"ANTÓNIO SARDINHA (1887-1925) - UM INTELECTUAL NO SÉCULO", de Ana Desvignes
"António de Monforte"
Jorge de Azevedo Correia
Raras vezes nos últimos anos o pensamento do Integralismo Lusitano tem sido alvo de análises isentas e descomplexadas. A sequência de livros que têm vindo à estampa em tempos mais recentes tem vindo a cumprir uma função apologética ou acusatória das figuras do Integralismo Lusitano e do seu pensamento, tentando sempre vincular ou ilibar os pensadores e seguidores do movimento de adesões a ideias e posturas políticas que o nosso tempo execrou.
De quando em vez surgem outro tipo de livros, com maior valia académica, que se preocupam mais com o objecto de estudo, do que com o que nós pensamos deles, como que demonstrando que os julgamentos da História não são mais que uma instrumentalização do passado para propósitos presentes.
O livro de Ana Isabel Sardinha Desvignes pertence a um restrito conjunto de publicações mais preocupadas em compreender do que em fazer compreender. Só isso constitui uma boa notícia, mas não é esse o único mérito da obra e da autora.
A obra apresentada é excelente a bastantes títulos. Para além de realizar um acompanhamento biográfico da sua vida e de estabelecer as necessárias ligações da faceta intelectual com a vida privada, a autora deixa o autor falar por si. Ao invés de estabelecer prolongadas apreciações sobre o pensamento do pensador português, a autora apresenta as influências do pensamento de Sardinha com simplicidade e sem extrapolações de maior, mas com uma fundamentada análise intelectual. Em termos de biografias intelectuais dificilmente se poderá almejar outro objectivo que não essa sobriedade que a obra atingiu.
A obra, com a sua extensa documentação (muita dela inédita), consegue desferir alguns golpes nos lugares-comuns que atingiram a memória de Sardinha por detractores e ingénuos de todas as variantes. O mito do Republicanismo de Sardinha como mero oportunismo interesseiro, a sua pretensa rendição aos interesses espanhóis aquando da publicação da “Aliança Peninsular”, a ideia de um Catolicismo de fachada que esconderia uma posição semelhante ao utilitarismo religioso e estético de Maurras e Barrés (tal posição terá de facto existido no espírito de Sardinha, mas não na sua fase madura e mais marcadamente católica), são mitos tornados insustentáveis por esta excelente biografia, assim como a ideia do homem de Monforte como cata-vento de emoções e ideias perde toda a sua força. As preocupações de Sardinha mantêm-se inalteradas durante toda a sua vida. Regenerar Portugal, através da criação de mitos ou da aceitação da Tradição como farol da ordem política, foi apenas uma alteração da acção no cumprimento de um grande e único amor.
Esta compreensão do papel da Tradição na obra de Sardinha é, porém, um aspecto problemático na estrutura da livro e que parece não ter recebido da autora o valor devido. Se é certo que a biografia pretende ser uma análise do pensamento de Sardinha através da sua vida e não uma extensa análise do Integralismo Lusitano, não é menos verdade que o enquadramento geral da filosofia de Sardinha é, ainda que bastante bem fundamentado, quase desfocado. Para o quadro analítico foi aproveitada a concepção de “Anti-Iluminismo” de Zeev Sternhell que pretende identificar as correntes de Direita e do pensamento conservador (Burke, de Maistre, o Romantismo Alemão) com uma “revolta contra a razão” que irá desembocar em sistemas políticos totalitários. Infelizmente esta concepção apresenta-se como bastante insuficiente na compreensão dos fenómenos políticos e a análise do Integralismo como filosofia política escapa a esta lógica. Se Ana Isabel Desvignes analisa muito bem o Primeiro Nacionalismo de Sardinha e toda a sua carga telúrica e racial-determinista, não demonstra de que forma o Universalismo Cristão e o papel da Verdade por ela proposta, influencia o Segundo Nacionalismo de Sardinha. Este é um problema na compreensão do Nacionalismo de Sardinha, porque impossibilita a compreensão dos pontos em que Sardinha transcendeu o legado do republicanismo positivista e racial-determinista para se afirmar como pensador cristão. É por demais evidente que o jusnaturalismo cristão escapa à concepção de “anti-modernidade” de Sternhell, uma vez que não postula a defesa do positivismo, do determinismo-histórico, do relativismo, que eram defendidos pela perspectiva idealista alemã (de Herder, de Hegel, de Fichte e prosseguida por Müller e Thomas Carlyle) e que corresponde a esse fechamento da racionalidade que Sternhell pretende retratar. Observar Burke e o “Sardinha pós-conversão”, como um mesmo fenómeno que os positivistas e relativistas amantes da autoridade, é um erro que faz sentir a falta de uma “lente” de maior aproximação.
A ideia de que toda a “anti-modernidade” é oposta à racionalidade é, não apenas uma incapacidade de observar o carácter filosófico de Sócrates, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, como uma teoria do “complot” tão grave como as denunciadas por Sardinha.
Este problema da análise politológica da obra não ofusca o interesse da obra, uma vez que a sua principal virtude não se encontra nesses domínios, mas na jornada sentimental e intelectual que vemos desenhar-se através da correspondência com Ana Júlia, sua mulher, bem como no ambiente político, intelectual e universitário da “época” que vemos descrito nos vários episódios da vida de Sardinha.
(Jorge de Azevedo Correia, "António de Monforte, recensão ao livro «António Sardinha . Um Intelectual no Século» de Ana Desvignes (Editora: ICS
Ano de Edição: 2007), in Alameda Digital.
Jorge de Azevedo Correia
Raras vezes nos últimos anos o pensamento do Integralismo Lusitano tem sido alvo de análises isentas e descomplexadas. A sequência de livros que têm vindo à estampa em tempos mais recentes tem vindo a cumprir uma função apologética ou acusatória das figuras do Integralismo Lusitano e do seu pensamento, tentando sempre vincular ou ilibar os pensadores e seguidores do movimento de adesões a ideias e posturas políticas que o nosso tempo execrou.
De quando em vez surgem outro tipo de livros, com maior valia académica, que se preocupam mais com o objecto de estudo, do que com o que nós pensamos deles, como que demonstrando que os julgamentos da História não são mais que uma instrumentalização do passado para propósitos presentes.
O livro de Ana Isabel Sardinha Desvignes pertence a um restrito conjunto de publicações mais preocupadas em compreender do que em fazer compreender. Só isso constitui uma boa notícia, mas não é esse o único mérito da obra e da autora.
A obra apresentada é excelente a bastantes títulos. Para além de realizar um acompanhamento biográfico da sua vida e de estabelecer as necessárias ligações da faceta intelectual com a vida privada, a autora deixa o autor falar por si. Ao invés de estabelecer prolongadas apreciações sobre o pensamento do pensador português, a autora apresenta as influências do pensamento de Sardinha com simplicidade e sem extrapolações de maior, mas com uma fundamentada análise intelectual. Em termos de biografias intelectuais dificilmente se poderá almejar outro objectivo que não essa sobriedade que a obra atingiu.
A obra, com a sua extensa documentação (muita dela inédita), consegue desferir alguns golpes nos lugares-comuns que atingiram a memória de Sardinha por detractores e ingénuos de todas as variantes. O mito do Republicanismo de Sardinha como mero oportunismo interesseiro, a sua pretensa rendição aos interesses espanhóis aquando da publicação da “Aliança Peninsular”, a ideia de um Catolicismo de fachada que esconderia uma posição semelhante ao utilitarismo religioso e estético de Maurras e Barrés (tal posição terá de facto existido no espírito de Sardinha, mas não na sua fase madura e mais marcadamente católica), são mitos tornados insustentáveis por esta excelente biografia, assim como a ideia do homem de Monforte como cata-vento de emoções e ideias perde toda a sua força. As preocupações de Sardinha mantêm-se inalteradas durante toda a sua vida. Regenerar Portugal, através da criação de mitos ou da aceitação da Tradição como farol da ordem política, foi apenas uma alteração da acção no cumprimento de um grande e único amor.
Esta compreensão do papel da Tradição na obra de Sardinha é, porém, um aspecto problemático na estrutura da livro e que parece não ter recebido da autora o valor devido. Se é certo que a biografia pretende ser uma análise do pensamento de Sardinha através da sua vida e não uma extensa análise do Integralismo Lusitano, não é menos verdade que o enquadramento geral da filosofia de Sardinha é, ainda que bastante bem fundamentado, quase desfocado. Para o quadro analítico foi aproveitada a concepção de “Anti-Iluminismo” de Zeev Sternhell que pretende identificar as correntes de Direita e do pensamento conservador (Burke, de Maistre, o Romantismo Alemão) com uma “revolta contra a razão” que irá desembocar em sistemas políticos totalitários. Infelizmente esta concepção apresenta-se como bastante insuficiente na compreensão dos fenómenos políticos e a análise do Integralismo como filosofia política escapa a esta lógica. Se Ana Isabel Desvignes analisa muito bem o Primeiro Nacionalismo de Sardinha e toda a sua carga telúrica e racial-determinista, não demonstra de que forma o Universalismo Cristão e o papel da Verdade por ela proposta, influencia o Segundo Nacionalismo de Sardinha. Este é um problema na compreensão do Nacionalismo de Sardinha, porque impossibilita a compreensão dos pontos em que Sardinha transcendeu o legado do republicanismo positivista e racial-determinista para se afirmar como pensador cristão. É por demais evidente que o jusnaturalismo cristão escapa à concepção de “anti-modernidade” de Sternhell, uma vez que não postula a defesa do positivismo, do determinismo-histórico, do relativismo, que eram defendidos pela perspectiva idealista alemã (de Herder, de Hegel, de Fichte e prosseguida por Müller e Thomas Carlyle) e que corresponde a esse fechamento da racionalidade que Sternhell pretende retratar. Observar Burke e o “Sardinha pós-conversão”, como um mesmo fenómeno que os positivistas e relativistas amantes da autoridade, é um erro que faz sentir a falta de uma “lente” de maior aproximação.
A ideia de que toda a “anti-modernidade” é oposta à racionalidade é, não apenas uma incapacidade de observar o carácter filosófico de Sócrates, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, como uma teoria do “complot” tão grave como as denunciadas por Sardinha.
Este problema da análise politológica da obra não ofusca o interesse da obra, uma vez que a sua principal virtude não se encontra nesses domínios, mas na jornada sentimental e intelectual que vemos desenhar-se através da correspondência com Ana Júlia, sua mulher, bem como no ambiente político, intelectual e universitário da “época” que vemos descrito nos vários episódios da vida de Sardinha.
(Jorge de Azevedo Correia, "António de Monforte, recensão ao livro «António Sardinha . Um Intelectual no Século» de Ana Desvignes (Editora: ICS
Ano de Edição: 2007), in Alameda Digital.