargos com os serviços não rendáveis, como sejam estradas, hospitais, asilos, etc.?». Resposta pronta: «Aos lucros das empresas nacionalizadas!». Obtida a declaração, continuou o turista desinibido: «Pois bem, eu sabia que não poderia ser de outra maneira, mas queria ouvir isso da sua boca, pelo seguinte. É que nos nossos países, ditos capitalistas, os camaradas comunistas fazem a sua propaganda junto dos operários dizendo que os lucros das empresas representam o valor do trabalho prestado e que lhes não é pago, isto é, expõem a teoria marxista da mais-valia. Pelo que «o camarada» acaba de confessar verifica-se que também aqui as empresas auferem lucros. Fica-se a saber, por conseguinte, que nos países comunistas se observa o igual fenómeno da mais-valia. Ou não será isto exato?» Esta intervenção, tão simples, mas embaraçosa, foi suficiente para deixar o jovem preletor, que a princípio se apresentou tão seguro e vivaz, completamente perplexo e calado.
Na sequência desta ordem de considerações cabem aqui algumas palavras sobre o socialismo autogestionário, de certo modo já implantado no nosso país através de algumas «empresas públicas» (e de serviços!) monopolistas.
A imagem primária da autogestão para um operário ávido e precariamente informado, pode ser a seguinte: nós, trabalhadores, tomamos conta da gestão e da administração da nossa empresa; senhores dos lucros, subimos os salários e criamos regalias e gratificações e com o estímulo de ganhos crescentes, damos ao país a garantia de aumentar a produção. É uma maneira aliciante e simplista de ver o problema, e que nada tem de ser agradecida por todos os outros trabalhadores... Não se pensa aí que existem empresas por sua própria natureza pouco ou nada rendíveis, nas quais semelhante decisão seria impossível. O resultado prático de autogestões independentes será o de estabelecerem-se disparidades escandalosas de salários para trabalhadores da mesma categoria e, por conseguinte, um mal-estar grave nos meios do trabalho que, mais cedo ou mais tarde, lançará os operários, já não numa luta de classes, mas em lutas, dentro das classes, dos operários pobres, contra os operários ricos.
Sendo a Jugoslávia o único país do globo onde aturadamente se tentou praticar, a nível nacional, o socialismo autogestionário, é justo que colhamos informações na sua experiência. E ninguém nas poderá fornecer mais seguras do que Milojko Drulovic de quem o conhecido e insuspeito Michel Rocard nos diz, e nós traduzimos: «M. Drulovic ocupa altas funções de responsabilidade no seio da Liga dos Comunistas Jugoslavos. Teórico de talento, diretor da revista Politika, ele é um dos observadores melhor informados da vida do seu país». (Milojko Drulovic, L'Autogestion à L'Épreuve, Ed. Fayard, p. VIII.) Pois tomemos conhecimento do que ele, com a sua especial autoridade, nos revela: «as diferenças sociais são um dos grandes temas da atualidade na vida política jugoslava». (Ob. cit., p. 26)
Enumerando as origens das diferenças salariais põe «em primeiro lugar o monopólio de certas empresas (distribuição de energia elétrica, comércio externo, etc.)». No ponto de vista que interessa ao assunto o autor conclui: «Mesmo os desvios provenientes estritamente de diferenças nos resultados do trabalho provocam polémicas em certos meios. Confunde-se aí o facto económico com o facto social e reclama-se o nivelamento na remuneração». (Idem, idem)
Claro está que situações anómalas, como as referidas, não devem tolerar-se, nem realmente podem continuar. Uma planificação geral irá fatalmente pôr fim a esta espécie, ou fase, de um socialismo de desigualdade. Por outro lado, é forçoso atender a que um Estado socialista tem, mais do que qualquer outro, despesas (burocracia, serviço, vias de comunicação, forças armadas, etc., etc.) e que será às suas empresas (industriais, comerciais, agrícolas) que terá de exigir o montante necessário, visto não dispor de outras fontes de receitas. Assim as empresas autogeridas, tal como as geridas pelo Estado, serão impedidas de desviar os lucros em proveito pessoal dos seus trabalhadores. Autogestão, com que fim, se as unidades autogeridas acabam fatalmente por ficar submetidas à superior gestão económica do Estado?
Uma conclusão inteligente ressalta do exame às saídas revolucionárias do Sindicalismo: a de que essas saídas não servem os interesses dos trabalhadores.
«O melhoramento da sorte da classe operária é questão de harmonia e não de luta, de união e não de discórdia, de confiança mútua e não de ódio.
Se operários e patrões têm interesses de ordem secundária opostos têm interesses primordiais comuns.
Procurando melhorar progressivamente a condição do operário, o sindicato será o fator normal e pacífico das relações entre o trabalho e o capital». (Ob. cit., p. 239)
São do magnífico ensaio de Luís de Almeida Braga os períodos que acabamos de citar, coincidentes em tudo com a doutrina católica.
Já atrás equiparamos, a respeito do direito à greve, a traição dos demagogos face aos conselhos paternais do vigário de Cristo. Que não esqueça esse esclarecedor confronto e que ele sirva de aviso!
O Papa João XXIII, sob o expressivo título «Presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas», também abordou esta matéria e nos termos que se seguem:
«deve atender-se a que a empresa venha a ser uma comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na posição de todos os seus sujeitos. Isto exige que as relações entre os empresários e os dirigentes, por um lado, e os trabalhadores, pelo outro, sejam baseadas em respeito, estima, compreensão, leal e ativa colaboração e interesse, como numa obra comum e que o trabalho seja concebido e vivido por todos os membros da empresa não só como fonte de rendimento, mas também como cumprimento de um dever e prestação de um serviço. Isto importa também que os trabalhadores possam fazer ouvir a sua voz e prestar o seu concurso ao eficiente funcionamento da empresa e ao seu progresso». (Encíclica Mater et Magistra, União Gráfica", 3ª ed., pp. 31-32.)
Concretizando recomenda com grande atualidade João Paulo II: «o papel dos sindicatos não é o de «fazer política» no sentido que hoje comummente se vai dando a esta expressão. Os sindicatos não têm o carácter de «partidos políticos» que lutam pelo poder, e também não deveriam nunca estar submetidos às decisões dos partidos políticos, nem manter com eles ligações muito estreitas. Com efeito, se for esta a situação, eles perdem facilmente o contacto com aquilo que é o seu papel específico, que é o de garantirem os justos direitos dos homens do trabalho no quadro do bem comum de toda a sociedade e, ao contrário tornam-se um instrumento de luta para outros fins». ("A Importância dos Sindicatos" in Encíclica Laborem Exercens)
Tem muita importância notar como a esta doutrina se ajusta a de um sindicalista como Krasucki, que escreve: «Em nossa opinião, numa sociedade socialista a função específica dos sindicatos continuará a ser a defesa dos interesses dos trabalhadores. Verificar a diferença de natureza entre organizações sindicais e partidos políticos, e, por conseguinte, que as responsabilidades respetivas são de ordens diferentes, é reconhecer uma evidência». (Sindicatos e Socialismo, ed. "Seara Nova", pp. 54-55).
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Sobre a essência e função dos sindicatos continua João Paulo Il na sua recente Encíclica: «A doutrina social católica não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura «de classe» da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classe, que inevitavelmente governe a vida social. Eles são, sim, um expoente de luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões. No entanto, esta «luta» deve ser compreendida como um empenhamento normal de pessoas «em prol» do justo bem: no caso, em prol do bem que corresponde às necessidades e aos méritos dos homens do trabalho, associados segundo as suas profissões; mas não é uma luta «contra» os outros. Se ela assume um carácter de oposição aos outros, nas questões controvertidas, isso sucede por se ter em consideração o bem que é a justiça social, e não por se visar a «luta» pela luta, ou então para eliminar o antagonista». (Laborem Exercens, ed. da Tipografia Poliglotas Vaticana, p. 43)
Pondo de lado ideologias fantasiosas que o raciocínio e a experiência já condenaram por inúteis ou maléficas e nas quais se inclui a luta de classes baseada no anacronismo da mais-valia, o objetivo sensato que o bom conselho nos indica será o da convivência em paz e amizade, porque todos viajamos no mesmo comboio. São diferentes os lugares? Naturalmente. Nem todos os passageiros podem seguir na carruagem da frente. O que há a ver é que todos usufruam da indispensável comodidade e de igual segurança na viagem da vida. E isto que nunca foi alcançado desde que a humanidade existe. E na luta por este desideratum que todos nos deveríamos empenhar e não em pretender desalojar em nosso proveito os companheiros que vão à frente e mandá-los para trás, porque então as lutas fratricidas serão intérminas, visto haver sempre ocupantes dos lugares da frente e dos da retaguarda, e com elas põe-se o nosso comboio em risco de descarrilar.
E de elementar entendimento que uma organização empresarial consiste num maquinismo complexo, com muitas engrenagens. Uma só engrenagem que emperre é suficiente para entravar todo o funcionamento do conjunto, ou mesmo paralisá-lo, resultando um prejuízo geral.
Necessariamente que um sindicalismo colaborante pressupõe garantias. Trataremos delas no capítulo da Representação na Assembleia da República.
O velho e indefetível lutador que foi o operário tipógrafo Alexandre Vieira, ao historiar o movimento sindicalista no nosso país, começa por declarar o que se segue:
- «É de justiça salientar que se ficou devendo ao Partido Socialista - que se fundara como agrupamento propriamente partidário pelo ano de 1872 e de que foi das principais figuras José Fontana - uma considerável atividade, conduzida no propósito de fortalecer as Associações de classe, nas quais atuavam muitos dos elementos filiados nos respetivos centros».
«Mas a circunstância de um bom número de socialistas ter pretendido então - e posteriormente também - subordinar a ação sindical às diretrizes partidárias prejudicou consideravelmente o exercício regular da primeira, o que levou alguns dos mais activos e inconformistas elementos do operariado militante a formarem núcleos anarquistas». (Alexandre Vieira, Para a História do Socialismo em Portugal, ed. "Seara Nova", 1947, p. 22.)
Aqui ocorre-nos um pensamento: Poderá interpretar-se este anarquismo nascente como uma oposição radical à estrutura partidocrática dominante do Estado?
Foi em 5 de Setembro de 1909 que se realizou em Lisboa o 1º Congresso Sindicalista. Na tese aí apresentada, «onde se encontra expresso o pensamento dos organismos sindicais» organizadores do Congresso, intitulada Organização Sindical, encontra-se, por motivo óbvio, o seguinte parecer: - «Lutar diretamente, sem interpostas pessoas, quer no campo profissional, quer no campo de classe». (Ob. cit., p. 46.)
Revela A. Vieira: «Em volta desta tese travou-se viva discussão, tendo o delegado Dâmaso Teixeira (de tendência socialista) apresentado uma moção em que se preconizavam as duas ações: a do Partido Socialista e a Sindical, no que foi debilmente apoiado por alguns outros elementos socialistas representados no Congresso e combatido pelo maior número de delegados. O parecer foi por fim aprovado por 27 votos, contra 1 rejeição, tendo havido 2 abstenções». (Ob. cit., pp. 47-48)
As tentativas destinadas a empalmar o Sindicalismo por parte dos interesses partidários vêm logo do início, como se vê. Estava-se então nos fins da Monarquia. Mas o Sindicalismo, embora nascente, soube, com determinação defender a sua independência.
Pouco depois vinha a República e com ela pelos efeitos de promessas da propaganda... diz A. Vieira, «estava o povo convencido de que melhoraria a sua situação. Mas como nenhuma mudança em sentido favorável se tivesse registado, começou a exteriorizar-se a impaciência dos trabalhadores pelo que quase todas as corporações operárias de Lisboa se lançaram em 1911 em sucessivas greves».
«Também em Setúbal foram para a greve os operários das fábricas de conservas, e como na ocasião as autoridades policiais tivessem exercido violências irritantes sobre os grevistas, as restantes corporações operárias da cidade deram-lhes o seu apoio, para o que contribuiu a indignação que provocou o assassínio, pela guarda republicana, de dois daqueles trabalhadores». (Ob. cit., p. 49.) E por aí começaram, escreve o mesmo depoente, «as primeiras perseguições das autoridades republicanas».
Vinha a dominar o Poder o «Partido Democrático» de Afonso Costa que, não conseguindo levar as hostes sindicalistas à sua obediência, as reprimia severamente. Uma dessas repressões foi levada a efeito quando estavam os militantes sindicalistas em reunião na Casa Sindical, onde foram cercados por «numerosas forças do exército, sem excluir artilharia»! forças comandadas pelo coronel Sá Cardoso, o qual viria mais tarde a ser presidente de um ministério afonsista. Mas passemos de novo a palavra a Alexandre Vieira: «perto das 3 horas da madrugada, tomadas todas as posições estratégicas pelas forças militares, e com os candeeiros da iluminação pública apagados, era mandado um par de parlamentários (polícias secretas) ao encontro de dois grevistas que, observando serenamente os movimentos dos sitiantes se encontravam à entrada do edifício». (Ob. cit., p. 62. Um dos grevistas era o autor que vimos citando.)
Acompanhados dos dois «polícias secretos», «de pistola em riste» foram levados à presença do coronel Sá Cardoso que «intimou a evacuação imediata do edifício, sob pena da artilharia entrar em ação». Aqui temos uma amostra interessante de como na 1ª República se respeitavam os direitos de reunião do povo trabalhador...
Claro que semelhante ultimato cortou qualquer veleidade de resistência. Mas continuemos a transcrever. - «Dentro de pouco começaram homens e mulheres, no total de umas 700 pessoas, a sair para a rua debaixo de chuva, perto das 4 horas da madrugada e metidos entre soldados da guarda republicana, estes armados de espingardas, seguindo aqueles em sucessivas levas para o Arsenal da Marinha. Uma parte dos presos tinha sido levada para a Penitenciária, recolhendo o maior número a bordo do transporte Pero de Alenquer. «A bordo do Pero de Alenquer, que não reunia condições para alojar 100 pessoas, estiveram detidas, durante uns 15 dias, cerca de 500, tendo transitado uma parte delas para a Penitenciária e para o Limoeiro, onde cinco dos mais conhecidos militantes permaneceram além de 100 dias». (Ob. cit., pp. 64-65.)
«Mais tarde, isto é, em 12 de Outubro de 1913, eram os militantes sindicalistas que estavam no Limoeiro removidos, inopinadamente, pelas 4 horas da madrugada, para o Forte da Graça, de Elvas, onde quase todos perfizeram nove meses de prisão sem culpa formada». (Ob. cit., p. 79.) O historiógrafo, um desses presos, conta a sua entrada «numa lúgubre casamata»: «e ficamos encafuados, por espaço de seis meses, numa galeria em que era necessário manter o candeeiro de petróleo aceso dia e noite!».
O que fica relatado foi apenas um dos muitos episódios das lutas incessantes travadas com o poderoso e inimigo partido Democrático, chefiado por Afonso Costa.
Como amostra da dureza do Governo em certos lances será curioso anotar um deles. Por motivos salariais declarara-se em greve o pessoal dos Correios e Telégrafos. Continuamos a transcrever A. Vieira: «Em face da atitude dos empregados dos correios e telégrafos, o Governo, repelindo a ideia da arbitragem, militarizou todo o pessoal, incluindo as mulheres... e começou por ordenar a prisão de um milhar de grevistas, mandados a seguir para vários navios de guerra» (Ob. cit., p. 115).
Como os empregados da Carris se solidarizassem com os dos Correios, Lisboa foi ocupada militarmente e o ministro da Guerra (Norton de Matos) foi «pessoalmente impor ao pessoal das estações de Santo Amaro e do Arco do Cego a saída dos elétricos, guarnecidos de tropas». (Ob. cit., p. 119.) E por este expedito processo deu por resolvida a greve...
Quanto à liberdade de imprensa (tão ofendida ela foi com prisões de jornalistas, assaltos comandados e destruições de tipografias, suspensões de jornais, etc.!) deixemos aqui o seguinte e demonstrativo testemunho extraído da obra que vimos seguindo. «Começou então a ser particularmente acossado pela sanha afonsista o semanário O Sindicalista, que, nos seus «en-têtes» e artigos, vinha exprobando com vivacidade os atropelos da oligarquia dominante, tendo sido mandadas vigiar pela polícia as oficinas onde era composto e impresso, em Lisboa, aquele jornal, no intuito de ser impedida a sua saída, motivo por que foi mister fazer compor e imprimir o semanário em várias terras da província, tendo, por essa razão e também porque os recursos materiais eram exíguos, de passar a publicar-se irregularmente.» (Ob. cit., p. 77.)
Com os traslados anteriores não se vá imaginar que temos tido o propósito de trazer para estas páginas uma panorâmica, ainda que muito reduzida, da guerra aberta, por vezes sangrenta, entre sindicalistas e agentes do democratismo. Moveu-nos, no principal, o desejo de vincar a resistência dos primeiros ante o objetivo dominador do partido político que, na época a que nos reportamos, pretendia ser tomado por «o partido dos trabalhadores».
Traçando as balizas do seu campo e não se cansando de reivindicar o princípio da independência política, a União Operária Nacional, criada no Congresso Operário de Tomar (1914), preceituava no Artigo 2º - «A União Operária Nacional não pertence a nenhuma escola política, doutrinária ou religiosa, não podendo tomar parte, coletivamente, em eleições, manifestações religiosas ou partidárias».
No 1º de Maio de 1917 encerrava-se a Conferência Operária de Lisboa com a seguinte e bastante expressiva resolução: «V - Exercer uma ação externa e eficaz contra a vida política e parlamentar no sentido de se sobrepor às ficções constitucionais e de não deixar mais os políticos profissionais e os partidos à vontade, em plena liberdade e ação deletéria, desmascarando-lhes os interesses inconfessáveis e evitando e acautelando-se contra as surpresas das coteries partidárias que levam os povos a procedimentos contrários à sua vontade». (Ob. cit., p. 103)
Na letra desta vigorosa deliberação lê-se uma sentença de divórcio entre a partidocracia, entre qualquer partido político, e a doutrina sindicalista, como também se deixa a descoberto o intento ardiloso que, no geral, preside ao partidismo.
Totalmente descrentes quanto a benefícios provenientes de alianças com a partidocracia, sem ilusões de qualquer espécie a esse respeito, os incorruptíveis sindicalistas contemporâneos da 1ª República a cada passo repetiam o aviso solene: «os trabalhadores só podem confiar no seu próprio esforço de classe, atuando coletiva e solidariamente fora da ação e influência de qualquer partido político». (Ob. cit., p. 122)
Era deste modo, com pureza de intenções, e sem misturas, nem poluições, que se pensava o Sindicalismo. Como vai distante esse tempo...
E hoje?
Hoje o espetáculo é de miserável abdicação, de ultrajante cedência.
Hoje não existe sindicalismo. E pior do que não existir é simular que existe. O que por aí se chamam organizações sindicais assemelham-se a moscas inanimadas envolvidas numa teia de aranha, quero dizer, aprisionadas na teia da política. Aliás o domínio da partidocracia conseguiu ser total e geral no mundo.
Mas, espantoso! Um clarão de alvorada surge onde menos seria de esperar: na Terra oprimida da Polónia. Ali, onde é mais difícil fazê-lo, porque não há liberdade, um povo levanta bem alto o guião do sindicalismo independente.
Walesa, o Homem, proclama que o movimento sindical não é de essência política, não tem por fim ser partido, nem governo. O «Solidariedade» reclama apenas o direito de ser livre e o lugar que lhe compete no Estado, como organização do Trabalho.
Seja qual for o resultado imediato deste assombroso levantamento do operariado polaco, sacudindo o jugo do partido governante e abandonando os «sindicatos» fantoches por ele dirigidos, a sua atitude ficará indelével na História como um grande e dignificante exemplo.
E no resto do mundo, o que irão fazer os trabalhadores pseudo sindicalizados? Vão consentir em continuar a ser tutelados por partidos políticos, como se fossem gente de menor idade? Ou prestar-se, mecanicamente, a serem «correias de transmissão»? A tolerância e a cedência têm limites que a dignidade impõe.
De um outro desvio tem de precaver-se o ideal sindicalista. Goetz Briefs aponta-o certeiramente: «Numa parte do globo vigora, em vez do sindicato, um sector intelectual alheio à classe, e que pretende representá-la». (Sindicatos de Ontem e de Hoje, Ed. Delfor, p. 44.)
A função dos sindicatos é hoje um tanto diferente do que era no princípio do século. Então o sindicato era um órgão reivindicativo perante o patronato privado. Atualmente, por motivo das nacionalizações, o patronato privado tem-se reduzido progressivamente, em número e em importância. As grandes empresas pertencem, nos nossos dias, quase todas ao Estado, pelo menos em regime de intervenção. Este é o senhor do maior número de empregos, o maior e mais poderoso patrão que o trabalhador jamais pensou servir. Além de ser capitalista inesgotável o Estado disfruta ainda do privilégio de dispor de forças coercivas (policiais), de possuir estabelecimentos prisionais, de controlar o poder judicial e os meios de comunicação. A conjuntura social mudou, pois, profundamente. O Estado moderno adquiriu uma importância como nunca a tivera.
É dentro dos quadros do Estado que tudo se resolve e que se ditam as leis do trabalho. Os partidos políticos manobram aí soberanamente; a Câmara legislativa é deles.
E por que razões não há de a Câmara ser também dos vários sindicatos? Acaso as organizações partidárias têm maior representividade humana do que as organizações sindicais? Porventura terão maior número de filiados?
Causa uma impressão estranha e custosa de compreender que sindicalizados renunciem à defesa direta dos seus próprios interesses de classe e o façam entregando-se a associações alheias. Diante desta anormal alienação dir-se-ia que foram atingidos por uma hipnose coletiva. E não despertam os trabalhadores para ver que o seu legítimo partido, partido especificamente representativo, não pode ser nenhum outro senão o sindicato em que se enquadram? Não despertam para ver que os políticos profissionais usurpam o lugar que eles, por direito natural, deveriam ter no parlamento?
Porquê darem os seus votos a deputados de partidos políticos e não os destinarem para deputados das suas associações sindicais?
Sindicalismo sem representação no Parlamento, onde os partidos políticos a têm, é sindicalismo abortado, vigarizado e ofendido. Esta não é, bem o sabemos!, a opinião dos homens dos partidos. Procurando defender as posições privilegiadas que usufruem eles vêm alegar que os vários partidos abrangem, nos programas de intenções que os definem e os distinguem, concepções não só políticas, mas também económicas, sociais, morais, etc., que têm em conta os interesses e as ideias sindicalistas e que certos partidos se ajustam à defesa de certas agremiações profissionais. Tentam assim convencer que seria uma desnecessária duplicação de representação, a sindical ao lado da partidária. Invocam ainda que, pela sua implantação, pela força, pela experiência e dinamismo adquiridos, os partidos estão aptos e indicados a incluir os sindicalizados que se integrem na sua ideologia. Toda esta argumentação, claro está, no propósito de evitarem que sejam afetados no monopólio da representatividade e do poder legislativo que detêm.
A argumentação, é bem de ver que não vale. As razões são simples de resumir:
- - A representação direta é a mais interessada, a mais eficaz e, por isso, insubstituível.
- - O sindicalismo não tem necessidade de pedir favores de representação aos partidos, representação que não andaria longe da tutela efetivamente existente.
- - A suposta deputação nos partidos diluía-se fatalmente nas preocupações ideológicas destes, perdendo, desta forma, muito do vigor conveniente.
- - Com representações próprias, os organismos sindicais passarão automaticamente a serem mais fortes do que os partidos e, portanto, seria paradoxal invocar a proteção destes.
- - E por último, os partidos, ainda que considerados no conjunto, não poderiam realmente tomar o encargo leal de defender os grupos sindicais porque a vocação dos partidos políticos é de essência diferente.
Neste ponto tomemos um exemplo ou antes, ponhamos uma hipótese. Neste «país das uvas» como acharíamos o partido representativo dos viticultores? E qual o do comércio retalhista que, desde logo, não poderia ser o mesmo do dos produtores, nem do comércio por grosso ou exportador, cujos interesses nalguns aspetos se opõem?
Os lavradores têm interesses divergentes daqueles que têm os seus consumidores, mas os produtores agrícolas são, por sua vez, consumidores dos produtores de adubos, de pesticidas, etc., os quais, do mesmo modo são consumidores em face das empresas que lhes fornecem as matérias químicas.
Nesta amostra de complexos interesses em choque, como poderia imaginar-se a capacidade de os partidos políticos desempenharem as funções de representação requerida por cada sector? É mais do que evidente a impossibilidade de o fazerem. Aliás, como já notamos, a inspiração dos partidos políticos, desde que existem, é de outra natureza. Que a conservem, pois, que ninguém lha quer tirar, supomos nós.
Entre partidos políticos e associações profissionais poderão, caso por caso, não existir oposições ou incompatibilidades, embora as divergências de constituição e de serviços. Mas entre Partidocracia e Sindicalismo há mesmo oposição e incompatibilidade porque o regime partidocrático, absorvente e exclusivista, como é, gera essa oposição e essa incompatibilidade, por não deixar lugar à representação sindicalista.
O eminente integralista Luís de Almeida Braga, num belo estudo, cuja reedição muito útil seria fazer, anota:
«Sindicalismo e Democracia são dois polos opostos, que se excluem e neutralizam. Os sindicatos são organismos absolutamente antidemocráticos, pelo próprio facto de serem corpos sociais e agrupamentos selecionados. Enquanto numa sociedade democrática não contam senão os indivíduos, sem se conhecer das suas ocupações, no sindicato juntam-se profissionais de determinado ofício». (Paixão e Graça da Terra, p. 299)
Os políticos, numa generosidade mais que suspeita condescenderam, nos últimos tempos, em tratarem os agrupamentos do trabalho por «parceiros sociais», mas, falaciosa parceria esta em que uns parceiros têm prerrogativas que se negam aos outros... É que a velha questão permanece imutável. Tal como nos primórdios do movimento sindicalista, os partidocratas recusam-se a reconhecer a cidadania aos sindicalizados.
Os partidos políticos não toleram perder a hegemonia frente a uma independência sindicalista. Ainda agora tivemos uma dessas manifestações significativas referente aos acontecimentos da Polónia. O presidente da internacional dos partidos do «socialismo em liberdade», o Sr. Willy Brandt, marcou posição (afinal a mesma do «socialismo sem liberdade») advertindo o «Solidariedade» de que o sindicalismo deve conservar-se passivo, na dependência dos partidos, neste caso do partido único que domina a Polónia. (Dos jornais)
O antagonismo entre a Partidocracia e o Sindicalismo é um facto demais comprovado. Não há que ter ilusões. Não resta ao sindicalismo senão o caminho duro da conquista da independência. Uma nova época se abrirá depois, época de Justiça Social construída, repetimos, numa base franca de igualdade de direitos (e de deveres), de oportunidades, de fraternidade mútua, de harmonia na comunidade nacional. Estes predicados de uma sociedade justa demandam uma franca revisão de conceitos, de atitudes e de propósitos de todas as partes.
O sindicalismo, sob pena de perder a autoridade moral que lhe assiste, não pode querer para si o mesmo que censura e combate nos outros, e que seria o seu domínio de classe. O espírito de revanche é incompatível com a justiça social.
A industrialização do mundo moderno faz mudar profundamente muitas das velhas concepções. Uma delas é a do «trabalhador». No mundo antigo e artesanal a quase totalidade do trabalho era produto do esforço muscular, do homem. No presente inverteram-se as proporções e a máquina tomou o lugar de principal produtora. Mas a máquina, por sua vez, é produzida: é inventada, aperfeiçoada, assistida pelos técnicos. Estes, os técnicos das várias especialidades e categorias, partindo dos engenheiros, entraram, pois, no mundo do trabalho como seus componentes principais, adquirindo, por isso, o título legítimo de trabalhadores. Só por si este fenómeno alterou completamente os dados que, em termos simples, se punham na disjunção Capita-lismo-Operariado.
Trabalhadores são todos os homens que trabalham seja qual for a natureza das suas ocupações.
S. S. o papa João Paulo II, operário de origem, ao fazer a introdução à encíclica Laborem Exercens entendeu exatamente começar por reafirmar neste ponto a doutrina social da Igreja. «Com a palavra trabalho é indicada a atividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias». E a seguir: «o desenvolvimento industrial serve de base para se repor de um modo novo o problema do trabalho humano».
Com a extensão nominal dos quadros do trabalho, concomitantemente se repõe, para um alargamento considerável, a instituição dos sindicatos.
Uma concepção imediatamente ligada à do trabalhador, e que por isso se torna também sujeita a reformulação, é a do fundo sindicalista. O que são e o que devem ser os sindicatos?
Goetz Briefs, o autorizado sociólogo alemão, escreve: «O sindicato constitui a expressão histórica de um princípio social primitivo que pode formular-se no sentido de o homem (qualquer homem que trabalha) viver sempre dentro de uma ordem e de organismos de proteção, dentro de uma pluralidade de organismos, entre os quais os de maior relevo são a família, o município e a Igreja, aos quais cabe acrescentar a associação profissional, livremente eleita pelos seus membros e baseada no carácter voluntário». O autor prossegue na sua análise realista com as seguintes considerações: «O homem não viveu de outro modo no passado e constitui um período único da História, aquele em que foi forçado ao isolamento, como indivíduo reduzido a si mesmo, responsável por si, defensor exclusivo dos seus próprios interesses frente à concorrência dos seus semelhantes. Do Renascimento provêm as ideias do homem como indivíduo e de uma sociedade concebida como um somatório de indivíduos que se organizam «mecanicamente», segundo pactos e interesses.
Da generalização deste ideal renascentista procede o individualismo económico, cujo avanço destruiu as antigas formas em que o homem trabalhara e produzira e situa-o isolado, num mercado sem segurança». (Ob. cit., p. 81)
A situação dramática no sector do trabalho e o prejuízo dos trabalhadores começou, na verdade, com o democratismo, para continuar com os seus sucedâneos, o socialismo e o comunismo.
Conhecerão os operários (levados ao engano a festejar a Revolução Francesa) que uma das suas primeiras medidas, a lei Le Chapelier, de 14 de Junho de 1791, que proibiu «os cidadãos de profissão idêntica de se reunirem para formular regulamentos a respeito dos seus supostos interesses comuns»? E saberão que, a seguir, a Assembleia Legislativa decretou a «pena de morte para aqueles que pretendessem reconstituir as associações operárias»? Terão conhecimento de que, com a introdução das ideias do democratismo em Portugal, também aqui (por decreto de 7 de Maio de 1834), «foram extintos os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e Quatro e os Grémios dos diferentes Ofícios»? (Fernando Campos, O Princípio da Organização Corporativa através da História, 2ª ed., p. 39.)
Desfeitas as associações dos trabalhadores, ficavam estes transformados em indivíduos, presas isoladas e sem defesa dos partidos políticos, despojados dos direitos legítimos e adquiridos em séculos de história.
No que concerne ao direito de fazer greve terá a generalidade dos trabalhadores uma noção exata das situações? Antes de mais será bom manter presente a palavra da Igreja romana. Na Laborem Exercens confirma S. S. João Paulo II: «É um modo de proceder que a doutrina social católica reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites. Em relação a isto os trabalhadores deveriam ter assegurado o direito à greve, sem terem de sofrer sanções penais pessoais por nela participarem. Admitindo que se trata de um meio legítimo, deve simultaneamente relevar-se que a greve continua a ser, num certo sentido, um meio extremo. Não se pode abusar dele; e não se pode abusar dele especialmente para fazer o jogo da política».
Aqui põe o Santo Padre o dedo na ferida, visto o que se passa com os sindicatos, desviados da sua vocação e independência, reduzidos a sucursais de alguns partidos políticos.
Mas vejamos então o que vem aos trabalhadores, a respeito do direito à greve, dos lados do democratismo e dos socialismos marxistas. O democratismo começou por marcar a sua posição com a citada lei Le Chapelier tornando-a ilegal. Depois, ante o renascer do movimento sindical, seguiram-se as maiores violências. Ouçamos Lucien Rioux no seu livro Iniciação ao Sindicalismo, p. 41: «Este impulso será brutalmente interrompido, em 1871, pelo impiedoso esmagamento da Comuna de Paris. Historiador do movimento operário, Edoward Dolléans escreveu: «A repressão da Comuna foi implacável. Fez mais de 100 mil vítimas. No dia seguinte à Comuna, os militantes foram espancados, fuzilados, proscritos; as agremiações operárias, desfeitas pela guerra, pareciam ter desaparecido». Uma legislação excecional é posta em execução (14 de Março de 1872). Trata-se de proteger as populações operárias contra as desordens sociais, contra a greve, «conluio contra a ordem social», e de impedir qualquer reconstituição das organizações operárias». Isto é da história, mas é imprescindível conhecer para bem ajuizar da verdade e da coerência dos ditos e dos feitos.
É um facto notório o de os partidos de inspiração marxista fomentarem e incrementarem ações grevistas nos países onde não são governo, e as proibirem naqueles países onde governam. Não surpreende o facto a quem conhece a sua estratégia política, aliás uniforme. Mas tomemos uma panorâmica do que, nesta matéria, se passa nos «países de leste». Serve-nos de informação insuspeita o livro O Sindicalismo no Mundo, de Georges Lefranc (Publicações Europa-América", pp. 48-49; 96-98). Os dados são facilmente comprováveis em muitas outras fontes. Começando pela URSS explana o autor: - «Os dirigentes das empresas acusam os dirigentes dos sindicatos de exigir aumentos de salários, sem se preocuparem com o rendimento; os sindicatos censuram às empresas o não procurarem uma melhor técnica.
«Com os planos quinquenais, a partir de 1928, a evolução acelera-se: os interesses da produção sobrepõem-se decididamente. A planificação não deixa ao sindicato mais do que uma fraca margem de manobra. Um decreto de 7 de Setembro de 1929, restabelecendo a autoridade do chefe da empresa, proíbe aos sindicatos a ingerência na direção.
«Em Julho de 1930, o XVI Congresso do Partido Comunista encarrega os sindicatos de aumentarem o rendimento, de recorrerem aos trabalhadores de choque, de combaterem os burocratas que paralisam a emulação socialista, de formarem tribunais para julgar as infrações à disciplina, de fazerem compreender que o trabalho, num Estado socialista, exige práticas diferentes das de um Estado capitalista.
«O Partido Comunista», declara o X Congresso, «dirige estritamente toda a parte ideológica da atividade dos sindicatos; as fações comunistas dos sindicatos ficam inteiramente submetidas às comissões do Partido... A escolha do pessoal dirigente do movimento sindical deve fazer-se, bem entendido, sob controle e a direção do Partido».
Como claramente se verifica, o sindicato num Estado comunista perde a sua função reivindicativa e de defesa dos trabalhadores e muda-se para uma função reivindicativa a favor do Estado-patrão contra os trabalhadores.
Continuemos a ler o mesmo autor. «Um guia oficial editado em 1938 escreve: «Os sindicatos soviéticos... impuseram a si mesmos a tarefa de ir em auxílio dos organismos económicos e públicos que dirigem a produção, fazer apelo a cada operário e a cada empregado para obter dentro das horas de trabalho fixadas a maior produção possível e a qualidade mais alta e lutar, por todos os meios, para um maior rendimento do trabalho».
«Dentro deste quadro, as greves não poderiam existir; qualquer tentativa nesse sentido seria considerada como ato de sabotagem e como tal punida».
O quadro exposto é bastante elucidativo. É óbvio que dentro do espaço da 3ª Internacional, que Moscovo comanda, as disposições são idênticas em todos os países, e nem poderiam deixar de o ser. Vejamos uma amostra, tirada ainda do citado volume «Sindicalismo no Mundo». «A lei checoslovaca para a defesa da República, assinada pelo presidente Gottwald, prescreve todas as greves, bem como todas as sabotagens: «Todo aquele que incitar os funcionários à desobediência será passível de uma pena de 1 a 5 anos de trabalhos forçados» (art. 20º), «todo aquele que se opuser ao cumprimento das funções dos empregados do Estado será passível de uma pena de 5 a 10 anos de trabalhos forçados» (art. 21º) «todo aquele que, com o fim de lesar o Estado, não efectuar o trabalho que lhe estiver confiado, será passível de uma pena de 1 a 5 anos de trabalhos forçados» (art. 30º).
Na República Democrática Alemã «o sindicato permanece subordinado ao Partido».
Na Bulgária, idem. «Os estatutos adotados em Maio de 1966 pelo Congresso dos sindicatos búlgaros estipulam no seu preâmbulo: «Os sindicatos desenvolvem a sua atividade sob a direção do Partido Comunista Búlgaro, força organizadora e dirigente da sociedade socialista».
Na Polónia... os acontecimentos tão relevantes da atualidade dispensam referências, exceto uma. É que também o Solidariedade não escapou ao sestro da politização. Esta compreende-se aqui mais do que em qualquer outro lugar. Única força representativa e organizada que, um tanto inesperadamente, se depara ao povo polaco ao fim de tantos anos de privação de liberdades, para ela se canalizam naturalmente os protestos ao regime político e as aspirações de uma ordem social justa. Compreendem-se os motivos que acidentalmente movem importantes sectores do Solidariedade, os quais chegam ao ponto de pretenderem substituir-se ao Governo. É sempre um erro no ponto de vista doutrinário dar aos sindicatos uma feição política.
Certamente aconselhado pela hierarquia católica Wallesa encabeça a corrente de bom-senso que prevaleceu no último Congresso e que, vencidas as dificuldades conjunturais. Há de, assim é de crer, conduzir o Solidariedade no seu caminho certo - o do sindicalismo livre, com funções específicas no Estado organizado numa base de trabalho.
Porventura já se reparou com a devida atenção, que o partidarismo político propicia lugar e acesso aos mais altos postos, nos partidos e no Governo, a indivíduos inúteis, ociosos sem profissão, parasitas do trabalho alheio e que, ao contrário, na ética sindicalista apenas cabem os trabalhadores?
Não pode pensar-se numa reformulação dos problemas do Sindicalismo, tão estreitamente ligados que andam à luta de classes, sem primeiro rever um ponto básico - a teoria da mais-valia. Esta, como se sabe, tem sido exposta de uma maneira extremamente simplista: a produção de uma empresa resulta do trabalho dos seus operários, e como é do produto desse trabalho que se retiram os lucros para a entidade patronal, segue-se que os salários são, nessa parte, roubados. O mesmo é dizer que os trabalhos dos operários têm «mais valia» do que os salários que lhes são pagos.
Os lucros acumulados (sucessivamente extorquidos aos salários justos) constituem o Capital. Conclusão: o «capital é um roubo» feito aos trabalhadores, apresente-se ele em notas de banco ou em propriedades imobiliárias, e, por conseguinte, a atitude do trabalho há de ser «anticapitalista». A luta contra a classe possuidora dos bens de produção, com o fim de abolir a propriedade privada, é o caminho a seguir. Extingue-se a propriedade privada com o Socialismo, nacionalizando-a. Este o essencial da doutrina que da mais-valiase conduz ao socialismo.
Analisemos nós agora as premissas invocadas e os fundamentos reais da argumentação aduzida, certos de que hoje é muito mais fácil fazer essa análise com clarividência, porquanto a evolução socioeconómica no século atual, ao dar maior relevância a certos fatores, tirou a outros a importância magna que tinham.
Marx congeminou a teoria da mais-valia em relação às condições da sua época, a qual se caracterizava por uma atividade preponderante de manufatura. Esta circunstância é muito importante a reter. A quase totalidade do trabalho era humano, quer na agricultura, que ocupava a maioria dos braços, quer na incipiente indústria, ainda não muito afastada, nos métodos, da artesanal. Com a entrada avassaladora das novas máquinas e da eletrónica no mundo do trabalho, modificou-se profundamente a conjuntura; reduziu-se muitíssimo o esforço muscular do operário que, de agente produtor de trabalho passou a assistente da máquina trabalhadora.
Antecedendo esta transmutação já tinha surgido uma nova categoria de trabalhadores - a dos inventores e dos técnicos - (nova classe?), precisamente a originadora desta transmutação. Inventores e técnicos, imprescindíveis desde então na evolução industrial, subiram, pela natureza própria do seu labor, à direção e aos comandos do trabalho. A par do consequente crescimento da produtividade, especialmente da industrial, desenvolveu-se um outro sector colaborante da produção - o do Comércio (mais uma classe?). Desnecessário na fase ultrapassada da produção por encomenda, tornava-se agora absolutamente indispensável para dar o preciso escoamento aos produtos fabricados, quer colocando-os no consumo interno, quer dirigindo-os para a exportação.
Dar-se-á o caso desses operários, que de boa-fé se prestam a fazer os jogos grevistas de certos partidos políticos, terem refletido nos efeitos catastróficos que adviriam para a empresa que os sustenta, se esta fosse visada com greves e boicotes da parte dos comerciantes distribuidores, o que provocaria o armazenamento crescente dos produtos, a paralisação de vendas, a suspensão de recebimentos e as consequentes dificuldades nos pagamentos de salários? Talvez esses operários, iludidos pelos slogans de propaganda, não tenham aprofundado estas questões que tão diretamente lhes dizem respeito... Se o fizessem, com espírito livre de preconceitos, decerto haveriam de verificar que não será na luta de classes (afinal trabalhadores contra trabalhadores) que prosperam as empresas e se abrem postos de trabalho. E é na situação económica da empresa que se insere o interesse do trabalhador. De organismos falidos e de cofres vazios nunca será avisado esperar grandes proventos.
Mas não passemos daqui sem abordar uma face do explorado tema que é o capital.
Sempre que se nos depara o obstinado ataque de que é alvo, nós perguntamos a nós mesmo como é concebível pôr uma organização produtora a funcionar sem capital. Também o conceito de capital, para além das várias interpretações que dele se têm extraído, mudou significativamente. Após o desenvolvimento das sociedades por ações deixou de ser aquele, e único, a que Marx se referia. Como notou Bernstein, com estas sociedades por ações «tornou-se possível conciliar a produção em grande empresa com a dispersão do seu capital, permitindo certas formas de participação dos trabalhadores» como autênticos componentes capitalistas.
Apesar do avanço esclarecedor de um século sobre as obsoletas e falhadas teorias de Marx persiste, e ainda assaz difundida, a confiança na estatização de todos os meios de produção como o antídoto do capitalismo liberal. Presume-se desta forma extinguir pela raiz os males da economia capitalista. De facto, apenas se substitui o capitalismo particular pelo capitalismo do Estado. Para melhor, ou para pior?
Raciocinemos. Será preferível a alternativa de haver muitos patrões por onde escolher o local e a espécie de trabalho e manter a possibilidade de discutir a remuneração, sabendo que acima do patronato se pode contar com um Estado fiscalizador, para quem é possível apelar e pedir justiça, ou será preferível fazer do Estado o único e indiscutível patrão, senhor de todo o capital, patrão sem concorrência, o que lhe permite marcar todas as condições de trabalho, com a agravante de ser ele o detentor superior de todos os poderes?
A opção, por enquanto, é nossa. Não o será jamais a partir da hora em que o Estado se faça totalitário, porque então pode acontecer que nem a liberdade de emigrar e procurar melhores condições de trabalho no estrangeiro seja permitida... e o saltar do muro fronteiriço será o encontro quase certo com a morte. Citemos ainda Goetz Briefs: «Por experiências antigas e modernas deveria saber-se que a coletivização dos meios de produção significa a coletivização do homem. No coletivismo impõe-se como necessidade absoluta o coletivo. Mas o preço é caro. Quem fala hoje do valor e da dignidade do homem - e os sindicatos é assim que fazem - dita a sua sentença, implicitamente contra o coletivismo». (Ob. cit., p. 60) Registe-se esta confissão de Garaudy: «Com o capitalismo monopolista do Estado, o capitalismo não mudou fundamentalmente de natureza». (A Grande Viragem do Socialismo, Publicações D. Quixote, p. 254.)
Espairecendo pensamentos tristes ocorre-nos a lembrança de um divertido episódio passado numa viagem turística que nos fez atravessar um «país do leste» europeu, por sinal considerado o mais ortodoxo dos países comunistas. Enquanto o autocarro nos transportava de uma cidade a outra, um jovem, adjunto da nossa guia, aproveitou o ensejo para, sem que ninguém lho pedisse, expor ao microfone alguns pontos da Constituição Política que os regia. Após um largo tempo de preleção ofereceu-se para prestar qualquer esclarecimento complementar que algum passageiro porventura quisesse pedir. Umas tantas perguntas sem interesse foram feitas e respondidas, até que alguém o interpelou assim: «Num país como o vosso, onde não há contribuições prediais, nem industriais, nem de transações, etc., pela razão óbvia da não existência da propriedade privada, e que constituem a fonte maior de receitas nos países em que vivemos, onde vai o vosso Estado buscar as receitas necessárias para fazer face aos encargos com os serviços não rendáveis, como sejam estradas, hospitais, asilos, etc.?». Resposta pronta: «Aos lucros das empresas nacionalizadas!». Obtida a declaração, continuou o turista desinibido: «Pois bem, eu sabia que não poderia ser de outra maneira, mas queria ouvir isso da sua boca, pelo seguinte. É que nos nossos países, ditos capitalistas, os camaradas comunistas fazem a sua propaganda junto dos operários dizendo que os lucros das empresas representam o valor do trabalho prestado e que lhes não é pago, isto é, expõem a teoria marxista da mais-valia. Pelo que «o camarada» acaba de confessar verifica-se que também aqui as empresas auferem lucros. Fica-se a saber, por conseguinte, que nos países comunistas se observa o igual fenómeno da mais-valia. Ou não será isto exato?» Esta intervenção, tão simples, mas embaraçosa, foi suficiente para deixar o jovem preletor, que a princípio se apresentou tão seguro e vivaz, completamente perplexo e calado.
Na sequência desta ordem de considerações cabem aqui algumas palavras sobre o socialismo autogestionário, de certo modo já implantado no nosso país através de algumas «empresas públicas» (e de serviços!) monopolistas.
A imagem primária da autogestão para um operário ávido e precariamente informado, pode ser a seguinte: nós, trabalhadores, tomamos conta da gestão e da administração da nossa empresa; senhores dos lucros, subimos os salários e criamos regalias e gratificações e com o estímulo de ganhos crescentes, damos ao país a garantia de aumentar a produção. É uma maneira aliciante e simplista de ver o problema, e que nada tem de ser agradecida por todos os outros trabalhadores... Não se pensa aí que existem empresas por sua própria natureza pouco ou nada rendíveis, nas quais semelhante decisão seria impossível. O resultado prático de autogestões independentes será o de estabelecerem-se disparidades escandalosas de salários para trabalhadores da mesma categoria e, por conseguinte, um mal-estar grave nos meios do trabalho que, mais cedo ou mais tarde, lançará os operários, já não numa luta de classes, mas em lutas, dentro das classes, dos operários pobres, contra os operários ricos.
Sendo a Jugoslávia o único país do globo onde aturadamente se tentou praticar, a nível nacional, o socialismo autogestionário, é justo que colhamos informações na sua experiência. E ninguém nas poderá fornecer mais seguras do que Milojko Drulovic de quem o conhecido e insuspeito Michel Rocard nos diz, e nós traduzimos: «M. Drulovic ocupa altas funções de responsabilidade no seio da Liga dos Comunistas Jugoslavos. Teórico de talento, diretor da revista Politika, ele é um dos observadores melhor informados da vida do seu país». (Milojko Drulovic, L'Autogestion à L'Épreuve, Ed. Fayard, p. VIII.) Pois tomemos conhecimento do que ele, com a sua especial autoridade, nos revela: «as diferenças sociais são um dos grandes temas da atualidade na vida política jugoslava». (Ob. cit., p. 26)
Enumerando as origens das diferenças salariais põe «em primeiro lugar o monopólio de certas empresas (distribuição de energia elétrica, comércio externo, etc.)». No ponto de vista que interessa ao assunto o autor conclui: «Mesmo os desvios provenientes estritamente de diferenças nos resultados do trabalho provocam polémicas em certos meios. Confunde-se aí o facto económico com o facto social e reclama-se o nivelamento na remuneração». (Idem, idem)
Claro está que situações anómalas, como as referidas, não devem tolerar-se, nem realmente podem continuar. Uma planificação geral irá fatalmente pôr fim a esta espécie, ou fase, de um socialismo de desigualdade. Por outro lado, é forçoso atender a que um Estado socialista tem, mais do que qualquer outro, despesas (burocracia, serviço, vias de comunicação, forças armadas, etc., etc.) e que será às suas empresas (industriais, comerciais, agrícolas) que terá de exigir o montante necessário, visto não dispor de outras fontes de receitas. Assim as empresas autogeridas, tal como as geridas pelo Estado, serão impedidas de desviar os lucros em proveito pessoal dos seus trabalhadores. Autogestão, com que fim, se as unidades autogeridas acabam fatalmente por ficar submetidas à superior gestão económica do Estado?
Uma conclusão inteligente ressalta do exame às saídas revolucionárias do Sindicalismo: a de que essas saídas não servem os interesses dos trabalhadores.
«O melhoramento da sorte da classe operária é questão de harmonia e não de luta, de união e não de discórdia, de confiança mútua e não de ódio.
Se operários e patrões têm interesses de ordem secundária opostos têm interesses primordiais comuns.
Procurando melhorar progressivamente a condição do operário, o sindicato será o fator normal e pacífico das relações entre o trabalho e o capital». (Ob. cit., p. 239)
São do magnífico ensaio de Luís de Almeida Braga os períodos que acabamos de citar, coincidentes em tudo com a doutrina católica.
Já atrás equiparamos, a respeito do direito à greve, a traição dos demagogos face aos conselhos paternais do vigário de Cristo. Que não esqueça esse esclarecedor confronto e que ele sirva de aviso!
O Papa João XXIII, sob o expressivo título «Presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas», também abordou esta matéria e nos termos que se seguem:
«deve atender-se a que a empresa venha a ser uma comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na posição de todos os seus sujeitos. Isto exige que as relações entre os empresários e os dirigentes, por um lado, e os trabalhadores, pelo outro, sejam baseadas em respeito, estima, compreensão, leal e ativa colaboração e interesse, como numa obra comum e que o trabalho seja concebido e vivido por todos os membros da empresa não só como fonte de rendimento, mas também como cumprimento de um dever e prestação de um serviço. Isto importa também que os trabalhadores possam fazer ouvir a sua voz e prestar o seu concurso ao eficiente funcionamento da empresa e ao seu progresso». (Encíclica Mater et Magistra, União Gráfica", 3ª ed., pp. 31-32.)
Concretizando recomenda com grande atualidade João Paulo II: «o papel dos sindicatos não é o de «fazer política» no sentido que hoje comummente se vai dando a esta expressão. Os sindicatos não têm o carácter de «partidos políticos» que lutam pelo poder, e também não deveriam nunca estar submetidos às decisões dos partidos políticos, nem manter com eles ligações muito estreitas. Com efeito, se for esta a situação, eles perdem facilmente o contacto com aquilo que é o seu papel específico, que é o de garantirem os justos direitos dos homens do trabalho no quadro do bem comum de toda a sociedade e, ao contrário tornam-se um instrumento de luta para outros fins». ("A Importância dos Sindicatos" in Encíclica Laborem Exercens)
Tem muita importância notar como a esta doutrina se ajusta a de um sindicalista como Krasucki, que escreve: «Em nossa opinião, numa sociedade socialista a função específica dos sindicatos continuará a ser a defesa dos interesses dos trabalhadores. Verificar a diferença de natureza entre organizações sindicais e partidos políticos, e, por conseguinte, que as responsabilidades respetivas são de ordens diferentes, é reconhecer uma evidência». (Sindicatos e Socialismo, ed. "Seara Nova", pp. 54-55).
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Sobre a essência e função dos sindicatos continua João Paulo Il na sua recente Encíclica: «A doutrina social católica não pensa que os sindicatos sejam somente o reflexo de uma estrutura «de classe» da sociedade, como não pensa que eles sejam o expoente de uma luta de classe, que inevitavelmente governe a vida social. Eles são, sim, um expoente de luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho segundo as suas diversas profissões. No entanto, esta «luta» deve ser compreendida como um empenhamento normal de pessoas «em prol» do justo bem: no caso, em prol do bem que corresponde às necessidades e aos méritos dos homens do trabalho, associados segundo as suas profissões; mas não é uma luta «contra» os outros. Se ela assume um carácter de oposição aos outros, nas questões controvertidas, isso sucede por se ter em consideração o bem que é a justiça social, e não por se visar a «luta» pela luta, ou então para eliminar o antagonista». (Laborem Exercens, ed. da Tipografia Poliglotas Vaticana, p. 43)
Pondo de lado ideologias fantasiosas que o raciocínio e a experiência já condenaram por inúteis ou maléficas e nas quais se inclui a luta de classes baseada no anacronismo da mais-valia, o objetivo sensato que o bom conselho nos indica será o da convivência em paz e amizade, porque todos viajamos no mesmo comboio. São diferentes os lugares? Naturalmente. Nem todos os passageiros podem seguir na carruagem da frente. O que há a ver é que todos usufruam da indispensável comodidade e de igual segurança na viagem da vida. E isto que nunca foi alcançado desde que a humanidade existe. E na luta por este desideratum que todos nos deveríamos empenhar e não em pretender desalojar em nosso proveito os companheiros que vão à frente e mandá-los para trás, porque então as lutas fratricidas serão intérminas, visto haver sempre ocupantes dos lugares da frente e dos da retaguarda, e com elas põe-se o nosso comboio em risco de descarrilar.
E de elementar entendimento que uma organização empresarial consiste num maquinismo complexo, com muitas engrenagens. Uma só engrenagem que emperre é suficiente para entravar todo o funcionamento do conjunto, ou mesmo paralisá-lo, resultando um prejuízo geral.
Necessariamente que um sindicalismo colaborante pressupõe garantias. Trataremos delas no capítulo da Representação na Assembleia da República.
A REPRESENTAÇÃO SOCIAL
A ideia de uma Representação Social depende, obviamente, da ideia que se faça das estruturas do país, isto é, das bases constitutivas da sociedade e da sua organização.
Para quem suponha que a vida real da população assenta cabalmente na atividade dos partidos políticos, e sem requisitos de outra ordem, a conclusão lógica será a de que a população deve ser representada por uma assembleia de deputados dos partidos, e isso lhe basta. Temos aí a partidocracia.
Para quem, diferentemente como nós, julgue que a população laboriosa anda principalmente absorvida com o seu trabalho, sobretudo ligada aos seus interesses vitais, que são profissionais, económicos, locais, espirituais, e outros, é evidente que a representação através dos partidos políticos nem preenche as suas necessidades, nem se ajusta aos seus desejos e sentimentos; que ela não exprime com realidade o complexo da vida social e da vida de cada pessoa que existe fora e para além da guerrilha dos partidos. E desse complexo que teremos então de nos aproximar.
Ao pluralismo partidário que a classe política propõe como expressão completa da democracia, opomos nós o pluralismo social, figuração do país na realidade dos órgãos que o constituem.
O pluralismo partidário dá-nos somente a abertura de um leque político. Sendo importante diante da pavorosa hipótese das ditaduras de partido único é, todavia, insignificante no ponto de vista da democracia social. Além de que a representação partidária pluralista não passa de uma possibilidade teórica, pois que, na prática, como é sabido, poucos partidos conseguem representatividade no parlamento. O pluralismo político, como a sua designação indica, é restritivo, e duplamente restritivo porque restringe a representação aos partidos políticos, e destes só a alguns.
O pluralismo social baseia-se, representação, numa autêntica ao invés, na garantia de assembleia da res-publica, dos múltiplos organismos sociais existentes, na variedade da sua natureza, incluídos que sejam os partidos políticos; realizará a promoção aos lugares que lhes são devidos dos «corpos intermédios», esses núcleos de liberdades e de força popular que iniquamente são excluídos dos parlamentos do democratismo.
Diversificada como a sociedade que deve representar, a Assembleia da República abrangerá então toda a população laboriosa e organizada, e não apenas as massas rebocáveis pelos agentes partidocratas, como agora acontece.
Esta noção superior de representação, que renasce e cresce promissoramente, tem o seu passado. Nós próprios já lhe dedicámos um estudo em 1949. (Os Pilares da Democracia - Livraria Clássica Editora.) Na literatura portuguesa, a partir dos meados do século XIX, época em que as antigas instituições portuguesas, produto de uma evolução natural constantemente aperfeiçoada pelo empirismo, dizíamos, desde essa época em que foram revolucionariamente substituídas pelas abstrações democratistas, emanadas da revolução francesa, são numerosos os depoimentos contra a intrometida ordem social, melhor dizendo, desordem social, que se instalou e ainda dura entre nós.
Num artigo célebre, O Francesismo, incluído no livro «Últimas Páginas», Eça de Queiroz criticava à sua especial maneira, a demissão de portuguesismo que avassalou a burguesia desse tempo. Escreveu o romancista: «O pai de um amigo meu, em 1836 ou 1848, num ódio repentino a tudo que lhe lembrava o velho Portugal, foi-se à sua mobília antiga, de pau preto torneado e de assentos de couro lavrado, e num só dia vendeu, queimou, sepultou em sótãos, dispersou todas essas formas vetustas, que lhe vinham do passado; depois correu a um estofador da esquina, e comprou, ao acaso, num lote, uma mobília francesa. O que este homem fez, todo o Portugal o fez. Num rompimento desesperado com o velho regime, tudo quebrou, tudo estragou, tudo vendeu. Achou-se de repente nu; e como não tinha já o carácter, a força, o génio, para de si mesmo tirar uma nova civilização, feita ao seu feitio, e ao seu corpo, embrulhou-se à pressa numa civilização já feita, comprada num armazém, que lhe fica mal, e lhe não serve nas mangas».
A ideia que inspirou Eça, no essencial das suas obras, provinha da patriótica repulsa pelo estrangeirismo introduzido na política, como nos costumes, e pelo qual o país legal se extraviava. De uma carta a Teófilo Braga extraímos esse confessado intento: «A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 - e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam, eles e elas». (Eça de Queiroz, Correspondência, 3ª ed. p. 44.)
Ramalho Ortigão, seu companheiro farpista, diria o mesmo: — «eu e alguns do meu tempo entendemos que a sociedade portuguesa encharcava e apodrecia na subserviência de um parlamentarismo quase tão oco como o de agora, e como o de agora exercido por ávidos politiqueiros de ofício, sem nenhum conhecimento dos interesses e das aspirações nacionais, e deliberamos acordar do seu letargo a consciência pública, a duches, a ventosas, a pontas de fogo, a buscapés, a empurrões e a cartoladas». (Últimas Farpas (1911-1914), Clássica Editora, 1946, pp. 123-124.)
Mas se Ramalho e Eça eram, com a sua acutilante ironia, formidáveis, críticos demolidores do democratismo, a verdade é que não possuíam o necessário plano construtivo que rematasse a ofensiva ao democratismo vencido. Nas palavras de apresentação de As Farpas, Eça confessava-o francamente: «Aqui estamos diante de ti, mundo oficial, constitucional, burgues, doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.
Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto, onde se não deve estar.
Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia ciência de Catão». (Uma Campanha Alegre, 1º vol., 1943, p. 5.)
Tome-se nota que isto foi escrito no ano de 1871. Depois, Eça de Queiroz, e sobretudo Ramalho Ortigão, haviam de esclarecer-se e concluir na parte que lhes faltava ver.
Um companheiro dileto de ambos no grupo dos “Vencidos da Vida" iria muito mais longe: Oliveira Martins. É que, para além de escritor insigne, ele cultivou e investigou a sociologia e foi estadista. E notável, para a época em que foi concebido, o seu estudo As Eleições (1878).
Estudo e projeto abafado numa reação de absoluto silêncio, posto, assim, fora do conhecimento das gentes. A tática é bem conhecida, por ser usual.
São do referido opúsculo os extratos que se seguem e que ordenamos de maneira a darem resumidamente uma noção do pensamento do autor, isto é, dos seus princípios orientadores.
«Nem o sufrágio é a forma exclusiva e única de obter a representação das forças sociais, embora seja uma dessas formas; nem à representação cabe o nome de nacional porque entre as ideias de nação e de sociedade há uma distância enorme, e o fim da representação de um povo é principalmente o regimento dos seus negócios, a resolução das suas questões como sociedade, e não a sua afirmação como nação, isto é como unidade política perante as demais nações ou unidades políticas.
«O deputado só legitimamente representa a opinião partidária. Que é essa opinião? que são os partidos?
Uma só coisa basta afirmar sem provar, por isso que ela está na consciência de todos: e é que entre os partidos e a sociedade portuguesa, entre uns bandos de especuladores e uma massa de gente laboriosa e nem tão corrompida e obtusa como às vezes se diz, não há pontos de contacto íntimo, nem solidariedade.
Sobre cem cidadãos, noventa e nove não têm partido; (...) o facto de a máxima parte da gente não ter partido, se imediatamente provém do nojo que os partidos causam, não pode nem deve atribuir-se apenas a tal motivo. Os partidos políticos nascem da diferença que há no modo de ver as questões de direito público e administrativas, sendo assim como escolas em ação; e a máxima parte da gente, ocupada em funções de natureza diversa, não pode ou não quer estudar direito público nem economia política, e por isso não tem partido. Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em Cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as Cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reúnam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vício, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral.
Confiados todos os interesses sociais aos partidos, eles tornam-se em bandos, as ideias fogem varridas pela ambição e pela cobiça, e a administração pública fica à mercê das agitações, das revoluções, das bancarrotas, sobretudo à mercê dum lento e mole descair num torpor de corrupção de indolência, de atrofia, por onde fatalmente se chega à morte».
«Representar os indivíduos, como cidadãos, na sua realidade social, isto é, as classes, e ao lado delas as instituições e o meio ambiente físico e moral, eis aí o princípio.
«Que a Assembleia soberana saia, não da quimera do sufrágio universal, mas sim de um sistema de delegações dos órgãos sociais, porque desde logo deixa de ser um governo em ditadura permanente para ser um tribunal em exercício ordinário».
«Um poder soberano emanado organicamente de uma sociedade libérrima, eis a verdadeira definição da democracia, quer no campo da doutrina, quer no terreno da política».
Alargamo-nos em citações porque o autor conquistou com a sua obra neste plano um destacado e merecido lugar precursor. Fechamos com uma transcrição ainda, que, se é uma objurgatória, tem o valor de um aviso.
«A assembleia de uma sociedade tem de reproduzir os órgãos, as forças, os elementos dessa sociedade; e assim como cá fora se debatem ideias e interesses sem destruir a realidade, assim lá dentro devem debater-se e combater-se. Todos já renegam os partidos que esperam a vitória da eliminação dos inimigos; ninguém pretende já cortar cem mil cabeças para depois governar sobre as cinquenta mil que restariam tão unânimes, quanto idiotas. Pois é isso mesmo que vós fazeis, ó partidos esperando destruir a realidade social, senão pelo massacre, pela mistificação da representação; senão na sociedade, na assembleia que é a reprodução dela, tratando de obter parlamentos forjados à guisa das vossas opiniões políticas.
Não se pretenda destruir a sociedade, não se pretenda viciar a sua representação; só esta é a verdadeira liberdade, só aqui está a fonte das revoluções profundas».
Não interessa trazer para aqui o articulado do projeto porquanto, é bem de ver, ele está desatualizado. As ideias, essas sim!, porque continuam vivas e válidas. Uma delas merece relevo principal. Oliveira Martins, na exposição do seu projeto opina por uma câmara única de «representação social» e sempre constituinte. Outros, como já vimos, propõem duas câmaras funcionando paralelamente: a primeira de carácter político-partidário, emanada do sufrágio geral inclassificado; a segunda, de carácter orgânico, formada por delegações dos organismos e das regiões.
A hipótese bicameral parece-nos improfícua, e as experiências havidas assim o mostram, como já tivemos ocasião de notar. Dois motivos avultam. Ou a câmara política, a partir da influência que exerce nas delegações dos organismos, se sobrepõe à orgânica, a comanda e a anula, ou as duas câmaras, mantendo-se autónomas, podem desarmonizar-se e criar conflitos, dadas as naturezas e interesses tão diferentes que as caracterizam.
Julgamos mais acertado juntar as duas espécies de representação numa só câmara pelas razões que seguidamente expomos.
a - a representação dos partidos políticos, por ser muito menor, dilui-se aí, perdendo o poder de comando, não desvirtuando por isso a genuidade das delegações dos organismos sociais ou das regiões;
b - as câmaras exclusivamente políticas enfermam do defeito de estarem sempre divididas em sectores partidários irredutíveis de tal forma que são previsíveis as suas resoluções antes das respetivas votações; pronunciam-se, regra geral, não por justas razões, mas pelos ditames ideológicos e pelos interesses de partido;
c - numa câmara mista não é fácil suceder o mesmo, porquanto o meio não se presta à formação de maiorias ou minorias permanentes e pré-fixadas. Aí os sectores das delegações orgânicas e regionais funcionam naturalmente como os jurados nos antigos tribunais; Os deputados dos organismos e das regiões não diretamente envolvidos nas questões, assumirão nelas um decisivo poder moderador, mantenedor da ordem e garante de justiça.
d - uma camara mista seria, no seu conjunto, o espelho da comunidade nacional tal como ela é, organizada.
Mas, ponto a assinalar - a nós não parece suficiente que, de qualquer modo, se confie a resolução de todos os problemas sociais, e muito menos dos de projeção nacional, a umas reduzidas duas e meia centenas de indivíduos. A atual Assembleia da República é constituída exatamente por 250 deputados. Número talvez bastante para se encarregar das questões correntes, mas de certeza insuficiente para comprometer a nação inteira em assuntos de suma gravidade e de pesada responsabilidade. Com vista a estes assuntos de extraordinária importância nacional pensamos ser indispensável retomar, convenientemente atualizadas, as antigas Cortes Gerais da nação.
Reuniriam estas, ordinariamente, suponhamos que uma vez por ano, e extraordinariamente sempre que fosse necessário para exercerem os direitos de soberania reservados à sua competência. Praticamente é bem de ver que, por agora, não interessa a pormenorização de quais deveriam ser essas competências. Frisemos, aliás, que o magistério tradicional nos ensina, como norma a seguir, o empirismo organizador, isto é, o proceder a correções conforme a experiência vá aconselhando, a adaptações à conveniência das circunstâncias, por conseguinte ao aperfeiçoamento progressivo. É um método contrastável com a inflexibilidade e o dogmatismo das ideologias a imporem-se à naturalidade dos processos humanos.
Embora considerada supérflua a pormenorização, algumas hipóteses de atribuições poderíamos adiantar para as Cortes Gerais da Nação. Assim que estas fossem o órgão competente para as revisões constitucionais. Uma missão superior, a mais elevada e delicada lhe caberia sobretudo: a de se pronunciar sobre a conduta do chefe do Estado e, porventura, destituí-lo.
Este é um ponto de relevância suprema, e que exige uma séria reflexão. Não é seguro, nem prudente abstrair-se da hipótese de incapacidade, no exercício de funções, do chefe do Estado, do perigo proveniente da sua conduta e mesmo da nocividade das suas ações. Há aqui uma precaução a tomar, de que o país não pode prescindir.
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A Constituição democrático-socialista que nos rege admite, é verdade, a destituição do Presidente da República, todavia apenas no caso de condenação «por crimes praticados no exercício das suas funções), mas, diz o Artigo 133.º «cabe ao Conselho da Revolução a iniciativa do processo».
Note-se bem que só o Conselho da Revolução, a que preside o próprio Presidente da República pode tomar a iniciativa de incriminar este. Difícil, sem dúvida.
Note-se ainda o que preceitua o citado artigo no seu Nº 4: - «Por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República responde depois de findo o mandato». Temos, por conseguinte, que a Constituição democrático-socialista que nos legou «o 25 de Abril» admite o escândalo de se manter no cargo de Presidente da República, a dirigir e a representar a Nação, um indivíduo presumível criminoso. Enfim... (V. Nota Preambular sobre a posterior Constituição de 1982.). A doutrina monárquica, suposta por alguns menos democrática, mas afinal mais democrática, prevê e estabelece (factos históricos se podem invocar) o recurso às regências e às deposições. Foram então as antigas Cortes Gerais da Nação as depositárias e atuantes da soberania portuguesa. Foram elas que tomaram as grandes decisões necessárias nos momentos cruciais da nossa história. Assim, na grave crise dinástica, em 1385, escolheram rei de Portugal o Mestre de Avis. Assim em 1440, sobrepondo-se ao testamento de D. Duarte que atribuía a regência à rainha viúva, elegem o Infante D. Pedro Regente do Reino. Com este ato anulam a legalidade estabelecida (determinação real) substituindo-a pela legitimidade inerente às Cortes soberanas.
Mas as Cortes Gerais, pelo cunho histórico que as marca e pelo modo de que são constituídas, inserem-se já, para além da representação social, em suportes de representação nacional.
Ao pretendermos restaurar uma autêntica representação da sociedade teremos indispensavelmente de ter em conta os antigos modos representativos, consagrados pelos costumes, consolidados pela prática, e conjeturar como seriam hoje sem a violenta interrupção de que foram vítimas. Trabalho cuidadoso de reconstituição, mas sem dificuldades de monta. Um retomar das linhas evolutivas naturais terá de ser experimental, sempre aberto a retificações num esforço permanente de adequação as circunstâncias atuais. Por agora seria um erro programar, com a rigidez dos pormenores, as normas precisas da representação.
Um estudo detalhado do processo representativo das organizações sociais (e haveria que revitalizar estas) só, na verdade, tem um interesse imediato a partir do momento em que seja resolvido adotá-lo.
Ao lado dos interesses específicos profissionais há que ter em consideração, em cada momento, a vontade geral. A opinião pública é uma realidade com muita força, e que não pode ser ignorada. Na antiga ordem a sua voz ouvia-se pela boca dos Procuradores do Povo. Justamente aqui estão importantes entidades a ressurgir, figurando os grandes aglomerados citadinos e as regiões diferenciadas do país, escolhidos, logicamente, por sufrágio geral. A particularidade de semelhantes Procuradores é de, pela sua origem e funções, não andarem adstritos a ideologias partidárias.
Na diversificação das entidades e dos seus elementos especificamente representativos aproxima-se a Assembleia, em autenticidade, da natureza, ela própria diversificada, das vivências sociais.
No sufrágio igualitário democratista, à massificação dos eleitores segue-se a massificação dos deputados. Não há nos parlamentos partidocráticos deputações independentes; existem apenas lugares que os diretórios dos partidos políticos foram ocupar.
É profunda a diferença entre as duas concepções de representação: a partidocrática, artificiosa e fracassada na prática; e a organicista, que sensatamente parte das realidades comuns. São duas concepções fundamentais das quais derivam, como é de ver, dois modos diferentes de conceber a Constituição do Estado, problema este que está na ordem do dia em todo o mundo civilizado. Abordaremos este dramático e premente problema num capítulo adiante.
Para quem suponha que a vida real da população assenta cabalmente na atividade dos partidos políticos, e sem requisitos de outra ordem, a conclusão lógica será a de que a população deve ser representada por uma assembleia de deputados dos partidos, e isso lhe basta. Temos aí a partidocracia.
Para quem, diferentemente como nós, julgue que a população laboriosa anda principalmente absorvida com o seu trabalho, sobretudo ligada aos seus interesses vitais, que são profissionais, económicos, locais, espirituais, e outros, é evidente que a representação através dos partidos políticos nem preenche as suas necessidades, nem se ajusta aos seus desejos e sentimentos; que ela não exprime com realidade o complexo da vida social e da vida de cada pessoa que existe fora e para além da guerrilha dos partidos. E desse complexo que teremos então de nos aproximar.
Ao pluralismo partidário que a classe política propõe como expressão completa da democracia, opomos nós o pluralismo social, figuração do país na realidade dos órgãos que o constituem.
O pluralismo partidário dá-nos somente a abertura de um leque político. Sendo importante diante da pavorosa hipótese das ditaduras de partido único é, todavia, insignificante no ponto de vista da democracia social. Além de que a representação partidária pluralista não passa de uma possibilidade teórica, pois que, na prática, como é sabido, poucos partidos conseguem representatividade no parlamento. O pluralismo político, como a sua designação indica, é restritivo, e duplamente restritivo porque restringe a representação aos partidos políticos, e destes só a alguns.
O pluralismo social baseia-se, representação, numa autêntica ao invés, na garantia de assembleia da res-publica, dos múltiplos organismos sociais existentes, na variedade da sua natureza, incluídos que sejam os partidos políticos; realizará a promoção aos lugares que lhes são devidos dos «corpos intermédios», esses núcleos de liberdades e de força popular que iniquamente são excluídos dos parlamentos do democratismo.
Diversificada como a sociedade que deve representar, a Assembleia da República abrangerá então toda a população laboriosa e organizada, e não apenas as massas rebocáveis pelos agentes partidocratas, como agora acontece.
Esta noção superior de representação, que renasce e cresce promissoramente, tem o seu passado. Nós próprios já lhe dedicámos um estudo em 1949. (Os Pilares da Democracia - Livraria Clássica Editora.) Na literatura portuguesa, a partir dos meados do século XIX, época em que as antigas instituições portuguesas, produto de uma evolução natural constantemente aperfeiçoada pelo empirismo, dizíamos, desde essa época em que foram revolucionariamente substituídas pelas abstrações democratistas, emanadas da revolução francesa, são numerosos os depoimentos contra a intrometida ordem social, melhor dizendo, desordem social, que se instalou e ainda dura entre nós.
Num artigo célebre, O Francesismo, incluído no livro «Últimas Páginas», Eça de Queiroz criticava à sua especial maneira, a demissão de portuguesismo que avassalou a burguesia desse tempo. Escreveu o romancista: «O pai de um amigo meu, em 1836 ou 1848, num ódio repentino a tudo que lhe lembrava o velho Portugal, foi-se à sua mobília antiga, de pau preto torneado e de assentos de couro lavrado, e num só dia vendeu, queimou, sepultou em sótãos, dispersou todas essas formas vetustas, que lhe vinham do passado; depois correu a um estofador da esquina, e comprou, ao acaso, num lote, uma mobília francesa. O que este homem fez, todo o Portugal o fez. Num rompimento desesperado com o velho regime, tudo quebrou, tudo estragou, tudo vendeu. Achou-se de repente nu; e como não tinha já o carácter, a força, o génio, para de si mesmo tirar uma nova civilização, feita ao seu feitio, e ao seu corpo, embrulhou-se à pressa numa civilização já feita, comprada num armazém, que lhe fica mal, e lhe não serve nas mangas».
A ideia que inspirou Eça, no essencial das suas obras, provinha da patriótica repulsa pelo estrangeirismo introduzido na política, como nos costumes, e pelo qual o país legal se extraviava. De uma carta a Teófilo Braga extraímos esse confessado intento: «A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 - e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam, eles e elas». (Eça de Queiroz, Correspondência, 3ª ed. p. 44.)
Ramalho Ortigão, seu companheiro farpista, diria o mesmo: — «eu e alguns do meu tempo entendemos que a sociedade portuguesa encharcava e apodrecia na subserviência de um parlamentarismo quase tão oco como o de agora, e como o de agora exercido por ávidos politiqueiros de ofício, sem nenhum conhecimento dos interesses e das aspirações nacionais, e deliberamos acordar do seu letargo a consciência pública, a duches, a ventosas, a pontas de fogo, a buscapés, a empurrões e a cartoladas». (Últimas Farpas (1911-1914), Clássica Editora, 1946, pp. 123-124.)
Mas se Ramalho e Eça eram, com a sua acutilante ironia, formidáveis, críticos demolidores do democratismo, a verdade é que não possuíam o necessário plano construtivo que rematasse a ofensiva ao democratismo vencido. Nas palavras de apresentação de As Farpas, Eça confessava-o francamente: «Aqui estamos diante de ti, mundo oficial, constitucional, burgues, doutrinário e grave!
Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.
Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto, onde se não deve estar.
Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia ciência de Catão». (Uma Campanha Alegre, 1º vol., 1943, p. 5.)
Tome-se nota que isto foi escrito no ano de 1871. Depois, Eça de Queiroz, e sobretudo Ramalho Ortigão, haviam de esclarecer-se e concluir na parte que lhes faltava ver.
Um companheiro dileto de ambos no grupo dos “Vencidos da Vida" iria muito mais longe: Oliveira Martins. É que, para além de escritor insigne, ele cultivou e investigou a sociologia e foi estadista. E notável, para a época em que foi concebido, o seu estudo As Eleições (1878).
Estudo e projeto abafado numa reação de absoluto silêncio, posto, assim, fora do conhecimento das gentes. A tática é bem conhecida, por ser usual.
São do referido opúsculo os extratos que se seguem e que ordenamos de maneira a darem resumidamente uma noção do pensamento do autor, isto é, dos seus princípios orientadores.
«Nem o sufrágio é a forma exclusiva e única de obter a representação das forças sociais, embora seja uma dessas formas; nem à representação cabe o nome de nacional porque entre as ideias de nação e de sociedade há uma distância enorme, e o fim da representação de um povo é principalmente o regimento dos seus negócios, a resolução das suas questões como sociedade, e não a sua afirmação como nação, isto é como unidade política perante as demais nações ou unidades políticas.
«O deputado só legitimamente representa a opinião partidária. Que é essa opinião? que são os partidos?
Uma só coisa basta afirmar sem provar, por isso que ela está na consciência de todos: e é que entre os partidos e a sociedade portuguesa, entre uns bandos de especuladores e uma massa de gente laboriosa e nem tão corrompida e obtusa como às vezes se diz, não há pontos de contacto íntimo, nem solidariedade.
Sobre cem cidadãos, noventa e nove não têm partido; (...) o facto de a máxima parte da gente não ter partido, se imediatamente provém do nojo que os partidos causam, não pode nem deve atribuir-se apenas a tal motivo. Os partidos políticos nascem da diferença que há no modo de ver as questões de direito público e administrativas, sendo assim como escolas em ação; e a máxima parte da gente, ocupada em funções de natureza diversa, não pode ou não quer estudar direito público nem economia política, e por isso não tem partido. Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em Cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as Cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reúnam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vício, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral.
Confiados todos os interesses sociais aos partidos, eles tornam-se em bandos, as ideias fogem varridas pela ambição e pela cobiça, e a administração pública fica à mercê das agitações, das revoluções, das bancarrotas, sobretudo à mercê dum lento e mole descair num torpor de corrupção de indolência, de atrofia, por onde fatalmente se chega à morte».
«Representar os indivíduos, como cidadãos, na sua realidade social, isto é, as classes, e ao lado delas as instituições e o meio ambiente físico e moral, eis aí o princípio.
«Que a Assembleia soberana saia, não da quimera do sufrágio universal, mas sim de um sistema de delegações dos órgãos sociais, porque desde logo deixa de ser um governo em ditadura permanente para ser um tribunal em exercício ordinário».
«Um poder soberano emanado organicamente de uma sociedade libérrima, eis a verdadeira definição da democracia, quer no campo da doutrina, quer no terreno da política».
Alargamo-nos em citações porque o autor conquistou com a sua obra neste plano um destacado e merecido lugar precursor. Fechamos com uma transcrição ainda, que, se é uma objurgatória, tem o valor de um aviso.
«A assembleia de uma sociedade tem de reproduzir os órgãos, as forças, os elementos dessa sociedade; e assim como cá fora se debatem ideias e interesses sem destruir a realidade, assim lá dentro devem debater-se e combater-se. Todos já renegam os partidos que esperam a vitória da eliminação dos inimigos; ninguém pretende já cortar cem mil cabeças para depois governar sobre as cinquenta mil que restariam tão unânimes, quanto idiotas. Pois é isso mesmo que vós fazeis, ó partidos esperando destruir a realidade social, senão pelo massacre, pela mistificação da representação; senão na sociedade, na assembleia que é a reprodução dela, tratando de obter parlamentos forjados à guisa das vossas opiniões políticas.
Não se pretenda destruir a sociedade, não se pretenda viciar a sua representação; só esta é a verdadeira liberdade, só aqui está a fonte das revoluções profundas».
Não interessa trazer para aqui o articulado do projeto porquanto, é bem de ver, ele está desatualizado. As ideias, essas sim!, porque continuam vivas e válidas. Uma delas merece relevo principal. Oliveira Martins, na exposição do seu projeto opina por uma câmara única de «representação social» e sempre constituinte. Outros, como já vimos, propõem duas câmaras funcionando paralelamente: a primeira de carácter político-partidário, emanada do sufrágio geral inclassificado; a segunda, de carácter orgânico, formada por delegações dos organismos e das regiões.
A hipótese bicameral parece-nos improfícua, e as experiências havidas assim o mostram, como já tivemos ocasião de notar. Dois motivos avultam. Ou a câmara política, a partir da influência que exerce nas delegações dos organismos, se sobrepõe à orgânica, a comanda e a anula, ou as duas câmaras, mantendo-se autónomas, podem desarmonizar-se e criar conflitos, dadas as naturezas e interesses tão diferentes que as caracterizam.
Julgamos mais acertado juntar as duas espécies de representação numa só câmara pelas razões que seguidamente expomos.
a - a representação dos partidos políticos, por ser muito menor, dilui-se aí, perdendo o poder de comando, não desvirtuando por isso a genuidade das delegações dos organismos sociais ou das regiões;
b - as câmaras exclusivamente políticas enfermam do defeito de estarem sempre divididas em sectores partidários irredutíveis de tal forma que são previsíveis as suas resoluções antes das respetivas votações; pronunciam-se, regra geral, não por justas razões, mas pelos ditames ideológicos e pelos interesses de partido;
c - numa câmara mista não é fácil suceder o mesmo, porquanto o meio não se presta à formação de maiorias ou minorias permanentes e pré-fixadas. Aí os sectores das delegações orgânicas e regionais funcionam naturalmente como os jurados nos antigos tribunais; Os deputados dos organismos e das regiões não diretamente envolvidos nas questões, assumirão nelas um decisivo poder moderador, mantenedor da ordem e garante de justiça.
d - uma camara mista seria, no seu conjunto, o espelho da comunidade nacional tal como ela é, organizada.
Mas, ponto a assinalar - a nós não parece suficiente que, de qualquer modo, se confie a resolução de todos os problemas sociais, e muito menos dos de projeção nacional, a umas reduzidas duas e meia centenas de indivíduos. A atual Assembleia da República é constituída exatamente por 250 deputados. Número talvez bastante para se encarregar das questões correntes, mas de certeza insuficiente para comprometer a nação inteira em assuntos de suma gravidade e de pesada responsabilidade. Com vista a estes assuntos de extraordinária importância nacional pensamos ser indispensável retomar, convenientemente atualizadas, as antigas Cortes Gerais da nação.
Reuniriam estas, ordinariamente, suponhamos que uma vez por ano, e extraordinariamente sempre que fosse necessário para exercerem os direitos de soberania reservados à sua competência. Praticamente é bem de ver que, por agora, não interessa a pormenorização de quais deveriam ser essas competências. Frisemos, aliás, que o magistério tradicional nos ensina, como norma a seguir, o empirismo organizador, isto é, o proceder a correções conforme a experiência vá aconselhando, a adaptações à conveniência das circunstâncias, por conseguinte ao aperfeiçoamento progressivo. É um método contrastável com a inflexibilidade e o dogmatismo das ideologias a imporem-se à naturalidade dos processos humanos.
Embora considerada supérflua a pormenorização, algumas hipóteses de atribuições poderíamos adiantar para as Cortes Gerais da Nação. Assim que estas fossem o órgão competente para as revisões constitucionais. Uma missão superior, a mais elevada e delicada lhe caberia sobretudo: a de se pronunciar sobre a conduta do chefe do Estado e, porventura, destituí-lo.
Este é um ponto de relevância suprema, e que exige uma séria reflexão. Não é seguro, nem prudente abstrair-se da hipótese de incapacidade, no exercício de funções, do chefe do Estado, do perigo proveniente da sua conduta e mesmo da nocividade das suas ações. Há aqui uma precaução a tomar, de que o país não pode prescindir.
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A Constituição democrático-socialista que nos rege admite, é verdade, a destituição do Presidente da República, todavia apenas no caso de condenação «por crimes praticados no exercício das suas funções), mas, diz o Artigo 133.º «cabe ao Conselho da Revolução a iniciativa do processo».
Note-se bem que só o Conselho da Revolução, a que preside o próprio Presidente da República pode tomar a iniciativa de incriminar este. Difícil, sem dúvida.
Note-se ainda o que preceitua o citado artigo no seu Nº 4: - «Por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República responde depois de findo o mandato». Temos, por conseguinte, que a Constituição democrático-socialista que nos legou «o 25 de Abril» admite o escândalo de se manter no cargo de Presidente da República, a dirigir e a representar a Nação, um indivíduo presumível criminoso. Enfim... (V. Nota Preambular sobre a posterior Constituição de 1982.). A doutrina monárquica, suposta por alguns menos democrática, mas afinal mais democrática, prevê e estabelece (factos históricos se podem invocar) o recurso às regências e às deposições. Foram então as antigas Cortes Gerais da Nação as depositárias e atuantes da soberania portuguesa. Foram elas que tomaram as grandes decisões necessárias nos momentos cruciais da nossa história. Assim, na grave crise dinástica, em 1385, escolheram rei de Portugal o Mestre de Avis. Assim em 1440, sobrepondo-se ao testamento de D. Duarte que atribuía a regência à rainha viúva, elegem o Infante D. Pedro Regente do Reino. Com este ato anulam a legalidade estabelecida (determinação real) substituindo-a pela legitimidade inerente às Cortes soberanas.
Mas as Cortes Gerais, pelo cunho histórico que as marca e pelo modo de que são constituídas, inserem-se já, para além da representação social, em suportes de representação nacional.
Ao pretendermos restaurar uma autêntica representação da sociedade teremos indispensavelmente de ter em conta os antigos modos representativos, consagrados pelos costumes, consolidados pela prática, e conjeturar como seriam hoje sem a violenta interrupção de que foram vítimas. Trabalho cuidadoso de reconstituição, mas sem dificuldades de monta. Um retomar das linhas evolutivas naturais terá de ser experimental, sempre aberto a retificações num esforço permanente de adequação as circunstâncias atuais. Por agora seria um erro programar, com a rigidez dos pormenores, as normas precisas da representação.
Um estudo detalhado do processo representativo das organizações sociais (e haveria que revitalizar estas) só, na verdade, tem um interesse imediato a partir do momento em que seja resolvido adotá-lo.
Ao lado dos interesses específicos profissionais há que ter em consideração, em cada momento, a vontade geral. A opinião pública é uma realidade com muita força, e que não pode ser ignorada. Na antiga ordem a sua voz ouvia-se pela boca dos Procuradores do Povo. Justamente aqui estão importantes entidades a ressurgir, figurando os grandes aglomerados citadinos e as regiões diferenciadas do país, escolhidos, logicamente, por sufrágio geral. A particularidade de semelhantes Procuradores é de, pela sua origem e funções, não andarem adstritos a ideologias partidárias.
Na diversificação das entidades e dos seus elementos especificamente representativos aproxima-se a Assembleia, em autenticidade, da natureza, ela própria diversificada, das vivências sociais.
No sufrágio igualitário democratista, à massificação dos eleitores segue-se a massificação dos deputados. Não há nos parlamentos partidocráticos deputações independentes; existem apenas lugares que os diretórios dos partidos políticos foram ocupar.
É profunda a diferença entre as duas concepções de representação: a partidocrática, artificiosa e fracassada na prática; e a organicista, que sensatamente parte das realidades comuns. São duas concepções fundamentais das quais derivam, como é de ver, dois modos diferentes de conceber a Constituição do Estado, problema este que está na ordem do dia em todo o mundo civilizado. Abordaremos este dramático e premente problema num capítulo adiante.
REPRESENTAÇÃO NACIONAL
Como disse Oliveira Martins, no trabalho que longamente citamos, «à representação das forças sociais não cabe o nome de nacional, porque entre as ideias de nação e de sociedade há uma distância enorme. Distância enorme, que é sobretudo medida pelo tempo, em séculos de história.
Efetivamente uma assembleia de deputados, por mais variada e vasta que seja, é sempre, no fundo, a representação do povo num dado e passageiro momento da existência mais longa da pátria. Interessada sobretudo em despachar as questões menores e de efeitos imediatos, demasiado absorvida com o seu presente, é propensa a pôr em segundo lugar os interesses de resultados afastados, que afinal são os do futuro coletivo.
Um órgão da natureza de uma Câmara Parlamentar não é, realmente, vocacionado para decisões de projeção longínqua. São-no incomparavelmente mais as Cortes Gerais, já pela especialidade da matéria que lhe é destinada, já pela periodicidade normalmente afastada das suas reuniões. Porém uma única instituição, que se saiba, existe particularmente moldada a aderir à perenidade da pátria: é a Dinastia Real. Nos países que tenham a ventura de a possuir, a Dinastia é, pela sua íntima ligação ao passado e ao futuro, a vigilante atenta, a guardadora mais segura do seu destino, porque, presa à ancestralidade por responsabilidades indeléveis, os interesses na posteridade são mútuos, como serão mútuos os prejuízos.
As linhas históricas nacional e dinástica, coincidem e confundem-se. Têm a mesma orientação e o mesmo sentido.
A Dinastia Real aparece-nos assim, naquela definição feliz, que António Sardinha gostava de citar, como uma «instituição complementar». Com efeito é por intermédio da Dinastia que se consegue a componente caracterizadamente nacional que falta à parte representativa social; as duas conjugadas constituirão a representação mais completa da nação, no ontem, no hoje, no amanhã.
Desejam certos teóricos fantasistas que um Presidente represente legitimamente a sociedade nacional? Legalmente sim; legitimamente, impossível.
Um Presidente é oriundo do princípio eletivo, e a não se verificar a hipótese inverosímil de uma unanimidade de votos favoráveis, ele será sempre contestado por uma parte, maior ou menor, da população, precisamente a que não o quis eleger. Nunca, por conseguinte, poderá, com inteira verdade, intitular-se o presidente de todos nós, ainda que o deseje ser, porque isso não depende da sua vontade, mas da vontade dos eleitores. O acontecer de uma presidência adquirir, por vezes e para certas sensibilidades, um sabor dramático, provém de uma fatalidade que lhe está na essência. Por esta razão, não chegam para neutralizar os sinais negativos as excelsas qualidades que porventura ornem a figura do elegido. Há que compreender que a negatividade, neste particular, lhe vai da eleição, como sistema de origem.
A eleição em si, por outro lado, localiza o presidente num período avulso e efémero do exercício de funções de chefia do Estado, facto que se põe em antagonismo como que é diferente, e necessário, a chefia nacional. Esta requer uma permanência de funções que acompanhe, no tempo, a marcha da nação, e por ela permanentemente se responsabilize. Pretender-se alcançar este objetivo com presidências de cinco anos é absurdo demais. A solução encontra-se, ainda para além dos governos vitalícios, na hereditariedade dinástica. Produto do apuramento experimental de séculos ela é uma das mais sábias conclusões da ciência política. É também um requisito imperioso dos povos que querem ser grandes na história do mundo. As maiores e mais duradouras obras da civilização foram levadas a cabo por dinastias reinantes. Ao ter essa perceção, na pungente falta do tempo que lhe fugia, é que Napoleão soltou o desesperado lamento: «ah! não ser eu neto de mim mesmo...» Contém-se nesta dorida exclamação, para quem saiba entendê-la, toda a doutrina da hereditariedade monárquica.
Mas retomemos o nosso raciocínio. Se ao ocupante de uma presidência da República está vedada a possibilidade de ser o verídico representante do querer da população sua contemporânea, muito menos poderá aspirar a representar a nação histórica (passada, presente, futura) que este é, rigorosamente, o conceito de nação. A razão é óbvia: a Presidência é um lugar de tarefa temporária, a ocupar por um funcionário eventual.
Confronte-se com a Realeza hereditária. Esta, através das sucessões (rei morto, rei posto) preenche sem interrupção o quadro permanente da Chefatura nacional e por isso, não só simboliza, como também, personifica a unidade da nação na sua perenidade.
Já o temos dito. O que falta à República, para ser um sistema de governo mais aperfeiçoado, é um Rei.
A falta de uma chefatura nacional está a evidenciar-se na ordem do dia. O problema que se debate da subordinação das Forças Armadas é eloquente. Recusam as Forças Armadas o mando do Poder Político. E têm razão. As Forças Armadas são nacionais, e ficando sujeitas aos Governos correm o risco muito provável de um dia se transformarem em forças políticas, ou numa espécie de forças policiais ao serviço de uma política. Têm razão em não querer uma chefia política, que na verdade lhes é imprópria.
Em contraposição estão os partidos democráticos da Assembleia da República que, com os seus argumentos irrefutavelmente democráticos, dizem que é ao Poder Executivo que as Forças Armadas devem obediência.
Perante esta questão insolúvel, como não podem encarar a ideia de uma autonomia acima do Estado democrático, as Forças Armadas socorrem-se de um subterfúgio. Propõem-se ficar na dependência direta do Presidente da República. E um expediente ilusório. O presidente é hoje um militar, mas amanhã pode muito bem ser um paisano. Além disso parecem esquecer-se de que a Presidência da República é um lugar de conquista política, dado que é preenchido por eleições realizadas entre forças políticas. Ao facto de, na circunstância atual, Governo e Presidente não se identificarem politicamente, não deve atribuir-se mais do que um significado acidental. Trata-se de uma situação anómala, pois que a normalidade consiste no eleitorado ser coerente nas duas votações.
Da falta de um poder apolítico e de índole nacional ressente-se igualmente o Poder Judicial. E ressente-se, sobretudo, a população. É bem conhecida a tentação e, infelizmente, a prática de muitos governos de disporem dos tribunais como meio de repressão e de opressão política. As prisões sem culpa formada, os julgamentos à porta fechada, as condenações sem processo, a promulgação de leis retroativas, o cancelamento de determinados inquéritos criminais, etc., factos tão frequentes neste século de democracia de partidos (de um só, ou de mais, indiferentemente) são apenas possíveis quando a instituição judicial é comandada por governos políticos, isto é, quando não existem condições para um verdadeiro Poder Judicial. Que este deve ser independente do Poder político, pela razão de que a justiça não pode ter cor política; tem de ser livre do jugo da partidocracia.
Aqui é de todo o interesse realçar a seguinte particularidade. As injustiças referidas que, em nome da Justiça, os governos aplicam têm todas um móbil político-partidário e, espantosamente, a dureza destas injustiças contrasta com a brandura e a tolerância com que são tratados os crimes sociais, nomeadamente os atentados contra pessoas e bens. Na disparidade destes procedimentos verifica-se uma inversão de valores, subalternizando-se a vivência social ao império das ideologias detentoras do mando.
Destes considerandos ressalta, como conclusão, a indispensabilidade de um autêntico poder representativo da nação que, concomitantemente, chefie o Poder Judicial e lhe garanta a necessária independência e imparcialidade. Este poder não vemos que possa ser outro senão o Poder Real, porquanto se caracteriza, na pureza da sua essência, como uma magistratura nacional.
Um outro sector do Estado que, pelo significado e missão especial que o caracterizam, é discordante de uma diretiva político-partidária é o da Diplomacia. E é importante que o seja.
No correto sentido o corpo diplomático institui-se para representar a Nação e não qualquer partido político que por acaso transite pelas cadeiras do governo. Cabendo-lhe tratar dos negócios externos do país e defender os interesses nacionais, é lógico deduzir que os agentes diplomáticos de carreira, pela isenção e preparação de que são dotados, inspirem maior confiança do que os adventícios enviados pelos partidos governantes, e que, naturalmente, são induzidos a guiar-se, em primeiras vistas, pelas conveniências partidárias. Escusado será frisar quanto essas conveniências partidárias podem estar em desacordo com as conveniências nacionais.
Os governos mudam, a nação continua. Por isso a representação nacional no exterior não pode ser fortuita, improvisada, ligada à efemeridade dos ministérios e à cor variável destes. Há de permanecer integra no seu todo, servindo de veículo, naturalmente, aos governos, mas mantendo-se fiel à perenidade do Estado.
O conhecimento mais vasto e mais profundo do meio, a convivência mais íntima com as pessoas, que se adquirem progressivamente com o decorrer do tempo em funções, favorece extraordinariamente o trabalho do diplomata. Neste particular é paradigma a embaixada do Marquês de Soveral na Corte de Londres, que ainda hoje é citada com a maior admiração. Destas concepções resulta a indicação de que a chefia superior do corpo diplomático tenha, tal com a das Forças Armadas, tal como a da Justiça, um carácter não político, mas eminentemente nacional. E outra vez não se vê que outro poder, para o efeito, possa substituir o Poder Real.
Efetivamente uma assembleia de deputados, por mais variada e vasta que seja, é sempre, no fundo, a representação do povo num dado e passageiro momento da existência mais longa da pátria. Interessada sobretudo em despachar as questões menores e de efeitos imediatos, demasiado absorvida com o seu presente, é propensa a pôr em segundo lugar os interesses de resultados afastados, que afinal são os do futuro coletivo.
Um órgão da natureza de uma Câmara Parlamentar não é, realmente, vocacionado para decisões de projeção longínqua. São-no incomparavelmente mais as Cortes Gerais, já pela especialidade da matéria que lhe é destinada, já pela periodicidade normalmente afastada das suas reuniões. Porém uma única instituição, que se saiba, existe particularmente moldada a aderir à perenidade da pátria: é a Dinastia Real. Nos países que tenham a ventura de a possuir, a Dinastia é, pela sua íntima ligação ao passado e ao futuro, a vigilante atenta, a guardadora mais segura do seu destino, porque, presa à ancestralidade por responsabilidades indeléveis, os interesses na posteridade são mútuos, como serão mútuos os prejuízos.
As linhas históricas nacional e dinástica, coincidem e confundem-se. Têm a mesma orientação e o mesmo sentido.
A Dinastia Real aparece-nos assim, naquela definição feliz, que António Sardinha gostava de citar, como uma «instituição complementar». Com efeito é por intermédio da Dinastia que se consegue a componente caracterizadamente nacional que falta à parte representativa social; as duas conjugadas constituirão a representação mais completa da nação, no ontem, no hoje, no amanhã.
Desejam certos teóricos fantasistas que um Presidente represente legitimamente a sociedade nacional? Legalmente sim; legitimamente, impossível.
Um Presidente é oriundo do princípio eletivo, e a não se verificar a hipótese inverosímil de uma unanimidade de votos favoráveis, ele será sempre contestado por uma parte, maior ou menor, da população, precisamente a que não o quis eleger. Nunca, por conseguinte, poderá, com inteira verdade, intitular-se o presidente de todos nós, ainda que o deseje ser, porque isso não depende da sua vontade, mas da vontade dos eleitores. O acontecer de uma presidência adquirir, por vezes e para certas sensibilidades, um sabor dramático, provém de uma fatalidade que lhe está na essência. Por esta razão, não chegam para neutralizar os sinais negativos as excelsas qualidades que porventura ornem a figura do elegido. Há que compreender que a negatividade, neste particular, lhe vai da eleição, como sistema de origem.
A eleição em si, por outro lado, localiza o presidente num período avulso e efémero do exercício de funções de chefia do Estado, facto que se põe em antagonismo como que é diferente, e necessário, a chefia nacional. Esta requer uma permanência de funções que acompanhe, no tempo, a marcha da nação, e por ela permanentemente se responsabilize. Pretender-se alcançar este objetivo com presidências de cinco anos é absurdo demais. A solução encontra-se, ainda para além dos governos vitalícios, na hereditariedade dinástica. Produto do apuramento experimental de séculos ela é uma das mais sábias conclusões da ciência política. É também um requisito imperioso dos povos que querem ser grandes na história do mundo. As maiores e mais duradouras obras da civilização foram levadas a cabo por dinastias reinantes. Ao ter essa perceção, na pungente falta do tempo que lhe fugia, é que Napoleão soltou o desesperado lamento: «ah! não ser eu neto de mim mesmo...» Contém-se nesta dorida exclamação, para quem saiba entendê-la, toda a doutrina da hereditariedade monárquica.
Mas retomemos o nosso raciocínio. Se ao ocupante de uma presidência da República está vedada a possibilidade de ser o verídico representante do querer da população sua contemporânea, muito menos poderá aspirar a representar a nação histórica (passada, presente, futura) que este é, rigorosamente, o conceito de nação. A razão é óbvia: a Presidência é um lugar de tarefa temporária, a ocupar por um funcionário eventual.
Confronte-se com a Realeza hereditária. Esta, através das sucessões (rei morto, rei posto) preenche sem interrupção o quadro permanente da Chefatura nacional e por isso, não só simboliza, como também, personifica a unidade da nação na sua perenidade.
Já o temos dito. O que falta à República, para ser um sistema de governo mais aperfeiçoado, é um Rei.
A falta de uma chefatura nacional está a evidenciar-se na ordem do dia. O problema que se debate da subordinação das Forças Armadas é eloquente. Recusam as Forças Armadas o mando do Poder Político. E têm razão. As Forças Armadas são nacionais, e ficando sujeitas aos Governos correm o risco muito provável de um dia se transformarem em forças políticas, ou numa espécie de forças policiais ao serviço de uma política. Têm razão em não querer uma chefia política, que na verdade lhes é imprópria.
Em contraposição estão os partidos democráticos da Assembleia da República que, com os seus argumentos irrefutavelmente democráticos, dizem que é ao Poder Executivo que as Forças Armadas devem obediência.
Perante esta questão insolúvel, como não podem encarar a ideia de uma autonomia acima do Estado democrático, as Forças Armadas socorrem-se de um subterfúgio. Propõem-se ficar na dependência direta do Presidente da República. E um expediente ilusório. O presidente é hoje um militar, mas amanhã pode muito bem ser um paisano. Além disso parecem esquecer-se de que a Presidência da República é um lugar de conquista política, dado que é preenchido por eleições realizadas entre forças políticas. Ao facto de, na circunstância atual, Governo e Presidente não se identificarem politicamente, não deve atribuir-se mais do que um significado acidental. Trata-se de uma situação anómala, pois que a normalidade consiste no eleitorado ser coerente nas duas votações.
Da falta de um poder apolítico e de índole nacional ressente-se igualmente o Poder Judicial. E ressente-se, sobretudo, a população. É bem conhecida a tentação e, infelizmente, a prática de muitos governos de disporem dos tribunais como meio de repressão e de opressão política. As prisões sem culpa formada, os julgamentos à porta fechada, as condenações sem processo, a promulgação de leis retroativas, o cancelamento de determinados inquéritos criminais, etc., factos tão frequentes neste século de democracia de partidos (de um só, ou de mais, indiferentemente) são apenas possíveis quando a instituição judicial é comandada por governos políticos, isto é, quando não existem condições para um verdadeiro Poder Judicial. Que este deve ser independente do Poder político, pela razão de que a justiça não pode ter cor política; tem de ser livre do jugo da partidocracia.
Aqui é de todo o interesse realçar a seguinte particularidade. As injustiças referidas que, em nome da Justiça, os governos aplicam têm todas um móbil político-partidário e, espantosamente, a dureza destas injustiças contrasta com a brandura e a tolerância com que são tratados os crimes sociais, nomeadamente os atentados contra pessoas e bens. Na disparidade destes procedimentos verifica-se uma inversão de valores, subalternizando-se a vivência social ao império das ideologias detentoras do mando.
Destes considerandos ressalta, como conclusão, a indispensabilidade de um autêntico poder representativo da nação que, concomitantemente, chefie o Poder Judicial e lhe garanta a necessária independência e imparcialidade. Este poder não vemos que possa ser outro senão o Poder Real, porquanto se caracteriza, na pureza da sua essência, como uma magistratura nacional.
Um outro sector do Estado que, pelo significado e missão especial que o caracterizam, é discordante de uma diretiva político-partidária é o da Diplomacia. E é importante que o seja.
No correto sentido o corpo diplomático institui-se para representar a Nação e não qualquer partido político que por acaso transite pelas cadeiras do governo. Cabendo-lhe tratar dos negócios externos do país e defender os interesses nacionais, é lógico deduzir que os agentes diplomáticos de carreira, pela isenção e preparação de que são dotados, inspirem maior confiança do que os adventícios enviados pelos partidos governantes, e que, naturalmente, são induzidos a guiar-se, em primeiras vistas, pelas conveniências partidárias. Escusado será frisar quanto essas conveniências partidárias podem estar em desacordo com as conveniências nacionais.
Os governos mudam, a nação continua. Por isso a representação nacional no exterior não pode ser fortuita, improvisada, ligada à efemeridade dos ministérios e à cor variável destes. Há de permanecer integra no seu todo, servindo de veículo, naturalmente, aos governos, mas mantendo-se fiel à perenidade do Estado.
O conhecimento mais vasto e mais profundo do meio, a convivência mais íntima com as pessoas, que se adquirem progressivamente com o decorrer do tempo em funções, favorece extraordinariamente o trabalho do diplomata. Neste particular é paradigma a embaixada do Marquês de Soveral na Corte de Londres, que ainda hoje é citada com a maior admiração. Destas concepções resulta a indicação de que a chefia superior do corpo diplomático tenha, tal com a das Forças Armadas, tal como a da Justiça, um carácter não político, mas eminentemente nacional. E outra vez não se vê que outro poder, para o efeito, possa substituir o Poder Real.
UMA NOVA ORDEM
A necessária modernização do Estado, de forma a adaptá-lo à autenticidade e às exigências actuais, começa forçosamente pela adopção de um critério novo, objectivo e realista da comunidade nacional, por uma visão da sociedade tal como ela é e, por consequência, por uma transformação nos seus órgãos representativos.
Todos os depoimentos e testemunhos do descrédito da partidocracia provenientes dos diversos sectores e com uma significativa unanimidade, apontam, como já vimos, para um sistema de delegações fundamentalmente organicista e, portanto, para a constituição de uma Assembleia que, liberta do iníquo monopólio da classe política, seja uma fidedigna e ampla expressão da variedade, da multiplicidade e da autonomia dos agrupamentos naturais do país. Nesta orientação se modificaria, ipso facto, o carácter e o funcionamento da Assembleia. E logo um dos resultados mais importantes seria o de os seus membros deixarem de estar, como agora estão, submetidos à disciplina de comandos partidários estabelecidos. A natureza peculiar das diferentes deputações conferiria aos novos deputados e à Assembleia uma renovada feição e a idoneidade representativa que lhes tem faltado. Deixando de ser um clube de partidos políticos, a Assembleia ganharia então a categoria de verdadeira representante do país.
Não é difícil imaginar, nas circunstâncias, qual seria o comportamento desses outros deputados e como se conduziriam os trabalhos. É sabido que nos parlamentos partidocráticos os deputados se apresentam marcados de cores políticas, divididos entre deputados do governo e deputados da oposição, e como é na perspectiva deste antagonismo que se tratam os assuntos postos à discussão. Em semelhante clima geram-se, naturalmente, sectarismos irredutíveis a sobreporem-se as razões justas e a dificultarem entendimentos.
O obstrucionismo é a atitude habitual das oposições contra os governos. Ora numa Assembleia Social não haveria, por princípio, deputados do governo, nem deputados de oposição, pelo motivo de os governos não se formarem na base de partidos políticos. Em tal conformidade o procedimento dos deputados tornar-se-ia muito diferente. Decerto que nas questões debatidas se estabeleceriam, como agora, maiorias pró ou contra, mas as concordâncias que se verificassem entre deputados seriam sempre ocasionais, variáveis na sua formação, indeterminadas, consoante as matérias. Não existirão numa Assembleia social evoluída, maiorias ou minorias preconcebidas, pré-estabelecidas por ideologias políticas como acontece nos parlamentos partidocráticos.
Reputamos este ponto importantíssimo! Os órgãos vitais do país, falando por si, podem imprimir à política um sentido nacional. Outro tanto não é de esperar dos partidos políticos porque são presos de condicionalismos imperativos.
A vida dos partidos depende do votismo, não o esqueçamos. Ganhar votos, perder votos nas eleições, tem de ser, a cada momento, a preocupação prioritária dos dirigentes, e todas ou quase todas as medidas governativas têm repercusões eleitorais. A tentação da demagogia é-lhes, pois, irressistível, e o interesse nacional dificilmente se coaduna com as cedências demagógicas.
Concretamente, para as assembleias políticas electivas a defesa da austeridade e o saneamento na administração pública são óbices intransponíveis. E muito fácil de perceber porquê. Aliás os factos esclarecedores vão-se somando a olhos vistos.
Suponhamos, como ocorrência frequente, a empresa A, de monopolismo estatizado e com milhares de empregados. Estes entram em greves, porventura «selvagens» ou políticas, mas exigindo substanciais aumentos, sobre aumentos de salários que o conselho de gerência verifica já não serem comportáveis no orçamento da empresa, a menos que os seus produtos encareçam proporcionalmente. O partido X, por uma razão ou outra, mas sobretudo querendo conquistar as simpatias dos empregados e os seus votos, apoia, é de ver, as reivindicações salariais. Mas como o acréscimo das despesas daí provenientes acarreta o aumento dos preços, e antes que o público consumidor tenha tempo de raciocinar sobre os porquês do encarecimento, o mesmo partido X apressa-se a organizar "manifestações populares" de rua "contra a subida do custo de vida". Eis como, em face de dois interesses contraditórios (dos empregados da empresa monopolista e do povo obrigatoriamente pagante) o partido X adopta a atitude contraditória de apoiar os opostos.
Outra hipótese, digamos que outro exemplo.
Suponhamos a empresa B de serviços públicos, que acrescenta anualmente déficits sobre déficits, os quais o povo tem de suportar por via de impostos, e que o motivo principal ou único da situação deficitária é o excesso de pessoal. Verificou-se, na verdade, que, comparativamente com empresas similares estrangeiras de muito maior extensão, apresenta o triplo de empregados para um terço de movimento.
O partido Z foi um dos grandes responsáveis por este estado de coisas, porque ao subir ao governo, após a instauração da partidocracia, anichou lá centenas de apaniguados. De resto outros partidos, na sua vez, fizeram o mesmo, como clientelas que são. Com estes precedentes é impensável, obviamente, que o saneamento da empresa, que exige a redução do pessoal às devidas proporções, possa ser reclamado pelos mesmos partidos que deram origem à sua insanidade.
Mas não só nas empresas nacionalizadas. Também nas repartições ministeriais e nas autarquias administrativas se verifica igual superlotação de funcionalismo, obrigando a agravamentos de taxas e da carga tributária no geral.
Perante uma inflação desta natureza, tão evidente e tão onerosa, acaso já se ouviu algum partido ou algum deputado, incluso dos chamados «independentes» pôr o dedo na ferida e levantar a voz apontando a única solução que o problema comporta? Claro está que não! As razões do silêncio dos senhores deputados a este respeito são transparentes: a preocupação eleiçoeira dirige-os.
Imaginemos por um instante que, em vez de um parlamento partidocrático, tínhamos a funcionar (e a servir o país!) uma câmara de representação orgânica. Então as coisas passar-se-iam mais ou menos como se segue. Eis que os deputados dos sindicatos operários estavam em controvérsia com os deputados dos gestores das empresas, de cada lado directa e acaloradamente interessados na questão. Teríamos então todos os outros (das agremiações do comércio, da agricultura, das profissões universitárias, das associações culturais, espirituais, das autarquias regionais, etc., etc.), na grande maioria neutros por princípio, a servirem de moderadores e de fiel da balança, a resolverem pela justiça de quem a tivesse.
No parlamento partidocrático não há, em regra, deputados neutrais, imparciais, porque os partidos alinham todos por ideologias, e quase todas as questões acabam por tomar o aspecto de ideológicas.
As vantagens de uma representatividade a partir dos agrupamentos naturais, da vida social e da vida nacional não podem deixar de ser francamente inteligíveis embora, como aqui, referidas somente ao rendimento de uma assembleia da república (res-publica). Mas as vantagens adquirem maior relevância ao considerarmos que este inovador sistema de representação nos livraria dos graves prejuízos do eleitoralismo. Prejuízos de ordem moral e de ordem material.
É demais conhecido quanto as lutas políticas, especialmente nas propagandas eleitorais, com a agressividade que as acompanha, ferem o corpo social, retalhando-o, dividindo-o em sectores hostis, rompendo laços de amizade nos vizinhos e nas famílias, destruindo a harmonia dos povoados, criando malquerenças, suscitando ódios. Mais ou menos é sempre deplorável o que fica no rescaldo de uma agitação sufragística entre as relações humanas. Também na ordem material os saldos são fortemente negativos. Cada campanha eleitoral sai muito dispendiosa. Que o digam as tesourarias empenhadas dos partidos, ou as tipografias credoras de dívidas incobráveis. Cartazes a cobrir paredes, jornais adventícios e panfletos, tempos de antena, alugueres de salas para comicios, deslocações de massas, etc., custam na verdade, rios de dinheiro.
Pois não nos disporemos a pensar que estes devastadores sismos sociais e estas despesas desmesuradas se tornariam evitáveis com uma outra modalidade de representações?
Os deputados de cada um dos agrupamentos sociais (sindicatos, grémios, escolas, colectividades de toda a ordem, associações de municípios ou procuradorias de cidades, etc.) seriam escolhidos dentro desses agrupamentos, sem que fosse necessário, ou mesmo aconselhável, que o fossem na mesma data. Os partidos políticos, igualmente admitidos como congregações políticas de estudo, designariam os respectivos delegados. Seriam estas eleições parcelares realizadas nos seus meios próprios, tão diferentes e tão independentes uns dos outros, que facilmente se despojariam de cariz ideológico.
Pelo processo referido desapareceriam, ou seriam atenuadas ao máximo, as funestas convulsões emocionais que tanto perturbam e lesam a comunidade nacional. Concomitantemente lucrar-se-ia em autenticidade representativa, tudo alcançado num ambiente pacífico de liberdade. Seria então adequado falar-se numa política progressiva, se a este adjectivo se atribui um sentido de evolução para o aperfeiçoamento, um significado preciso de progresso humano para o bem-comum, e não de «esquerdismo» utópico ou involutivo.
Um facto simples na aparência - o de seleccionar os deputados no mesmo povo, mas de outro modo - pode operar alterações radicais na personalidade colectiva da Assembleia da República, na sua maneira de ser e de actuar. O motivo é evidente: a assembleia deixará de ser comandada por centros politico-ideológicos, deixará de ter «direitas», «centro», «esquerdas»; será una em princípio, apesar da sua constitutiva diversidade. As divergências que nela se formem serão sempre pontuais, sem implicarem alinhamentos permanentes, os quais são a consequência fatal e o grande mal da partidocracia. Tal circunstância imprimirá à Assembleia uma nova dinâmica nos parâmetros de uma inspiração criadora. Então, cúmulo de democracia participada, a Assembleia obterá condições de trabalhar como órgão representativo do país real, na libérrima variedade das suas opiniões, é certo, mas obedecendo ao objectivo que justifica a sua existência, e que não deve afastar-se nunca da procura incondicional das melhores soluções do interesse nacional, quer através do particular, quer no geral.
Uma assembleia representativa será sempre o fulcro da política do país, a sua expressão, o sinal do seu estilo. Uma pergunta pode, provavelmente, surgir em espíritos menos atentos quanto ao regime económico-social que se preconiza para uma nova ordem. Porém, reflectindo um pouco, logo se há-de compreender que tal pergunta será incoerente. Raciocinando em termos democráticos não é admissível a hipótese de se definir e impor um regime qualquer à população do país, porque, precisamente, é na livre escolha das formas de regime que reside a soberania democrática. Competirá, pois, e sempre, aos representantes legítimos do país determinar as normas constitucionais que hão-de vigorar. Fora disto cair-se-ia num contra-senso, incorrer-se-ia numa violação da ética democrática, como nas primeiras páginas deste livro tivemos ocasião de salientar.
Um problema com este relacionado e que está na ordem do dia é o da descentralização.
Debatem-se duas concepções: uma, a que foi sempre a dos homens dos partidos políticos; outra, tradicional, mas trazida à modernidade, de que ultimamente se tem feito porta-voz o Presidente da República. A primeira, a da classe política, quer que as chamadas autarquias locais continuem a depender exclusivamente das suas candidaturas, isto é, que não possam ser propostas à eleição listas ou pessoas não arregimentadas nas organizações partidárias. A segunda pretende que, para além da representação politico-ideológica, actualmente a única permitida, sejam admitidas, independentemente dos partidos, outras representações, porventura numa inspiração ancestral de chamamento aos «homens bons» dos concelhos, se não mesmo dos organismos significativos da vida local. É evidente que se encontra aqui o sentido realista da descentralização. A divergência manifesta de atitudes é perfeitamente compreensível. À partidocracia não convém qualquer espécie de descentralizações dado que os governos partidários se fortalecem, ao invés, centralizando os poderes.
No insólito confronto de Miranda do Corvo (Diário de Notícias, nº 41379) opôs o ministro Angelo Correia que «a representação dos interesses ideológicos dos cidadãos faz-se através dos partidos políticos», e acrescentou, em jeito de conclusão «esse é o cerne da democracia». Com estas palavras A. Correia mostra que está fechado no conceito democratista da democracia. Mostra também que somente tem em conta «os interesses ideológicos», o que é muito pouco. Está conforme à mentalidade partidocrática, mas está em completa desincronização em face do ritmo normal da vida. A verdade é que nas populações rurais das aldeias e das vilas, incluso nas cidades, os «interesses ideológicos» são reduzidíssimos perante os interesses palpáveis relacionados, nos vários casos, com os empregos, as habitações, a poluição, a assistência médica (e judiciária!), o custo de vida, as vias de comunicação, o fornecimento de água, os esgotos, etc., etc. Todos estes interesses, que entram na primeira linha de preocupações dos povos têm que ter os seus porta-vozes delegados, mas não só nas autarquias locais, mas também na autarquia central do país - a assembleia da república. Esta a questão na sua verdadeira extensão e para a qual os partidos políticos não estão indicados.
No aperto das circunstâncias, a classe política, a fazermos fé nas declarações do ministro do P. S. D., supõe ingenuamente poder mistificar a representação pluralista da sociedade, que os tempos de hoje requerem, com a inclusão nas listas partidárias de candidatos independentes de partidos. A mistificação é demasiada! Então uma representação que depende da permissão de candidatura dos partidos poder-se-ia alguma vez tomar por independente? É preciso ter-se a noção de que o pluralismo social ultrapassa o pluralismo dos partidos.
Quando o Presidente da República disse que «não se pode limitar apenas aos partidos políticos, e aos que neles se integram, a proposta de soluções e a capacidade de ser útil à comunidade», e mais que «a democracia tem um espaço de acção mais extenso, do que os partidos», é de reconhecer que tentou um passo em frente no caminho acertado. Penosamente nos parece que o fez, porque se mostra preso nas malhas apertadas de um equívoco ao afirmar conjuntamente que «não há democracia sem partidos políticos». Não há?! Mas pode haver!
Não iremos repetir aqui as considerações expressas atrás a este respeito, pois julgamos que foram suficientes, e encerramos o circuito a que fomos tentados pela inopinada e, a certos títulos edificante, confrontação de Miranda do Corvo, para retomarmos a corrente de pensamento que vínhamos expondo sobre a assembleia representativa.
Íamos dizendo que a constituição da Assembleia Social reveste-se de importância capital porque, definindo a ideologia inspiradora do Estado, o seu funcionamento condiciona e regula o destino da nação.
O comportamento de uma Assembleia é bastante para nos facultar a imagem, boa ou má, da governação e da administração do país.
A disfunção das assembleias políticas formadas sobre uma fragmentação de partidos em confronto, a dificultar, se não a impossibilitar o exercício normal dos ministérios é o fenómeno corrente nas partidocracias. E assim não é raro que as crises ministeriais, deixando os países sem governo, se prolonguem escandalosamente. Que fazer nessas situações por vezes dramáticas?
Os democratistas, parecendo não se impressionarem conscientemente sobre a patognomonia [característica ou sintoma de uma doença em particular] dessas crises, contentam-se em apresentar como solução o que não passa de um mero expediente: a dissolução da assembleia e, consequentemente, a realização de eleições antecipadas. Mas acontece geralmente que o eleitorado, pouco ou nada mudando nas ideias, confirma, mais ou menos, os seus votos anteriores e uma nova assembleia não vai diferir muito da antecedente. Portanto a crise de fundo continua latente e o recurso às dissoluções não surte o efeito desejado.
A experiência portuguesa a este respeito é (ou deveria ser...) elucidativa. Os dados são os seguintes.
Na 1ª República houve sete (7) legislaturas e destas, cinco (5) foram dissolvidas.
Contando desde o advento do parlamentarismo monárquico até ao fim da 1ª República verifica-se terem sido dissolvidas 86 por cento das Assembleias parlamentares.
Uma percentagem tão elevada de dissoluções demonstra claramente, por um lado, que as assembleias não viabilizavam a marcha político-administrativa e, por outro lado, que as dissoluções não remediavam o mal crónico. E de tudo ressalta uma conclusão final. Não sendo de admitir que os estadistas, quer do democratismo monárquico, quer do democratismo republicano fossem todos inaptos, temos de deduzir que as responsabilidades dos insucessos devem ser essencialmente imputadas ao sistema democratista.
Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
Assistindo como espectador e crítico ao desmanchar do democratismo nos fins da monarquia, Fialho de Almeida, o autor alentejano de belas páginas de antologia da nossa literatura, soltou este brado de desalento: «Não há hoje em Portugal um único homem e um único partido onde pôr esperança», e acrescentava então, profético, «o republicano pior do que nenhuma. (Os Gatos, 5ª edição, 5.° vol., p.. 115)
No deserto de alma a que nos condenaram, e nestes dias sem horizonte, sobram-nos redobradas razões para repetirmos as palavras amargas do escritor de Os Gatos e de Saibam Quantos..., tendo em vista os homens públicos que fizeram e têm mantido esta 3ª República, estadistas dos empréstimos, «cujo talento governista é gastar».
Como a história se repete, correcta e aumentada nas suas reedições... Por isso, para que não fossem conhecidas as experiências falhadas se tentou banir das escolas o ensino da história pátria.
As eleições consecutivas à dissolução das assembleias podem, na verdade, conduzir a mudanças de partidos no governo, que são as decantadas alternâncias de poder. Mas alternâncias que não são sinónimas de alternativas, quando o que o país precisa é de rasgar uma abertura de alternativas ao democratismo.
Os partidos, seguindo normas tão semelhantes que por pouco se não confundem, e os políticos, contaminando-se mutuamente nos mesmos vícios do regime, tornam as preferências partidárias cada vez mais difíceis, rondando na aparência a inutilidade.
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas. Embora demasiado tarde para a nação portuguesa estamos ainda num tempo em que nos é permitido tentar essa transformação.
Os contornos de uma Ordem Nova foram já suficientemente delineados por uma plêiade de pensadores. Ela dimana em linha recta, acentuamos, de uma mudança nos métodos de representação. Uma Assembleia de natureza organicista, marginalizando o sectarismo partidista ideológico (que tem sido o tóxico destes dois últimos séculos), reconduzida à representatividade social que a deve caracterizar e a funções próprias, será bastante, assim o cremos, para sanear a administração pública e normalizar a governação.
A propósito não será demais recordar que uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder, digamos que essa espécie de auto-gestão administrativa. E é calamitosa essa perda, sobretudo na actualidade, atendendo a que uma pesada quota da carga tributária é lançada disfarçadamente por meio de uma percentagem de acréscimo no preço de alguns produtos de primeira necessidade. E este o caso, por exemplo, dos combustíveis e das taxas alfandegárias.
Se medidas semelhantes do Governo, agora decretadas, carecessem de uma passagem pela Assembleia da República, possivelmente o facto se reflectiria numa moralização dos orçamentos e numa travagem dos gastos supérfluos e escandalosos de alguns maquinismos do Estado que, no parecer comum, são mais do que muitos. Mas está bem provado pelos precedentes, isto é, pelas reiteradas abstenções dos deputados políticos, e de todos os partidos, não ser de esperar de uma câmara partidocrática vocação para o desempenho dessas funções.
É elucidativo o que se passa com a legislação das greves. Também aí nenhum partido, ainda que reconheça a necessidade de o fazer, arrisca uma proposta de limitação grevista, receosos todos de eventuais prejuízos eleitorais que tal proposta lhes pudesse causar. Mas eis que esses prejuízos eleitorais não existiriam para os deputados dos agrupamentos orgânicos que compõem a sociedade civil. Nem compromissos políticos, nem inibições dessa natureza, das que tolhem a liberdade dos deputados dos partidos políticos, se observariam, como é óbvio, numa câmara de base organicista. Com esta tudo mudaria fundamentalmente de aspecto e um dinamismo diferente impulsionaria a vida social. Neste ponto será importante considerar a restauração das Cortes Gerais da Nação que, num dos topos da hierarquia dos Poderes, guarda uma parte da representação nacional, como é de suprema valia, por outra parte, a chefatura estruturalmente nacionalista da Dinastia assistida pelos Conselhos Reais.
O móbil principal da Assembleia legislativa deixaria de ser o de aguentar ou fazer cair ministérios - que tem sido a obra mais conseguida da partidocracia - para se aplicar, patrioticamente, no aproveitamento dos valores sociais em prol da grei.
As Cortes Gerais, para além da função específica de apreciar, indicar ou deliberar, conforme as matérias reservadas à sua competência, exerceriam naturalmente sobre a Assembleia da República, dada a sua qualidade de Assembleia superior, uma benéfica influência de reflexão. Porventura lhe seria ainda destinado, em certos particulares, o papel de instância de recursos. Note-se que estamos a lembrar um ideário, linhas gerais de pensamento, sem a estulta preocupação que seria a de pretender apresentar soluções indiscutíveis em detalhes definitivos. Aos juristas constitucionalistas e à criatividade das gerações ficaria o direito, e o dever, de, em tempo próprio, interpor concepções convenientes e formulá-las na Lei Fundamental.
A oportunidade de uma experiência de mudança temo-la já alcançado. A receptividade geral na opinião pública neste sentido é um facto fácil de verificar a qualquer que a ausculte. Ao ponto a que as coisas chegaram resta agora à inteligência e à vontade esclarecida dos jovens trabalhar na implantação de uma Ordem Nova. Dos velhos ou novos políticos, dos sujeitos colocados em bons lugares, da gente cordata e acomodatícia, comprometida de qualquer maneira, nada há a esperar. Já todos eles deram as suas provas de inépcia, de abulia, de impotência ou de inércia. Só a chama ardente da juventude pode inflamar os espíritos e caldear o futuro.
Decerto que a alternativa que fica apontada nestas páginas não é a única, nem talvez a melhor. Mas é uma alternativa possível que, ao menos, poderia servir de ponto de partida. Na verdade o que é imperioso é fazer sair o país deste pântano em que se acarva e suicida, e dar-lhes os rumos da regeneração.
Em cada hora que passa faz-se perigosamente tarde para reagir e sobreviver. Há forças destruidoras que ameaçam a existência da Nação Portuguesa. Aqui mais uma vez nos ocorre referir Cunha Leal, o último político activo e mais categorizado da partidocrática 1ª República porque numa crise política semelhante àquela em que nos encontramos chegou a aperceber-se do mal que corroía o país. São estas palavras suas: «Através de oito anos de política, com cujos sucessos tenho estado misturado intimamente, entrevejo, de facto, a existência, entre nós, duma força estranha de desagregação e dissolução sociais». Confuso, na inquietação do seu pensamento, interrogava-se: «Qual é o oculto e potente motor dos nossos movimentos internos?» (Eu, os Políticos e a Nação, p.. XV.)
«Quem nos separa e divide? Que força oculta anda semeando a cizânia... Quem tanto poder de intriga consegue desenvolver?» Ansiando a verdade das coisas que escapava ao seu espírito fortemente injectado pelo vírus parlamentarista, escrevia: «Quem poderá achar resposta a estas perguntas que, constantemente, andam bailando na minha imaginação?» Estava muito perto Cunha Leal de tocar o seu enigma quando confessava: - «Fechando os olhos, como que sinto o contacto ligeiro do pensamento com o mistério.» (Ibidem - p. 333) Homem inteligente, o obstáculo que o impedia de ver claro era exactamente o de «fechar os olhos» à realidade. Se, pelo contrário os pudesse abrir, afastando os preconceitos da sua geração, veria que estava na partidocracia esse «motor de desagregação e dissolução sociais».
Numa associação de ideias vem-nos à memória também a conclusão a que, ao fim de tantos tormentos especulativos, chegou Antero de Quental, este presenciando a partidocracia do fim do século: «Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa». (Prosas, vol. III, p. 163)
Também estas palavras de Antero de Quental se ajustam ao Portugal de hoje. Enfim, está profundamente doente o corpo social. Já ninguém duvida da gravidade extrema da situação. O diagnóstico do mal está feito e confirmado de há muito. A terapêutica certa tarda, porém, em ser aplicada. Urge que o seja. Não com mezinhas sintomáticas, que iludem em vez de curar, mas com uma terapêutica etiológica, a única cientificamente curativa.
A saúde é o contrário da doença, como o bem é o contrário do mal. Se realmente queremos tornar saudável o corpo social teremos de repelir o mal tal como ele se nos apresenta, pois que se existe é obra de nós próprios. Teremos de procurar substituí-lo pelo bem, se é que entre os homens o bem é alcançável na política. Mas, ao menos, tentemos uma aproximação! E denunciemos o falso dilema democratismo ou ditadura porque, na verdade, existem outras soluções.
Todos os depoimentos e testemunhos do descrédito da partidocracia provenientes dos diversos sectores e com uma significativa unanimidade, apontam, como já vimos, para um sistema de delegações fundamentalmente organicista e, portanto, para a constituição de uma Assembleia que, liberta do iníquo monopólio da classe política, seja uma fidedigna e ampla expressão da variedade, da multiplicidade e da autonomia dos agrupamentos naturais do país. Nesta orientação se modificaria, ipso facto, o carácter e o funcionamento da Assembleia. E logo um dos resultados mais importantes seria o de os seus membros deixarem de estar, como agora estão, submetidos à disciplina de comandos partidários estabelecidos. A natureza peculiar das diferentes deputações conferiria aos novos deputados e à Assembleia uma renovada feição e a idoneidade representativa que lhes tem faltado. Deixando de ser um clube de partidos políticos, a Assembleia ganharia então a categoria de verdadeira representante do país.
Não é difícil imaginar, nas circunstâncias, qual seria o comportamento desses outros deputados e como se conduziriam os trabalhos. É sabido que nos parlamentos partidocráticos os deputados se apresentam marcados de cores políticas, divididos entre deputados do governo e deputados da oposição, e como é na perspectiva deste antagonismo que se tratam os assuntos postos à discussão. Em semelhante clima geram-se, naturalmente, sectarismos irredutíveis a sobreporem-se as razões justas e a dificultarem entendimentos.
O obstrucionismo é a atitude habitual das oposições contra os governos. Ora numa Assembleia Social não haveria, por princípio, deputados do governo, nem deputados de oposição, pelo motivo de os governos não se formarem na base de partidos políticos. Em tal conformidade o procedimento dos deputados tornar-se-ia muito diferente. Decerto que nas questões debatidas se estabeleceriam, como agora, maiorias pró ou contra, mas as concordâncias que se verificassem entre deputados seriam sempre ocasionais, variáveis na sua formação, indeterminadas, consoante as matérias. Não existirão numa Assembleia social evoluída, maiorias ou minorias preconcebidas, pré-estabelecidas por ideologias políticas como acontece nos parlamentos partidocráticos.
Reputamos este ponto importantíssimo! Os órgãos vitais do país, falando por si, podem imprimir à política um sentido nacional. Outro tanto não é de esperar dos partidos políticos porque são presos de condicionalismos imperativos.
A vida dos partidos depende do votismo, não o esqueçamos. Ganhar votos, perder votos nas eleições, tem de ser, a cada momento, a preocupação prioritária dos dirigentes, e todas ou quase todas as medidas governativas têm repercusões eleitorais. A tentação da demagogia é-lhes, pois, irressistível, e o interesse nacional dificilmente se coaduna com as cedências demagógicas.
Concretamente, para as assembleias políticas electivas a defesa da austeridade e o saneamento na administração pública são óbices intransponíveis. E muito fácil de perceber porquê. Aliás os factos esclarecedores vão-se somando a olhos vistos.
Suponhamos, como ocorrência frequente, a empresa A, de monopolismo estatizado e com milhares de empregados. Estes entram em greves, porventura «selvagens» ou políticas, mas exigindo substanciais aumentos, sobre aumentos de salários que o conselho de gerência verifica já não serem comportáveis no orçamento da empresa, a menos que os seus produtos encareçam proporcionalmente. O partido X, por uma razão ou outra, mas sobretudo querendo conquistar as simpatias dos empregados e os seus votos, apoia, é de ver, as reivindicações salariais. Mas como o acréscimo das despesas daí provenientes acarreta o aumento dos preços, e antes que o público consumidor tenha tempo de raciocinar sobre os porquês do encarecimento, o mesmo partido X apressa-se a organizar "manifestações populares" de rua "contra a subida do custo de vida". Eis como, em face de dois interesses contraditórios (dos empregados da empresa monopolista e do povo obrigatoriamente pagante) o partido X adopta a atitude contraditória de apoiar os opostos.
Outra hipótese, digamos que outro exemplo.
Suponhamos a empresa B de serviços públicos, que acrescenta anualmente déficits sobre déficits, os quais o povo tem de suportar por via de impostos, e que o motivo principal ou único da situação deficitária é o excesso de pessoal. Verificou-se, na verdade, que, comparativamente com empresas similares estrangeiras de muito maior extensão, apresenta o triplo de empregados para um terço de movimento.
O partido Z foi um dos grandes responsáveis por este estado de coisas, porque ao subir ao governo, após a instauração da partidocracia, anichou lá centenas de apaniguados. De resto outros partidos, na sua vez, fizeram o mesmo, como clientelas que são. Com estes precedentes é impensável, obviamente, que o saneamento da empresa, que exige a redução do pessoal às devidas proporções, possa ser reclamado pelos mesmos partidos que deram origem à sua insanidade.
Mas não só nas empresas nacionalizadas. Também nas repartições ministeriais e nas autarquias administrativas se verifica igual superlotação de funcionalismo, obrigando a agravamentos de taxas e da carga tributária no geral.
Perante uma inflação desta natureza, tão evidente e tão onerosa, acaso já se ouviu algum partido ou algum deputado, incluso dos chamados «independentes» pôr o dedo na ferida e levantar a voz apontando a única solução que o problema comporta? Claro está que não! As razões do silêncio dos senhores deputados a este respeito são transparentes: a preocupação eleiçoeira dirige-os.
Imaginemos por um instante que, em vez de um parlamento partidocrático, tínhamos a funcionar (e a servir o país!) uma câmara de representação orgânica. Então as coisas passar-se-iam mais ou menos como se segue. Eis que os deputados dos sindicatos operários estavam em controvérsia com os deputados dos gestores das empresas, de cada lado directa e acaloradamente interessados na questão. Teríamos então todos os outros (das agremiações do comércio, da agricultura, das profissões universitárias, das associações culturais, espirituais, das autarquias regionais, etc., etc.), na grande maioria neutros por princípio, a servirem de moderadores e de fiel da balança, a resolverem pela justiça de quem a tivesse.
No parlamento partidocrático não há, em regra, deputados neutrais, imparciais, porque os partidos alinham todos por ideologias, e quase todas as questões acabam por tomar o aspecto de ideológicas.
As vantagens de uma representatividade a partir dos agrupamentos naturais, da vida social e da vida nacional não podem deixar de ser francamente inteligíveis embora, como aqui, referidas somente ao rendimento de uma assembleia da república (res-publica). Mas as vantagens adquirem maior relevância ao considerarmos que este inovador sistema de representação nos livraria dos graves prejuízos do eleitoralismo. Prejuízos de ordem moral e de ordem material.
É demais conhecido quanto as lutas políticas, especialmente nas propagandas eleitorais, com a agressividade que as acompanha, ferem o corpo social, retalhando-o, dividindo-o em sectores hostis, rompendo laços de amizade nos vizinhos e nas famílias, destruindo a harmonia dos povoados, criando malquerenças, suscitando ódios. Mais ou menos é sempre deplorável o que fica no rescaldo de uma agitação sufragística entre as relações humanas. Também na ordem material os saldos são fortemente negativos. Cada campanha eleitoral sai muito dispendiosa. Que o digam as tesourarias empenhadas dos partidos, ou as tipografias credoras de dívidas incobráveis. Cartazes a cobrir paredes, jornais adventícios e panfletos, tempos de antena, alugueres de salas para comicios, deslocações de massas, etc., custam na verdade, rios de dinheiro.
Pois não nos disporemos a pensar que estes devastadores sismos sociais e estas despesas desmesuradas se tornariam evitáveis com uma outra modalidade de representações?
Os deputados de cada um dos agrupamentos sociais (sindicatos, grémios, escolas, colectividades de toda a ordem, associações de municípios ou procuradorias de cidades, etc.) seriam escolhidos dentro desses agrupamentos, sem que fosse necessário, ou mesmo aconselhável, que o fossem na mesma data. Os partidos políticos, igualmente admitidos como congregações políticas de estudo, designariam os respectivos delegados. Seriam estas eleições parcelares realizadas nos seus meios próprios, tão diferentes e tão independentes uns dos outros, que facilmente se despojariam de cariz ideológico.
Pelo processo referido desapareceriam, ou seriam atenuadas ao máximo, as funestas convulsões emocionais que tanto perturbam e lesam a comunidade nacional. Concomitantemente lucrar-se-ia em autenticidade representativa, tudo alcançado num ambiente pacífico de liberdade. Seria então adequado falar-se numa política progressiva, se a este adjectivo se atribui um sentido de evolução para o aperfeiçoamento, um significado preciso de progresso humano para o bem-comum, e não de «esquerdismo» utópico ou involutivo.
Um facto simples na aparência - o de seleccionar os deputados no mesmo povo, mas de outro modo - pode operar alterações radicais na personalidade colectiva da Assembleia da República, na sua maneira de ser e de actuar. O motivo é evidente: a assembleia deixará de ser comandada por centros politico-ideológicos, deixará de ter «direitas», «centro», «esquerdas»; será una em princípio, apesar da sua constitutiva diversidade. As divergências que nela se formem serão sempre pontuais, sem implicarem alinhamentos permanentes, os quais são a consequência fatal e o grande mal da partidocracia. Tal circunstância imprimirá à Assembleia uma nova dinâmica nos parâmetros de uma inspiração criadora. Então, cúmulo de democracia participada, a Assembleia obterá condições de trabalhar como órgão representativo do país real, na libérrima variedade das suas opiniões, é certo, mas obedecendo ao objectivo que justifica a sua existência, e que não deve afastar-se nunca da procura incondicional das melhores soluções do interesse nacional, quer através do particular, quer no geral.
Uma assembleia representativa será sempre o fulcro da política do país, a sua expressão, o sinal do seu estilo. Uma pergunta pode, provavelmente, surgir em espíritos menos atentos quanto ao regime económico-social que se preconiza para uma nova ordem. Porém, reflectindo um pouco, logo se há-de compreender que tal pergunta será incoerente. Raciocinando em termos democráticos não é admissível a hipótese de se definir e impor um regime qualquer à população do país, porque, precisamente, é na livre escolha das formas de regime que reside a soberania democrática. Competirá, pois, e sempre, aos representantes legítimos do país determinar as normas constitucionais que hão-de vigorar. Fora disto cair-se-ia num contra-senso, incorrer-se-ia numa violação da ética democrática, como nas primeiras páginas deste livro tivemos ocasião de salientar.
Um problema com este relacionado e que está na ordem do dia é o da descentralização.
Debatem-se duas concepções: uma, a que foi sempre a dos homens dos partidos políticos; outra, tradicional, mas trazida à modernidade, de que ultimamente se tem feito porta-voz o Presidente da República. A primeira, a da classe política, quer que as chamadas autarquias locais continuem a depender exclusivamente das suas candidaturas, isto é, que não possam ser propostas à eleição listas ou pessoas não arregimentadas nas organizações partidárias. A segunda pretende que, para além da representação politico-ideológica, actualmente a única permitida, sejam admitidas, independentemente dos partidos, outras representações, porventura numa inspiração ancestral de chamamento aos «homens bons» dos concelhos, se não mesmo dos organismos significativos da vida local. É evidente que se encontra aqui o sentido realista da descentralização. A divergência manifesta de atitudes é perfeitamente compreensível. À partidocracia não convém qualquer espécie de descentralizações dado que os governos partidários se fortalecem, ao invés, centralizando os poderes.
No insólito confronto de Miranda do Corvo (Diário de Notícias, nº 41379) opôs o ministro Angelo Correia que «a representação dos interesses ideológicos dos cidadãos faz-se através dos partidos políticos», e acrescentou, em jeito de conclusão «esse é o cerne da democracia». Com estas palavras A. Correia mostra que está fechado no conceito democratista da democracia. Mostra também que somente tem em conta «os interesses ideológicos», o que é muito pouco. Está conforme à mentalidade partidocrática, mas está em completa desincronização em face do ritmo normal da vida. A verdade é que nas populações rurais das aldeias e das vilas, incluso nas cidades, os «interesses ideológicos» são reduzidíssimos perante os interesses palpáveis relacionados, nos vários casos, com os empregos, as habitações, a poluição, a assistência médica (e judiciária!), o custo de vida, as vias de comunicação, o fornecimento de água, os esgotos, etc., etc. Todos estes interesses, que entram na primeira linha de preocupações dos povos têm que ter os seus porta-vozes delegados, mas não só nas autarquias locais, mas também na autarquia central do país - a assembleia da república. Esta a questão na sua verdadeira extensão e para a qual os partidos políticos não estão indicados.
No aperto das circunstâncias, a classe política, a fazermos fé nas declarações do ministro do P. S. D., supõe ingenuamente poder mistificar a representação pluralista da sociedade, que os tempos de hoje requerem, com a inclusão nas listas partidárias de candidatos independentes de partidos. A mistificação é demasiada! Então uma representação que depende da permissão de candidatura dos partidos poder-se-ia alguma vez tomar por independente? É preciso ter-se a noção de que o pluralismo social ultrapassa o pluralismo dos partidos.
Quando o Presidente da República disse que «não se pode limitar apenas aos partidos políticos, e aos que neles se integram, a proposta de soluções e a capacidade de ser útil à comunidade», e mais que «a democracia tem um espaço de acção mais extenso, do que os partidos», é de reconhecer que tentou um passo em frente no caminho acertado. Penosamente nos parece que o fez, porque se mostra preso nas malhas apertadas de um equívoco ao afirmar conjuntamente que «não há democracia sem partidos políticos». Não há?! Mas pode haver!
Não iremos repetir aqui as considerações expressas atrás a este respeito, pois julgamos que foram suficientes, e encerramos o circuito a que fomos tentados pela inopinada e, a certos títulos edificante, confrontação de Miranda do Corvo, para retomarmos a corrente de pensamento que vínhamos expondo sobre a assembleia representativa.
Íamos dizendo que a constituição da Assembleia Social reveste-se de importância capital porque, definindo a ideologia inspiradora do Estado, o seu funcionamento condiciona e regula o destino da nação.
O comportamento de uma Assembleia é bastante para nos facultar a imagem, boa ou má, da governação e da administração do país.
A disfunção das assembleias políticas formadas sobre uma fragmentação de partidos em confronto, a dificultar, se não a impossibilitar o exercício normal dos ministérios é o fenómeno corrente nas partidocracias. E assim não é raro que as crises ministeriais, deixando os países sem governo, se prolonguem escandalosamente. Que fazer nessas situações por vezes dramáticas?
Os democratistas, parecendo não se impressionarem conscientemente sobre a patognomonia [característica ou sintoma de uma doença em particular] dessas crises, contentam-se em apresentar como solução o que não passa de um mero expediente: a dissolução da assembleia e, consequentemente, a realização de eleições antecipadas. Mas acontece geralmente que o eleitorado, pouco ou nada mudando nas ideias, confirma, mais ou menos, os seus votos anteriores e uma nova assembleia não vai diferir muito da antecedente. Portanto a crise de fundo continua latente e o recurso às dissoluções não surte o efeito desejado.
A experiência portuguesa a este respeito é (ou deveria ser...) elucidativa. Os dados são os seguintes.
Na 1ª República houve sete (7) legislaturas e destas, cinco (5) foram dissolvidas.
Contando desde o advento do parlamentarismo monárquico até ao fim da 1ª República verifica-se terem sido dissolvidas 86 por cento das Assembleias parlamentares.
Uma percentagem tão elevada de dissoluções demonstra claramente, por um lado, que as assembleias não viabilizavam a marcha político-administrativa e, por outro lado, que as dissoluções não remediavam o mal crónico. E de tudo ressalta uma conclusão final. Não sendo de admitir que os estadistas, quer do democratismo monárquico, quer do democratismo republicano fossem todos inaptos, temos de deduzir que as responsabilidades dos insucessos devem ser essencialmente imputadas ao sistema democratista.
Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
Assistindo como espectador e crítico ao desmanchar do democratismo nos fins da monarquia, Fialho de Almeida, o autor alentejano de belas páginas de antologia da nossa literatura, soltou este brado de desalento: «Não há hoje em Portugal um único homem e um único partido onde pôr esperança», e acrescentava então, profético, «o republicano pior do que nenhuma. (Os Gatos, 5ª edição, 5.° vol., p.. 115)
No deserto de alma a que nos condenaram, e nestes dias sem horizonte, sobram-nos redobradas razões para repetirmos as palavras amargas do escritor de Os Gatos e de Saibam Quantos..., tendo em vista os homens públicos que fizeram e têm mantido esta 3ª República, estadistas dos empréstimos, «cujo talento governista é gastar».
Como a história se repete, correcta e aumentada nas suas reedições... Por isso, para que não fossem conhecidas as experiências falhadas se tentou banir das escolas o ensino da história pátria.
As eleições consecutivas à dissolução das assembleias podem, na verdade, conduzir a mudanças de partidos no governo, que são as decantadas alternâncias de poder. Mas alternâncias que não são sinónimas de alternativas, quando o que o país precisa é de rasgar uma abertura de alternativas ao democratismo.
Os partidos, seguindo normas tão semelhantes que por pouco se não confundem, e os políticos, contaminando-se mutuamente nos mesmos vícios do regime, tornam as preferências partidárias cada vez mais difíceis, rondando na aparência a inutilidade.
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas. Embora demasiado tarde para a nação portuguesa estamos ainda num tempo em que nos é permitido tentar essa transformação.
Os contornos de uma Ordem Nova foram já suficientemente delineados por uma plêiade de pensadores. Ela dimana em linha recta, acentuamos, de uma mudança nos métodos de representação. Uma Assembleia de natureza organicista, marginalizando o sectarismo partidista ideológico (que tem sido o tóxico destes dois últimos séculos), reconduzida à representatividade social que a deve caracterizar e a funções próprias, será bastante, assim o cremos, para sanear a administração pública e normalizar a governação.
A propósito não será demais recordar que uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder, digamos que essa espécie de auto-gestão administrativa. E é calamitosa essa perda, sobretudo na actualidade, atendendo a que uma pesada quota da carga tributária é lançada disfarçadamente por meio de uma percentagem de acréscimo no preço de alguns produtos de primeira necessidade. E este o caso, por exemplo, dos combustíveis e das taxas alfandegárias.
Se medidas semelhantes do Governo, agora decretadas, carecessem de uma passagem pela Assembleia da República, possivelmente o facto se reflectiria numa moralização dos orçamentos e numa travagem dos gastos supérfluos e escandalosos de alguns maquinismos do Estado que, no parecer comum, são mais do que muitos. Mas está bem provado pelos precedentes, isto é, pelas reiteradas abstenções dos deputados políticos, e de todos os partidos, não ser de esperar de uma câmara partidocrática vocação para o desempenho dessas funções.
É elucidativo o que se passa com a legislação das greves. Também aí nenhum partido, ainda que reconheça a necessidade de o fazer, arrisca uma proposta de limitação grevista, receosos todos de eventuais prejuízos eleitorais que tal proposta lhes pudesse causar. Mas eis que esses prejuízos eleitorais não existiriam para os deputados dos agrupamentos orgânicos que compõem a sociedade civil. Nem compromissos políticos, nem inibições dessa natureza, das que tolhem a liberdade dos deputados dos partidos políticos, se observariam, como é óbvio, numa câmara de base organicista. Com esta tudo mudaria fundamentalmente de aspecto e um dinamismo diferente impulsionaria a vida social. Neste ponto será importante considerar a restauração das Cortes Gerais da Nação que, num dos topos da hierarquia dos Poderes, guarda uma parte da representação nacional, como é de suprema valia, por outra parte, a chefatura estruturalmente nacionalista da Dinastia assistida pelos Conselhos Reais.
O móbil principal da Assembleia legislativa deixaria de ser o de aguentar ou fazer cair ministérios - que tem sido a obra mais conseguida da partidocracia - para se aplicar, patrioticamente, no aproveitamento dos valores sociais em prol da grei.
As Cortes Gerais, para além da função específica de apreciar, indicar ou deliberar, conforme as matérias reservadas à sua competência, exerceriam naturalmente sobre a Assembleia da República, dada a sua qualidade de Assembleia superior, uma benéfica influência de reflexão. Porventura lhe seria ainda destinado, em certos particulares, o papel de instância de recursos. Note-se que estamos a lembrar um ideário, linhas gerais de pensamento, sem a estulta preocupação que seria a de pretender apresentar soluções indiscutíveis em detalhes definitivos. Aos juristas constitucionalistas e à criatividade das gerações ficaria o direito, e o dever, de, em tempo próprio, interpor concepções convenientes e formulá-las na Lei Fundamental.
A oportunidade de uma experiência de mudança temo-la já alcançado. A receptividade geral na opinião pública neste sentido é um facto fácil de verificar a qualquer que a ausculte. Ao ponto a que as coisas chegaram resta agora à inteligência e à vontade esclarecida dos jovens trabalhar na implantação de uma Ordem Nova. Dos velhos ou novos políticos, dos sujeitos colocados em bons lugares, da gente cordata e acomodatícia, comprometida de qualquer maneira, nada há a esperar. Já todos eles deram as suas provas de inépcia, de abulia, de impotência ou de inércia. Só a chama ardente da juventude pode inflamar os espíritos e caldear o futuro.
Decerto que a alternativa que fica apontada nestas páginas não é a única, nem talvez a melhor. Mas é uma alternativa possível que, ao menos, poderia servir de ponto de partida. Na verdade o que é imperioso é fazer sair o país deste pântano em que se acarva e suicida, e dar-lhes os rumos da regeneração.
Em cada hora que passa faz-se perigosamente tarde para reagir e sobreviver. Há forças destruidoras que ameaçam a existência da Nação Portuguesa. Aqui mais uma vez nos ocorre referir Cunha Leal, o último político activo e mais categorizado da partidocrática 1ª República porque numa crise política semelhante àquela em que nos encontramos chegou a aperceber-se do mal que corroía o país. São estas palavras suas: «Através de oito anos de política, com cujos sucessos tenho estado misturado intimamente, entrevejo, de facto, a existência, entre nós, duma força estranha de desagregação e dissolução sociais». Confuso, na inquietação do seu pensamento, interrogava-se: «Qual é o oculto e potente motor dos nossos movimentos internos?» (Eu, os Políticos e a Nação, p.. XV.)
«Quem nos separa e divide? Que força oculta anda semeando a cizânia... Quem tanto poder de intriga consegue desenvolver?» Ansiando a verdade das coisas que escapava ao seu espírito fortemente injectado pelo vírus parlamentarista, escrevia: «Quem poderá achar resposta a estas perguntas que, constantemente, andam bailando na minha imaginação?» Estava muito perto Cunha Leal de tocar o seu enigma quando confessava: - «Fechando os olhos, como que sinto o contacto ligeiro do pensamento com o mistério.» (Ibidem - p. 333) Homem inteligente, o obstáculo que o impedia de ver claro era exactamente o de «fechar os olhos» à realidade. Se, pelo contrário os pudesse abrir, afastando os preconceitos da sua geração, veria que estava na partidocracia esse «motor de desagregação e dissolução sociais».
Numa associação de ideias vem-nos à memória também a conclusão a que, ao fim de tantos tormentos especulativos, chegou Antero de Quental, este presenciando a partidocracia do fim do século: «Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa». (Prosas, vol. III, p. 163)
Também estas palavras de Antero de Quental se ajustam ao Portugal de hoje. Enfim, está profundamente doente o corpo social. Já ninguém duvida da gravidade extrema da situação. O diagnóstico do mal está feito e confirmado de há muito. A terapêutica certa tarda, porém, em ser aplicada. Urge que o seja. Não com mezinhas sintomáticas, que iludem em vez de curar, mas com uma terapêutica etiológica, a única cientificamente curativa.
A saúde é o contrário da doença, como o bem é o contrário do mal. Se realmente queremos tornar saudável o corpo social teremos de repelir o mal tal como ele se nos apresenta, pois que se existe é obra de nós próprios. Teremos de procurar substituí-lo pelo bem, se é que entre os homens o bem é alcançável na política. Mas, ao menos, tentemos uma aproximação! E denunciemos o falso dilema democratismo ou ditadura porque, na verdade, existem outras soluções.
Mário Saraiva, Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, Lisboa, Rei dos Livros, 1983.
... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes. - Mário Saraiva