Integralismo Lusitano e sua Actualidade
Mário Saraiva
Quem de qualquer modo (pela palavra ou pelo voto) se pronuncie e opine sobre a política portuguesa da actualidade não o pode fazer com segurança se desconhecer, ao menos, os itinerários que ela percorreu na última centúria.
A análise das ideias postas em confronto e os resultados práticos das diversas experiências realizadas são elementos indispensáveis a formar uma consciência recta e fundamentada. Sobretudo os acontecimentos no nosso país, mas também os do exterior, constituem fontes de informação que esclarecem, que ensinam, que indicam rumos a seguir ou a não seguir.
A sentença é velha e sempre oportuna: «A História é mestra da vida».
Quem no presente não conhecer os factos dos tempos passados arrisca-se muito naturalmente a buscar confiante o tempo futuro por caminhos errados, já trilhados por outros, com demonstrado insucesso. E as ilusões da ignorância são as mais perigosas.
Decerto que na linguagem política também há lugar para os riscos da utopia. As imaginações utópicas são por vezes clarões de génio que iluminam o negrume dos horizontes sem esperança. Mas há que saber distinguir o realizável da mera fantasia sem nexo. A inteligência do homem tem de operar por si. O apelo ao espírito nunca será demais invocado.
Porque vem este intróito sobre o Integralismo? Porque a inteligência deve estar atenta ao considerá-lo.
E o que foi o Integralismo Lusitano? Essencialmente um ideário filosófico e nunca outro partido entre tantos. Pode dizer-se que foi em Coimbra, nos anos iniciais da 1ª República, que uma pequena elite de rapazes recém-formados reagiu, cada um por seu lado, contra a desgovernação do País, num somatório crítico que viria a ser o embrião da escola integralista. Esses rapazes estudiosos, é tempo de o lembrar, tornar-se-iam em breve personagens das mais notáveis na vida intelectual e literária portuguesa. Os seus nomes mais conhecidos aí vão: António Sardinha, Luís de Almeida Braga, Hipólito Raposo, José Pequito Rebelo, Alberto Monsaraz e, mais novo, Francisco Rolão Preto.
Integralismo significava para eles integrar a Nação transviada na directriz histórica que a formara e engrandecera. Dito de outra maneira, na frase célebre que antes Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão tinham usado: «Reaportuguesar Portugal». Não era pois, e só, um móbil político que os guiava. Diremos mesmo que esse aspecto foi sempre secundário no pensamento que os irmanou. Um dia, no «Testemunho de Uma Geração» António Sardinha escreveu: «É conveniente não esquecer que o Integralismo, sendo um movimento nacionalista, não é apenas um movimento político. É também, e principalmente, um movimento de renovação intelectual e de especializações profissionais com o fito supremo do alevantar da Pátria».
Noutro passo, ao encetar as páginas de «Ao ritmo da Ampulheta», renova-nos e traça a índole que os animava: «As nossas campanhas nacionalistas desceram das Letras à Política, subiram da Acção à atmosfera diáfana das ideias». A desnacionalização das mentalidades era o mal maior, e origem de outros males, que urgia combater. É ainda António Sardinha que depõe: «Tudo se obliterara entre nós, desde o instinto das nossas raízes seculares até à posição que nos tocava, como raça e como Estado, no drama agudíssimo das nações contemporâneas». Referência inclusa à 1ª Grande Guerra.
De há muito vinha germinando o desprezo pela identidade nacional, noção já um tanto esquecida para muitos, absorvidos que andavam no caciquismo político. Oliveira Martins numa página da sua História, apontou, com transparente inquietação e mágoa, o resvalar fatal: «Daí vem o caso, talvez único na Europa, de um povo que não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e de amor pelas suas tradições, pelos seus homens superiores, que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco». Oliveira Martins conclui, na lógica indefectível das coisas, com uma severa prevenção, com um tremendo aviso: «Quando uma nação se condena pela boca dos seus próprios filhos, é difícil senão impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva».
Como estas palavras de atormentada profecia se ajustam ao que deu a subversão da 3ª República!...
Recorde-se como os intrépidos navegadores que deram a Portugal a glória dos Descobrimentos foram acusados de violadores da liberdade dos povos mesmo quando descobriam ilhas desabitadas; Vasco da Gama, que marcou uma divisória nas épocas da História do Mundo, um «colonialista» qualquer, com tudo o que o termo tinha de pejorativo; Camões, o épico universal, escarnecido, risivelmente apodado de «fascista»...
Não foi Séneca que lavrou esta sentença? - «Não é menos proveitosa a memória de ilustres varões, que a sua presença».
Portugal fora, na verdade desnacionalizado, desaportuguesado. O mal vinha minando de trás. Contra ele se empenharam patrioticamente os fundadores do Integralismo, logo secundados por uma plêiade calorosa que ia de jovens estudantes universitários a vultos já consagrados na sociedade.
Em conferências públicas, em livros, em jornais e revistas, espraiava-se a doutrina do reaportuguesamento. E foi frutuosa até certo ponto a campanha resgatadora. O despertar do sentimento patriótico atingiu no Estado Novo o ponto culminante com as Festas do Duplo Centenário - primeiro e último fulgor do nacionalismo português. Depois, para comodidade dos governantes, caiu-se no «viver habitualmente».
Perdera-se dinamismo. E a doutrina integralista, que estivera no fundamento da 2ª República e lhe criara uma aura de confiança, não foi aplicada na necessária reestruturação política e administrativa do País. Deturpado e, por tal, desacreditado o credo do livre corporativismo que era igualmente de cooperativismo, sabe-se como ele descambou num dirigismo de Estado, que o negou e contradisse.
A nova situação política fechara-se numa autocracia sem limites e sem futuro. Ainda aqui, arrostando com as medidas proibitivas da comunicação e expondo-se às consequências emanentes da repressão, os mestres integralistas marcaram a sua posição de independência intransigente denunciando a adulteração das doutrinas outrora proclamadas como orientadoras da acção governativa. Saíram penosas, para alguns, as atitudes virilmente tomadas, mas compensou-os, em sua memória, a honra de se não curvarem nem renderem ao silêncio.
Vale a pena ler e acompanhar a literatura integralista, porquanto não perdeu nem interesse nem actualidade. Mais do que por motivo de cultura, é útil conhecê-la porque encerra sugestões em muitos casos adaptáveis aos nossos dias. E não há disto que admirar. No transe de ideias que por toda a parte se anuncia, o Integralismo mantém relativamente o lugar conquistado no alvorecer deste século, pela razão simples de o País e o mundo não terem mudado significativamente. No plano político, entenda-se! Conserva-se até muito parecido.
É impressionante como, perante o avanço fantástico da generalidade das ciências, a ciência política estagnou. Alimentam-se hoje as pessoas das mesmas e primárias superstições que intoxicaram os nossos avós. Única ciência sem poder inventivo: fenómeno estranho.
A quem folhear as «Últimas Farpas» - belo livro sonegado! - parecer-lhe-á assistir ao maquinar interesseiro, ora presunçoso ora ridículo, em todo o caso medíocre e nefasto da classe política vigente. Bem visto, o fenómeno não será surpreendente. Nesta época mercantilista, a manutenção imutável do regime tem, para quem tem, os seus réditos abundantes e seguros. Conservá-lo é um proveitoso modo de vida.
Nos tempos que vão correndo o idealismo é virtude (ou defeito) de poucos, e não dá riqueza. Idealistas, na pureza das convicções, foram os primeiros integralistas. Solicitados pelo Poder com aliciantes promessas em tentativas de absorção, todos estes recusaram frontalmente colaborar numa política que não era a deles. Coisa excepcional: não Ihes importava ser ministros. Também, na verdade, as suas inclinações não iam muito para o exercício da política prática. Outros, fáceis de captar, a seguiriam.
Dados ao estudo das ideias, os componentes do mestrado integralista preocuparam-se sobretudo no agitar especulativo da inteligência como método de aperfeiçoar e de progredir. E é esse programa que hoje falta aos portugueses. Mais um aspecto, este, pelo qual vale a pena rever e trazer a público o Integralismo Lusitano. A nova geração, depressa desiludida das arengas dos comícios e das facciosas campanhas eleitorais, já o compreendeu.
Neste nosso tempo, fim de um Século que nos fica para trás como herdeiro oficial do antecessor - o qual em política mereceu de Léon Daudet o epíteto candente de «estúpido» - estamos a assistir ao irromper forte de contestações, de projecções insuspeitadas, mas de crer que se mostrem cônscias dos erros e dos ensinamentos que o passado nos deixou.
Ir-se-á, enfim, correr com a apontada estupidez de certos preconceitos, ainda teimosamente prevalecentes, e acordar a inteligência e o espírito moral para a resolução das questões político-sociais que nos castigam?
Na hora imanente que nos marca, não será de todo despiciendo supor que venham do Leste, apertado no transe libertador de mudança, as primeiras linhas da ordem futura. Em qualquer hipótese o momento é para revisão e reajustamento de ideias.
A formal democracia, de que a França de Mitterrand veio de celebrar o natalício, idoso de 200 anos, está comprovadamente decadente, sem viço e sem talento para as instâncias da actualidade. A sua longa e vasta experiência não resultou em bem para os franceses, nem para os povos que a tomaram como modelo. Os fundamentos que a sustinham eram falsos, e uma das consequências advinda têmo-la, evidente, na degenerescência em «partidocracia», regime oligárquico que contradiz os princípios ideais da democracia.
A classe política põe-nos como única alternativa, ou «partidocracia», ou a ditadura; mas este pretenso dilema é um reles sofisma, até porque um partido de maioria parlamentar absoluta pode, na prática, governar em ditadura legal.
Sendo a estruturação do Estado montada sobre partidos sociais - que são os verdadeiramente representativos do povo nas suas actividades e nos seus interesses sectoriais - logo ficaria aberta uma nova ordem de democracia. A penetrante análise do que está, o estudo do que já foi, e a imaginação de outras formas possíveis de concretizar, podem fornecer-nos elementos seguros de conclusão. Uma preparação adequada é necessária e indispensável para o efeito; tanto equivale a dizer que esta é uma tarefa difícil e apenas reservada a uma escola de investigadores.
A história da cultura portuguesa tem nesta matéria alguma coisa a recordar. Recordemo-la, portanto.
Na 1ª República vivia-se no país uma situação muito semelhante à actual: a mesma partidocracia com parecidos efeitos mafiosos na desmoralização política e na degradação corruptora; idêntico sentido desnacionalizante pelo desensino da história pátria; paralelo rebaixamento dos níveis espirituais; igual disparidade e divórcio entre o Estado e o Povo.
Foi nesse clima social que apareceu o Integralismo Lusitano, o qual, por via das razões do seu ideário, exerceu a mais forte influência na mentalidade dos contemporâneos, e de tal modo perdurável que ainda hoje, tantos anos volvidos, o seu pensamento se encontra sólido e válido para servir. Na realidade a organização estatal assentava então exclusivamente nos clãs partidários, senhores da Coisa Pública.
Tudo, afinal, como acontece hoje. E não admira que assim seja, porque esta 3ª República é, nos princípios, uma reedição da 1ª República, com as mesmas características, se bem que habilmente desenvolvida no desfruto das disponibilidades públicas a favor dos interesses partidários.
Depois de Abril de 74 repetem-se os mesmos males, os mesmos que em 1910 se incentivaram. O termo incentivaram emprega-se aqui no seu exacto significado. Na verdade a partidocracia com os seus erros e abusos vinha de longe, do equívoco «liberalismo»; todavia acima dos clãs partidários existia então uma autoridade nacional - extrapolítica e suprapartidária - a do Rei, que travava um tanto os excessos exploradores da politicagem.
Com o «5 de Outubro» as coisas neste ponto pioraram substancialmente. A chefia do Estado passou às mãos de Presidente mas, dado que estes são políticos de origem, e confirmados por via eleitoral, desapareceu aquele travão que podia impor-se aos desmandos partidários. Doravante senhores do Parlamento, do Governo e da Presidência, consumou-se o seu poderio total, sem impedimento legal, porquanto as leis, eles as fariam e desfariam conforme as conveniências.
As mesmas causas, como é lógico, produziram os mesmos efeitos. E chegamos onde estamos: os mecanismos estatais de decisão (da Presidência, ao legislativo e ao executivo) não protegem o Povo; funcionam, isso sim, a favor dos «políticos»; no entanto à custa do Povo. Registe-se, se não é repetir demais, o insultuoso confronto entre o regime de reformas dos trabalhadores, e o novo e privilegiadíssimo regime inventado pelos «políticos» para suas próprias reformas!
Em tempos antigos clamava-se «Aqui d'EI-Rei» porque a Realeza tinha como missão e primeiro encargo velar pela justiça na República. E hoje, que acima dos poderes político-partidários não existe nenhum outro poder (porque todos eles são de natureza político-partidária), o que resta legalmente ao Povo ofendido senão ir sofrendo as leis iníquas? Alegam do lado de lá que o povo, usando o direito de voto, pode substituir os governantes, e que nessa possibilidade reside a grande virtude da Democracia. A alegação, no que é capciosa, tem uma resposta pronta. O mal maior não está tanto nos indivíduos, como no vício do sistema, que torna os indivíduos viciosos. Mudar os governantes pouco adianta, se continuar a viciosa partidocracia.
Está demonstrado que os partidocráticos agem todos igualmente, porque Ihes são comuns as conveniências. A prova disto está no facto sucedido (não o esqueçamos) de terem subido os vencimentos deles em perto de 100 por cento, deixando aos trabalhadores apenas o aumento de 11 por cento.
Os integralistas, deparando no seu tempo com idênticos problemas aos dos nossos dias opunham-se à partidocracia exclusivista e imperante, e propugnavam pelo reconhecimento constitucional dos órgãos vitais da sociedade e, consequentemente, pela sua inserção de pleno direito nas estruturas do Estado.
Traduzindo as intenções para o presente, pensaríamos de imediato no assento dos "parceiros sociais» (alargados como de direito) nas bancadas da "Assembleia da República”: A «concertação social» far-se-ia aí: teríamos então dado o primeiro passo em frente, legitimando a designação de Assembleia da República à que agora usurpa esse nome, mas não passa de uma assembleia restrita de deputados de alguns partidos políticos.
Neste novo ordenamento, ajustado às realidades, e sob os auspícios da restauração monárquica viam os integralistas uma transformação de coisas e de mentalidade, capazes estas de contribuírem decisivamente para o preciso saneamento da vida política portuguesa.
Não se amofinem com a proposta os directórios partidários. O monopólio de que têm gozado tem fatalmente de terminar. Aliás os senhores partidocratas contribuíram bastante para apressar o fim com leis discriminatórias e a generalizada corrupção.
Será prudente não esperar que o povo ganhe consciência das injustiças de que vai sendo vítima e ultrapasse exasperado as disciplinas partidárias ou sindicais, e venha para a rua reivindicar direitos humanos de igualdade de tratamento; e, inclusive, exija responsabilidades. Os exemplos alastrantes do Leste constituem um aviso sério para esta indulgente e enganada população do Ocidente.
O ideário integralista que, embora por motivos diversos, foi válido na 1ª e na 2ª República, não o é menos nesta 3ª República, diremos que actualizado na medida em que se agravaram os males antigos que combateu.
O estudo das suas fundamentações conserva a mesma importância e aponta soluções que ainda não foram superadas pela crítica moderna.
As gerações novas, viradas para o descobrimento da História que, anti-patrioticamente, Ihes tem sido ocultada, mostram uma curiosidade especial para as doutrinas integralistas, também estas escondidas pelos facciosos meios de comunicação e de informação.
(In Mário Saraiva, Frontalidade, Lisboa, Universitária Editora, 1995)
Quem de qualquer modo (pela palavra ou pelo voto) se pronuncie e opine sobre a política portuguesa da actualidade não o pode fazer com segurança se desconhecer, ao menos, os itinerários que ela percorreu na última centúria.
A análise das ideias postas em confronto e os resultados práticos das diversas experiências realizadas são elementos indispensáveis a formar uma consciência recta e fundamentada. Sobretudo os acontecimentos no nosso país, mas também os do exterior, constituem fontes de informação que esclarecem, que ensinam, que indicam rumos a seguir ou a não seguir.
A sentença é velha e sempre oportuna: «A História é mestra da vida».
Quem no presente não conhecer os factos dos tempos passados arrisca-se muito naturalmente a buscar confiante o tempo futuro por caminhos errados, já trilhados por outros, com demonstrado insucesso. E as ilusões da ignorância são as mais perigosas.
Decerto que na linguagem política também há lugar para os riscos da utopia. As imaginações utópicas são por vezes clarões de génio que iluminam o negrume dos horizontes sem esperança. Mas há que saber distinguir o realizável da mera fantasia sem nexo. A inteligência do homem tem de operar por si. O apelo ao espírito nunca será demais invocado.
Porque vem este intróito sobre o Integralismo? Porque a inteligência deve estar atenta ao considerá-lo.
E o que foi o Integralismo Lusitano? Essencialmente um ideário filosófico e nunca outro partido entre tantos. Pode dizer-se que foi em Coimbra, nos anos iniciais da 1ª República, que uma pequena elite de rapazes recém-formados reagiu, cada um por seu lado, contra a desgovernação do País, num somatório crítico que viria a ser o embrião da escola integralista. Esses rapazes estudiosos, é tempo de o lembrar, tornar-se-iam em breve personagens das mais notáveis na vida intelectual e literária portuguesa. Os seus nomes mais conhecidos aí vão: António Sardinha, Luís de Almeida Braga, Hipólito Raposo, José Pequito Rebelo, Alberto Monsaraz e, mais novo, Francisco Rolão Preto.
Integralismo significava para eles integrar a Nação transviada na directriz histórica que a formara e engrandecera. Dito de outra maneira, na frase célebre que antes Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão tinham usado: «Reaportuguesar Portugal». Não era pois, e só, um móbil político que os guiava. Diremos mesmo que esse aspecto foi sempre secundário no pensamento que os irmanou. Um dia, no «Testemunho de Uma Geração» António Sardinha escreveu: «É conveniente não esquecer que o Integralismo, sendo um movimento nacionalista, não é apenas um movimento político. É também, e principalmente, um movimento de renovação intelectual e de especializações profissionais com o fito supremo do alevantar da Pátria».
Noutro passo, ao encetar as páginas de «Ao ritmo da Ampulheta», renova-nos e traça a índole que os animava: «As nossas campanhas nacionalistas desceram das Letras à Política, subiram da Acção à atmosfera diáfana das ideias». A desnacionalização das mentalidades era o mal maior, e origem de outros males, que urgia combater. É ainda António Sardinha que depõe: «Tudo se obliterara entre nós, desde o instinto das nossas raízes seculares até à posição que nos tocava, como raça e como Estado, no drama agudíssimo das nações contemporâneas». Referência inclusa à 1ª Grande Guerra.
De há muito vinha germinando o desprezo pela identidade nacional, noção já um tanto esquecida para muitos, absorvidos que andavam no caciquismo político. Oliveira Martins numa página da sua História, apontou, com transparente inquietação e mágoa, o resvalar fatal: «Daí vem o caso, talvez único na Europa, de um povo que não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e de amor pelas suas tradições, pelos seus homens superiores, que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco». Oliveira Martins conclui, na lógica indefectível das coisas, com uma severa prevenção, com um tremendo aviso: «Quando uma nação se condena pela boca dos seus próprios filhos, é difícil senão impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva».
Como estas palavras de atormentada profecia se ajustam ao que deu a subversão da 3ª República!...
Recorde-se como os intrépidos navegadores que deram a Portugal a glória dos Descobrimentos foram acusados de violadores da liberdade dos povos mesmo quando descobriam ilhas desabitadas; Vasco da Gama, que marcou uma divisória nas épocas da História do Mundo, um «colonialista» qualquer, com tudo o que o termo tinha de pejorativo; Camões, o épico universal, escarnecido, risivelmente apodado de «fascista»...
Não foi Séneca que lavrou esta sentença? - «Não é menos proveitosa a memória de ilustres varões, que a sua presença».
Portugal fora, na verdade desnacionalizado, desaportuguesado. O mal vinha minando de trás. Contra ele se empenharam patrioticamente os fundadores do Integralismo, logo secundados por uma plêiade calorosa que ia de jovens estudantes universitários a vultos já consagrados na sociedade.
Em conferências públicas, em livros, em jornais e revistas, espraiava-se a doutrina do reaportuguesamento. E foi frutuosa até certo ponto a campanha resgatadora. O despertar do sentimento patriótico atingiu no Estado Novo o ponto culminante com as Festas do Duplo Centenário - primeiro e último fulgor do nacionalismo português. Depois, para comodidade dos governantes, caiu-se no «viver habitualmente».
Perdera-se dinamismo. E a doutrina integralista, que estivera no fundamento da 2ª República e lhe criara uma aura de confiança, não foi aplicada na necessária reestruturação política e administrativa do País. Deturpado e, por tal, desacreditado o credo do livre corporativismo que era igualmente de cooperativismo, sabe-se como ele descambou num dirigismo de Estado, que o negou e contradisse.
A nova situação política fechara-se numa autocracia sem limites e sem futuro. Ainda aqui, arrostando com as medidas proibitivas da comunicação e expondo-se às consequências emanentes da repressão, os mestres integralistas marcaram a sua posição de independência intransigente denunciando a adulteração das doutrinas outrora proclamadas como orientadoras da acção governativa. Saíram penosas, para alguns, as atitudes virilmente tomadas, mas compensou-os, em sua memória, a honra de se não curvarem nem renderem ao silêncio.
Vale a pena ler e acompanhar a literatura integralista, porquanto não perdeu nem interesse nem actualidade. Mais do que por motivo de cultura, é útil conhecê-la porque encerra sugestões em muitos casos adaptáveis aos nossos dias. E não há disto que admirar. No transe de ideias que por toda a parte se anuncia, o Integralismo mantém relativamente o lugar conquistado no alvorecer deste século, pela razão simples de o País e o mundo não terem mudado significativamente. No plano político, entenda-se! Conserva-se até muito parecido.
É impressionante como, perante o avanço fantástico da generalidade das ciências, a ciência política estagnou. Alimentam-se hoje as pessoas das mesmas e primárias superstições que intoxicaram os nossos avós. Única ciência sem poder inventivo: fenómeno estranho.
A quem folhear as «Últimas Farpas» - belo livro sonegado! - parecer-lhe-á assistir ao maquinar interesseiro, ora presunçoso ora ridículo, em todo o caso medíocre e nefasto da classe política vigente. Bem visto, o fenómeno não será surpreendente. Nesta época mercantilista, a manutenção imutável do regime tem, para quem tem, os seus réditos abundantes e seguros. Conservá-lo é um proveitoso modo de vida.
Nos tempos que vão correndo o idealismo é virtude (ou defeito) de poucos, e não dá riqueza. Idealistas, na pureza das convicções, foram os primeiros integralistas. Solicitados pelo Poder com aliciantes promessas em tentativas de absorção, todos estes recusaram frontalmente colaborar numa política que não era a deles. Coisa excepcional: não Ihes importava ser ministros. Também, na verdade, as suas inclinações não iam muito para o exercício da política prática. Outros, fáceis de captar, a seguiriam.
Dados ao estudo das ideias, os componentes do mestrado integralista preocuparam-se sobretudo no agitar especulativo da inteligência como método de aperfeiçoar e de progredir. E é esse programa que hoje falta aos portugueses. Mais um aspecto, este, pelo qual vale a pena rever e trazer a público o Integralismo Lusitano. A nova geração, depressa desiludida das arengas dos comícios e das facciosas campanhas eleitorais, já o compreendeu.
Neste nosso tempo, fim de um Século que nos fica para trás como herdeiro oficial do antecessor - o qual em política mereceu de Léon Daudet o epíteto candente de «estúpido» - estamos a assistir ao irromper forte de contestações, de projecções insuspeitadas, mas de crer que se mostrem cônscias dos erros e dos ensinamentos que o passado nos deixou.
Ir-se-á, enfim, correr com a apontada estupidez de certos preconceitos, ainda teimosamente prevalecentes, e acordar a inteligência e o espírito moral para a resolução das questões político-sociais que nos castigam?
Na hora imanente que nos marca, não será de todo despiciendo supor que venham do Leste, apertado no transe libertador de mudança, as primeiras linhas da ordem futura. Em qualquer hipótese o momento é para revisão e reajustamento de ideias.
A formal democracia, de que a França de Mitterrand veio de celebrar o natalício, idoso de 200 anos, está comprovadamente decadente, sem viço e sem talento para as instâncias da actualidade. A sua longa e vasta experiência não resultou em bem para os franceses, nem para os povos que a tomaram como modelo. Os fundamentos que a sustinham eram falsos, e uma das consequências advinda têmo-la, evidente, na degenerescência em «partidocracia», regime oligárquico que contradiz os princípios ideais da democracia.
A classe política põe-nos como única alternativa, ou «partidocracia», ou a ditadura; mas este pretenso dilema é um reles sofisma, até porque um partido de maioria parlamentar absoluta pode, na prática, governar em ditadura legal.
Sendo a estruturação do Estado montada sobre partidos sociais - que são os verdadeiramente representativos do povo nas suas actividades e nos seus interesses sectoriais - logo ficaria aberta uma nova ordem de democracia. A penetrante análise do que está, o estudo do que já foi, e a imaginação de outras formas possíveis de concretizar, podem fornecer-nos elementos seguros de conclusão. Uma preparação adequada é necessária e indispensável para o efeito; tanto equivale a dizer que esta é uma tarefa difícil e apenas reservada a uma escola de investigadores.
A história da cultura portuguesa tem nesta matéria alguma coisa a recordar. Recordemo-la, portanto.
Na 1ª República vivia-se no país uma situação muito semelhante à actual: a mesma partidocracia com parecidos efeitos mafiosos na desmoralização política e na degradação corruptora; idêntico sentido desnacionalizante pelo desensino da história pátria; paralelo rebaixamento dos níveis espirituais; igual disparidade e divórcio entre o Estado e o Povo.
Foi nesse clima social que apareceu o Integralismo Lusitano, o qual, por via das razões do seu ideário, exerceu a mais forte influência na mentalidade dos contemporâneos, e de tal modo perdurável que ainda hoje, tantos anos volvidos, o seu pensamento se encontra sólido e válido para servir. Na realidade a organização estatal assentava então exclusivamente nos clãs partidários, senhores da Coisa Pública.
Tudo, afinal, como acontece hoje. E não admira que assim seja, porque esta 3ª República é, nos princípios, uma reedição da 1ª República, com as mesmas características, se bem que habilmente desenvolvida no desfruto das disponibilidades públicas a favor dos interesses partidários.
Depois de Abril de 74 repetem-se os mesmos males, os mesmos que em 1910 se incentivaram. O termo incentivaram emprega-se aqui no seu exacto significado. Na verdade a partidocracia com os seus erros e abusos vinha de longe, do equívoco «liberalismo»; todavia acima dos clãs partidários existia então uma autoridade nacional - extrapolítica e suprapartidária - a do Rei, que travava um tanto os excessos exploradores da politicagem.
Com o «5 de Outubro» as coisas neste ponto pioraram substancialmente. A chefia do Estado passou às mãos de Presidente mas, dado que estes são políticos de origem, e confirmados por via eleitoral, desapareceu aquele travão que podia impor-se aos desmandos partidários. Doravante senhores do Parlamento, do Governo e da Presidência, consumou-se o seu poderio total, sem impedimento legal, porquanto as leis, eles as fariam e desfariam conforme as conveniências.
As mesmas causas, como é lógico, produziram os mesmos efeitos. E chegamos onde estamos: os mecanismos estatais de decisão (da Presidência, ao legislativo e ao executivo) não protegem o Povo; funcionam, isso sim, a favor dos «políticos»; no entanto à custa do Povo. Registe-se, se não é repetir demais, o insultuoso confronto entre o regime de reformas dos trabalhadores, e o novo e privilegiadíssimo regime inventado pelos «políticos» para suas próprias reformas!
Em tempos antigos clamava-se «Aqui d'EI-Rei» porque a Realeza tinha como missão e primeiro encargo velar pela justiça na República. E hoje, que acima dos poderes político-partidários não existe nenhum outro poder (porque todos eles são de natureza político-partidária), o que resta legalmente ao Povo ofendido senão ir sofrendo as leis iníquas? Alegam do lado de lá que o povo, usando o direito de voto, pode substituir os governantes, e que nessa possibilidade reside a grande virtude da Democracia. A alegação, no que é capciosa, tem uma resposta pronta. O mal maior não está tanto nos indivíduos, como no vício do sistema, que torna os indivíduos viciosos. Mudar os governantes pouco adianta, se continuar a viciosa partidocracia.
Está demonstrado que os partidocráticos agem todos igualmente, porque Ihes são comuns as conveniências. A prova disto está no facto sucedido (não o esqueçamos) de terem subido os vencimentos deles em perto de 100 por cento, deixando aos trabalhadores apenas o aumento de 11 por cento.
Os integralistas, deparando no seu tempo com idênticos problemas aos dos nossos dias opunham-se à partidocracia exclusivista e imperante, e propugnavam pelo reconhecimento constitucional dos órgãos vitais da sociedade e, consequentemente, pela sua inserção de pleno direito nas estruturas do Estado.
Traduzindo as intenções para o presente, pensaríamos de imediato no assento dos "parceiros sociais» (alargados como de direito) nas bancadas da "Assembleia da República”: A «concertação social» far-se-ia aí: teríamos então dado o primeiro passo em frente, legitimando a designação de Assembleia da República à que agora usurpa esse nome, mas não passa de uma assembleia restrita de deputados de alguns partidos políticos.
Neste novo ordenamento, ajustado às realidades, e sob os auspícios da restauração monárquica viam os integralistas uma transformação de coisas e de mentalidade, capazes estas de contribuírem decisivamente para o preciso saneamento da vida política portuguesa.
Não se amofinem com a proposta os directórios partidários. O monopólio de que têm gozado tem fatalmente de terminar. Aliás os senhores partidocratas contribuíram bastante para apressar o fim com leis discriminatórias e a generalizada corrupção.
Será prudente não esperar que o povo ganhe consciência das injustiças de que vai sendo vítima e ultrapasse exasperado as disciplinas partidárias ou sindicais, e venha para a rua reivindicar direitos humanos de igualdade de tratamento; e, inclusive, exija responsabilidades. Os exemplos alastrantes do Leste constituem um aviso sério para esta indulgente e enganada população do Ocidente.
O ideário integralista que, embora por motivos diversos, foi válido na 1ª e na 2ª República, não o é menos nesta 3ª República, diremos que actualizado na medida em que se agravaram os males antigos que combateu.
O estudo das suas fundamentações conserva a mesma importância e aponta soluções que ainda não foram superadas pela crítica moderna.
As gerações novas, viradas para o descobrimento da História que, anti-patrioticamente, Ihes tem sido ocultada, mostram uma curiosidade especial para as doutrinas integralistas, também estas escondidas pelos facciosos meios de comunicação e de informação.
(In Mário Saraiva, Frontalidade, Lisboa, Universitária Editora, 1995)