O Velho Teófilo
António Sardinha
É do maior pecado da minha inteligência que eu hoje me venho penitenciar! Venho penitenciar-me de ter lido Teófilo Braga e o que é mais ainda!- de o ter admirado. Na anarquia mental dos meus vinte anos, Teófilo representou para mim a razão consciente do meu nacionalismo instintivo. Não nego o entusiasmo que a minha mocidade lhe deveu! Porque, apesar dos péssimos vícios da sua cultura, alguma coisa de orgânico, de construtivo, consegue predominar, embora contorcidamente, nesse fatras babylonien d'une érudition en délire, que é a obra de Teófilo, na frase já agora definitiva de Antero de Quental.
O que é preciso é que Teófilo, como historiador e como pensador, seja reduzido às proporções que em justiça lhe cabem. Como pensador, Teófilo inculca-se filho legítimo de Augusto Comte. O «positivismo de Teófilo é até a base intelectual do nosso movimento republicano. Completa Teófilo à sua acção revolucionária, entrando pelos domínios do nosso passado, com todo o furor da sua psicologia de sectário. É aqui que necessitamos de desmascarar o embuste e pôr Teófilo na inteira nudez das suas falsificações filosóficas e dos seus aleives históricos.
Nunca Teófilo se pode em verdade considerar discípulo de Augusto Comte! Augusto Comte é um dos mestres da Contra-Revolução. Ninguém fustigou, como ele, o Parlamentarismo, o mito da soberania popular, o advento de oligarquias financeiras e políticas, que são a herança pesada da mentira liberalista. Augusto Comte compreendeu e defendeu como ninguém a intervenção coordenadora da Igreja na sociedade ocidental. É bom lembrar que Augusto Comte convidou os Jesuítas a aliarem-se com os positivistas na defesa da ordem tradicional ameaçada. Os seus ensinamentos foram, porém, pervertidos pela vulgarização de Littré e de Laffite. Littré e Laffite colocaram o grande doutor do Positivismo ao serviço da Terceira-República. E só o esforço resoluto de Léon de Montesquiou desvendou a mistificação, restituindo Augusto Comte à integridade da sua doutrina.
Deriva de Littré e de Laffite o falso positivismo de Teófilo. Teófilo está até incorporado nos orgulhosos de entendimento, de quem Comte escrevia: - "Os sábios actuais são profundamente indignos duma alta missão social pela sua dupla ausência característica de pensamentos gerais e de sentimentos elevados". Ríamos, pois, dêsse positivista por bastardia que é Teófilo Braga! Já o espírito profundo de Silva Cordeiro punha reservas ao positivismo do velho professor. De facto, é um positivismo que só se acredita em públicos semi-analfabetos, como são aquêles em que Teófilo pontifica.
Eu sei que Teófilo procurou rectificar o Positivismo, substituindo na construção de Comte o factor Autoridade, pelo factor População. Percebe-se aonde Teófilo pretendia chegar! Pretendia chegar à justificação da Revolução, introduzindo-a assim subrepticiamente na disciplina cerrada do filósofo. Mas é aí mesmo que a deficiência da sua visão se revela em todo abandono duma mentalidade roída pelas piores superstições intelectualistas.
Não é de fugida que essa figura de demi-savant se consegue reduzir à fragilidade das suas linhas bem transitórias. Mas assinalando a fraqueza dos seus métodos críticos, o crime de Teófilo denuncia-se mais amplamente na forma como êle pratica a história do seu país. Acabo de reler, para me retemperar de serenidade, as páginas notabilíssimas de Fustel de Coulanges sôbre «La manière d'écrire l'histoire en France et en Allemagne». Fustel traçava as depois da derrota de 71, atribuindo o desastre fundamentalmente ao carácter anti-nacional da história francesa. «Escrever a história de França , - observa o historiador, era uma forma de trabalhar por um partido e de combater um adversário. É como Teófilo, embuído de rancores românticos contra Bispos e contra Reis , se alevanta em juiz implacável do passado da sua pátria, que perde para êle o significado d u m a realidade eterna, para só lhe apa- recer c o m o o pretexto d u m a bandeira de partido.
E u não informo o processo de Teófilo. Apenas aponto a invalidade da sua obra pela documentação desonesta e m que se baseia e pelo propósito d e m o - lidor que a enche d u m a única chispa : a chispa do seu ódio, raciocinado a frio. Teófilo é perfeitamente o tipo da maçonização intelectual. As capelinhas do Livre-Pensamento saudam-no com coerência quando o alcandoram a seu orago m á x i m o. Mas bem passageira será a sua influência, se alguma influência Teófilo exerceu , porventura , nas direcções da inteligência nacional!
Há uma vítima dele! Essa vítima sou eu, porque acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam, somente, para através do conceito População, justificarem a indisciplina da sua razão individual contra o conjunto dos antecedentes humanos», - nas palavras memorandas de Comte.
A acusação que levanto contra Teófilo é tanto mais autorizada quanto é certo que eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por êsse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos,verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que êle mutila e trunca, num desprêzo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha. Não tem ao menos a grandeza de Michelet, correndo atrás do sonho igualitário de seu pai. Perde-se na monotonia incansável dêsse fatras babylonien d'une érudition en délire, não m e farto nunca de repeti-lo!
O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirinéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo! Sílvio Romero exautorou-o num livro que nós não devemos esquecer. As palmatoadas crescem de dia para dia sobre o seu professoralismo derreado. Acentuemo-lo bem na hora em que a Semana Teofiliana o consagra, por parte de uma plebe amorfa de sub-medíocres, como a expressão mais completa da nossa mentalidade.
Teófilo pensador é um mito tão duvidoso como Teófilo historiador. Mas se Teófilo pensador cai no vago da sua vaga ideologia, é uma obrigação sagrada precaver-nos contra Teófilo historiador. Teófilo na história é um daqueles autores que, segundo ainda Fustel de Coulanges, arrasta à guerra civil. Que patriotismo é o de Teófilo, desbastando a fisionomia centenária da nacionalidade para incrustar nela à viva fôrça o princípio desorganizador de que se fêz arauto? É o patriotismo que já Fustel vergastava em termos duros. O verdadeiro patriotismo não é o amor do solo, é o amor do passado, é o respeito pelas gerações que nos antecederam». E sem ser um crente, Fustel mandava enterrar-se catòlicamente por esse reconhecimento inteligente do que seja o amor da pátria.
A Pátria, riba patrum, a terra dos pais, não se acha sentida nem compreendida na obra de Teófilo. Teófilo exclui-se a si mesmo da comunidade afectiva da Raça. E porque falei em Fustel, recordemo-nos da mágoa do grande historiador por ver que não deixava um discípulo. Já não acontece o mesmo com Teófilo. Deixa pelo menos dois: o senhor António Cabreira e o senhor Agostinho Fortes.
E como a árvore se conhece pelos frutos, não precisamos de mais nada para que Teófilo seja restituído ao lugar que lhe pertence!
(António Sardinha, Na Feira dos Mitos, Porto, Edições Gama, 2ª edição, 1942, pp. 43-48)
É do maior pecado da minha inteligência que eu hoje me venho penitenciar! Venho penitenciar-me de ter lido Teófilo Braga e o que é mais ainda!- de o ter admirado. Na anarquia mental dos meus vinte anos, Teófilo representou para mim a razão consciente do meu nacionalismo instintivo. Não nego o entusiasmo que a minha mocidade lhe deveu! Porque, apesar dos péssimos vícios da sua cultura, alguma coisa de orgânico, de construtivo, consegue predominar, embora contorcidamente, nesse fatras babylonien d'une érudition en délire, que é a obra de Teófilo, na frase já agora definitiva de Antero de Quental.
O que é preciso é que Teófilo, como historiador e como pensador, seja reduzido às proporções que em justiça lhe cabem. Como pensador, Teófilo inculca-se filho legítimo de Augusto Comte. O «positivismo de Teófilo é até a base intelectual do nosso movimento republicano. Completa Teófilo à sua acção revolucionária, entrando pelos domínios do nosso passado, com todo o furor da sua psicologia de sectário. É aqui que necessitamos de desmascarar o embuste e pôr Teófilo na inteira nudez das suas falsificações filosóficas e dos seus aleives históricos.
Nunca Teófilo se pode em verdade considerar discípulo de Augusto Comte! Augusto Comte é um dos mestres da Contra-Revolução. Ninguém fustigou, como ele, o Parlamentarismo, o mito da soberania popular, o advento de oligarquias financeiras e políticas, que são a herança pesada da mentira liberalista. Augusto Comte compreendeu e defendeu como ninguém a intervenção coordenadora da Igreja na sociedade ocidental. É bom lembrar que Augusto Comte convidou os Jesuítas a aliarem-se com os positivistas na defesa da ordem tradicional ameaçada. Os seus ensinamentos foram, porém, pervertidos pela vulgarização de Littré e de Laffite. Littré e Laffite colocaram o grande doutor do Positivismo ao serviço da Terceira-República. E só o esforço resoluto de Léon de Montesquiou desvendou a mistificação, restituindo Augusto Comte à integridade da sua doutrina.
Deriva de Littré e de Laffite o falso positivismo de Teófilo. Teófilo está até incorporado nos orgulhosos de entendimento, de quem Comte escrevia: - "Os sábios actuais são profundamente indignos duma alta missão social pela sua dupla ausência característica de pensamentos gerais e de sentimentos elevados". Ríamos, pois, dêsse positivista por bastardia que é Teófilo Braga! Já o espírito profundo de Silva Cordeiro punha reservas ao positivismo do velho professor. De facto, é um positivismo que só se acredita em públicos semi-analfabetos, como são aquêles em que Teófilo pontifica.
Eu sei que Teófilo procurou rectificar o Positivismo, substituindo na construção de Comte o factor Autoridade, pelo factor População. Percebe-se aonde Teófilo pretendia chegar! Pretendia chegar à justificação da Revolução, introduzindo-a assim subrepticiamente na disciplina cerrada do filósofo. Mas é aí mesmo que a deficiência da sua visão se revela em todo abandono duma mentalidade roída pelas piores superstições intelectualistas.
Não é de fugida que essa figura de demi-savant se consegue reduzir à fragilidade das suas linhas bem transitórias. Mas assinalando a fraqueza dos seus métodos críticos, o crime de Teófilo denuncia-se mais amplamente na forma como êle pratica a história do seu país. Acabo de reler, para me retemperar de serenidade, as páginas notabilíssimas de Fustel de Coulanges sôbre «La manière d'écrire l'histoire en France et en Allemagne». Fustel traçava as depois da derrota de 71, atribuindo o desastre fundamentalmente ao carácter anti-nacional da história francesa. «Escrever a história de França , - observa o historiador, era uma forma de trabalhar por um partido e de combater um adversário. É como Teófilo, embuído de rancores românticos contra Bispos e contra Reis , se alevanta em juiz implacável do passado da sua pátria, que perde para êle o significado d u m a realidade eterna, para só lhe apa- recer c o m o o pretexto d u m a bandeira de partido.
E u não informo o processo de Teófilo. Apenas aponto a invalidade da sua obra pela documentação desonesta e m que se baseia e pelo propósito d e m o - lidor que a enche d u m a única chispa : a chispa do seu ódio, raciocinado a frio. Teófilo é perfeitamente o tipo da maçonização intelectual. As capelinhas do Livre-Pensamento saudam-no com coerência quando o alcandoram a seu orago m á x i m o. Mas bem passageira será a sua influência, se alguma influência Teófilo exerceu , porventura , nas direcções da inteligência nacional!
Há uma vítima dele! Essa vítima sou eu, porque acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam, somente, para através do conceito População, justificarem a indisciplina da sua razão individual contra o conjunto dos antecedentes humanos», - nas palavras memorandas de Comte.
A acusação que levanto contra Teófilo é tanto mais autorizada quanto é certo que eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por êsse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos,verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que êle mutila e trunca, num desprêzo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha. Não tem ao menos a grandeza de Michelet, correndo atrás do sonho igualitário de seu pai. Perde-se na monotonia incansável dêsse fatras babylonien d'une érudition en délire, não m e farto nunca de repeti-lo!
O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirinéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo! Sílvio Romero exautorou-o num livro que nós não devemos esquecer. As palmatoadas crescem de dia para dia sobre o seu professoralismo derreado. Acentuemo-lo bem na hora em que a Semana Teofiliana o consagra, por parte de uma plebe amorfa de sub-medíocres, como a expressão mais completa da nossa mentalidade.
Teófilo pensador é um mito tão duvidoso como Teófilo historiador. Mas se Teófilo pensador cai no vago da sua vaga ideologia, é uma obrigação sagrada precaver-nos contra Teófilo historiador. Teófilo na história é um daqueles autores que, segundo ainda Fustel de Coulanges, arrasta à guerra civil. Que patriotismo é o de Teófilo, desbastando a fisionomia centenária da nacionalidade para incrustar nela à viva fôrça o princípio desorganizador de que se fêz arauto? É o patriotismo que já Fustel vergastava em termos duros. O verdadeiro patriotismo não é o amor do solo, é o amor do passado, é o respeito pelas gerações que nos antecederam». E sem ser um crente, Fustel mandava enterrar-se catòlicamente por esse reconhecimento inteligente do que seja o amor da pátria.
A Pátria, riba patrum, a terra dos pais, não se acha sentida nem compreendida na obra de Teófilo. Teófilo exclui-se a si mesmo da comunidade afectiva da Raça. E porque falei em Fustel, recordemo-nos da mágoa do grande historiador por ver que não deixava um discípulo. Já não acontece o mesmo com Teófilo. Deixa pelo menos dois: o senhor António Cabreira e o senhor Agostinho Fortes.
E como a árvore se conhece pelos frutos, não precisamos de mais nada para que Teófilo seja restituído ao lugar que lhe pertence!
(António Sardinha, Na Feira dos Mitos, Porto, Edições Gama, 2ª edição, 1942, pp. 43-48)