Afonso Botelho, Legitimista
Gonçalo Sampaio e Mello
Afonso Botelho, Legitimista, eis o título que quis dar a estas breves linhas de evocação de um Filósofo dentro dos limites temporais e substanciais que me foram assinalados pela organização do presente Colóquio.
Afonso Botelho, Legitimista…
Conheci Afonso Botelho no início da década de 80. Regressado há pouco do meu exílio no Brasil, encontrámo-nos pela primeira vez numa tertúlia da Rua Alexandre Herculano onde o seu grupo de amigos se costumava reunir para plantar ideias e debater projectos de vida. Sem consciência do fosso cultural que nos separava, recordo que me aproximei dele com a espontaneidade que só a juventude consente. O nosso mediador foi António Quadros, cuja obra A Arte de Continuar Português, redigida nos escombros da Revolução, eu acabara de percorrer e trazia comigo. Afonso Botelho era, de visu, um aristocrata. O seu aprumo discreto e a sua dignidade sóbria mas tangível confirmavam plenamente a qualidade da sua origem, fazendo-o representante imediato de séculos de tradição e de cultura.' Não marcava distâncias, impunha-se. Contudo, afável e acolhedor, entendeu franquear-me logo ali, ao primeiro contacto, um acesso fácil e directo, circunstância que me permitiu deixar conversa para mais tarde e até, não muito tempo depois, convidá-lo a proferir uma palestra a respeito da Monarquia. "Aborde o tema como quiser, dispõe de plena liberdade intelectual" - observei, insinuando algo que para ele era uma redundância. Detentor de vasta cultura filosófica, política, literária e artística, Afonso Botelho veio a proferir, com efeito, não uma mas duas conferências sobre o assunto, que sugestivamente intitulou de Monarquia - Poder Assumido e de Monarquia - Poder Conjugado? O que nelas ficou patente foi a marca do pensador profundo e original que era seu timbre. Para mim, no entanto, que nunca antes o tinha ouvido, tais conferências representaram algo mais, traduzindo-se numa espécie de iniciação ou revelação intelectual na qual o Filósofo excedeu o já muito elevado conceito que a respeito da sua personalidade eu havia formado. E foi isso, afinal, que acabou por nos afastar. Explico o paradoxo. Ao dar-me conta, quase abruptamente, da elevação daquele espírito, da raridade daquele talento, comecei a sentir perder a naturalidade espontânea dos primeiros tempos. Tolhido por não conseguir penetrar na substância do seu universo especulativo, em algumas zonas para mim indecifrável, incapaz de firmar pontes de transição entre os seus cais de amarra e os meus, dei comigo, como que por impulso psicológico, a procurar evitar o homem, malgré lui même, furtando-me a um convívio até então franco e feraz. Mais ainda: à medida que ia conhecendo melhor a sua obra escrita - restos mortais que ia espalhando, aqui e além, qual mendigo às avessas, da sua densa, complexa e ilíquida vida interior -, mais me afastava do intelectual que a tinha escrito, do autor daqueles restos. Assim, os Anos 90 representaram entre nós um interregno de distância que os 80 não haviam conhecido. Afonso Botelho era um criador, eu um mero receptor; ele reflectia e doutrinava, eu absorvia e captava. Contudo, raramente nos encontrávamos para debater o objecto da reflexão. Digamos que, sem que isso toldasse a amizade profunda que sempre lhe votei, o nosso convívio humano foi rareando progressivamente, até redundar quase ocasional. Ocasional reputo mesmo aquele jantar com que nos brindou, a mim e a alguns amigos mais próximos - Gama Caeiro, Braz Teixeira, Esteves Pereira - numa data de 6 de Janeiro para celebrar os Reis, jantar soberbo esse, digno de fazer inveja a Fradique Mendes ou a Carlos da Maia. Eis pois o paradoxo que em mim se verificou: o de percorrer um caminho ao viés, da frente para trás, do fim para o início, de costas voltadas para o horizonte. Quero penitenciar-me hoje por havê-lo feito. Lamento agora profundamente a ausência de Afonso Botelho, cujo motivo não sei se ele terá captado, perspicaz como era, mas sei que nunca sancionou. É que agora sinto saudades da sua presença. Sinto saudades do Filósofo da Saudade. Foinecessário que o beijo da morte, inexorável, o tivesse tocado, para que me perfilasse de novo próximo da sua figura, tão austera, tão nobre, abolindo distâncias que espiritualmente nunca tiveram razão de ser. Escreveu algures Leonardo Coimbra que a verdadeira presença depen- de da ausência e da separação dos seres, acrescentado que "Deus separa para melhor unir". Assim creio que se verificou com Afonso Botelho, que trans- creve Leonardo no texto Mestre da Imagem.' Assim haverá de ocorrer comigo também. Seja como for, uma coisa é certa: não quero voltar a perder a companhia de Afonso Botelho. Distantes, teremos doravante de ficar próximos.
Ausentes, teremos de ficar presentes.
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Afonso Botelho, Legitimista - eis o tema. Que traços marcaram o legitimismo de Afonso Botelho e de que modo os esculpiu ele nas peças da sua doutrina, intelectual que foi, mais preocupado em intervir no domínio da reflexão e do conhecimento problemático do que no campo da acção política concreta? Afonso Botelho foi, conforme sabido é, monárquico. Não foi monarquista, recordou-o certa vez a Álvaro Ribeiro, em carta hoje quase esquecida: pois enquanto a qualidade de monárquico corresponde a uma manifestação de ser, a de monarquista traduz um estado de opinião partidária, e na Monarquia não há, não devem existir, partidos nem partidários. Foi monárquico, consequentemente.
Qual era porém, dentro da Monarquia, a visão global que perfilhava?
Recorto seis aspectos relevantes do seu pensamento filosófico-político em tal matéria:
1.° Concepção divina do Poder: - No regime monárquico, a origem do poder é sempre divina - afirma. Deus, por ser o autor, ordenador e conservador de todas as coisas, é também a fonte criadora do poder. Deste modo, todo o poder, quando legítimo, remonta a Deus e a Monarquia encontra o seu verdadeiro fundamento nesta perspectiva teocêntrica, não podendo o governante, como criatura, afastar-se do Criador, nem a autoridade que exerce desviar-se do espírito sagrado.
2.° Concepção unitária do Poder: - Sendo o poder fruto da criação divina, ele é uno, pois Deus, Ser supremo, sumo Espírito, também o é. Entranha o poder uma unidade originária que a Monarquia preserva, devendo o monarca, seu titular, procurar reconstituir o uno na cidade dos homens, ou seja, agir por forma a que o múltiplo se ordene ao Uno.
3º Visão da universalidade da Monarquia: - Antes de ser um regime, a Monarquia é um princípio. Sendo um princípio, a defesa deste deverá ser universal e o triunfo do regime uma solução universal também. Não quer isto dizer que se não possa colocar o problema da restauração monárquica em termos individualizados de tempo, lugar e circunstância, pois só no individual se encontra o universal. Todavia, importa formular a questão à luz de um critério filosófico, pois só assim terá a Monarquia Universal fundamentos válidos para o pleito que se trava no nosso tempo e no nosso espaço.
4º Visão da naturalidade da Monarquia: - Não sendo um regime sujeito à natureza nem às realidades do mundo sensível, porque regido por princípios que estão para além de ambas e se prendem com a própria criação do mundo, a Monarquia acompanha a natureza no seu movimento essencial. Assim, tudo o que naturalmente tem de mudar - seja através dos princípios da geração e da corrupção, seja através da evolução do conhecimento -, ela aceita e estimula. Aderindo ao tempo e à realidade, a Monarquia não se revela ucrónica nem utópica. Ela "integra a política na natureza", acompanhando o seu movimento.
5º Visão da actualidade da Monarquia: - Assente na tradição, que é transmissão e continuidade vital, "fresca energia dos séculos", a Monarquia permite que a vitalidade das origens em cada instante reacenda o tempo inteiro, não se revelando imobilista nem progressista? Ao conferir relevo ao passado como fonte de vida, como "ancestralidade viva", e ao projectá-lo no futuro através do fluxo do presente, ela liberta o monarca, seu titular, da dura escravidão do tempo. Desta feita, ao invés do pretendente político, que ansiosamente espera que as circunstâncias exteriores coincidam com os seus interesses pessoais, o rei nunca é pretendente. Sempre actual, contemporâneo, não está atrasado nem antecipado relativamente à posição que ocupa ou às funções que desempenha.
6.° Concepção instrumental do Poder: - Detentor de auctoritas que não é inominada mas verdadeiramente assumida e personalizada, o rei não existe para si próprio, existe para servir a Deus e à comunidade sobre que rege. São atribuições do monarca, fundamentalmente, defender a pátria, aplicar justiça e nobilitar." Mergulhando no drama temporal da vida, cumpre-lhe socorrer os que precisam de socorro, fazer justiça aos que precisam de justiça e premiar os que merecem prémio. Neste último aspecto - o da nobilitação - revela a Monarquia verdadeiramente a sua criatividade ou finalidade atributiva, que bem poderá rotular-se de optimista, pois, no momento em que nobilita, o monarca conquista seres novos para a vida social, concebendo o poder como criação e não como disputa. A par disso, a autoridade do rei ordena as coisas para o seu fim natural, que é, no caso da sociedade política, o bem comum; e ao assim proceder ele torna-secredor de lealdade. A regra é pois a lealdade, quer ao rei, quer ao reino.' Em traço breve e sem dúvida tosco, eis alguns dos aspectos em que repousa o monarquismo de Afonso Botelho, tal como ele os deixou plasmados nas duas aludidas conferências e em diversos outros títulos de mérito, a exemplo de Integrar e Renascer, Integralismo Português, Pequito Rebelo e a Nova Geração, Lealdade ao Rei, Do Poder à Autoridade, Da Autoridade à Pátria, A Educação do Príncipe, Da Restauração.
Monárquico de uma só peça, Afonso Botelho perfilou-se sempre como integralista; e, sendo integralista de formação, foi também, como não poderia deixar de ser, defensor da Legitimidade política.
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Ao aderir à Monarquia, como princípio e como regime, por via da inteligência, da vontade e da sensibilidade, Afonso Botelho não se furtou a refutar problematicamente as duas forças políticas que a mesma mais patentemente se opõem, e que são a Democracia e a República. Pelo que toca à Democracia, na forma ou modalidade que actualmente reveste, oriunda, quer da Revolução Francesa, quer acaso já da Reforma de Clístenes, Afonso Botelho refuta-a com base em sólidos argumentos, os quais importa assinalar aqui. Ei-los, um após outro: - porque a Democracia desvincula o poder da sua fonte divina originária rebaixando-o ao nível do homem, que agora incessantemente o gera e exerce, tal como a serpente morde a própria cauda; - porque a Democracia parte do pressuposto da existência do vazio político, sem o qual dificilmente se compreenderia a atomização da unidade do povo na pluralidade dos eleitores; - porque a Democracia repousa na tirania do número e na força política da multidão, poeira efémera de indivíduos; - porque ele é vítima da tensão latente entre a liberdade e a igualdade, aspirações contraditórias entre si, geradoras de difícil aporia;8 - porque a Democracia quebra a unidade do poder, desintegrando-o e pulverizando-o, para depois o deixar acéfalo e inominado; - porque a Democracia concebe o poder como cisão, de que a trilogia opinião-oposição-opção constitui tese, antítese e síntese de uma dialéctica de violência; - porque ela segrega assembleias legislativas profanas, cujos membros, isolados das fontes da espiritualidade natural e religiosa e afastados do povo que dizem servir, soberanamente decidem a respeito da existência dos seus concidadãos; - enfim porque a Democracia degradou o poder, tornando-o abstracto e desumano e, exacerbando a crítica opinativa, que é crise, está a crucificar Portugal. Já pelo que se refere à República, assume o nosso Autor relativamente a esta forma de governo uma posição algo distinta e algo menos acutilante. Refuta-a, no domínio do pensamento, porque a República, na sua acepção, não reúne os requisitos de um verdadeiro regime, sendo antes um mero movimento de oposição nascido "da indignação estimulada e da vingança urdida" porque a República, responsável que foi em Portugal pela morte do último monarca reinante (D. Carlos I), nunca conseguiu nem conseguirá libertar-se de tal pecado original; porque só a Monarquia consegue conjugar o princípio masculino e o princípio feminino, ordenando o amor humano à sua origem transcendente; porque sendo a presença régia a única capaz de consubstanciar formalmente a ordem heróica com a ordem política, a República está condenada a enveredar por um princípio de ordem oposto a toda a heroicidade. Chegado aqui, detém-se contudo Afonso Botelho nas suas considerações anti-republicanas. É que, conforme adverte ou não deixa de lembrar, foi precisamente um grupo republicano de escola Renascença Portuguesa -, o movimento que mais consistentes amarras teóricas facultou ao Integralismo Lusitano para a definição do Portugal ausente. Herdeiro, quer do tradicionalismo integralista, quer do saudosismo renascentista, Afonso Botelho sabia que ambas as escolas intelectuais trilhavam a mesma via e confluíam no mesmo propósito capital, pelo que deveriam unir forças num comum projecto renovador. Afirmou-o logo em 1951, no texto da sua notável palestra Integralismo Português, dado à estampa na revista "Cidade Nova" e também em castelhano na colecção "O Crece O Muere". Repetiu-o em 1987, na sua não menos notável comunicação Integrar e Renascer.Actualizador do ideário dos dois movimentos, Afonso Botelho procurou relacioná-los substancialmente, tendo-se sempre batido para que os irmãos desavindos, superando divergências ocasionais, pudessem progredir em conjunto. Clara é a tal respeito a doutrina que publicou.
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Viveu Afonso Botelho longos anos de vida em estado de permanente reflexão. Dotado de grande aptidão especulativa, nunca abraçou o circunstancial político, preferindo aprofundar a Política na Filosofia, cerne e matriz da sua vida mental.
Homem independente, dava aos contemporâneos não o que eles aplaudiam mas o que necessitavam, seguindo a máxima de Schiller, que transcreve no pórtico d'O Poder Real. Homem intransigente, a sua intransigência significava amor pela comunidade política, defesa da sua autonomia, inquietação pelos seus destinos. Costumava dizer que "o que somos e o que fazemos são dois cais distantes", mas conseguiu aproximar esses cais, construindo sistematicamente uma obra que se impõe por si própria." A exemplo do rei D. Duarte, cujo perfil teológico, filosófico e psicológico exaustivamente esquadrinhou, soube praticar "a arte que faz convergir a abstracção para a realidade e torna coerente o pensar com o viver", ou seja, reflectiu e doutrinou, mas não só: também viveu a própria doutrina que construiu." Deixou dito algures que "não ser proprietário da verdade é condição primeira para a atingir". Todavia, em defesa da verdade, tal como a entendeu, e sempre que o julgou necessário, não se coibiu de chamar à liça da sua razão armada figuras como Jacques Maritain, Charles Maurras, António Sérgio, Magalhães Godinho, Celestino da Costa, Pires Cardoso, Oliveira Salazar, Marcello Caetano." Saudosista mas não passadista; Realista mas não pragmatista; Integralista mas não maurrasianista; Monárquico e por isso não republicano nem democrata; Católico e por conseguinte não ateu nem agnóstico; Tradicionalista mas não reaccionário nem conservador; Aristocrata e por isso não burguês nem proletário, - Afonso Botelho foi acima de tudo um crente e um patriota, tendo feito quanto lhe era possível para devolver Portugal ao âmago do seu ser autêntico. O legitimismo do Filósofo da Saudade, objecto último e primeiro destas considerações, resulta do que antecede e afirmou-se em várias cir- cunstâncias e por diferentes vias. Recordo aqui algumas delas: - Ao radicar na origem divina a legitimidade mais profunda do regime monárquico; - Ao refutar a tese da legitimação do poder quoad dominium, pelo seu mero uso ou exercício, com lastro na doutrina de Dante; - Ao perfilhar uma concepção política de legitimidade de índole tradicional, contrapondo-se às visões de tipo carismático e legal-racional; - Ao dirigir o movimento Cidade Nova e o Instituto António Sardinha, epígonos do ideário integralista;" - Ao subscrever a necessidade de aclamar Rei de Portugal o actual Duque de Bragança, D. Duarte Pio, considerando que ao monarca é devi- da lealdade mesmo fora do trono e não temendo que a sua atitude pudesse ser rotulada de ideológica; - Ao propugnar um modelo de sociedade política vertical, assente na tradição, no mérito e no serviço; - Enfim, ao defender a urgência de romper com a legalidade vigorante, em nome de uma legitimidade a ela transcendente. Importa chamar a atenção dos presentes para este último aspecto, pois nele está contido e se capitula, segundo julgo, o protesto derradeiro da consciência de um Homem que durante toda a sua vida foi um prudente,
no sentido em que os moralistas empregam o vocábulo, e um lúdico, no sentido em que os filósofos o fazem, ou seja, o apelo último de Alguém que foi sempre capaz de amar, de contemplar, de reflectir e de sonhar. Dirigindo-se a Guimarães, berço da nacionalidade, em Outubro de 1995, a convite do Presidente da Liga Popular Monárquica, ali proclamou Afonso Botelho que havia chegado a hora de fazer a revolução da Legitimidade. A Pátria está cativa - consignou; após se ter aviltado e pervertido, o poder democrático caminha para o vazio, para a quase total inexistência; impedi- da de se representar no poder aprisionado pelo sistema, a sociedade civil tem-no substituído à margem da lei; num ambiente rarefeito de espiritualidade, a Igreja Católica não consegue encontrar a pastoral adequada aos dias que correm. Ora, perante este estado de coisas, que qualifica de «situação terminal», só resta aos monárquicos a alternativa de repor o im- pério da Legitimidade. "Como monárquicos, não dispomos outra vez de clima social e político para protelar ou secundarizar a restauração da Mo- narquia. Perante o que afirmamos ser, redescobrir e restaurar o poder genuí- no é finalidade que não pode tranquilizar-se na normalidade democrática, nem ceder aos seus apelos emolientes. Em relação à sua força de captura, tal como prisioneiro de guerra, o monárquico tem por dever prioritário recu- perar a liberdade, que, para o seu código de honra, antes de ser de si
próprio, o é dos destinos da Pátria" - afirmou." Creio que nestas palavras de Afonso Botelho se espelha bem o motivo que levou o poeta Afonso Lopes Vieira a crismar os doutrinadores integralistas de "revolucionários da Tradição", utilizando o termo revolução no seu sentido etimológico, que é o do movimento do ser que revolve às origens.
Revolucionário da Tradição: haverá melhor epitáfio para a lápide de Afonso Botelho?
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Personagem central da sua obra, a Morte, para a qual tantas vezes Afonso Botelho tinha olhado frente a frente, veio buscá-lo num dia de Outono do ano de 1996. Mercê de desígnio indecifrável mas por certo providencial, coube-me a mim o privilégio e também o encargo de facultar à família do Fidalgo o símbolo que lhe cobriu o corpo quando foi a sepultar e que era o único que naquela hora augusta o poderia dignamente revestir: a bandeira branca da Legitimidade, tendo ao centro as cinco chagas de Cristo e na cúpula a coroa fechada do Rei. Aristocrata perdido numa sociedade igualitária, invertebrada, horizontal, anómica, Afonso Botelho sofreu duramente de tal condição, sentindo na carne e no espírito o exílio que a sua própria terra lhe impôs. Ao cabo dos seus dias teve porém uma fortuna rara, que poucos têm: a de morrer como sempre tinha vivido: - Legitimista.
Gonçalo Sampaio e Mello, "Afonso Botelho, Legitimista" in O Pensamento e a Obra de Afonso Botelho, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 239-248. "
Afonso Botelho, Legitimista…
Conheci Afonso Botelho no início da década de 80. Regressado há pouco do meu exílio no Brasil, encontrámo-nos pela primeira vez numa tertúlia da Rua Alexandre Herculano onde o seu grupo de amigos se costumava reunir para plantar ideias e debater projectos de vida. Sem consciência do fosso cultural que nos separava, recordo que me aproximei dele com a espontaneidade que só a juventude consente. O nosso mediador foi António Quadros, cuja obra A Arte de Continuar Português, redigida nos escombros da Revolução, eu acabara de percorrer e trazia comigo. Afonso Botelho era, de visu, um aristocrata. O seu aprumo discreto e a sua dignidade sóbria mas tangível confirmavam plenamente a qualidade da sua origem, fazendo-o representante imediato de séculos de tradição e de cultura.' Não marcava distâncias, impunha-se. Contudo, afável e acolhedor, entendeu franquear-me logo ali, ao primeiro contacto, um acesso fácil e directo, circunstância que me permitiu deixar conversa para mais tarde e até, não muito tempo depois, convidá-lo a proferir uma palestra a respeito da Monarquia. "Aborde o tema como quiser, dispõe de plena liberdade intelectual" - observei, insinuando algo que para ele era uma redundância. Detentor de vasta cultura filosófica, política, literária e artística, Afonso Botelho veio a proferir, com efeito, não uma mas duas conferências sobre o assunto, que sugestivamente intitulou de Monarquia - Poder Assumido e de Monarquia - Poder Conjugado? O que nelas ficou patente foi a marca do pensador profundo e original que era seu timbre. Para mim, no entanto, que nunca antes o tinha ouvido, tais conferências representaram algo mais, traduzindo-se numa espécie de iniciação ou revelação intelectual na qual o Filósofo excedeu o já muito elevado conceito que a respeito da sua personalidade eu havia formado. E foi isso, afinal, que acabou por nos afastar. Explico o paradoxo. Ao dar-me conta, quase abruptamente, da elevação daquele espírito, da raridade daquele talento, comecei a sentir perder a naturalidade espontânea dos primeiros tempos. Tolhido por não conseguir penetrar na substância do seu universo especulativo, em algumas zonas para mim indecifrável, incapaz de firmar pontes de transição entre os seus cais de amarra e os meus, dei comigo, como que por impulso psicológico, a procurar evitar o homem, malgré lui même, furtando-me a um convívio até então franco e feraz. Mais ainda: à medida que ia conhecendo melhor a sua obra escrita - restos mortais que ia espalhando, aqui e além, qual mendigo às avessas, da sua densa, complexa e ilíquida vida interior -, mais me afastava do intelectual que a tinha escrito, do autor daqueles restos. Assim, os Anos 90 representaram entre nós um interregno de distância que os 80 não haviam conhecido. Afonso Botelho era um criador, eu um mero receptor; ele reflectia e doutrinava, eu absorvia e captava. Contudo, raramente nos encontrávamos para debater o objecto da reflexão. Digamos que, sem que isso toldasse a amizade profunda que sempre lhe votei, o nosso convívio humano foi rareando progressivamente, até redundar quase ocasional. Ocasional reputo mesmo aquele jantar com que nos brindou, a mim e a alguns amigos mais próximos - Gama Caeiro, Braz Teixeira, Esteves Pereira - numa data de 6 de Janeiro para celebrar os Reis, jantar soberbo esse, digno de fazer inveja a Fradique Mendes ou a Carlos da Maia. Eis pois o paradoxo que em mim se verificou: o de percorrer um caminho ao viés, da frente para trás, do fim para o início, de costas voltadas para o horizonte. Quero penitenciar-me hoje por havê-lo feito. Lamento agora profundamente a ausência de Afonso Botelho, cujo motivo não sei se ele terá captado, perspicaz como era, mas sei que nunca sancionou. É que agora sinto saudades da sua presença. Sinto saudades do Filósofo da Saudade. Foinecessário que o beijo da morte, inexorável, o tivesse tocado, para que me perfilasse de novo próximo da sua figura, tão austera, tão nobre, abolindo distâncias que espiritualmente nunca tiveram razão de ser. Escreveu algures Leonardo Coimbra que a verdadeira presença depen- de da ausência e da separação dos seres, acrescentado que "Deus separa para melhor unir". Assim creio que se verificou com Afonso Botelho, que trans- creve Leonardo no texto Mestre da Imagem.' Assim haverá de ocorrer comigo também. Seja como for, uma coisa é certa: não quero voltar a perder a companhia de Afonso Botelho. Distantes, teremos doravante de ficar próximos.
Ausentes, teremos de ficar presentes.
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Afonso Botelho, Legitimista - eis o tema. Que traços marcaram o legitimismo de Afonso Botelho e de que modo os esculpiu ele nas peças da sua doutrina, intelectual que foi, mais preocupado em intervir no domínio da reflexão e do conhecimento problemático do que no campo da acção política concreta? Afonso Botelho foi, conforme sabido é, monárquico. Não foi monarquista, recordou-o certa vez a Álvaro Ribeiro, em carta hoje quase esquecida: pois enquanto a qualidade de monárquico corresponde a uma manifestação de ser, a de monarquista traduz um estado de opinião partidária, e na Monarquia não há, não devem existir, partidos nem partidários. Foi monárquico, consequentemente.
Qual era porém, dentro da Monarquia, a visão global que perfilhava?
Recorto seis aspectos relevantes do seu pensamento filosófico-político em tal matéria:
1.° Concepção divina do Poder: - No regime monárquico, a origem do poder é sempre divina - afirma. Deus, por ser o autor, ordenador e conservador de todas as coisas, é também a fonte criadora do poder. Deste modo, todo o poder, quando legítimo, remonta a Deus e a Monarquia encontra o seu verdadeiro fundamento nesta perspectiva teocêntrica, não podendo o governante, como criatura, afastar-se do Criador, nem a autoridade que exerce desviar-se do espírito sagrado.
2.° Concepção unitária do Poder: - Sendo o poder fruto da criação divina, ele é uno, pois Deus, Ser supremo, sumo Espírito, também o é. Entranha o poder uma unidade originária que a Monarquia preserva, devendo o monarca, seu titular, procurar reconstituir o uno na cidade dos homens, ou seja, agir por forma a que o múltiplo se ordene ao Uno.
3º Visão da universalidade da Monarquia: - Antes de ser um regime, a Monarquia é um princípio. Sendo um princípio, a defesa deste deverá ser universal e o triunfo do regime uma solução universal também. Não quer isto dizer que se não possa colocar o problema da restauração monárquica em termos individualizados de tempo, lugar e circunstância, pois só no individual se encontra o universal. Todavia, importa formular a questão à luz de um critério filosófico, pois só assim terá a Monarquia Universal fundamentos válidos para o pleito que se trava no nosso tempo e no nosso espaço.
4º Visão da naturalidade da Monarquia: - Não sendo um regime sujeito à natureza nem às realidades do mundo sensível, porque regido por princípios que estão para além de ambas e se prendem com a própria criação do mundo, a Monarquia acompanha a natureza no seu movimento essencial. Assim, tudo o que naturalmente tem de mudar - seja através dos princípios da geração e da corrupção, seja através da evolução do conhecimento -, ela aceita e estimula. Aderindo ao tempo e à realidade, a Monarquia não se revela ucrónica nem utópica. Ela "integra a política na natureza", acompanhando o seu movimento.
5º Visão da actualidade da Monarquia: - Assente na tradição, que é transmissão e continuidade vital, "fresca energia dos séculos", a Monarquia permite que a vitalidade das origens em cada instante reacenda o tempo inteiro, não se revelando imobilista nem progressista? Ao conferir relevo ao passado como fonte de vida, como "ancestralidade viva", e ao projectá-lo no futuro através do fluxo do presente, ela liberta o monarca, seu titular, da dura escravidão do tempo. Desta feita, ao invés do pretendente político, que ansiosamente espera que as circunstâncias exteriores coincidam com os seus interesses pessoais, o rei nunca é pretendente. Sempre actual, contemporâneo, não está atrasado nem antecipado relativamente à posição que ocupa ou às funções que desempenha.
6.° Concepção instrumental do Poder: - Detentor de auctoritas que não é inominada mas verdadeiramente assumida e personalizada, o rei não existe para si próprio, existe para servir a Deus e à comunidade sobre que rege. São atribuições do monarca, fundamentalmente, defender a pátria, aplicar justiça e nobilitar." Mergulhando no drama temporal da vida, cumpre-lhe socorrer os que precisam de socorro, fazer justiça aos que precisam de justiça e premiar os que merecem prémio. Neste último aspecto - o da nobilitação - revela a Monarquia verdadeiramente a sua criatividade ou finalidade atributiva, que bem poderá rotular-se de optimista, pois, no momento em que nobilita, o monarca conquista seres novos para a vida social, concebendo o poder como criação e não como disputa. A par disso, a autoridade do rei ordena as coisas para o seu fim natural, que é, no caso da sociedade política, o bem comum; e ao assim proceder ele torna-secredor de lealdade. A regra é pois a lealdade, quer ao rei, quer ao reino.' Em traço breve e sem dúvida tosco, eis alguns dos aspectos em que repousa o monarquismo de Afonso Botelho, tal como ele os deixou plasmados nas duas aludidas conferências e em diversos outros títulos de mérito, a exemplo de Integrar e Renascer, Integralismo Português, Pequito Rebelo e a Nova Geração, Lealdade ao Rei, Do Poder à Autoridade, Da Autoridade à Pátria, A Educação do Príncipe, Da Restauração.
Monárquico de uma só peça, Afonso Botelho perfilou-se sempre como integralista; e, sendo integralista de formação, foi também, como não poderia deixar de ser, defensor da Legitimidade política.
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Ao aderir à Monarquia, como princípio e como regime, por via da inteligência, da vontade e da sensibilidade, Afonso Botelho não se furtou a refutar problematicamente as duas forças políticas que a mesma mais patentemente se opõem, e que são a Democracia e a República. Pelo que toca à Democracia, na forma ou modalidade que actualmente reveste, oriunda, quer da Revolução Francesa, quer acaso já da Reforma de Clístenes, Afonso Botelho refuta-a com base em sólidos argumentos, os quais importa assinalar aqui. Ei-los, um após outro: - porque a Democracia desvincula o poder da sua fonte divina originária rebaixando-o ao nível do homem, que agora incessantemente o gera e exerce, tal como a serpente morde a própria cauda; - porque a Democracia parte do pressuposto da existência do vazio político, sem o qual dificilmente se compreenderia a atomização da unidade do povo na pluralidade dos eleitores; - porque a Democracia repousa na tirania do número e na força política da multidão, poeira efémera de indivíduos; - porque ele é vítima da tensão latente entre a liberdade e a igualdade, aspirações contraditórias entre si, geradoras de difícil aporia;8 - porque a Democracia quebra a unidade do poder, desintegrando-o e pulverizando-o, para depois o deixar acéfalo e inominado; - porque a Democracia concebe o poder como cisão, de que a trilogia opinião-oposição-opção constitui tese, antítese e síntese de uma dialéctica de violência; - porque ela segrega assembleias legislativas profanas, cujos membros, isolados das fontes da espiritualidade natural e religiosa e afastados do povo que dizem servir, soberanamente decidem a respeito da existência dos seus concidadãos; - enfim porque a Democracia degradou o poder, tornando-o abstracto e desumano e, exacerbando a crítica opinativa, que é crise, está a crucificar Portugal. Já pelo que se refere à República, assume o nosso Autor relativamente a esta forma de governo uma posição algo distinta e algo menos acutilante. Refuta-a, no domínio do pensamento, porque a República, na sua acepção, não reúne os requisitos de um verdadeiro regime, sendo antes um mero movimento de oposição nascido "da indignação estimulada e da vingança urdida" porque a República, responsável que foi em Portugal pela morte do último monarca reinante (D. Carlos I), nunca conseguiu nem conseguirá libertar-se de tal pecado original; porque só a Monarquia consegue conjugar o princípio masculino e o princípio feminino, ordenando o amor humano à sua origem transcendente; porque sendo a presença régia a única capaz de consubstanciar formalmente a ordem heróica com a ordem política, a República está condenada a enveredar por um princípio de ordem oposto a toda a heroicidade. Chegado aqui, detém-se contudo Afonso Botelho nas suas considerações anti-republicanas. É que, conforme adverte ou não deixa de lembrar, foi precisamente um grupo republicano de escola Renascença Portuguesa -, o movimento que mais consistentes amarras teóricas facultou ao Integralismo Lusitano para a definição do Portugal ausente. Herdeiro, quer do tradicionalismo integralista, quer do saudosismo renascentista, Afonso Botelho sabia que ambas as escolas intelectuais trilhavam a mesma via e confluíam no mesmo propósito capital, pelo que deveriam unir forças num comum projecto renovador. Afirmou-o logo em 1951, no texto da sua notável palestra Integralismo Português, dado à estampa na revista "Cidade Nova" e também em castelhano na colecção "O Crece O Muere". Repetiu-o em 1987, na sua não menos notável comunicação Integrar e Renascer.Actualizador do ideário dos dois movimentos, Afonso Botelho procurou relacioná-los substancialmente, tendo-se sempre batido para que os irmãos desavindos, superando divergências ocasionais, pudessem progredir em conjunto. Clara é a tal respeito a doutrina que publicou.
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Viveu Afonso Botelho longos anos de vida em estado de permanente reflexão. Dotado de grande aptidão especulativa, nunca abraçou o circunstancial político, preferindo aprofundar a Política na Filosofia, cerne e matriz da sua vida mental.
Homem independente, dava aos contemporâneos não o que eles aplaudiam mas o que necessitavam, seguindo a máxima de Schiller, que transcreve no pórtico d'O Poder Real. Homem intransigente, a sua intransigência significava amor pela comunidade política, defesa da sua autonomia, inquietação pelos seus destinos. Costumava dizer que "o que somos e o que fazemos são dois cais distantes", mas conseguiu aproximar esses cais, construindo sistematicamente uma obra que se impõe por si própria." A exemplo do rei D. Duarte, cujo perfil teológico, filosófico e psicológico exaustivamente esquadrinhou, soube praticar "a arte que faz convergir a abstracção para a realidade e torna coerente o pensar com o viver", ou seja, reflectiu e doutrinou, mas não só: também viveu a própria doutrina que construiu." Deixou dito algures que "não ser proprietário da verdade é condição primeira para a atingir". Todavia, em defesa da verdade, tal como a entendeu, e sempre que o julgou necessário, não se coibiu de chamar à liça da sua razão armada figuras como Jacques Maritain, Charles Maurras, António Sérgio, Magalhães Godinho, Celestino da Costa, Pires Cardoso, Oliveira Salazar, Marcello Caetano." Saudosista mas não passadista; Realista mas não pragmatista; Integralista mas não maurrasianista; Monárquico e por isso não republicano nem democrata; Católico e por conseguinte não ateu nem agnóstico; Tradicionalista mas não reaccionário nem conservador; Aristocrata e por isso não burguês nem proletário, - Afonso Botelho foi acima de tudo um crente e um patriota, tendo feito quanto lhe era possível para devolver Portugal ao âmago do seu ser autêntico. O legitimismo do Filósofo da Saudade, objecto último e primeiro destas considerações, resulta do que antecede e afirmou-se em várias cir- cunstâncias e por diferentes vias. Recordo aqui algumas delas: - Ao radicar na origem divina a legitimidade mais profunda do regime monárquico; - Ao refutar a tese da legitimação do poder quoad dominium, pelo seu mero uso ou exercício, com lastro na doutrina de Dante; - Ao perfilhar uma concepção política de legitimidade de índole tradicional, contrapondo-se às visões de tipo carismático e legal-racional; - Ao dirigir o movimento Cidade Nova e o Instituto António Sardinha, epígonos do ideário integralista;" - Ao subscrever a necessidade de aclamar Rei de Portugal o actual Duque de Bragança, D. Duarte Pio, considerando que ao monarca é devi- da lealdade mesmo fora do trono e não temendo que a sua atitude pudesse ser rotulada de ideológica; - Ao propugnar um modelo de sociedade política vertical, assente na tradição, no mérito e no serviço; - Enfim, ao defender a urgência de romper com a legalidade vigorante, em nome de uma legitimidade a ela transcendente. Importa chamar a atenção dos presentes para este último aspecto, pois nele está contido e se capitula, segundo julgo, o protesto derradeiro da consciência de um Homem que durante toda a sua vida foi um prudente,
no sentido em que os moralistas empregam o vocábulo, e um lúdico, no sentido em que os filósofos o fazem, ou seja, o apelo último de Alguém que foi sempre capaz de amar, de contemplar, de reflectir e de sonhar. Dirigindo-se a Guimarães, berço da nacionalidade, em Outubro de 1995, a convite do Presidente da Liga Popular Monárquica, ali proclamou Afonso Botelho que havia chegado a hora de fazer a revolução da Legitimidade. A Pátria está cativa - consignou; após se ter aviltado e pervertido, o poder democrático caminha para o vazio, para a quase total inexistência; impedi- da de se representar no poder aprisionado pelo sistema, a sociedade civil tem-no substituído à margem da lei; num ambiente rarefeito de espiritualidade, a Igreja Católica não consegue encontrar a pastoral adequada aos dias que correm. Ora, perante este estado de coisas, que qualifica de «situação terminal», só resta aos monárquicos a alternativa de repor o im- pério da Legitimidade. "Como monárquicos, não dispomos outra vez de clima social e político para protelar ou secundarizar a restauração da Mo- narquia. Perante o que afirmamos ser, redescobrir e restaurar o poder genuí- no é finalidade que não pode tranquilizar-se na normalidade democrática, nem ceder aos seus apelos emolientes. Em relação à sua força de captura, tal como prisioneiro de guerra, o monárquico tem por dever prioritário recu- perar a liberdade, que, para o seu código de honra, antes de ser de si
próprio, o é dos destinos da Pátria" - afirmou." Creio que nestas palavras de Afonso Botelho se espelha bem o motivo que levou o poeta Afonso Lopes Vieira a crismar os doutrinadores integralistas de "revolucionários da Tradição", utilizando o termo revolução no seu sentido etimológico, que é o do movimento do ser que revolve às origens.
Revolucionário da Tradição: haverá melhor epitáfio para a lápide de Afonso Botelho?
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Personagem central da sua obra, a Morte, para a qual tantas vezes Afonso Botelho tinha olhado frente a frente, veio buscá-lo num dia de Outono do ano de 1996. Mercê de desígnio indecifrável mas por certo providencial, coube-me a mim o privilégio e também o encargo de facultar à família do Fidalgo o símbolo que lhe cobriu o corpo quando foi a sepultar e que era o único que naquela hora augusta o poderia dignamente revestir: a bandeira branca da Legitimidade, tendo ao centro as cinco chagas de Cristo e na cúpula a coroa fechada do Rei. Aristocrata perdido numa sociedade igualitária, invertebrada, horizontal, anómica, Afonso Botelho sofreu duramente de tal condição, sentindo na carne e no espírito o exílio que a sua própria terra lhe impôs. Ao cabo dos seus dias teve porém uma fortuna rara, que poucos têm: a de morrer como sempre tinha vivido: - Legitimista.
Gonçalo Sampaio e Mello, "Afonso Botelho, Legitimista" in O Pensamento e a Obra de Afonso Botelho, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 239-248. "