Henrique Ruas, memória e louvor
Teresa Martins de Carvalho
Quando me convidaram para vir, aqui e hoje, falar sobre Henrique Ruas, aceitei o convite com alvoroço. Ultimamente, falar dele tem sido, para mim, uma espécie de dever nacional, a ser cumprido ansiosa e repetidamente, não como esconjuro contra a morte e o esquecimento, mas a favor da vida e de nós todos, que ficámos depois dele ter partido.
É como um dever nacional porque ao falar dele, com comovida lembrança, aqui e hoje, é torná-lo presente, e assim, não pode o país desanimar de si próprio, nem nós podemos, nem pode a Igreja em Portugal sentir-se friorenta, a aconchegar-se, por receios desmedidos e sinais de fraqueza. Quando evocamos a figura notável e fontal de Henrique Ruas, ser português torna-se, de repente, motivo de excelência.
«Que bom é ter amigos destes» exclamava, encantado, Álvaro Dentinho, nosso amigo comum, saboreando esse privilégio depois de uma conferência de Henrique Ruas na Sociedade de Geografia, essa casa que ele costumava frequentar e onde, no habitual almoço, certo dia, me apresentou esse outro notável português, um scholar no verdadeiro sentido da palavra, Fernando de Mello Mozer.
Tinha-o descoberto e agora trazia-o à roda dos amigos? Ou teria sido Mello Mozer a descobri-lo? «Les beaux esprits se rencontrent» é um dito muito usado para explicar, sem razão, estas mútuas e deslumbradas descobertas ou ocultar-lhes o mistério.
Uma das características de Henrique Ruas, segundo a minha opinião e observação atenta da sua cordialidade, era precisamente a facilidade – ou a vontade – de se deslumbrar. Os amigos, as pessoas que vinha a conhecer, este ou aquele escritor que lera havia pouco, que tinha traduzido ou outro ainda cujo convívio já vinha de longe e o ajudara a ser gente: todos inteligentíssimos, cultíssimos, óptimas pessoas, grandes escritores, grandes poetas… Era generoso na apreciação e no elogio, não por manobra de sedução – e como era sedutor, a seu modo! – mas porque tomava partido, impetuosa e infalivelmente, pelo optimismo, pela maravilha do ser e do estar, diferença curiosa da nossa língua, tão familiar, complexa, límpida, e mais uma vez deslumbrar-se com as criaturas, obra excelsa de Deus, verdade sempre presente.
E por aqui chegamos à sua espantosa e desconcertante humildade, outra das características do seu espírito que pasmava a minha incredulidade. Não que ignorasse – e era impossível ele o ignorar – o valor das suas vivas qualidades intelectuais, o peso cultural do seu saber – que tão simplesmente dividia como pão que se dá – e, no entanto, nada disto lhe obscurecia ou limitava a capacidade de ver o outro, os outros, de lhes encontrar novas riquezas e ressonâncias, que eram, às vezes, mais reflexo de si próprio, comunicado num abraço fraterno.
A bondade, o sorriso pronto, agradável e acolhedor, ou a gargalhada divertida e irónica mas sem azedume ou ressentimento, clara visão interior do que magoa, do que é mau, viscoso, constrangedor, vingativo e do que é cristalino, o amor de Deus que é também amor do próximo. Lembro-me quando me disse, a rir de gozo e espanto, que o livro da sua autoria sobre o Condestável tinha escapado à fúria revolucionária, no auto-da-fé de tantos livros patrióticos a que pegaram fogo no Ministério da Educação. Artimanha do biografado, com certeza, pois viriam a dar ao seu biógrafo, mais tarde, lugar de destaque na retoma do processo da sua canonização.
Conheci o Henrique Ruas em Coimbra, quando o meu Pai nos levou, à minha irmã e a mim, a ver um doutoramento coimbrão, em todo o seu esplendor e para o qual tinha sido convidado. Connosco veio depois jantar o grupo da revista Cidade Nova, fulgor súbito e cintilante de uma geração, grupo, na altura, sediado na cidade. Além de Henrique Ruas estavam também os seus amigos e confrades no pensamento e na acção política e cultural, Afonso Botelho, Fernão Pacheco de Castro, José Carlos Amado, Eduardo de Soveral.
Reencontrei-os em Lisboa, no Centro Nacional de Cultura que eles tinham acabado de criar com muitos outros rapazes monárquicos, primeiro no Largo de Camões, depois na Rua António Maria Cardoso, lugar aberto a toda a gente e onde até acudiam os «pides» vizinhos, facilmente reconhecíveis, a vigiar... O Centro foi, durante anos, local de debate e de liberdade, na atmosfera cinzenta da salazarquia.
Não posso esquecer o empenho com que Henrique Ruas, pacientemente, escolheu, entre os papeis do meu marido, os textos que era urgente publicar, após tão trágica morte do seu grande amigo e admirador. «Tudo o que o Henrique escrever eu assino logo por baixo» dizia-me ele, «e nem preciso de ler»... Também aqui quero contar da sua ternura e solicitude para com os meus filhos, tão cedo órfãos, o empenho e alegria pelos seus êxitos escolares e escolhas de vida, preocupação e amizade que a eles lhes ficaram gravadas na alma.
Com o 25 de Abril aconteceu convívio maior, tanto com a Berta Marinho e o Manuel Costa Garcia na aventura das Escolas Comunitárias, ideia fecunda que se pôs a vogar pelo país e pelas mentes como, sobretudo, no Partido Popular Monárquico, agora à volta da mesa das reuniões, à volta de eleições, à volta de comunicados, à volta de cartazes, sessões de esclarecimento, gritos e vivas e longas conversas pela noite fora… «São uns filósofos» dizia, desdenhoso o António Borges de Carvalho, nosso confrade político, mais prático e activo.
A esta convivência, numa época convulsa do país, devo a serenidade para não ter medo de parar e pensar.
Pensar, a mais nobre actividade humana, e «pensar dereito» que evita complacências fáceis e escolhas apressadas. Henrique Ruas era um grande pensador, era e é, porque o seu pensamento permanece nos seus escritos embora nada equivalha à presença viva, ao diálogo pessoal, a vê-lo destrinçar, meditar, acreditar, comparar, inventar, num jogo exigente de honestidade intelectual, ao sopro da imaginação e da sensibilidade. Poucos lhe conheceram a veia poética. Poemas requerem a quem ouve uma disposição rendida e serena e os ouvintes de Henrique Ruas eram mais sôfregos do que disponíveis.
«Ah! Isso pede-se ao Henrique Ruas», ele atende, aceita, procura, sabe, responde, fala e escreve, incansavelmente escreve... numa disponibilidade aberta aos pedidos mais importantes e vistosos como aos mais modestos e desconhecidos. E com generosidade, uma espécie de espírito de missão que resultasse dos incríveis talentos próprios que tinha recebido e que era necessário cultivar e pôr a render, a fim de, no gesto típico do professor, proporcionar respostas, soluções a quem o questionava ou lho pedia.
Filósofo, sim, mas também trabalhador esforçado, habituado a uma vida simples e pobre, com as repetidas dificuldades financeiras de uma família numerosa que lhe devorava tempo, lhe exigia compreensão. «Não, no Domingo não posso», ouvi-lhe uma vez, «tenho de ficar em casa para ajudar a Mila a passar a roupa a ferro...»
Nas andanças do Partido Popular Monárquico não se quedava confortado com ocasionais vitórias eleitorais ou se deprimia com as derrotas. Lá vinha o trabalhador, minuciosamente encarreirando números e nomes, espiolhando favores ou desfavores na Constituição, num labor paciente e escondido, e dava depois conselhos, delineava possíveis estratégias que retirava daquele curioso observatório, colado à realidade eleitoral. Não era, em política, nem tanso, nem ingénuo, apesar de tanta bondade. Ele bem via o que achava errado. Não arrancava com brutalidade o joio do meio da seara mas limpava o trigo, colhido e eirado, com o movimento lindo da pá de padejar... Era um esteta, esteta que gostava do convívio, de comida bem confeccionada e da qualidade do vinho, esse índice de civilização.
Ele não era só «o nosso bonzo» como lhe chamávamos, oráculo preciso e precioso. Filósofo, sim, mas também trabalhador incansável, não confiando só na intuição, no talento e na inteligência mas também homem das mil fichas, sinal de pesquisa aturada, geito inconfundível do historiador. Foi sentado à sua mesa de trabalho que ele morreu.
E depois a fidelidade, fidelidade à fé cristã, ao amor a Portugal, às suas gentes e segredos, aos grandes vultos da História. Fidelidade à monarquia, não só por sentimento tradicional mas também por dedução inteligente, pelos valores históricos e simbólicos que envolve e encarna, valores que nenhum país devia desprezar ou desconhecer.
Mas também fidelidade lúcida, não fanática, aberta a caminhos inéditos e a ocasiões novas, o que surpreendia num «homem de princípios», como se costuma dizer e a que se costuma aliar certa frieza intransigente e dura. Pelo contrário, era um homem serenamente livre.
Quem, como ele, deputado por uma vez, conseguia silenciar uma Assembleia da República, tumultuosa e irreverente, quando, pedida a palavra, a usava, naquela voz profunda, num português puríssimo, afeiçoado na escola de Camões que tanto apreciava e serviu?
Ninguém escrevia tão bem como o Henrique Ruas.
Podia eu continuar aqui desfiando ladainhas de qualidades e dons, cenas e confidências, que sempre me seria difícil dar dele um retrato adequado.
«Quem há melhor que o tio Henrique?» perguntava o meu filho Manuel, derreado por aquela morte. «Não há...» afirmava, desolado.
E, fazendo-lhe eco, acrescentava a minha filha Leonor, entre indignada e entristecida: «Há pessoas que não deviam morrer.»
Anunciava assim o sentimento de orfandade que a morte do Henrique Ruas em nós provocou. Estou a vê-lo a rir-se… Que exagero! Não é exagero. Ocupava em Portugal um lugar muito especial de difícil substituição, mestre de referência, cabo de esperança.
Não me cabia fazer biografia. Outros o farão com zelo e competência. Peço desculpa do tom talvez demasiado pessoal desta conversa e da maré-cheia dos superlativos, mas era-me impossível fazê-la doutra maneira, porventura formal e distante.
Era o grande amigo de nós todos, seus amigos.
Obrigada pela vossa atenção.
Teresa Maria Martins de Carvalho
Lisboa, Julho de 2004
Quando me convidaram para vir, aqui e hoje, falar sobre Henrique Ruas, aceitei o convite com alvoroço. Ultimamente, falar dele tem sido, para mim, uma espécie de dever nacional, a ser cumprido ansiosa e repetidamente, não como esconjuro contra a morte e o esquecimento, mas a favor da vida e de nós todos, que ficámos depois dele ter partido.
É como um dever nacional porque ao falar dele, com comovida lembrança, aqui e hoje, é torná-lo presente, e assim, não pode o país desanimar de si próprio, nem nós podemos, nem pode a Igreja em Portugal sentir-se friorenta, a aconchegar-se, por receios desmedidos e sinais de fraqueza. Quando evocamos a figura notável e fontal de Henrique Ruas, ser português torna-se, de repente, motivo de excelência.
«Que bom é ter amigos destes» exclamava, encantado, Álvaro Dentinho, nosso amigo comum, saboreando esse privilégio depois de uma conferência de Henrique Ruas na Sociedade de Geografia, essa casa que ele costumava frequentar e onde, no habitual almoço, certo dia, me apresentou esse outro notável português, um scholar no verdadeiro sentido da palavra, Fernando de Mello Mozer.
Tinha-o descoberto e agora trazia-o à roda dos amigos? Ou teria sido Mello Mozer a descobri-lo? «Les beaux esprits se rencontrent» é um dito muito usado para explicar, sem razão, estas mútuas e deslumbradas descobertas ou ocultar-lhes o mistério.
Uma das características de Henrique Ruas, segundo a minha opinião e observação atenta da sua cordialidade, era precisamente a facilidade – ou a vontade – de se deslumbrar. Os amigos, as pessoas que vinha a conhecer, este ou aquele escritor que lera havia pouco, que tinha traduzido ou outro ainda cujo convívio já vinha de longe e o ajudara a ser gente: todos inteligentíssimos, cultíssimos, óptimas pessoas, grandes escritores, grandes poetas… Era generoso na apreciação e no elogio, não por manobra de sedução – e como era sedutor, a seu modo! – mas porque tomava partido, impetuosa e infalivelmente, pelo optimismo, pela maravilha do ser e do estar, diferença curiosa da nossa língua, tão familiar, complexa, límpida, e mais uma vez deslumbrar-se com as criaturas, obra excelsa de Deus, verdade sempre presente.
E por aqui chegamos à sua espantosa e desconcertante humildade, outra das características do seu espírito que pasmava a minha incredulidade. Não que ignorasse – e era impossível ele o ignorar – o valor das suas vivas qualidades intelectuais, o peso cultural do seu saber – que tão simplesmente dividia como pão que se dá – e, no entanto, nada disto lhe obscurecia ou limitava a capacidade de ver o outro, os outros, de lhes encontrar novas riquezas e ressonâncias, que eram, às vezes, mais reflexo de si próprio, comunicado num abraço fraterno.
A bondade, o sorriso pronto, agradável e acolhedor, ou a gargalhada divertida e irónica mas sem azedume ou ressentimento, clara visão interior do que magoa, do que é mau, viscoso, constrangedor, vingativo e do que é cristalino, o amor de Deus que é também amor do próximo. Lembro-me quando me disse, a rir de gozo e espanto, que o livro da sua autoria sobre o Condestável tinha escapado à fúria revolucionária, no auto-da-fé de tantos livros patrióticos a que pegaram fogo no Ministério da Educação. Artimanha do biografado, com certeza, pois viriam a dar ao seu biógrafo, mais tarde, lugar de destaque na retoma do processo da sua canonização.
Conheci o Henrique Ruas em Coimbra, quando o meu Pai nos levou, à minha irmã e a mim, a ver um doutoramento coimbrão, em todo o seu esplendor e para o qual tinha sido convidado. Connosco veio depois jantar o grupo da revista Cidade Nova, fulgor súbito e cintilante de uma geração, grupo, na altura, sediado na cidade. Além de Henrique Ruas estavam também os seus amigos e confrades no pensamento e na acção política e cultural, Afonso Botelho, Fernão Pacheco de Castro, José Carlos Amado, Eduardo de Soveral.
Reencontrei-os em Lisboa, no Centro Nacional de Cultura que eles tinham acabado de criar com muitos outros rapazes monárquicos, primeiro no Largo de Camões, depois na Rua António Maria Cardoso, lugar aberto a toda a gente e onde até acudiam os «pides» vizinhos, facilmente reconhecíveis, a vigiar... O Centro foi, durante anos, local de debate e de liberdade, na atmosfera cinzenta da salazarquia.
Não posso esquecer o empenho com que Henrique Ruas, pacientemente, escolheu, entre os papeis do meu marido, os textos que era urgente publicar, após tão trágica morte do seu grande amigo e admirador. «Tudo o que o Henrique escrever eu assino logo por baixo» dizia-me ele, «e nem preciso de ler»... Também aqui quero contar da sua ternura e solicitude para com os meus filhos, tão cedo órfãos, o empenho e alegria pelos seus êxitos escolares e escolhas de vida, preocupação e amizade que a eles lhes ficaram gravadas na alma.
Com o 25 de Abril aconteceu convívio maior, tanto com a Berta Marinho e o Manuel Costa Garcia na aventura das Escolas Comunitárias, ideia fecunda que se pôs a vogar pelo país e pelas mentes como, sobretudo, no Partido Popular Monárquico, agora à volta da mesa das reuniões, à volta de eleições, à volta de comunicados, à volta de cartazes, sessões de esclarecimento, gritos e vivas e longas conversas pela noite fora… «São uns filósofos» dizia, desdenhoso o António Borges de Carvalho, nosso confrade político, mais prático e activo.
A esta convivência, numa época convulsa do país, devo a serenidade para não ter medo de parar e pensar.
Pensar, a mais nobre actividade humana, e «pensar dereito» que evita complacências fáceis e escolhas apressadas. Henrique Ruas era um grande pensador, era e é, porque o seu pensamento permanece nos seus escritos embora nada equivalha à presença viva, ao diálogo pessoal, a vê-lo destrinçar, meditar, acreditar, comparar, inventar, num jogo exigente de honestidade intelectual, ao sopro da imaginação e da sensibilidade. Poucos lhe conheceram a veia poética. Poemas requerem a quem ouve uma disposição rendida e serena e os ouvintes de Henrique Ruas eram mais sôfregos do que disponíveis.
«Ah! Isso pede-se ao Henrique Ruas», ele atende, aceita, procura, sabe, responde, fala e escreve, incansavelmente escreve... numa disponibilidade aberta aos pedidos mais importantes e vistosos como aos mais modestos e desconhecidos. E com generosidade, uma espécie de espírito de missão que resultasse dos incríveis talentos próprios que tinha recebido e que era necessário cultivar e pôr a render, a fim de, no gesto típico do professor, proporcionar respostas, soluções a quem o questionava ou lho pedia.
Filósofo, sim, mas também trabalhador esforçado, habituado a uma vida simples e pobre, com as repetidas dificuldades financeiras de uma família numerosa que lhe devorava tempo, lhe exigia compreensão. «Não, no Domingo não posso», ouvi-lhe uma vez, «tenho de ficar em casa para ajudar a Mila a passar a roupa a ferro...»
Nas andanças do Partido Popular Monárquico não se quedava confortado com ocasionais vitórias eleitorais ou se deprimia com as derrotas. Lá vinha o trabalhador, minuciosamente encarreirando números e nomes, espiolhando favores ou desfavores na Constituição, num labor paciente e escondido, e dava depois conselhos, delineava possíveis estratégias que retirava daquele curioso observatório, colado à realidade eleitoral. Não era, em política, nem tanso, nem ingénuo, apesar de tanta bondade. Ele bem via o que achava errado. Não arrancava com brutalidade o joio do meio da seara mas limpava o trigo, colhido e eirado, com o movimento lindo da pá de padejar... Era um esteta, esteta que gostava do convívio, de comida bem confeccionada e da qualidade do vinho, esse índice de civilização.
Ele não era só «o nosso bonzo» como lhe chamávamos, oráculo preciso e precioso. Filósofo, sim, mas também trabalhador incansável, não confiando só na intuição, no talento e na inteligência mas também homem das mil fichas, sinal de pesquisa aturada, geito inconfundível do historiador. Foi sentado à sua mesa de trabalho que ele morreu.
E depois a fidelidade, fidelidade à fé cristã, ao amor a Portugal, às suas gentes e segredos, aos grandes vultos da História. Fidelidade à monarquia, não só por sentimento tradicional mas também por dedução inteligente, pelos valores históricos e simbólicos que envolve e encarna, valores que nenhum país devia desprezar ou desconhecer.
Mas também fidelidade lúcida, não fanática, aberta a caminhos inéditos e a ocasiões novas, o que surpreendia num «homem de princípios», como se costuma dizer e a que se costuma aliar certa frieza intransigente e dura. Pelo contrário, era um homem serenamente livre.
Quem, como ele, deputado por uma vez, conseguia silenciar uma Assembleia da República, tumultuosa e irreverente, quando, pedida a palavra, a usava, naquela voz profunda, num português puríssimo, afeiçoado na escola de Camões que tanto apreciava e serviu?
Ninguém escrevia tão bem como o Henrique Ruas.
Podia eu continuar aqui desfiando ladainhas de qualidades e dons, cenas e confidências, que sempre me seria difícil dar dele um retrato adequado.
«Quem há melhor que o tio Henrique?» perguntava o meu filho Manuel, derreado por aquela morte. «Não há...» afirmava, desolado.
E, fazendo-lhe eco, acrescentava a minha filha Leonor, entre indignada e entristecida: «Há pessoas que não deviam morrer.»
Anunciava assim o sentimento de orfandade que a morte do Henrique Ruas em nós provocou. Estou a vê-lo a rir-se… Que exagero! Não é exagero. Ocupava em Portugal um lugar muito especial de difícil substituição, mestre de referência, cabo de esperança.
Não me cabia fazer biografia. Outros o farão com zelo e competência. Peço desculpa do tom talvez demasiado pessoal desta conversa e da maré-cheia dos superlativos, mas era-me impossível fazê-la doutra maneira, porventura formal e distante.
Era o grande amigo de nós todos, seus amigos.
Obrigada pela vossa atenção.
Teresa Maria Martins de Carvalho
Lisboa, Julho de 2004