Integrar e renascer*
Afonso Botelho
[ - 219 - ] Não me foi fácil estar hoje aqui convosco. Que é demasiado desgostante praticar a conhecida arte da política com as condições que actualmente lhe são impostas, quem quer o pode avaliar. Recordar a prática política já sofrida, mais penoso se torna, mesmo que essa prática seja de índole teórica.
A minha confissão, excessivamente rude para a amabilidade do vosso convite, optou pela atitude sincera que define afinal as confissões. E não o faço apenas para alívio de dores passadas e presentes, excluindo ou esquecendo a matéria deste encontro, porque me parece boa introdução ponderar o que espontaneamente a sensibilidade e a memória de imediato me oferecem.
[ - 220 -] Quando um dos meus Mestres filósofos dizia que Portugal era um país muito difícil, confinávamos esta confissão, segundo o nosso jovem entendimento, às dificuldades que a razão universal tinha em tentar interpretar a singularidade do nosso Povo, enquanto agente e pensante. Convictos, e com razão, da excelência do pensamento português e da capacidade poético-filosófica para lhe dar continuidade, não enxergávamos na fronte do nosso Mestre qualquer preocupação que pudesse desfazer o sonho patriótico e especulativo que então totalmente nos envolvia.
Muito menos ainda relacionávamos tais dificuldades com a práxis política, cujas asperezas e derrotas íamos tomando, no fundo da consciência, como acidentes de percurso. De tal modo eram puras as nossas convicções e a confiança no futuro, que não punhamos em causa o próprio poder em si, nem as consequências que dele previsivelmente adviriam para nós e para a Pátria. E, no entanto, já então era possível ponderá-lo, tomar-lhe o peso, como neste momento o faço. Aliás, a sensação de peso do facto político antecipou esta reflexão e acompanha-me desde que a política deixou de ter um sentido lúdico.
Creio que não será abusiva generalização pensar que a mesma sensação assistirá a cada homem que honestamente reveja a sua biografia de 50 para cá, década em que escrevi o Integralismo Português. Ouso, assim, propor-vos como anotação preliminar, a ideia de que, independentemente dos bons ou maus sucessos que a vida reservou aos nossos interesses, a [ - 221 - ] biografia política do português de hoje acusa sempre os efeitos de um mal intrínseco ao poder. Vou mais longe, observando que a insatisfação ansiosa de alguns políticos da situação, esconde o significado inconsciente dessa mesma sensação. Desatentos da diferença de grau que existe entre a noção de regime e a de sistema, tomam esta última corno o caminho de maior profundidade para chegar à raiz do mal quando ele é, pelo contrário, o ponto de fuga na abstracção e na generalização. Dizendo que o mal está no sistema, deveriam dizer que está na qualidade do poder. Mas desse mal eles sentem apenas os efeitos e não podem ter a ciência das causas.
Estamos, contudo, no domínio da mera apreensão dos fenómenos, sem oportunidade de formular o juízo universal sobre a bondade ou maldade intrínsecas do poder. Suspeito, e desde já o digo, que o mal a que somos sensíveis, vai mais fundo do que aquele outro apreendido e discorrido por Hobbes ou Maquiavel.
Esta convicção, embora mais pressentida do que fundada, já ensombra a releitura que hoje me propus fazer daquele meu breve ensaio. Pelo menos, coloca-nos de sobreaviso relativamente a alguma tolerância ingénua que naquele escrito possa haver na avaliação das forças opostas ao Integralismo e que lhe servem de contraste definidor. É o caso da dialéctica empreendida por este Movimento contra a democracia da época.
Mais interessado na procura dos princípios ontológicos do que na análise histórica, substimei, [ 222 ] porventura, a expressão real de poder, que a democracia ocultava na aparência da circunstancialidade. Estávamos numa fase de incubação em que o poder democrático parecia definitivamente dominado, se bem que tivéssemos a consciência de que a força de domínio mantinha natureza análoga à força dominada. Para compreender este fenómeno em seus verdadeiros limites, necessário teria sido afastar todo o significado pessoal e geracional da dialéctica entre Integralismo e Salazarismo, bem espelhado, no entanto, na surpresa e indignação manifestadas pelos Mestres perante uma prática política que adulterava os conceitos por eles definidos com esperançosa expectativa. Este ressentimento que, na geração dos criadores do Integralismo, possuía ainda a inocência que há no espanto, haveria mais tarde, até aos nossos dias, de se projectar em posição ideológica perturbante da pureza dos princípios monárquicos. Todavia, se mais profunda fora a interpretação da tese defendida no Congresso do Centro Católico, em 1922, por Salazar, mais depressa se teria concluído que o poder democrático encontrara a sua radicação institucional e religiosa. O que na altura foi considerado um método e não um princípio (união dos católicos com sacrifício das preferências políticas individuais), postulou no entanto toda a política de Salazar, anulando simultaneamente a tendência de restauração do poder, que definiu a minha geração, e a vocação teocrática da «Acção Católica». Alguns reflexos desta luz, oriunda do Centro Católico, se notam ainda, na concepção política, por exemplo, dos que continuam [ - 223 - ] a recusar a doutrina monárquica por defenderem a excelência de um regime institucionalista.
À distância de trinta anos, vejo como a situação de exilado, que atribuí ao Grupo da Bélgica, se aplicou igualmente aos integralistas da minha geração. Fomos, e a maior parte de nós continua a ser, exilados no seu próprio país. Observando, porém, as causas imediatas deste exílio, nitidamente se verifica que quem as segura bem firmes em suas mãos são os democratas e não os republicanos, aparentemente nossos adversários simétricos.
Este paradoxo não se processa apenas na circunstância exterior. O grupo republicano da «Renascença Portuguesa», que, como tal, se assumia e que polemizou com os integralistas da época, foi o que deu ao Integralismo as amarras teóricas mais consistentes para a definição do Portugal ausente. Também eles, pela doutrina da saudade, tomaram por símbolo plástico o "Desterrado", também eles, em profundidade, sofreram o exílio na sua própria terra.
Continuo, portanto, a considerar que a procura da Lusitanidade foi para o Integralismo um caminho de transcendência, mas demoro-me hoje muito mais na dinâmica anti-democrática por me aperceber que esta vertente não se esgota na evanescência dos factos, mas aponta para uma purificação do poder político, primeiro passo na senda da restauração de Portugal.
Com o compromisso tomado no Centro Católico, o poder político deu mais um passo no sentido da despersonalização, ao mesmo tempo que, como é [ - 224 - ] lógico, favoreceu a pessoalização do mando. Tanto católicos como integralistas haveriam de sentir esta contradição, que lhes moderou a projecção doutrinária e os impediu de aferir o pensamento geracional na prática política. O grupo integralista havia de ser o mais limitado, não só porque a quase totalidade sofria pelos dois atributos, mas também porque os católicos, como tal, veriam ou usufruiriam sem "ver" a Igreja a modificar a essência do poder político. Com efeito, os integralistas de 50, assistiriam, perplexos ou apenas silenciosos, à consagração religiosa do poder democrático, que não é necessária consequência da democratização orgânica da Igreja.
Ninguém hoje pode duvidar que o regime democrático se funda na religião católica, e os princípios da Democracia nos mandamentos de Cristo. Não importa que o impulso originário da Democracia actual lhe tenha sido dado pela Revolução Francesa, poder antitético da Igreja, que se tenha consolidado em religiões infiéis ou em ideologias opostas à religião. Sem a consagração da Igreja e a semelhança religada dos princípios cristãos, a Democracia não teria conquistado o ecumenismo político que conquistou, nem teria o êxito universal da sua pedagogia.
Houve quem, no grupo integralista, tivesse registado a oscilação destes dois reinos, e o caso mais significativo foi sem dúvida o de Henrique Barrilaro Ruas, que, na sua publicação de 1957 - A Moeda, o Homem e Deus- teorizou, dionisinamente, a hierarquização da política à religião. Era um aviso, [ - 225 - ] sem espírito polémico, da hierarquização inversa da religião para a política. A minha intervenção inseriu-se, precisamente, neste contexto, mas visando a causa imediata de uma tão grave inversão do binómio política-religião, que Maritain propusera no seu livro Christianisme et Démocratie. Teve, por isso, a virtude de aferir mais claramente a tendência afectiva da Igreja pelo esforço de Maritain de adunar os princípios cristãos ao regime democrático, o Evangelho à Democracia. O meu afastamento da direcção da revista católica em que publiquei o referido artigo, valeu essa clarificação, que no entanto só virá a ser entendida quando os portugueses descobrirem que os males do sistema não residem na tecitura exterior da organização do poder, mas na constituição íntima do próprio poder. E esta mensagem estava, pelo menos implícita, no Integralismo Lusitano. Por isso, dois jovens integralistas notaram a iminente subversão dos valores espirituais que, sem ela, se processaria simultaneamente na política e na religião.
Já temos hoje, creio bem, perspectiva de tempo e de pensamento para avaliar o salto qualitativo entre as teses do primado do espiritual e as do cristianismo da Democracia, que definem os dois extremos da evolução de Maritain. A degradação desta viagem, a deslocação de grau do ser que ela representa, explica também a forma imanentista como hoje o Cristianismo suporta as linhas gerais da política mundial Os direitos do homem substituem-se sem a menor reserva aos direitos de Deus, e por isso se tomam aqueles como os primeiros, isto é, como os [ - 226 -] que religiosamente devem ser cumpridos e prioritariamente aceites na construção da cidade terrena.
O percurso proposto pelo Integralismo diverge essencialmente daquele que Maritain traçou desde um primado a outro. O que projectava o Integralismo, em sua essência, era dar uma nova ordem ao ser político, dirigi-lo, da sua pluralidade desordenada, à sua unidade em Deus, Ser supremo. Trata, portanto, o verbo do Integralismo de integrar ontologicamente, ou, de modo mais específico, de renovar, de dar nova ordem à realidade política.
No movimento filosófico da «Renascença Portuguesa», que o mistério do tempo geminou com o Integralismo, a trajectória é análoga, se bem que tutelada pela filosofia e por um pensamento poético que intui as raízes mais profundas e as metas mais etéreas. Aqui, a nova ordem não é o essencial, mas aquele regresso originário que necessita um novo nascimento do ser, uma renascença. Poderíamos dizer que integrar numa nova ordem é consequência de renascer para uma nova teoria.
No sentido da recuperação do ser político, é nítido que o Integralismo se deve considerar o primeiro passo, enquanto que o Salazarismo só aparentemente ocupou este lugar através de uma pacificação transitória dos valores morais e materiais, sem contudo inverter a degradação democrática da essência do poder. Aliás, as ditaduras são os epifenómenos necessários das democracias progressistas, e tão naturais lhes são, que nem sequer os identificamos com a corrupção de um regime, a que a dou- [ - 227 - ] trina clássica, e designadamente Aristóteles, dava o nome de tirania. O constrangimento político das situações como aquela em que vivemos, está no facto de sentirmos os efeitos dessa corrupção do poder sem chegarmos a identificar o responsável. Entre outras razões, é pela necessidade e vantagem da identificação do tirano que S. Tomás prefere a Monarquia, dizendo que, de todas as tiranias, a mais tolerável ainda é a de um só.
O que S. Tomás põe em causa nesta sua reflexão está longe de privilegiar a proporção formal entre o uno e o múltiplo. Nesta proporção se justificam as democracias, corrigindo-se alternadamente com uma maior dose de presidencialismo ou de parlamentarismo. A proporção tomista relaciona a existência do corpo social e a unidade. É, portanto, uma proporção dinâmica e existencial, tem um direccionismo vivo e consciente para a unidade do Ser.
Neste contexto, chega a ser pungente considerar o esforço vão das democracias para se ordenarem melhor sem, contudo, alterarem os princípios nem a natureza do poder. E, no entanto, o elenco das doutrinas metafísicas claramente nos informa que não existe terceira opção para além da monádica ou da atomista. Quererão as democracias, no restrito mundo do ser político, ultrapassar o saber das primeiras causas?!
Conscientes do pensamento viciado a que a Democracia linear (não a Grega, mas a da guilhotina) conduziria inevitavelmente, os filósofos da política criaram a noção de sociedade aberta que, em meu [ - 228 - ] entender, é sobretudo uma fuga do político para o social, sem resolução da contradição interna do conceito de poder. Esse ficou, provocatoriamente interrogativo, onde Hobbes o deixou.
Pela via do social, foi possível dar novo alento às duas aspirações antagónicas da igualdade e da liberdade democráticas. Pela via da filosofia política tentaram Maritain e os personalistas ordenar aquelas duas a uma terceira, transcendente e religiosa. Porém, a ideia de pessoa é, do ponto de vista do poder, uma ideia equívoca, como equívoca é a máscara através da qual o indivíduo persoa, se apresenta como pessoa. Facilmente, portanto, esta equivocidade permite que a substância da dinâmica política, tome o mascarado pelo símbolo da máscara, o homem pela pessoa. Nestas circunstâncias, a consagração religiosa da Democracia, dá-lhe crédito ecuménico mas não a transforma.
Pergunto qual foi a alteração no conceito de poder que a "cidade fraterna" de Maritain trouxe à sociedade aberta de Popper e da civilização americana. De que transcendência usufruiu o poder em si mesmo ?! Como poderá a fraternidade cristã exercer-se no poder democrático enquanto este se realizar segundo uma doutrina atomista ?! Curiosamente, a mensagem evangélica, que os personalistas levaram à alma agrilhoada da Democracia, recuperou afinal o triângulo originário em que a fraternidade é o último vértice, como na Revolução Francesa. A sociedade aberta originou-se na doutrina de Bergson de reacção ao monismo fechado, à univocidade do ser. Mas [ - 229 - ] “porque não viu a nova dimensão espiritual" (é Leonardo Coimbra quem o diz) "não atingiu claramente a analogia do ser e, de novo, deixa degradar-se a liberdade em vida e a vida em matéria".
Paralelamente, o percurso da democracia contemporânea não a abre para uma liberdade acrescida: retorna à dialéctica insanável entre liberdade e igualdade, fixa-se no direccionismo da matéria. Esta determinação limitadora, adversa portanto da liberdade, que, já desde Aristóteles, justifica a Democracia, provém da metafísica que a suporta e da ausência de uma noção básica de mónada.
Efectivamente, só a mónada pode ser aberta ao infinito projecto da liberdade espiritual porque, aceitando o direccionismo do espírito, não perde, contudo, a relação essencial com a unidade do Ser. Se Deus é a Mónada, a suprema mónada, Ele garantirá esse infinito excesso que as outras mónadas apreendem sem oposição, Ele será o verdadeiro primeiro Motor do pensamento e da acção dos homens.
Mas esta doutrina filosófica não apoia nem justifica a democracia de origem francesa e de actualidade americana. Ela exprime, no domínio do ser, o movimento espiritual de um Povo que recupera as origens, intuindo que o mal, ausente da Criação, não é coisa que se possa herdar.
Esta visão benigna e benéfica das criaturas, também o é das relações de poder entre elas fundadas. Por isso, o impulso renovador do Integralismo Lusitano, aprofundado no criacionismo saudosista da Renascença Portuguesa, ganha cada vez mais o sen [230] tido da integração do ser político no ser genésico.
Enquanto o processo exterior da política tece e desfaz com o mesmo fio do poder, o manto da Democracia, um movimento biface, desconhecido nas encruzilhadas da política mundial, prepara-nos para restaurar o próprio poder.
Renovar, Renascer e Restaurar são afinal três andamentos do mesmo movimento espiritual que, de há séculos, impele o pensamento e sentimento do Povo Português.
E agora, que as investigações da ciência política na América acabam finalmente por concluir que a liberdade e a igualdade constituem uma aporia sem solução no quadro mental das democracias, a humilde e segregada vocação de uma comunidade histórica propõe que se abra o poder, se veja o mal que corrói a sua constituição, e se o integre na origem benéfica da Criação.
(Afonso Botelho, O Poder Real, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1990, pp. 219-230)
*Texto lido no CEPA (Centro de Estudos, Pensamento e Acção), em 2 de Abril de 1987
A minha confissão, excessivamente rude para a amabilidade do vosso convite, optou pela atitude sincera que define afinal as confissões. E não o faço apenas para alívio de dores passadas e presentes, excluindo ou esquecendo a matéria deste encontro, porque me parece boa introdução ponderar o que espontaneamente a sensibilidade e a memória de imediato me oferecem.
[ - 220 -] Quando um dos meus Mestres filósofos dizia que Portugal era um país muito difícil, confinávamos esta confissão, segundo o nosso jovem entendimento, às dificuldades que a razão universal tinha em tentar interpretar a singularidade do nosso Povo, enquanto agente e pensante. Convictos, e com razão, da excelência do pensamento português e da capacidade poético-filosófica para lhe dar continuidade, não enxergávamos na fronte do nosso Mestre qualquer preocupação que pudesse desfazer o sonho patriótico e especulativo que então totalmente nos envolvia.
Muito menos ainda relacionávamos tais dificuldades com a práxis política, cujas asperezas e derrotas íamos tomando, no fundo da consciência, como acidentes de percurso. De tal modo eram puras as nossas convicções e a confiança no futuro, que não punhamos em causa o próprio poder em si, nem as consequências que dele previsivelmente adviriam para nós e para a Pátria. E, no entanto, já então era possível ponderá-lo, tomar-lhe o peso, como neste momento o faço. Aliás, a sensação de peso do facto político antecipou esta reflexão e acompanha-me desde que a política deixou de ter um sentido lúdico.
Creio que não será abusiva generalização pensar que a mesma sensação assistirá a cada homem que honestamente reveja a sua biografia de 50 para cá, década em que escrevi o Integralismo Português. Ouso, assim, propor-vos como anotação preliminar, a ideia de que, independentemente dos bons ou maus sucessos que a vida reservou aos nossos interesses, a [ - 221 - ] biografia política do português de hoje acusa sempre os efeitos de um mal intrínseco ao poder. Vou mais longe, observando que a insatisfação ansiosa de alguns políticos da situação, esconde o significado inconsciente dessa mesma sensação. Desatentos da diferença de grau que existe entre a noção de regime e a de sistema, tomam esta última corno o caminho de maior profundidade para chegar à raiz do mal quando ele é, pelo contrário, o ponto de fuga na abstracção e na generalização. Dizendo que o mal está no sistema, deveriam dizer que está na qualidade do poder. Mas desse mal eles sentem apenas os efeitos e não podem ter a ciência das causas.
Estamos, contudo, no domínio da mera apreensão dos fenómenos, sem oportunidade de formular o juízo universal sobre a bondade ou maldade intrínsecas do poder. Suspeito, e desde já o digo, que o mal a que somos sensíveis, vai mais fundo do que aquele outro apreendido e discorrido por Hobbes ou Maquiavel.
Esta convicção, embora mais pressentida do que fundada, já ensombra a releitura que hoje me propus fazer daquele meu breve ensaio. Pelo menos, coloca-nos de sobreaviso relativamente a alguma tolerância ingénua que naquele escrito possa haver na avaliação das forças opostas ao Integralismo e que lhe servem de contraste definidor. É o caso da dialéctica empreendida por este Movimento contra a democracia da época.
Mais interessado na procura dos princípios ontológicos do que na análise histórica, substimei, [ 222 ] porventura, a expressão real de poder, que a democracia ocultava na aparência da circunstancialidade. Estávamos numa fase de incubação em que o poder democrático parecia definitivamente dominado, se bem que tivéssemos a consciência de que a força de domínio mantinha natureza análoga à força dominada. Para compreender este fenómeno em seus verdadeiros limites, necessário teria sido afastar todo o significado pessoal e geracional da dialéctica entre Integralismo e Salazarismo, bem espelhado, no entanto, na surpresa e indignação manifestadas pelos Mestres perante uma prática política que adulterava os conceitos por eles definidos com esperançosa expectativa. Este ressentimento que, na geração dos criadores do Integralismo, possuía ainda a inocência que há no espanto, haveria mais tarde, até aos nossos dias, de se projectar em posição ideológica perturbante da pureza dos princípios monárquicos. Todavia, se mais profunda fora a interpretação da tese defendida no Congresso do Centro Católico, em 1922, por Salazar, mais depressa se teria concluído que o poder democrático encontrara a sua radicação institucional e religiosa. O que na altura foi considerado um método e não um princípio (união dos católicos com sacrifício das preferências políticas individuais), postulou no entanto toda a política de Salazar, anulando simultaneamente a tendência de restauração do poder, que definiu a minha geração, e a vocação teocrática da «Acção Católica». Alguns reflexos desta luz, oriunda do Centro Católico, se notam ainda, na concepção política, por exemplo, dos que continuam [ - 223 - ] a recusar a doutrina monárquica por defenderem a excelência de um regime institucionalista.
À distância de trinta anos, vejo como a situação de exilado, que atribuí ao Grupo da Bélgica, se aplicou igualmente aos integralistas da minha geração. Fomos, e a maior parte de nós continua a ser, exilados no seu próprio país. Observando, porém, as causas imediatas deste exílio, nitidamente se verifica que quem as segura bem firmes em suas mãos são os democratas e não os republicanos, aparentemente nossos adversários simétricos.
Este paradoxo não se processa apenas na circunstância exterior. O grupo republicano da «Renascença Portuguesa», que, como tal, se assumia e que polemizou com os integralistas da época, foi o que deu ao Integralismo as amarras teóricas mais consistentes para a definição do Portugal ausente. Também eles, pela doutrina da saudade, tomaram por símbolo plástico o "Desterrado", também eles, em profundidade, sofreram o exílio na sua própria terra.
Continuo, portanto, a considerar que a procura da Lusitanidade foi para o Integralismo um caminho de transcendência, mas demoro-me hoje muito mais na dinâmica anti-democrática por me aperceber que esta vertente não se esgota na evanescência dos factos, mas aponta para uma purificação do poder político, primeiro passo na senda da restauração de Portugal.
Com o compromisso tomado no Centro Católico, o poder político deu mais um passo no sentido da despersonalização, ao mesmo tempo que, como é [ - 224 - ] lógico, favoreceu a pessoalização do mando. Tanto católicos como integralistas haveriam de sentir esta contradição, que lhes moderou a projecção doutrinária e os impediu de aferir o pensamento geracional na prática política. O grupo integralista havia de ser o mais limitado, não só porque a quase totalidade sofria pelos dois atributos, mas também porque os católicos, como tal, veriam ou usufruiriam sem "ver" a Igreja a modificar a essência do poder político. Com efeito, os integralistas de 50, assistiriam, perplexos ou apenas silenciosos, à consagração religiosa do poder democrático, que não é necessária consequência da democratização orgânica da Igreja.
Ninguém hoje pode duvidar que o regime democrático se funda na religião católica, e os princípios da Democracia nos mandamentos de Cristo. Não importa que o impulso originário da Democracia actual lhe tenha sido dado pela Revolução Francesa, poder antitético da Igreja, que se tenha consolidado em religiões infiéis ou em ideologias opostas à religião. Sem a consagração da Igreja e a semelhança religada dos princípios cristãos, a Democracia não teria conquistado o ecumenismo político que conquistou, nem teria o êxito universal da sua pedagogia.
Houve quem, no grupo integralista, tivesse registado a oscilação destes dois reinos, e o caso mais significativo foi sem dúvida o de Henrique Barrilaro Ruas, que, na sua publicação de 1957 - A Moeda, o Homem e Deus- teorizou, dionisinamente, a hierarquização da política à religião. Era um aviso, [ - 225 - ] sem espírito polémico, da hierarquização inversa da religião para a política. A minha intervenção inseriu-se, precisamente, neste contexto, mas visando a causa imediata de uma tão grave inversão do binómio política-religião, que Maritain propusera no seu livro Christianisme et Démocratie. Teve, por isso, a virtude de aferir mais claramente a tendência afectiva da Igreja pelo esforço de Maritain de adunar os princípios cristãos ao regime democrático, o Evangelho à Democracia. O meu afastamento da direcção da revista católica em que publiquei o referido artigo, valeu essa clarificação, que no entanto só virá a ser entendida quando os portugueses descobrirem que os males do sistema não residem na tecitura exterior da organização do poder, mas na constituição íntima do próprio poder. E esta mensagem estava, pelo menos implícita, no Integralismo Lusitano. Por isso, dois jovens integralistas notaram a iminente subversão dos valores espirituais que, sem ela, se processaria simultaneamente na política e na religião.
Já temos hoje, creio bem, perspectiva de tempo e de pensamento para avaliar o salto qualitativo entre as teses do primado do espiritual e as do cristianismo da Democracia, que definem os dois extremos da evolução de Maritain. A degradação desta viagem, a deslocação de grau do ser que ela representa, explica também a forma imanentista como hoje o Cristianismo suporta as linhas gerais da política mundial Os direitos do homem substituem-se sem a menor reserva aos direitos de Deus, e por isso se tomam aqueles como os primeiros, isto é, como os [ - 226 -] que religiosamente devem ser cumpridos e prioritariamente aceites na construção da cidade terrena.
O percurso proposto pelo Integralismo diverge essencialmente daquele que Maritain traçou desde um primado a outro. O que projectava o Integralismo, em sua essência, era dar uma nova ordem ao ser político, dirigi-lo, da sua pluralidade desordenada, à sua unidade em Deus, Ser supremo. Trata, portanto, o verbo do Integralismo de integrar ontologicamente, ou, de modo mais específico, de renovar, de dar nova ordem à realidade política.
No movimento filosófico da «Renascença Portuguesa», que o mistério do tempo geminou com o Integralismo, a trajectória é análoga, se bem que tutelada pela filosofia e por um pensamento poético que intui as raízes mais profundas e as metas mais etéreas. Aqui, a nova ordem não é o essencial, mas aquele regresso originário que necessita um novo nascimento do ser, uma renascença. Poderíamos dizer que integrar numa nova ordem é consequência de renascer para uma nova teoria.
No sentido da recuperação do ser político, é nítido que o Integralismo se deve considerar o primeiro passo, enquanto que o Salazarismo só aparentemente ocupou este lugar através de uma pacificação transitória dos valores morais e materiais, sem contudo inverter a degradação democrática da essência do poder. Aliás, as ditaduras são os epifenómenos necessários das democracias progressistas, e tão naturais lhes são, que nem sequer os identificamos com a corrupção de um regime, a que a dou- [ - 227 - ] trina clássica, e designadamente Aristóteles, dava o nome de tirania. O constrangimento político das situações como aquela em que vivemos, está no facto de sentirmos os efeitos dessa corrupção do poder sem chegarmos a identificar o responsável. Entre outras razões, é pela necessidade e vantagem da identificação do tirano que S. Tomás prefere a Monarquia, dizendo que, de todas as tiranias, a mais tolerável ainda é a de um só.
O que S. Tomás põe em causa nesta sua reflexão está longe de privilegiar a proporção formal entre o uno e o múltiplo. Nesta proporção se justificam as democracias, corrigindo-se alternadamente com uma maior dose de presidencialismo ou de parlamentarismo. A proporção tomista relaciona a existência do corpo social e a unidade. É, portanto, uma proporção dinâmica e existencial, tem um direccionismo vivo e consciente para a unidade do Ser.
Neste contexto, chega a ser pungente considerar o esforço vão das democracias para se ordenarem melhor sem, contudo, alterarem os princípios nem a natureza do poder. E, no entanto, o elenco das doutrinas metafísicas claramente nos informa que não existe terceira opção para além da monádica ou da atomista. Quererão as democracias, no restrito mundo do ser político, ultrapassar o saber das primeiras causas?!
Conscientes do pensamento viciado a que a Democracia linear (não a Grega, mas a da guilhotina) conduziria inevitavelmente, os filósofos da política criaram a noção de sociedade aberta que, em meu [ - 228 - ] entender, é sobretudo uma fuga do político para o social, sem resolução da contradição interna do conceito de poder. Esse ficou, provocatoriamente interrogativo, onde Hobbes o deixou.
Pela via do social, foi possível dar novo alento às duas aspirações antagónicas da igualdade e da liberdade democráticas. Pela via da filosofia política tentaram Maritain e os personalistas ordenar aquelas duas a uma terceira, transcendente e religiosa. Porém, a ideia de pessoa é, do ponto de vista do poder, uma ideia equívoca, como equívoca é a máscara através da qual o indivíduo persoa, se apresenta como pessoa. Facilmente, portanto, esta equivocidade permite que a substância da dinâmica política, tome o mascarado pelo símbolo da máscara, o homem pela pessoa. Nestas circunstâncias, a consagração religiosa da Democracia, dá-lhe crédito ecuménico mas não a transforma.
Pergunto qual foi a alteração no conceito de poder que a "cidade fraterna" de Maritain trouxe à sociedade aberta de Popper e da civilização americana. De que transcendência usufruiu o poder em si mesmo ?! Como poderá a fraternidade cristã exercer-se no poder democrático enquanto este se realizar segundo uma doutrina atomista ?! Curiosamente, a mensagem evangélica, que os personalistas levaram à alma agrilhoada da Democracia, recuperou afinal o triângulo originário em que a fraternidade é o último vértice, como na Revolução Francesa. A sociedade aberta originou-se na doutrina de Bergson de reacção ao monismo fechado, à univocidade do ser. Mas [ - 229 - ] “porque não viu a nova dimensão espiritual" (é Leonardo Coimbra quem o diz) "não atingiu claramente a analogia do ser e, de novo, deixa degradar-se a liberdade em vida e a vida em matéria".
Paralelamente, o percurso da democracia contemporânea não a abre para uma liberdade acrescida: retorna à dialéctica insanável entre liberdade e igualdade, fixa-se no direccionismo da matéria. Esta determinação limitadora, adversa portanto da liberdade, que, já desde Aristóteles, justifica a Democracia, provém da metafísica que a suporta e da ausência de uma noção básica de mónada.
Efectivamente, só a mónada pode ser aberta ao infinito projecto da liberdade espiritual porque, aceitando o direccionismo do espírito, não perde, contudo, a relação essencial com a unidade do Ser. Se Deus é a Mónada, a suprema mónada, Ele garantirá esse infinito excesso que as outras mónadas apreendem sem oposição, Ele será o verdadeiro primeiro Motor do pensamento e da acção dos homens.
Mas esta doutrina filosófica não apoia nem justifica a democracia de origem francesa e de actualidade americana. Ela exprime, no domínio do ser, o movimento espiritual de um Povo que recupera as origens, intuindo que o mal, ausente da Criação, não é coisa que se possa herdar.
Esta visão benigna e benéfica das criaturas, também o é das relações de poder entre elas fundadas. Por isso, o impulso renovador do Integralismo Lusitano, aprofundado no criacionismo saudosista da Renascença Portuguesa, ganha cada vez mais o sen [230] tido da integração do ser político no ser genésico.
Enquanto o processo exterior da política tece e desfaz com o mesmo fio do poder, o manto da Democracia, um movimento biface, desconhecido nas encruzilhadas da política mundial, prepara-nos para restaurar o próprio poder.
Renovar, Renascer e Restaurar são afinal três andamentos do mesmo movimento espiritual que, de há séculos, impele o pensamento e sentimento do Povo Português.
E agora, que as investigações da ciência política na América acabam finalmente por concluir que a liberdade e a igualdade constituem uma aporia sem solução no quadro mental das democracias, a humilde e segregada vocação de uma comunidade histórica propõe que se abra o poder, se veja o mal que corrói a sua constituição, e se o integre na origem benéfica da Criação.
(Afonso Botelho, O Poder Real, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1990, pp. 219-230)
*Texto lido no CEPA (Centro de Estudos, Pensamento e Acção), em 2 de Abril de 1987