Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional
Mário Saraiva
Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
...
...uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder
...
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas.
- Mário Saraiva
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...uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder
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Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas.
- Mário Saraiva
Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa
- Antero de Quental
... ressalta à evidência o absurdo, a irracionalidade, a fraude, de, a priori, se vincular a Democracia a um prefixado modelo de governo, um especificado regime. Não pode haver uma forma canónica de Democracia. A existência de autêntica democracia consiste em o povo escolher livremente a forma do seu governo e as pessoas dos seus governantes.
- Mário Saraiva
- Mário Saraiva
A decrépita democracia dos partidos políticos continua a ser, na inércia secular da sua forma primitiva, o ídolo apregoado por uns e por outros, como se consubstanciasse o grau mais elevado da perfeição atingível. Deplorável sintoma de debilidade mental! (p. 5)
Uma revisão constitucional profundamente diferente nos conceitos, revolucionária no sentido construtivo, adaptada ao modo de ser português, é uma exigência impreterível. (p. 6)
Sobre as cláusulas de destituição do chefe do Estado este repete o disposto na Constituição de 1976, isto é, que o Presidente somente perde o cargo por abandono voluntário do país ou em consequência de condenação por crimes praticados no exercício de funções.
Verifica-se que esta Constituição de 1982, tal como a anterior, não considera as hipóteses de incúria e de inabilidade, de nocivo procedimento, nem sequer a de doença mental declarada durante o mandato.
A omissão revela uma imprevidência grave, quanto mais não seja no ponto de vista da teoria democrática. (p. 7)
Verifica-se que esta Constituição de 1982, tal como a anterior, não considera as hipóteses de incúria e de inabilidade, de nocivo procedimento, nem sequer a de doença mental declarada durante o mandato.
A omissão revela uma imprevidência grave, quanto mais não seja no ponto de vista da teoria democrática. (p. 7)
PARTIDOCRACIA
A partidocracia reduz-se, assim, a uma oligarquia - a dos chefes partidários. E desta forma o regime dos partidos políticos cria uma nova classe de mando - a dos políticos profissionais - limitando-se o povo a desempenhar o papel de comparsa, indispensável nesta encenação de democracia.
Quão longe estamos dos poderes populares de base, sem os quais não se concebe um verdadeiro poder democrático...
FALÊNCIA DO REGIME PARTIDOCRÁTICO
PENSAMENTO RENOVADOR
LUGAR AO SINDICALISMO
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"Uma Nova Ordem", pp. 112-126:
UMA NOVA ORDEM
A necessária modernização do Estado, de forma a adaptá-lo à autenticidade e às exigências actuais, começa forçosamente pela adopção de um critério novo, objectivo e realista da comunidade nacional, por uma visão da sociedade tal como ela é e, por consequência, por uma transformação nos seus órgãos representativos.
Todos os depoimentos e testemunhos do descrédito da partidocracia provenientes dos diversos sectores e com uma significativa unanimidade, apontam, como já vimos, para um sistema de delegações fundamentalmente organicista e, portanto, para a constituição de uma Assembleia que, liberta do iníquo monopólio da classe política, seja uma fidedigna e ampla expressão da variedade, da multiplicidade e da autonomia dos agrupamentos naturais do país. Nesta orientação se modificaria, ipso facto, o carácter e o funcionamento da Assembleia. E logo um dos resultados mais importantes seria o de os seus membros deixarem de estar, como agora estão, submetidos à disciplina de comandos partidários estabelecidos. A natureza peculiar das diferentes deputações conferiria aos novos deputados e à Assembleia uma renovada feição e a idoneidade representativa que lhes tem faltado. Deixando de ser um clube de partidos políticos, a Assembleia ganharia então a categoria de verdadeira representante do país.
Não é difícil imaginar, nas circunstâncias, qual seria o comportamento desses outros deputados e como se conduziriam os trabalhos. É sabido que nos parlamentos partidocráticos os deputados se apresentam marcados de cores políticas, divididos entre deputados do governo e deputados da oposição, e como é na perspectiva deste antagonismo que se tratam os assuntos postos à discussão. Em semelhante clima geram-se, naturalmente, sectarismos irredutíveis a sobreporem-se as razões justas e a dificultarem entendimentos.
O obstrucionismo é a atitude habitual das oposições contra os governos. Ora numa Assembleia Social não haveria, por princípio, deputados do governo, nem deputados de oposição, pelo motivo de os governos não se formarem na base de partidos políticos. Em tal conformidade o procedimento dos deputados tornar-se-ia muito diferente. Decerto que nas questões debatidas se estabeleceriam, como agora, maiorias pró ou contra, mas as concordâncias que se verificassem entre deputados seriam sempre ocasionais, variáveis na sua formação, indeterminadas, consoante as matérias. Não existirão numa Assembleia social evoluída, maiorias ou minorias preconcebidas, pré-estabelecidas por ideologias políticas como acontece nos parlamentos partidocráticos.
Reputamos este ponto importantíssimo! Os órgãos vitais do país, falando por si, podem imprimir à política um sentido nacional. Outro tanto não é de esperar dos partidos políticos porque são presos de condicionalismos imperativos.
A vida dos partidos depende do votismo, não o esqueçamos. Ganhar votos, perder votos nas eleições, tem de ser, a cada momento, a preocupação prioritária dos dirigentes, e todas ou quase todas as medidas governativas têm repercusões eleitorais. A tentação da demagogia é-lhes, pois, irressistível, e o interesse nacional dificilmente se coaduna com as cedências demagógicas.
Concretamente, para as assembleias políticas electivas a defesa da austeridade e o saneamento na administração pública são óbices intransponíveis. E muito fácil de perceber porquê. Aliás os factos esclarecedores vão-se somando a olhos vistos.
Suponhamos, como ocorrência frequente, a empresa A, de monopolismo estatizado e com milhares de empregados. Estes entram em greves, porventura «selvagens» ou políticas, mas exigindo substanciais aumentos, sobre aumentos de salários que o conselho de gerência verifica já não serem comportáveis no orçamento da empresa, a menos que os seus produtos encareçam proporcionalmente. O partido X, por uma razão ou outra, mas sobretudo querendo conquistar as simpatias dos empregados e os seus votos, apoia, é de ver, as reivindicações salariais. Mas como o acréscimo das despesas daí provenientes acarreta o aumento dos preços, e antes que o público consumidor tenha tempo de raciocinar sobre os porquês do encarecimento, o mesmo partido X apressa-se a organizar "manifestações populares" de rua "contra a subida do custo de vida". Eis como, em face de dois interesses contraditórios (dos empregados da empresa monopolista e do povo obrigatoriamente pagante) o partido X adopta a atitude contraditória de apoiar os opostos.
Outra hipótese, digamos que outro exemplo.
Suponhamos a empresa B de serviços públicos, que acrescenta anualmente déficits sobre déficits, os quais o povo tem de suportar por via de impostos, e que o motivo principal ou único da situação deficitária é o excesso de pessoal. Verificou-se, na verdade, que, comparativamente com empresas similares estrangeiras de muito maior extensão, apresenta o triplo de empregados para um terço de movimento.
O partido Z foi um dos grandes responsáveis por este estado de coisas, porque ao subir ao governo, após a instauração da partidocracia, anichou lá centenas de apaniguados. De resto outros partidos, na sua vez, fizeram o mesmo, como clientelas que são. Com estes precedentes é impensável, obviamente, que o saneamento da empresa, que exige a redução do pessoal às devidas proporções, possa ser reclamado pelos mesmos partidos que deram origem à sua insanidade.
Mas não só nas empresas nacionalizadas. Também nas repartições ministeriais e nas autarquias administrativas se verifica igual superlotação de funcionalismo, obrigando a agravamentos de taxas e da carga tributária no geral.
Perante uma inflação desta natureza, tão evidente e tão onerosa, acaso já se ouviu algum partido ou algum deputado, incluso dos chamados «independentes» pôr o dedo na ferida e levantar a voz apontando a única solução que o problema comporta? Claro está que não! As razões do silêncio dos senhores deputados a este respeito são transparentes: a preocupação eleiçoeira dirige-os.
Imaginemos por um instante que, em vez de um parlamento partidocrático, tínhamos a funcionar (e a servir o país!) uma câmara de representação orgânica. Então as coisas passar-se-iam mais ou menos como se segue. Eis que os deputados dos sindicatos operários estavam em controvérsia com os deputados dos gestores das empresas, de cada lado directa e acaloradamente interessados na questão. Teríamos então todos os outros (das agremiações do comércio, da agricultura, das profissões universitárias, das associações culturais, espirituais, das autarquias regionais, etc., etc.), na grande maioria neutros por princípio, a servirem de moderadores e de fiel da balança, a resolverem pela justiça de quem a tivesse.
No parlamento partidocrático não há, em regra, deputados neutrais, imparciais, porque os partidos alinham todos por ideologias, e quase todas as questões acabam por tomar o aspecto de ideológicas.
As vantagens de uma representatividade a partir dos agrupamentos naturais, da vida social e da vida nacional não podem deixar de ser francamente inteligíveis embora, como aqui, referidas somente ao rendimento de uma assembleia da república (res-publica). Mas as vantagens adquirem maior relevância ao considerarmos que este inovador sistema de representação nos livraria dos graves prejuízos do eleitoralismo. Prejuízos de ordem moral e de ordem material.
É demais conhecido quanto as lutas políticas, especialmente nas propagandas eleitorais, com a agressividade que as acompanha, ferem o corpo social, retalhando-o, dividindo-o em sectores hostis, rompendo laços de amizade nos vizinhos e nas famílias, destruindo a harmonia dos povoados, criando malquerenças, suscitando ódios. Mais ou menos é sempre deplorável o que fica no rescaldo de uma agitação sufragística entre as relações humanas. Também na ordem material os saldos são fortemente negativos. Cada campanha eleitoral sai muito dispendiosa. Que o digam as tesourarias empenhadas dos partidos, ou as tipografias credoras de dívidas incobráveis. Cartazes a cobrir paredes, jornais adventícios e panfletos, tempos de antena, alugueres de salas para comicios, deslocações de massas, etc., custam na verdade, rios de dinheiro.
Pois não nos disporemos a pensar que estes devastadores sismos sociais e estas despesas desmesuradas se tornariam evitáveis com uma outra modalidade de representações?
Os deputados de cada um dos agrupamentos sociais (sindicatos, grémios, escolas, colectividades de toda a ordem, associações de municípios ou procuradorias de cidades, etc.) seriam escolhidos dentro desses agrupamentos, sem que fosse necessário, ou mesmo aconselhável, que o fossem na mesma data. Os partidos políticos, igualmente admitidos como congregações políticas de estudo, designariam os respectivos delegados. Seriam estas eleições parcelares realizadas nos seus meios próprios, tão diferentes e tão independentes uns dos outros, que facilmente se despojariam de cariz ideológico.
Pelo processo referido desapareceriam, ou seriam atenuadas ao máximo, as funestas convulsões emocionais que tanto perturbam e lesam a comunidade nacional. Concomitantemente lucrar-se-ia em autenticidade representativa, tudo alcançado num ambiente pacífico de liberdade. Seria então adequado falar-se numa política progressiva, se a este adjectivo se atribui um sentido de evolução para o aperfeiçoamento, um significado preciso de progresso humano para o bem-comum, e não de «esquerdismo» utópico ou involutivo.
Um facto simples na aparência - o de seleccionar os deputados no mesmo povo, mas de outro modo - pode operar alterações radicais na personalidade colectiva da Assembleia da República, na sua maneira de ser e de actuar. O motivo é evidente: a assembleia deixará de ser comandada por centros politico-ideológicos, deixará de ter «direitas», «centro», «esquerdas»; será una em princípio, apesar da sua constitutiva diversidade. As divergências que nela se formem serão sempre pontuais, sem implicarem alinhamentos permanentes, os quais são a consequência fatal e o grande mal da partidocracia. Tal circunstância imprimirá à Assembleia uma nova dinâmica nos parâmetros de uma inspiração criadora. Então, cúmulo de democracia participada, a Assembleia obterá condições de trabalhar como órgão representativo do país real, na libérrima variedade das suas opiniões, é certo, mas obedecendo ao objectivo que justifica a sua existência, e que não deve afastar-se nunca da procura incondicional das melhores soluções do interesse nacional, quer através do particular, quer no geral.
Uma assembleia representativa será sempre o fulcro da política do país, a sua expressão, o sinal do seu estilo. Uma pergunta pode, provavelmente, surgir em espíritos menos atentos quanto ao regime económico-social que se preconiza para uma nova ordem. Porém, reflectindo um pouco, logo se há-de compreender que tal pergunta será incoerente. Raciocinando em termos democráticos não é admissível a hipótese de se definir e impor um regime qualquer à população do país, porque, precisamente, é na livre escolha das formas de regime que reside a soberania democrática. Competirá, pois, e sempre, aos representantes legítimos do país determinar as normas constitucionais que hão-de vigorar. Fora disto cair-se-ia num contra-senso, incorrer-se-ia numa violação da ética democrática, como nas primeiras páginas deste livro tivemos ocasião de salientar.
Um problema com este relacionado e que está na ordem do dia é o da descentralização.
Debatem-se duas concepções: uma, a que foi sempre a dos homens dos partidos políticos; outra, tradicional, mas trazida à modernidade, de que ultimamente se tem feito porta-voz o Presidente da República. A primeira, a da classe política, quer que as chamadas autarquias locais continuem a depender exclusivamente das suas candidaturas, isto é, que não possam ser propostas à eleição listas ou pessoas não arregimentadas nas organizações partidárias. A segunda pretende que, para além da representação politico-ideológica, actualmente a única permitida, sejam admitidas, independentemente dos partidos, outras representações, porventura numa inspiração ancestral de chamamento aos «homens bons» dos concelhos, se não mesmo dos organismos significativos da vida local. É evidente que se encontra aqui o sentido realista da descentralização. A divergência manifesta de atitudes é perfeitamente compreensível. À partidocracia não convém qualquer espécie de descentralizações dado que os governos partidários se fortalecem, ao invés, centralizando os poderes.
No insólito confronto de Miranda do Corvo (Diário de Notícias, nº 41379) opôs o ministro Angelo Correia que «a representação dos interesses ideológicos dos cidadãos faz-se através dos partidos políticos», e acrescentou, em jeito de conclusão «esse é o cerne da democracia». Com estas palavras A. Correia mostra que está fechado no conceito democratista da democracia. Mostra também que somente tem em conta «os interesses ideológicos», o que é muito pouco. Está conforme à mentalidade partidocrática, mas está em completa desincronização em face do ritmo normal da vida. A verdade é que nas populações rurais das aldeias e das vilas, incluso nas cidades, os «interesses ideológicos» são reduzidíssimos perante os interesses palpáveis relacionados, nos vários casos, com os empregos, as habitações, a poluição, a assistência médica (e judiciária!), o custo de vida, as vias de comunicação, o fornecimento de água, os esgotos, etc., etc. Todos estes interesses, que entram na primeira linha de preocupações dos povos têm que ter os seus porta-vozes delegados, mas não só nas autarquias locais, mas também na autarquia central do país - a assembleia da república. Esta a questão na sua verdadeira extensão e para a qual os partidos políticos não estão indicados.
No aperto das circunstâncias, a classe política, a fazermos fé nas declarações do ministro do P. S. D., supõe ingenuamente poder mistificar a representação pluralista da sociedade, que os tempos de hoje requerem, com a inclusão nas listas partidárias de candidatos independentes de partidos. A mistificação é demasiada! Então uma representação que depende da permissão de candidatura dos partidos poder-se-ia alguma vez tomar por independente? É preciso ter-se a noção de que o pluralismo social ultrapassa o pluralismo dos partidos.
Quando o Presidente da República disse que «não se pode limitar apenas aos partidos políticos, e aos que neles se integram, a proposta de soluções e a capacidade de ser útil à comunidade», e mais que «a democracia tem um espaço de acção mais extenso, do que os partidos», é de reconhecer que tentou um passo em frente no caminho acertado. Penosamente nos parece que o fez, porque se mostra preso nas malhas apertadas de um equívoco ao afirmar conjuntamente que «não há democracia sem partidos políticos». Não há?! Mas pode haver!
Não iremos repetir aqui as considerações expressas atrás a este respeito, pois julgamos que foram suficientes, e encerramos o circuito a que fomos tentados pela inopinada e, a certos títulos edificante, confrontação de Miranda do Corvo, para retomarmos a corrente de pensamento que vínhamos expondo sobre a assembleia representativa.
Íamos dizendo que a constituição da Assembleia Social reveste-se de importância capital porque, definindo a ideologia inspiradora do Estado, o seu funcionamento condiciona e regula o destino da nação.
O comportamento de uma Assembleia é bastante para nos facultar a imagem, boa ou má, da governação e da administração do país.
A disfunção das assembleias políticas formadas sobre uma fragmentação de partidos em confronto, a dificultar, se não a impossibilitar o exercício normal dos ministérios é o fenómeno corrente nas partidocracias. E assim não é raro que as crises ministeriais, deixando os países sem governo, se prolonguem escandalosamente. Que fazer nessas situações por vezes dramáticas?
Os democratistas, parecendo não se impressionarem conscientemente sobre a patognomonia [característica ou sintoma de uma doença em particular] dessas crises, contentam-se em apresentar como solução o que não passa de um mero expediente: a dissolução da assembleia e, consequentemente, a realização de eleições antecipadas. Mas acontece geralmente que o eleitorado, pouco ou nada mudando nas ideias, confirma, mais ou menos, os seus votos anteriores e uma nova assembleia não vai diferir muito da antecedente. Portanto a crise de fundo continua latente e o recurso às dissoluções não surte o efeito desejado.
A experiência portuguesa a este respeito é (ou deveria ser...) elucidativa. Os dados são os seguintes.
Na 1ª República houve sete (7) legislaturas e destas, cinco (5) foram dissolvidas.
Contando desde o advento do parlamentarismo monárquico até ao fim da 1ª República verifica-se terem sido dissolvidas 86 por cento das Assembleias parlamentares.
Uma percentagem tão elevada de dissoluções demonstra claramente, por um lado, que as assembleias não viabilizavam a marcha político-administrativa e, por outro lado, que as dissoluções não remediavam o mal crónico. E de tudo ressalta uma conclusão final. Não sendo de admitir que os estadistas, quer do democratismo monárquico, quer do democratismo republicano fossem todos inaptos, temos de deduzir que as responsabilidades dos insucessos devem ser essencialmente imputadas ao sistema democratista.
Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
Assistindo como espectador e crítico ao desmanchar do democratismo nos fins da monarquia, Fialho de Almeida, o autor alentejano de belas páginas de antologia da nossa literatura, soltou este brado de desalento: «Não há hoje em Portugal um único homem e um único partido onde pôr esperança», e acrescentava então, profético, «o republicano pior do que nenhuma. (Os Gatos, 5ª edição, 5.° vol., p.. 115)
No deserto de alma a que nos condenaram, e nestes dias sem horizonte, sobram-nos redobradas razões para repetirmos as palavras amargas do escritor de Os Gatos e de Saibam Quantos..., tendo em vista os homens públicos que fizeram e têm mantido esta 3ª República, estadistas dos empréstimos, «cujo talento governista é gastar».
Como a história se repete, correcta e aumentada nas suas reedições... Por isso, para que não fossem conhecidas as experiências falhadas se tentou banir das escolas o ensino da história pátria.
As eleições consecutivas à dissolução das assembleias podem, na verdade, conduzir a mudanças de partidos no governo, que são as decantadas alternâncias de poder. Mas alternâncias que não são sinónimas de alternativas, quando o que o país precisa é de rasgar uma abertura de alternativas ao democratismo.
Os partidos, seguindo normas tão semelhantes que por pouco se não confundem, e os políticos, contaminando-se mutuamente nos mesmos vícios do regime, tornam as preferências partidárias cada vez mais difíceis, rondando na aparência a inutilidade.
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas. Embora demasiado tarde para a nação portuguesa estamos ainda num tempo em que nos é permitido tentar essa transformação.
Os contornos de uma Ordem Nova foram já suficientemente delineados por uma pleíade de pensadores. Ela dimana em linha recta, acentuamos, de uma mudança nos métodos de representação. Uma Assembleia de natureza organicista, marginalizando o sectarismo partidista ideológico (que tem sido o tóxico destes dois últimos séculos), reconduzida à representatividade social que a deve caracterizar e a funções próprias, será bastante, assim o cremos, para sanear a administração pública e normalizar a governação.
A propósito não será demais recordar que uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder, digamos que essa espécie de auto-gestão administrativa. E é calamitosa essa perda, sobretudo na actualidade, atendendo a que uma pesada quota da carga tributária é lançada disfarçadamente por meio de uma percentagem de acréscimo no preço de alguns produtos de primeira necessidade. E este o caso, por exemplo, dos combustíveis e das taxas alfandegárias.
Se medidas semelhantes do Governo, agora decretadas, carecessem de uma passagem pela Assembleia da República, possivelmente o facto se reflectiria numa moralização dos orçamentos e numa travagem dos gastos supérfluos e escandalosos de alguns maquinismos do Estado que, no parecer comum, são mais do que muitos. Mas está bem provado pelos precedentes, isto é, pelas reiteradas abstenções dos deputados políticos, e de todos os partidos, não ser de esperar de uma câmara partidocrática vocação para o desempenho dessas funções.
É elucidativo o que se passa com a legislação das greves. Também aí nenhum partido, ainda que reconheça a necessidade de o fazer, arrisca uma proposta de limitação grevista, receosos todos de eventuais prejuízos eleitorais que tal proposta lhes pudesse causar. Mas eis que esses prejuízos eleitorais não existiriam para os deputados dos agrupamentos orgânicos que compõem a sociedade civil. Nem compromissos políticos, nem inibições dessa natureza, das que tolhem a liberdade dos deputados dos partidos políticos, se observariam, como é óbvio, numa câmara de base organicista. Com esta tudo mudaria fundamentalmente de aspecto e um dinamismo diferente impulsionaria a vida social. Neste ponto será importante considerar a restauração das Cortes Gerais da Nação que, num dos topos da hierarquia dos Poderes, guarda uma parte da representação nacional, como é de suprema valia, por outra parte, a chefatura estruturalmente nacionalista da Dinastia assistida pelos Conselhos Reais.
O móbil principal da Assembleia legislativa deixaria de ser o de aguentar ou fazer cair ministérios - que tem sido a obra mais conseguida da partidocracia - para se aplicar, patrioticamente, no aproveitamento dos valores sociais em prol da grei.
As Cortes Gerais, para além da função específica de apreciar, indicar ou deliberar, conforme as matérias reservadas à sua competência, exerceriam naturalmente sobre a Assembleia da República, dada a sua qualidade de Assembleia superior, uma benéfica influência de reflexão. Porventura lhe seria ainda destinado, em certos particulares, o papel de instância de recursos. Note-se que estamos a lembrar um ideário, linhas gerais de pensamento, sem a estulta preocupação que seria a de pretender apresentar soluções indiscutíveis em detalhes definitivos. Aos juristas constitucionalistas e à criatividade das gerações ficaria o direito, e o dever, de, em tempo próprio, interpor concepções convenientes e formulá-las na Lei Fundamental.
A oportunidade de uma experiência de mudança temo-la já alcançado. A receptividade geral na opinião pública neste sentido é um facto fácil de verificar a qualquer que a ausculte. Ao ponto a que as coisas chegaram resta agora à inteligência e à vontade esclarecida dos jovens trabalhar na implantação de uma Ordem Nova. Dos velhos ou novos políticos, dos sujeitos colocados em bons lugares, da gente cordata e acomodatícia, comprometida de qualquer maneira, nada há a esperar. Já todos eles deram as suas provas de inépcia, de abulia, de impotência ou de inércia. Só a chama ardente da juventude pode inflamar os espíritos e caldear o futuro.
Decerto que a alternativa que fica apontada nestas páginas não é a única, nem talvez a melhor. Mas é uma alternativa possível que, ao menos, poderia servir de ponto de partida. Na verdade o que é imperioso é fazer sair o país deste pântano em que se acarva e suicida, e dar-lhes os rumos da regeneração.
Em cada hora que passa faz-se perigosamente tarde para reagir e sobreviver. Há forças destruidoras que ameaçam a existência da Nação Portuguesa. Aqui mais uma vez nos ocorre referir Cunha Leal, o último político activo e mais categorizado da partidocrática 1ª República porque numa crise política semelhante àquela em que nos encontramos chegou a aperceber-se do mal que corroía o país. São estas palavras suas: «Através de oito anos de política, com cujos sucessos tenho estado misturado intimamente, entrevejo, de facto, a existência, entre nós, duma força estranha de desagregação e dissolução sociais». Confuso, na inquietação do seu pensamento, interrogava-se: «Qual é o oculto e potente motor dos nossos movimentos internos?» (Eu, os Políticos e a Nação, p.. XV.)
«Quem nos separa e divide? Que força oculta anda semeando a cizânia... Quem tanto poder de intriga consegue desenvolver?» Ansiando a verdade das coisas que escapava ao seu espírito fortemente injectado pelo vírus parlamentarista, escrevia: «Quem poderá achar resposta a estas perguntas que, constantemente, andam bailando na minha imaginação?» Estava muito perto Cunha Leal de tocar o seu enigma quando confessava: - «Fechando os olhos, como que sinto o contacto ligeiro do pensamento com o mistério.» (Ibidem - p. 333) Homem inteligente, o obstáculo que o impedia de ver claro era exactamente o de «fechar os olhos» à realidade. Se, pelo contrário os pudesse abrir, afastando os preconceitos da sua geração, veria que estava na partidocracia esse «motor de desagregação e dissolução sociais».
Numa associação de ideias vem-nos à memória também a conclusão a que, ao fim de tantos tormentos especulativos, chegou Antero de Quental, este presenciando a partidocracia do fim do século: «Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa». (Prosas, vol. III, p. 163)
Também estas palavras de Antero de Quental se ajustam ao Portugal de hoje. Enfim, está profundamente doente o corpo social. Já ninguém duvida da gravidade extrema da situação. O diagnóstico do mal está feito e confirmado de há muito. A terapêutica certa tarda, porém, em ser aplicada. Urge que o seja. Não com mezinhas sintomáticas, que iludem em vez de curar, mas com uma terapêutica etiológica, a única cientificamente curativa.
A saúde é o contrário da doença, como o bem é o contrário do mal. Se realmente queremos tornar saudável o corpo social teremos de repelir o mal tal como ele se nos apresenta, pois que se existe é obra de nós próprios. Teremos de procurar substituí-lo pelo bem, se é que entre os homens o bem é alcançável na política. Mas, ao menos, tentemos uma aproximação! E denunciemos o falso dilema democratismo ou ditadura porque, na verdade, existem outras soluções.
Todos os depoimentos e testemunhos do descrédito da partidocracia provenientes dos diversos sectores e com uma significativa unanimidade, apontam, como já vimos, para um sistema de delegações fundamentalmente organicista e, portanto, para a constituição de uma Assembleia que, liberta do iníquo monopólio da classe política, seja uma fidedigna e ampla expressão da variedade, da multiplicidade e da autonomia dos agrupamentos naturais do país. Nesta orientação se modificaria, ipso facto, o carácter e o funcionamento da Assembleia. E logo um dos resultados mais importantes seria o de os seus membros deixarem de estar, como agora estão, submetidos à disciplina de comandos partidários estabelecidos. A natureza peculiar das diferentes deputações conferiria aos novos deputados e à Assembleia uma renovada feição e a idoneidade representativa que lhes tem faltado. Deixando de ser um clube de partidos políticos, a Assembleia ganharia então a categoria de verdadeira representante do país.
Não é difícil imaginar, nas circunstâncias, qual seria o comportamento desses outros deputados e como se conduziriam os trabalhos. É sabido que nos parlamentos partidocráticos os deputados se apresentam marcados de cores políticas, divididos entre deputados do governo e deputados da oposição, e como é na perspectiva deste antagonismo que se tratam os assuntos postos à discussão. Em semelhante clima geram-se, naturalmente, sectarismos irredutíveis a sobreporem-se as razões justas e a dificultarem entendimentos.
O obstrucionismo é a atitude habitual das oposições contra os governos. Ora numa Assembleia Social não haveria, por princípio, deputados do governo, nem deputados de oposição, pelo motivo de os governos não se formarem na base de partidos políticos. Em tal conformidade o procedimento dos deputados tornar-se-ia muito diferente. Decerto que nas questões debatidas se estabeleceriam, como agora, maiorias pró ou contra, mas as concordâncias que se verificassem entre deputados seriam sempre ocasionais, variáveis na sua formação, indeterminadas, consoante as matérias. Não existirão numa Assembleia social evoluída, maiorias ou minorias preconcebidas, pré-estabelecidas por ideologias políticas como acontece nos parlamentos partidocráticos.
Reputamos este ponto importantíssimo! Os órgãos vitais do país, falando por si, podem imprimir à política um sentido nacional. Outro tanto não é de esperar dos partidos políticos porque são presos de condicionalismos imperativos.
A vida dos partidos depende do votismo, não o esqueçamos. Ganhar votos, perder votos nas eleições, tem de ser, a cada momento, a preocupação prioritária dos dirigentes, e todas ou quase todas as medidas governativas têm repercusões eleitorais. A tentação da demagogia é-lhes, pois, irressistível, e o interesse nacional dificilmente se coaduna com as cedências demagógicas.
Concretamente, para as assembleias políticas electivas a defesa da austeridade e o saneamento na administração pública são óbices intransponíveis. E muito fácil de perceber porquê. Aliás os factos esclarecedores vão-se somando a olhos vistos.
Suponhamos, como ocorrência frequente, a empresa A, de monopolismo estatizado e com milhares de empregados. Estes entram em greves, porventura «selvagens» ou políticas, mas exigindo substanciais aumentos, sobre aumentos de salários que o conselho de gerência verifica já não serem comportáveis no orçamento da empresa, a menos que os seus produtos encareçam proporcionalmente. O partido X, por uma razão ou outra, mas sobretudo querendo conquistar as simpatias dos empregados e os seus votos, apoia, é de ver, as reivindicações salariais. Mas como o acréscimo das despesas daí provenientes acarreta o aumento dos preços, e antes que o público consumidor tenha tempo de raciocinar sobre os porquês do encarecimento, o mesmo partido X apressa-se a organizar "manifestações populares" de rua "contra a subida do custo de vida". Eis como, em face de dois interesses contraditórios (dos empregados da empresa monopolista e do povo obrigatoriamente pagante) o partido X adopta a atitude contraditória de apoiar os opostos.
Outra hipótese, digamos que outro exemplo.
Suponhamos a empresa B de serviços públicos, que acrescenta anualmente déficits sobre déficits, os quais o povo tem de suportar por via de impostos, e que o motivo principal ou único da situação deficitária é o excesso de pessoal. Verificou-se, na verdade, que, comparativamente com empresas similares estrangeiras de muito maior extensão, apresenta o triplo de empregados para um terço de movimento.
O partido Z foi um dos grandes responsáveis por este estado de coisas, porque ao subir ao governo, após a instauração da partidocracia, anichou lá centenas de apaniguados. De resto outros partidos, na sua vez, fizeram o mesmo, como clientelas que são. Com estes precedentes é impensável, obviamente, que o saneamento da empresa, que exige a redução do pessoal às devidas proporções, possa ser reclamado pelos mesmos partidos que deram origem à sua insanidade.
Mas não só nas empresas nacionalizadas. Também nas repartições ministeriais e nas autarquias administrativas se verifica igual superlotação de funcionalismo, obrigando a agravamentos de taxas e da carga tributária no geral.
Perante uma inflação desta natureza, tão evidente e tão onerosa, acaso já se ouviu algum partido ou algum deputado, incluso dos chamados «independentes» pôr o dedo na ferida e levantar a voz apontando a única solução que o problema comporta? Claro está que não! As razões do silêncio dos senhores deputados a este respeito são transparentes: a preocupação eleiçoeira dirige-os.
Imaginemos por um instante que, em vez de um parlamento partidocrático, tínhamos a funcionar (e a servir o país!) uma câmara de representação orgânica. Então as coisas passar-se-iam mais ou menos como se segue. Eis que os deputados dos sindicatos operários estavam em controvérsia com os deputados dos gestores das empresas, de cada lado directa e acaloradamente interessados na questão. Teríamos então todos os outros (das agremiações do comércio, da agricultura, das profissões universitárias, das associações culturais, espirituais, das autarquias regionais, etc., etc.), na grande maioria neutros por princípio, a servirem de moderadores e de fiel da balança, a resolverem pela justiça de quem a tivesse.
No parlamento partidocrático não há, em regra, deputados neutrais, imparciais, porque os partidos alinham todos por ideologias, e quase todas as questões acabam por tomar o aspecto de ideológicas.
As vantagens de uma representatividade a partir dos agrupamentos naturais, da vida social e da vida nacional não podem deixar de ser francamente inteligíveis embora, como aqui, referidas somente ao rendimento de uma assembleia da república (res-publica). Mas as vantagens adquirem maior relevância ao considerarmos que este inovador sistema de representação nos livraria dos graves prejuízos do eleitoralismo. Prejuízos de ordem moral e de ordem material.
É demais conhecido quanto as lutas políticas, especialmente nas propagandas eleitorais, com a agressividade que as acompanha, ferem o corpo social, retalhando-o, dividindo-o em sectores hostis, rompendo laços de amizade nos vizinhos e nas famílias, destruindo a harmonia dos povoados, criando malquerenças, suscitando ódios. Mais ou menos é sempre deplorável o que fica no rescaldo de uma agitação sufragística entre as relações humanas. Também na ordem material os saldos são fortemente negativos. Cada campanha eleitoral sai muito dispendiosa. Que o digam as tesourarias empenhadas dos partidos, ou as tipografias credoras de dívidas incobráveis. Cartazes a cobrir paredes, jornais adventícios e panfletos, tempos de antena, alugueres de salas para comicios, deslocações de massas, etc., custam na verdade, rios de dinheiro.
Pois não nos disporemos a pensar que estes devastadores sismos sociais e estas despesas desmesuradas se tornariam evitáveis com uma outra modalidade de representações?
Os deputados de cada um dos agrupamentos sociais (sindicatos, grémios, escolas, colectividades de toda a ordem, associações de municípios ou procuradorias de cidades, etc.) seriam escolhidos dentro desses agrupamentos, sem que fosse necessário, ou mesmo aconselhável, que o fossem na mesma data. Os partidos políticos, igualmente admitidos como congregações políticas de estudo, designariam os respectivos delegados. Seriam estas eleições parcelares realizadas nos seus meios próprios, tão diferentes e tão independentes uns dos outros, que facilmente se despojariam de cariz ideológico.
Pelo processo referido desapareceriam, ou seriam atenuadas ao máximo, as funestas convulsões emocionais que tanto perturbam e lesam a comunidade nacional. Concomitantemente lucrar-se-ia em autenticidade representativa, tudo alcançado num ambiente pacífico de liberdade. Seria então adequado falar-se numa política progressiva, se a este adjectivo se atribui um sentido de evolução para o aperfeiçoamento, um significado preciso de progresso humano para o bem-comum, e não de «esquerdismo» utópico ou involutivo.
Um facto simples na aparência - o de seleccionar os deputados no mesmo povo, mas de outro modo - pode operar alterações radicais na personalidade colectiva da Assembleia da República, na sua maneira de ser e de actuar. O motivo é evidente: a assembleia deixará de ser comandada por centros politico-ideológicos, deixará de ter «direitas», «centro», «esquerdas»; será una em princípio, apesar da sua constitutiva diversidade. As divergências que nela se formem serão sempre pontuais, sem implicarem alinhamentos permanentes, os quais são a consequência fatal e o grande mal da partidocracia. Tal circunstância imprimirá à Assembleia uma nova dinâmica nos parâmetros de uma inspiração criadora. Então, cúmulo de democracia participada, a Assembleia obterá condições de trabalhar como órgão representativo do país real, na libérrima variedade das suas opiniões, é certo, mas obedecendo ao objectivo que justifica a sua existência, e que não deve afastar-se nunca da procura incondicional das melhores soluções do interesse nacional, quer através do particular, quer no geral.
Uma assembleia representativa será sempre o fulcro da política do país, a sua expressão, o sinal do seu estilo. Uma pergunta pode, provavelmente, surgir em espíritos menos atentos quanto ao regime económico-social que se preconiza para uma nova ordem. Porém, reflectindo um pouco, logo se há-de compreender que tal pergunta será incoerente. Raciocinando em termos democráticos não é admissível a hipótese de se definir e impor um regime qualquer à população do país, porque, precisamente, é na livre escolha das formas de regime que reside a soberania democrática. Competirá, pois, e sempre, aos representantes legítimos do país determinar as normas constitucionais que hão-de vigorar. Fora disto cair-se-ia num contra-senso, incorrer-se-ia numa violação da ética democrática, como nas primeiras páginas deste livro tivemos ocasião de salientar.
Um problema com este relacionado e que está na ordem do dia é o da descentralização.
Debatem-se duas concepções: uma, a que foi sempre a dos homens dos partidos políticos; outra, tradicional, mas trazida à modernidade, de que ultimamente se tem feito porta-voz o Presidente da República. A primeira, a da classe política, quer que as chamadas autarquias locais continuem a depender exclusivamente das suas candidaturas, isto é, que não possam ser propostas à eleição listas ou pessoas não arregimentadas nas organizações partidárias. A segunda pretende que, para além da representação politico-ideológica, actualmente a única permitida, sejam admitidas, independentemente dos partidos, outras representações, porventura numa inspiração ancestral de chamamento aos «homens bons» dos concelhos, se não mesmo dos organismos significativos da vida local. É evidente que se encontra aqui o sentido realista da descentralização. A divergência manifesta de atitudes é perfeitamente compreensível. À partidocracia não convém qualquer espécie de descentralizações dado que os governos partidários se fortalecem, ao invés, centralizando os poderes.
No insólito confronto de Miranda do Corvo (Diário de Notícias, nº 41379) opôs o ministro Angelo Correia que «a representação dos interesses ideológicos dos cidadãos faz-se através dos partidos políticos», e acrescentou, em jeito de conclusão «esse é o cerne da democracia». Com estas palavras A. Correia mostra que está fechado no conceito democratista da democracia. Mostra também que somente tem em conta «os interesses ideológicos», o que é muito pouco. Está conforme à mentalidade partidocrática, mas está em completa desincronização em face do ritmo normal da vida. A verdade é que nas populações rurais das aldeias e das vilas, incluso nas cidades, os «interesses ideológicos» são reduzidíssimos perante os interesses palpáveis relacionados, nos vários casos, com os empregos, as habitações, a poluição, a assistência médica (e judiciária!), o custo de vida, as vias de comunicação, o fornecimento de água, os esgotos, etc., etc. Todos estes interesses, que entram na primeira linha de preocupações dos povos têm que ter os seus porta-vozes delegados, mas não só nas autarquias locais, mas também na autarquia central do país - a assembleia da república. Esta a questão na sua verdadeira extensão e para a qual os partidos políticos não estão indicados.
No aperto das circunstâncias, a classe política, a fazermos fé nas declarações do ministro do P. S. D., supõe ingenuamente poder mistificar a representação pluralista da sociedade, que os tempos de hoje requerem, com a inclusão nas listas partidárias de candidatos independentes de partidos. A mistificação é demasiada! Então uma representação que depende da permissão de candidatura dos partidos poder-se-ia alguma vez tomar por independente? É preciso ter-se a noção de que o pluralismo social ultrapassa o pluralismo dos partidos.
Quando o Presidente da República disse que «não se pode limitar apenas aos partidos políticos, e aos que neles se integram, a proposta de soluções e a capacidade de ser útil à comunidade», e mais que «a democracia tem um espaço de acção mais extenso, do que os partidos», é de reconhecer que tentou um passo em frente no caminho acertado. Penosamente nos parece que o fez, porque se mostra preso nas malhas apertadas de um equívoco ao afirmar conjuntamente que «não há democracia sem partidos políticos». Não há?! Mas pode haver!
Não iremos repetir aqui as considerações expressas atrás a este respeito, pois julgamos que foram suficientes, e encerramos o circuito a que fomos tentados pela inopinada e, a certos títulos edificante, confrontação de Miranda do Corvo, para retomarmos a corrente de pensamento que vínhamos expondo sobre a assembleia representativa.
Íamos dizendo que a constituição da Assembleia Social reveste-se de importância capital porque, definindo a ideologia inspiradora do Estado, o seu funcionamento condiciona e regula o destino da nação.
O comportamento de uma Assembleia é bastante para nos facultar a imagem, boa ou má, da governação e da administração do país.
A disfunção das assembleias políticas formadas sobre uma fragmentação de partidos em confronto, a dificultar, se não a impossibilitar o exercício normal dos ministérios é o fenómeno corrente nas partidocracias. E assim não é raro que as crises ministeriais, deixando os países sem governo, se prolonguem escandalosamente. Que fazer nessas situações por vezes dramáticas?
Os democratistas, parecendo não se impressionarem conscientemente sobre a patognomonia [característica ou sintoma de uma doença em particular] dessas crises, contentam-se em apresentar como solução o que não passa de um mero expediente: a dissolução da assembleia e, consequentemente, a realização de eleições antecipadas. Mas acontece geralmente que o eleitorado, pouco ou nada mudando nas ideias, confirma, mais ou menos, os seus votos anteriores e uma nova assembleia não vai diferir muito da antecedente. Portanto a crise de fundo continua latente e o recurso às dissoluções não surte o efeito desejado.
A experiência portuguesa a este respeito é (ou deveria ser...) elucidativa. Os dados são os seguintes.
Na 1ª República houve sete (7) legislaturas e destas, cinco (5) foram dissolvidas.
Contando desde o advento do parlamentarismo monárquico até ao fim da 1ª República verifica-se terem sido dissolvidas 86 por cento das Assembleias parlamentares.
Uma percentagem tão elevada de dissoluções demonstra claramente, por um lado, que as assembleias não viabilizavam a marcha político-administrativa e, por outro lado, que as dissoluções não remediavam o mal crónico. E de tudo ressalta uma conclusão final. Não sendo de admitir que os estadistas, quer do democratismo monárquico, quer do democratismo republicano fossem todos inaptos, temos de deduzir que as responsabilidades dos insucessos devem ser essencialmente imputadas ao sistema democratista.
Na fúnebre catástrofe desta 3ª República, se já não se eximem de gravíssimas culpas certos, e incertos, dos seus condutores, é toda a contextura doutrinária do regime que está em falência fraudulenta.
Assistindo como espectador e crítico ao desmanchar do democratismo nos fins da monarquia, Fialho de Almeida, o autor alentejano de belas páginas de antologia da nossa literatura, soltou este brado de desalento: «Não há hoje em Portugal um único homem e um único partido onde pôr esperança», e acrescentava então, profético, «o republicano pior do que nenhuma. (Os Gatos, 5ª edição, 5.° vol., p.. 115)
No deserto de alma a que nos condenaram, e nestes dias sem horizonte, sobram-nos redobradas razões para repetirmos as palavras amargas do escritor de Os Gatos e de Saibam Quantos..., tendo em vista os homens públicos que fizeram e têm mantido esta 3ª República, estadistas dos empréstimos, «cujo talento governista é gastar».
Como a história se repete, correcta e aumentada nas suas reedições... Por isso, para que não fossem conhecidas as experiências falhadas se tentou banir das escolas o ensino da história pátria.
As eleições consecutivas à dissolução das assembleias podem, na verdade, conduzir a mudanças de partidos no governo, que são as decantadas alternâncias de poder. Mas alternâncias que não são sinónimas de alternativas, quando o que o país precisa é de rasgar uma abertura de alternativas ao democratismo.
Os partidos, seguindo normas tão semelhantes que por pouco se não confundem, e os políticos, contaminando-se mutuamente nos mesmos vícios do regime, tornam as preferências partidárias cada vez mais difíceis, rondando na aparência a inutilidade.
Só um regime estruturalmente novo, servido por homens de espírito novo, poderá transformar para melhor o Estado e a nossa vida de relações cívicas. Embora demasiado tarde para a nação portuguesa estamos ainda num tempo em que nos é permitido tentar essa transformação.
Os contornos de uma Ordem Nova foram já suficientemente delineados por uma pleíade de pensadores. Ela dimana em linha recta, acentuamos, de uma mudança nos métodos de representação. Uma Assembleia de natureza organicista, marginalizando o sectarismo partidista ideológico (que tem sido o tóxico destes dois últimos séculos), reconduzida à representatividade social que a deve caracterizar e a funções próprias, será bastante, assim o cremos, para sanear a administração pública e normalizar a governação.
A propósito não será demais recordar que uma das prerrogativas verdadeiramente democráticas que em recuados tempos mantinham os povos em suas mãos era o de necessitarem da aprovação das suas assembleias os lançamentos de contribuições e impostos. Com a partidocracia, mercê dos seus métodos de pseudo-representação popular, e de que resultou a concentração governativa, o povo perdeu efectivamente esse poder, digamos que essa espécie de auto-gestão administrativa. E é calamitosa essa perda, sobretudo na actualidade, atendendo a que uma pesada quota da carga tributária é lançada disfarçadamente por meio de uma percentagem de acréscimo no preço de alguns produtos de primeira necessidade. E este o caso, por exemplo, dos combustíveis e das taxas alfandegárias.
Se medidas semelhantes do Governo, agora decretadas, carecessem de uma passagem pela Assembleia da República, possivelmente o facto se reflectiria numa moralização dos orçamentos e numa travagem dos gastos supérfluos e escandalosos de alguns maquinismos do Estado que, no parecer comum, são mais do que muitos. Mas está bem provado pelos precedentes, isto é, pelas reiteradas abstenções dos deputados políticos, e de todos os partidos, não ser de esperar de uma câmara partidocrática vocação para o desempenho dessas funções.
É elucidativo o que se passa com a legislação das greves. Também aí nenhum partido, ainda que reconheça a necessidade de o fazer, arrisca uma proposta de limitação grevista, receosos todos de eventuais prejuízos eleitorais que tal proposta lhes pudesse causar. Mas eis que esses prejuízos eleitorais não existiriam para os deputados dos agrupamentos orgânicos que compõem a sociedade civil. Nem compromissos políticos, nem inibições dessa natureza, das que tolhem a liberdade dos deputados dos partidos políticos, se observariam, como é óbvio, numa câmara de base organicista. Com esta tudo mudaria fundamentalmente de aspecto e um dinamismo diferente impulsionaria a vida social. Neste ponto será importante considerar a restauração das Cortes Gerais da Nação que, num dos topos da hierarquia dos Poderes, guarda uma parte da representação nacional, como é de suprema valia, por outra parte, a chefatura estruturalmente nacionalista da Dinastia assistida pelos Conselhos Reais.
O móbil principal da Assembleia legislativa deixaria de ser o de aguentar ou fazer cair ministérios - que tem sido a obra mais conseguida da partidocracia - para se aplicar, patrioticamente, no aproveitamento dos valores sociais em prol da grei.
As Cortes Gerais, para além da função específica de apreciar, indicar ou deliberar, conforme as matérias reservadas à sua competência, exerceriam naturalmente sobre a Assembleia da República, dada a sua qualidade de Assembleia superior, uma benéfica influência de reflexão. Porventura lhe seria ainda destinado, em certos particulares, o papel de instância de recursos. Note-se que estamos a lembrar um ideário, linhas gerais de pensamento, sem a estulta preocupação que seria a de pretender apresentar soluções indiscutíveis em detalhes definitivos. Aos juristas constitucionalistas e à criatividade das gerações ficaria o direito, e o dever, de, em tempo próprio, interpor concepções convenientes e formulá-las na Lei Fundamental.
A oportunidade de uma experiência de mudança temo-la já alcançado. A receptividade geral na opinião pública neste sentido é um facto fácil de verificar a qualquer que a ausculte. Ao ponto a que as coisas chegaram resta agora à inteligência e à vontade esclarecida dos jovens trabalhar na implantação de uma Ordem Nova. Dos velhos ou novos políticos, dos sujeitos colocados em bons lugares, da gente cordata e acomodatícia, comprometida de qualquer maneira, nada há a esperar. Já todos eles deram as suas provas de inépcia, de abulia, de impotência ou de inércia. Só a chama ardente da juventude pode inflamar os espíritos e caldear o futuro.
Decerto que a alternativa que fica apontada nestas páginas não é a única, nem talvez a melhor. Mas é uma alternativa possível que, ao menos, poderia servir de ponto de partida. Na verdade o que é imperioso é fazer sair o país deste pântano em que se acarva e suicida, e dar-lhes os rumos da regeneração.
Em cada hora que passa faz-se perigosamente tarde para reagir e sobreviver. Há forças destruidoras que ameaçam a existência da Nação Portuguesa. Aqui mais uma vez nos ocorre referir Cunha Leal, o último político activo e mais categorizado da partidocrática 1ª República porque numa crise política semelhante àquela em que nos encontramos chegou a aperceber-se do mal que corroía o país. São estas palavras suas: «Através de oito anos de política, com cujos sucessos tenho estado misturado intimamente, entrevejo, de facto, a existência, entre nós, duma força estranha de desagregação e dissolução sociais». Confuso, na inquietação do seu pensamento, interrogava-se: «Qual é o oculto e potente motor dos nossos movimentos internos?» (Eu, os Políticos e a Nação, p.. XV.)
«Quem nos separa e divide? Que força oculta anda semeando a cizânia... Quem tanto poder de intriga consegue desenvolver?» Ansiando a verdade das coisas que escapava ao seu espírito fortemente injectado pelo vírus parlamentarista, escrevia: «Quem poderá achar resposta a estas perguntas que, constantemente, andam bailando na minha imaginação?» Estava muito perto Cunha Leal de tocar o seu enigma quando confessava: - «Fechando os olhos, como que sinto o contacto ligeiro do pensamento com o mistério.» (Ibidem - p. 333) Homem inteligente, o obstáculo que o impedia de ver claro era exactamente o de «fechar os olhos» à realidade. Se, pelo contrário os pudesse abrir, afastando os preconceitos da sua geração, veria que estava na partidocracia esse «motor de desagregação e dissolução sociais».
Numa associação de ideias vem-nos à memória também a conclusão a que, ao fim de tantos tormentos especulativos, chegou Antero de Quental, este presenciando a partidocracia do fim do século: «Quando a nação portuguesa tiver governos que verdadeiramente a representem e nos quais confie, quando o Estado voltar a ser um órgão útil e não uma excrescência parasita e nociva no corpo social, só então poderemos dizer que está dado o primeiro passo no caminho da restauração das forças vitais da sociedade portuguesa». (Prosas, vol. III, p. 163)
Também estas palavras de Antero de Quental se ajustam ao Portugal de hoje. Enfim, está profundamente doente o corpo social. Já ninguém duvida da gravidade extrema da situação. O diagnóstico do mal está feito e confirmado de há muito. A terapêutica certa tarda, porém, em ser aplicada. Urge que o seja. Não com mezinhas sintomáticas, que iludem em vez de curar, mas com uma terapêutica etiológica, a única cientificamente curativa.
A saúde é o contrário da doença, como o bem é o contrário do mal. Se realmente queremos tornar saudável o corpo social teremos de repelir o mal tal como ele se nos apresenta, pois que se existe é obra de nós próprios. Teremos de procurar substituí-lo pelo bem, se é que entre os homens o bem é alcançável na política. Mas, ao menos, tentemos uma aproximação! E denunciemos o falso dilema democratismo ou ditadura porque, na verdade, existem outras soluções.
Mário Saraiva, Outra Democracia - Uma Alternativa Nacional, Lisboa, Rei dos Livros, 1983.