Origens do pensamento de Salazar
José Manuel Quintas
Os distintos pontos de partida ideológicos, modernistas e estrangeirados em Salazar, tradicionalistas e nacionalistas nos integralistas lusitanos, não [são ... ] de somenos na elucidação dos seus irreconciliáveis posicionamentos políticos, durante e após a formação do Estado Novo.
COM a publicação de Inéditos e Dispersos / - Escritos Político-Sociais e Doutrinários (1908-1928), de António de Oliveira Salazar, acaba de surgir uma obra de decisiva importância para a historiografia contemporânea.
A este primeiro volume de Inéditos e Dispersos.... seguir-se-á um segundo, com os Estudos Económico-Sociais, e um terceiro, com os Estudos de Direito Fiscal e Financeiro, ficando reunidos, numa só obra, todos os textos produzidos por Salazar para conhecimento público, antes da sua entrada para o governo, em 1928. A importância de uma obra reunindo, assim, todos os escritos de juventude de Salazar, é por demais evidente. Fica acessível um conjunto de fontes da maior importância para o estudo da vida intelectual portuguesa do século XX - cobrindo matérias tão diversas como a religião, a filosofia política, a economia política, ou o direito fiscal - e doravante criadas as condições para um estudo cuidado acerca das origens, e dos primeiros desenvolvimentos, do pensamento de Salazar.
A revelação de um modernista e estrangeirado
O Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, a quem se deve a sua organização, dá-nos conta, no prefácio geral incluído neste 1.° volume, da antiguidade e das vicissitudes do projeto. A ideia de publicar os textos inéditos e dispersos de Salazar surgiu nos anos 50, em Coimbra. Salazar produzira, na sua juventude, alguns textos que, tendo sido lidos publicamente, haviam ficado por editar. Entre eles contava-se uma conferência, «A Democracia e a Igreja», proferida por duas vezes em Maio de 1914, e a que Salazar se referira em A Minha Resposta, em 1919, pelo que procurou a Universidade de Coimbra reuni-los e publicá-los «como homenagem ao Sr. Presidente do Conselho», Ao tomar conhecimento da intenção, foi o próprio Salazar a fazer morrer o projeto, respondendo ao reitor Maximino Correia que alguns daqueles trabalhos «não mereciam ser publicados».
Anos mais tarde, diferente viria a ser atitude de Salazar perante nova iniciativa. O Ministério das Finanças, visando assinalar a continuidade entre a reforma fiscal que se acabara de operar e as reformas tributárias introduzidos por Salazar em 1929, veio de facto a editar, com o acordo do autor, em 1963, uns Estudos de Direito Fiscal, prefaciados pelo Prof. Doutor António Manuel Pinto Barbosa.
Quando Manuel Braga da Cruz começou a estudar as origens do salazarismo, em meados dos anos 70, impôs-se-lhe naturalmente a importância académica e científica do antigo projeto da Universidade de Coimbra. Mantinha-se, porém, desconhecido o paradeiro de alguns textos, em especial o da referida conferência sobre «A Democracia e a Igreja», cujo texto original se chegou a julgar irremediavelmente perdido. E foi assim que Braga da Cruz manteve adormecido o projeto, até que, em Fevereiro de 1994, mons. Celso Tavares da Silva lhe revelou o texto original da conferência julgada perdida. O pároco do Vimieiro, P. António Nunes de Sousa, a quem Salazar o havia oferecido, confiá-lo-ia ao diretor do Colégio da Via-Sacra, que, por sua vez, o acabaria por entregar a mons. Tavares da Silva.
Seria razão suficiente de regozijo, para qualquer investigador, poder lançar o olhar sobre tal inédito, mas eis que Manuel Braga da Cruz, com o apoio do Prof. Doutor Aníbal Pinto de Castro, diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, veio a retomar o projeto original, reunindo, num excelente corpus, todos inéditos e dispersos de que há notícia.
Os inéditos reunidos neste 1º volume são em número apreciável.
Para além do texto original da referida conferência, incluem-se ainda o chamado «Sermão da Quinquagésima» proferido em 1908 (também revelado por mons. Tavares da Silva), o diálogo patriótico «Egas Moniz» (escrito em 1908 e representado pela primeira vez em 1936), uma conferência proferida na reabertura do CADC, em 8 de Dezembro de 1912, e duas conferências apresentadas no Funchal, em 1925.
O levantamento dos dispersos não é menos exaustivo, incluindo-se, para além de diversas teses e discursos, todos os textos de Salazar publicados na imprensa da época, nomeadamente as colaborações em A Folha de Viseu (1908-1909), nos Ecos da Via-Sacra, de Viseu (1909), no Imparcial de Coimbra (1912-14), em A Época (1922-1925) - os textos de Salazar em polémica com Nemo sobre a política do Centro Católico - e no Correio de Coimbra (1923-1926).
No prefácio deste 1.° volume, Manuel Braga da Cruz situou os textos na biografia do seu amor, identificou as suas temáticas e desenhou algumas das suas linhas ideológicas mais marcantes. Fê-lo em traços seguros, mas também comedidos, evitando asserções de largo alcance interpretativo, porque, como lembrou em entrevista ao semanário Expresso (6 de Dezembro de 1997), há ainda muita investigação a fazer e muitas ideias feitas a necessitar de revisão.
Salazar e a paixão pela Educação
Não é aqui o lugar para se proceder a uma tal revisão. Com a obra nas mãos, porém, não podemos evitar desde já uma abordagem do problema: quais as principais novidades, recolhidas numa primeira e rápida leitura, destes textos político-sociais e doutrinários que acabam de deixar de estar inéditos e dispersos?
Observados os textos no seu conjunto, revelam-nos, sem dúvida, como salientou Braga da Cruz, um Salazar plenamente integrado no pensamento social católico da época e com uma precoce propensão para a intervenção política.
Uma propensão que se torna nítida desde a Conferência sobre a Restauração (pp. 68-82), proferida em 1 de Dezembro de 1909, pouco depois de Salazar ter concluído o curso do Seminário, quando era professor e prefeito no Colégio da Via-Sacra.
É bem uma peça a incluir no estudo do processo de revelação do Salazar político. Foi proferida no Liceu de Alves Martins, perante professores e alunos. Não obstante a ocasião e o título, o primeiro dado significativo é o facto de nela Salazar quase não se pronunciar sobre o significado histórico e político da Restauração de 1640.
Centrado na questão pedagógica, pode dizer-se que a toada geral da conferência se coadunava bem com o papel de prefeito e professor. Mas, se quase se não refere à Restauração de 1640, não deixa de ser significativo o facto de, partindo da verificação de uma situação de crise - quando «tudo fala em desgraças» -, passe à assunção de uma decadência portuguesa e, sobretudo, venha a apontar meios concretos para a corrigir.
É verdade que Salazar se mostrava algo inseguro quanto à definição exata da causa, ou causas, da decadência. Mas não foi isso que o impediu de apresentar uma solução significativa. Para Salazar, sendo «as ideias que governam e dirigem os povos», e como «são os grandes homens quem tem as grandes ideias», a necessária regeneração portuguesa só poderia ser alcançada quando o País estivesse dotado desses «grandes homens» - os «honrados comerciantes», os «grandes agricultores» e os «poderosos industriais». Era importante, antes de mais, formar esses «grandes homens» em obediência a adequados «métodos de educação» (pp: 71-72).
Salazar apoiava-se, explicitamente, na pedagogia de Demolins, mas não deixara de acudir ao espírito de quem o ler o paralelismo, ao menos num ponto, entre o seu diagnóstico e o da Geração de 70, em 70! , em especial o que havia sido pronunciado por Antero de Quental, o conferente das Causas da decadência dos povos peninsulares. Antero considerava Portugal um País de minguados recursos materiais, mas havia sido sobretudo por manifesto atavismo cultural que o País se revelara incapaz de acompanhar o passo da industriosa Europa.
Segundo aquele jovem Salazar, é certo, em contraste com o Antero de Quental de 70, nem a decadência era especificamente peninsular, nem o catolicismo de Trento tinha nela explícita responsabilidade. A decadência a que Salazar se referia era um fenómeno amplamente latino e, havendo que imitar a Europa desenvolvida, dela salientava os anglo-saxónicos, que importava imitar nos métodos de Educação.
Os textos publicados por Salazar após a implantação da 1ª República revelam, sem novidade ou surpresa, um jovem católico profundamente marcado pela política anticlerical e antirreligiosa do Governo Provisório.
Se não deixa de ser curioso verificar, em face do Salazar do Estado Novo, que o jovem Salazar opunha às violências da 1ª República essa «verdade enunciada por Lammenais», segundo a qual «só começa a perseguir quem desespera de convencer!» (p. 105), importará sobretudo reter esse que será um dos traços mais significativos do seu discurso político-social de juventude: apenas a Educação podia verdadeiramente transformar os homens e as sociedades.
A ideia estava já presente na Conferência sobre a Restauração, mas eis que, em manifesta reação aos governantes da 1ª República, que acreditavam no poder transformador das leis, ela se transforma em verdadeira linha mestra de orientação político-ideológica. Com efeito, quando na atmosfera política ressoava a jactância de muitos democráticos propondo-se erradicar o catolicismo no espaço de poucas gerações, desde cedo Salazar lhes contrapõe a expressão de Leibniz segundo a qual, apenas «com a educação, se pode transformar um povo em cem anos» (p. 110; epígrafe de uma das suas Cartas a Uma Mãe).
Salazar, na conferência pronunciada na reabertura do CADC, em 1912, integrando a epigrafe orientadora de Leibniz no corpo do texto (p. 179), volta ao tema da família como «meio educador por excelência», pegando uma vez mais nos preceitos da Éducation Nouvelle de Demolins, que aconselhava o «inglesar das sociedades latinas». No entanto, alarga e aprofunda horizontes filosóficos, enfrentando diretamente o problema da decadência: Portugal vivia prostrado por uma viciosa organização assente em comodismo social e em fatalismo político; no plano social, o português «adora o deus Estado, e, temendo fortemente a responsabilidade, tem horror ao trabalho livre» (p. 186); enquanto, no plano político, «adora a deusa Política na contemplação estática da fórmula» (p. 188). O cume da sua análise vislumbra-se logo que a questão social se lhe revela como sendo fundamentalmente uma questão moral e, portanto, uma questão de educação.
Que Salazar havia sido um dirigente do CADC e do movimento juvenil católico português já o sabíamos; o que agora estamos em condições de saber, seguindo fonte segura, é que Salazar nasceu para a política pugnando pelo acertar do passo com uma certa Europa, com a paixão da Educação, em nítida reação ao positivismo legislativo dos governantes da 1ª República.
«A Democracia e a Igreja»
Do conteúdo da conferência «A Democracia e a Igreja», proferida por duas vezes em 1914 - primeiro na sessão solene do XI Congresso da Federação da Juventude Católica Portuguesa, no Porto, e depois repetida em Viseu, no Circulo Católico de Operários daquela cidade -, conheciam-se apenas alguns ecos na imprensa da época e pouco mais do que as três ideias fundamentais em que Salazar se dizia ter apoiado, em 1919, na sua resposta ao processo de sindicância à Universidade de Coimbra.
Descendo agora ao texto original desse que é, sem dúvida, o mais importante inédito revelado, que novidades nos apresenta?
Sem novidade, encontramos nele a expressão exata da tese, tipicamente rallié, da «importância secundária das formas de governo»; também a consideração da «democracia como um facto histórico, uma corrente insuperável, uma conquista legítima, perfeitamente conciliável com o catolicismo»; e. ainda, «a necessidade de influir sobre a democracia» nos termos do programa de Tocqueville: «instruí-la, regular-lhe os movimentos e adaptar o seu governo às épocas e aos lugares».
Porém, ficamos agora em condições de perceber melhor a sua motivação para o ralliement ao regime republicano, ao vermos Salazar a considerar que voltar à monarquia seria voltar ao domínio de falsos amigos - «Se hoje somos, como católicos, atravessados por traiçoeira navalha, ontem recebíamos um abraço tão apertado, que positivamente nos amolgava as costelas» -, não escondendo no mesmo passo, alias, a sua «sentida indignação» por «todos os ataques que... a monarquia transata fizera à Igreja Católica» (p. 224).
Fica assim desfeita a lenda do monarquismo de Salazar - lenda que o próprio habilmente alimentará durante décadas, e a que não será decerto estranha a sua resistência, nos anos 50, em ver publicadas aquelas palavras.
Mas encontramos também nesse texto, e muito para além de uma simples aceitação da «democracia como facto histórico», etc., um Salazar denunciando quer a falência dos princípios da Revolução Francesa, por insuficiência e por não serem cristãos (pp. 219-222), quer o exato conteúdo daquilo que ele considerava ser um «mal-entendido» entre a Democracia e a Igreja:
«Sendo hoje a democracia o governo do povo pelo povo, o que é lógico é que a orientação do governo traduza fielmente as correntes de opinião mais fortes no seio da sociedade»... «mas o que não se compreende (...) é a situação da Igreja Católica em Portugal, país na sua quase totalidade católico e organizado, ao que por aí se diz, segundo os princípios democráticos. O povo soberano não tem decerto exercido a sua soberania» (p. 224). Para Salazar, em síntese, o regime que se implantara com a 1ª República pouco tinha de democrático - «Isto, democracia? oh!, não me façais rir...» (p. 227) -, era antes uma democracia viciada a que, pegando explicitamente na apologia de Aristóteles, atribui o nome que lhe competia: Demagogia.
E mesmo a lição de Tocqueville, doravante também o sabemos, aplicava-a Salazar na crítica ao modelo político liberal, importado de França no século XIX: «as instituições que há perto de um século nos regem estão em desarmonia com o estado social a que se aplicam»; ... «não há instituições progressivas, instituições avançadas. Ou há instituições adaptadas as condições dos povos que dirigem, ou há muito simplesmente um contrassenso político» (p. 226).
Salazar e o Integralismo Lusitano
O texto da conferência «A Democracia e a Igreja» foi concluído em Coimbra, no dia 22 de Abril de 1914, menos de um mês depois de, na mesma cidade, se ter publicado o primeiro número da revista Nação Portuguesa, órgão do integralismo lusitano.
Muito se tem escrito sobre a proximidade ideológica entre Salazar e os integralistas lusitanos, havendo mesmo uma corrente historiográfica (de que se destacam, entre outros, Manuel Braga da Cruz e António Costa Pinto) que tem vindo a considerá-los, no campo da produção ideológica, os principais responsáveis da criação das condições propícias ao derrube daquilo a que chamam «o Estado liberal». Para Manuel Braga da Cruz, a pura «democracia-cristã» de Salazar, que o era inicialmente, ter-se-ia tornado depois uma «democracia-cristã pervertida e invertida, porque "integralizada" e "fascizada"..
Saltará à vista de quem ler, paralelamente, os primeiros textos integralistas publicados (na revista Alma Portuguesa, nos folhetos Aqui d'El-Rei! e na referida Nação Portuguesa), e os primeiros escritos de Salazar, a semelhança de pontos de vista sobre algumas questões importantes concernentes à situação política que então se vivia: considerando-se a Igreja um elemento básico da Nação portuguesa, a política antirreligiosa da l República era interpretada como uma política de desnacionalização; não obstante o regime republicano se afirmar democrático, não se via nele verdadeira Democracia; o modelo político liberal, importado de França no século XIX, era entendido como um contrassenso político por ser inadequado às condições portuguesas; não se aceitava a recém-implantada República, mas também não se pretendia voltar ao regime monárquico da Carta.
Porém, se as semelhanças assinaladas são importantes, as diferenças não o serão menos. Enquanto Salazar partia de uma avaliação da decadência portuguesa com algum parentesco com o diagnóstico produzido pela Geração de 70, em 70!, em especial no manifestado desejo de acertar o passo com alguma da Europa desenvolvida; os integralistas lusitanos partiam da avaliação do mesmo problema referindo-se explicitamente ao diagnóstico da Geração de 70, mas ao que essa geração havia produzido depois de 90! (na fase do grupo dos Vencidos da Vida), quando se procurava já encontrar internamente as condições para um ressurgimento.
Se Salazar incorpora a viragem nacionalista pós-Ultimatum da Geração de 70 produzindo um discurso patriótico, não vai ao ponto de dela retirar quaisquer ilações políticas, defendendo uma via modernista centrada na Educação, recolhida em exemplo estrangeiro. Os integralistas lusitanos, bem ao contrário, consideravam que a regeneração só seria possível se houvesse um retorno à tradição institucional portuguesa anterior ao absolutismo iluminista, a realizar num quadro político-cultural de «reaportuguesamento de Portugal».
Essa diferença essencial emerge de um distinto ponto de partida ideológico, com distinta tese histórica a informar um distinto projeto político: aí onde os integralistas, partindo da escolástica hispânica seiscentista e dos autores legitimistas de inícios do século XIX, se propunham regenerar Portugal pela recuperação dos princípios «Deus, Pátria, Rei», vai Salazar, partindo da pedagogia da École des Roches e recorrendo à fórmula de Afonso Pena («Deus, Pátria, Liberdade, Família»; vide p. 196), levantar essoutra trilogia, «Deus, Pátria, Família» (p. 229).
Do mesmo modo, onde os integralistas se propunham recuperar a «lusitana antiga liberdade», proclamando a necessidade de uma integral restauração de Portugal (que para eles significava. no plano institucional, a simultânea restauração da Res publica e do trono), vai Salazar colocar, como primeira prioridade, a luta política pela recuperação do lugar a que a Igreja tinha direito, considerando secundária a questão do regime.
Salazar, Maurras e o Integralismo Lusitano
Avaliando o contraste de posições entre Salazar e os integralistas, importa ainda sublinhar, dando atenção aos debates políticos da época, e apesar das aparências em contrário, a maior proximidade de Salazar à politique d'abord de Charles Maurras, e o maior afastamento dos integralistas lusitanos.
Recorde-se as exatas palavras do monárquico francês Charles Maurras, ao estabelecer essa sua célebre política, em 1906, logo que se constituiu o governo Sarrien-Clemenceau, num momento em que as várias correntes católicas ralliés defendiam tudo ser necessário sacrificar à defesa religiosa: «Aujourd’hui, tout est à la défense religieuse parce que la religion se trouve attaquée ... la religion étant attaquée sur le terrain politique, il faut la défendre politiquement». Maurras, ao conceder à «defesa religiosa» a prioridade na fórmula hierárquica da sua politique d'abord - «defesa religiosa + defesa social + defesa nacional» - visou, explicitamente, manter a iniciativa prática e militante dos monárquicos. Era necessário, como ele dizia, «marchar à cabeça dos acontecimentos, em vez de se deixar manobrar por eles» (vide «Politique d'abord», Gazette de France, 18 de Março de 1906, reed. in La Politique Religieuse, Paris, Nouvelle Librairie Nationale, 1914, Pp. 365-378).
Como é sabido - e os textos de Salazar na sua polémica com Nemo, agora reeditados, são um importante contributo para que se saiba - o divórcio entre Salazar e o grupo que acompanha o conselheiro Fernando de Sousa (Nemo), ao lado de quem os integralistas se colocavam, não se estabeleceu em torno da aceitação, ou não, do princípio segundo o qual o Estado e a Igreja deveriam ser autónomos nas respetivas esferas, mas antes em torno da hierarquização a estabelecer entre a «questão religiosa» e a «questão do regime» na definição da política do Centro Católico.
Assim, distinguindo posições entre Salazar, Maurras e os integralistas, o que temos é, rigorosamente: um Salazar católico tipicamente rallié, dizendo tudo ser necessário consagrar à defesa política da Igreja; um Maurras, no seu neomonarquismo francês, a procurar apropriar-se do programa dos católicos ralliés para não perder a iniciativa política; e os integralistas lusitanos, não obstante atribuírem muita importância à «questão religiosa», a considerar que a Igreja apenas poderia obter o lugar a que tinha direito no quadro de uma Res publica restaurada e com o rei a dirigi-la.
A deriva autocrática de Salazar
À luz da problemática enunciada, foi particularmente feliz a escolha de Manuel Braga da Cruz, encerrando com as seguintes breves declarações de Salazar ao Novidades, em 1928, no preciso momento em que este subia a membro do ministério: «Diga aos católicos que o meu sacrifício me dá o direito de esperar deles que sejam, de entre todos os portugueses, os primeiros a pagar os sacrifícios que eu lhes peça, e os últimos a pedir os favores que eu lhes não posso fazer. “Sem ter de obedecer ao coerente critério de Manuel Braga da Cruz, reunindo apenas os textos destinados ao conhecimento público, deixem-me que avance dois anos, citando aqui Salazar ao subir a presidente do Conselho, nas bem mais graves palavras que, em privado, terá dirigido ao cardeal Cerejeira, em resposta aos cumprimentos que aquele seu antigo companheiro de Coimbra e das lutas no Centro Católico lhe dirigiu numa visita que lhe fez: «Manuel, a partir deste momento os nossos destinos separam-se completamente. Eu defendo os interesses de Portugal e do Estado, e os interesses da Igreja só contam para mim enquanto se conjugarem com aqueles, e apenas nesta medida.» A estas palavras terá juntado ainda: «E o Estado é independente e soberano», que foi como quem dissesse - e eu, senhor do Estado, sou agora independente e soberano.
Irá, seguramente, levar ainda o seu tempo até que o sarro de muitas ideias feitas se desfaça, mas entre os muitos desafios que estes Inéditos e Dispersos apresentarão aos historiadores, o menor deles não será, decerto, o de se atender às fundas raízes ideológicas modernas de Salazar, a que não será legítimo subtrair o conteúdo neoclássico do maurrasianismo, como via para compreender a inflexão do seu comportamento, tão bem expresso nas rudes e frias palavras que dirigiu a Cerejeira.
Algum do parentesco ideológico maurrasiano de Salazar, em contraste com o bem pouco maurrasianismo dos integralistas, também não será de somenos para quem vier a aprofundar o estudo de tão distintos projetos políticos, não obstante terem vindo a impor-se no debate político como tão essencialmente aparentados.
Os distintos pontos de partida ideológicos, modernistas e estrangeirados em Salazar, tradicionalistas e nacionalistas nos integralistas, não serão decerto também de somenos na elucidação do irreconciliável posicionamento político, durante e após a formação do Estado Novo. Os integralistas não transigiram nunca, bem para além da restauração do trono, da necessidade de garantir as liberdades da República, enquanto Salazar, por seu lado, ia edificando um regime no qual se viria a fazer coroar como um autocrata, por cima de uma vergada oligarquia catedrático-clerical.
O rol das novidades, incluído neste 1. ° volume de Inéditos e Dispersos, de Salazar, completa-se com as duas conferências proferidas na Madeira, em 1925, acerca das relações entre o Estado e a Igreja. São textos de cuja profundidade aqui se não pode dar mais do que notícia, mas que importa salientar, atendendo à expressa admiração aí manifestada por Salazar para com os regimes concordatários da «livre Inglaterra» e «mais ainda na grande e livre América» (pp. 381-382). Uma admiração que importará reter, para quem vier a estudar, com a profundidade que o assunto merece, o comportamento de Salazar nas negociações que virão a culminar no estabelecimento da Concordata de 1940.
Na posse dos escritos de juventude de Salazar, ficam finalmente criadas as condições para vir a estudar-se, com a atenção que o tema merece, a verdadeira origem e natureza da deriva autoritária e fascista do seu percurso político. [ 1930 - Oliveira Salazar - Princípios Fundamentais da Revolução Política]
Desde já, fica inapelavelmente desfeita a lenda do seu monarquismo (mesmo o juvenil) e revelada a origem moderna e estrangeirada do seu pensamento político (a que não será legitimo furtar alguma proximidade com o maurrasianismo), base essencial para se compreender a profunda diferenciação filosófica, ética e política entre o integralismo lusitano e o salazarismo, que levaram, aliás, um dia o integralista José Pequito Rebelo a considerar o salazarismo «um integralismo pervertido e invertido». E por aí se poderá compreender o fundo ideológico da acusação de traição que os mestres integralistas dirigiram a alguns elementos da sua segunda geração - entre outros, Marcelo Caetano, Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias - por terem acompanhado Salazar na edificação do Estado Novo.
Depois de Manuel Braga da Cruz, através do livro As Origens da Democracia Crista e o Salazarismo ter ajudado a definir algumas das grandes linhas de investigação sobre o Estado Novo das últimas décadas, eis que, concluído este seu projeto, nos surge dando-nos, uma vez mais, as condições para um renovado fôlego nos estudos sobre a personalidade política de Salazar, que está, afinal, quase inteiramente por estudar.
J.M.Q.
[ 1ª edição: José Manuel Quintas, "Origens do pensamento de Salazar", História, Lisboa, Julho-Agosto de 1998, pp. 77-83. ]

José Manuel Quintas, "Origens do pensamento de Salazar", História, Julho/Agosto 1998, pp. 77-83 |
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