Poesia de António Sardinha
LETREIRO
Tudo o que sou o sou por obra e graça
da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.
Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.
Olhai-me: - Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.
«O que estaria além da curva estreita?»
- E da pergunta, a cada instante feita.
nasceu em mim a ânsia p'ra o Infinito.
(In A Epopeia da Planície)
À PEDRA DA LAREIRA
«...na parede das cozinhas (no Alentejo) se vê a «boneca»... ou frade, de tijolo, o que... se correlaciona com o Lar familiaris.» - Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia
O espírito da Casa se encarna,
em ti ganhou feições, tomou feitio.
Quem hoje, desprezada, o lume ampara,
por ela o lume ardeu, temente e pio.
A gente dalgum dia em ti criara
um deus familiar, sem atavio.
Eu me persino, ó minha Pedra-de-Ara,
e sobre ti o invoco e propicio!
De pais a filhos, num cortejo imenso,
altar doméstico, tu és a fala
dessa ascensão carnal d'aonde eu vim!
E assim à tua face, quando penso
que a vida que me deram hei-de dá-la,
sinto a Imortalidade dentro de mim!
(In Epopeia da Planície)
A OLIVENÇA, A PERDIDA
Fiel ao sangue, nossa irmã germana,
chora Olivença as suas horas más
junto do rio que tornou atrás,
quando soou a trompa castelhana.
Ó Casa de Antre Tejo-e-Guadiana,
lembra-te dela que entre ferros jaz!
Não a dobrou a guerra nem a paz,
- fiel ao sangue, o sangue a ti a irmana!
E todo aquele em quem ainda viva
o ardor da Raça e a voz que nele anseia,
se for p'ra além da raia alguma vez,
é Olivença, nossa irmã cativa
lá onde com surpresa a gente alheia
oiça dizer adeus em português!
(In Epopeia da Planície)
VARIAÇÕES DA SAUDADE
V
Saudade, pão de sustento,
meu vinho de consagrar
ai, Deus, i u é, Saudade,
sem ti não posso passar!
VIII
Saudades vivas da Terra,
- vivas saudades do Mar...
Oh, o desejo impossível
de se partir e ficar!
XI
Sereias, Nau Catrineta,
Sete-Partidas do Mundo...
- Quem é que mede a Saudade,
se é como um poço sem fundo ?!
XVI
«A vida acaba na morte,
não pode a alma morrer!»
Oh, a saudade sem nome
de ser a gente e não ser!
(In Epopeia da Planície)
A EL-REY
«Nos liberi sumus, Rex noster libert est, et manus nostrae nos liberaverunt!»
- OS CAVALEIROS DE ALMACAVE
De capa e volta, de calção e vara,
hei-de ir, Procurador do meu Concelho,
falar ao Senhor-Rey com fala clara,
dizer-lhe uma oratória que aparelho!
Cortes-Gerais. O Reyno se prepara
p'ra ouvir a voz dos Povos em conselho,
Monforte ao Banco-Doze me mandara.
Real! Real! - e incline-se o joelho.
Ó Deus de Ourique, cumpre o prometido!
Leva-nos contra os novos muçulmanos,
- nós somos livres, livre é o nosso Rey!
Eu reconheço-lhe o morrião florido.
Onde eu me achava há setecentos anos
com ele, já erguido, me encontrei!
(
In Epopeia da Planície)
Eles o afirmam com aspecto grave,
- eles o afirmam com profunda voz.
Um coro imenso reboou pela nave:
- «O Rei é livre e livres somos nós!»
- «O Rei é livre!» E o grito de Almacave
não foi somente o grito dos Avós.
Por mais que o tempo em nossas veias cave,
nunca desata esses antigos nós!
«O Rei é livre!» E com seu elmo erguido,
é Portugal tornado corpo e alma
na sucessão do tempo indefinido!
O sangue o diz! E o sangue não se engana!
Que ver o Rei na sua força calma,
é ver a Pátria com figura humana!
(In Pequena Casa Lusitana.)
DEUS NA PLANÍCIE
O espírito de Deus flutua e erra
por todo este côncavo profundo.
Assim errava Ele sobre a terra
quando pensou na criação do Mundo.
É noite. Aqui não há mar nem serra.
Há o infinito, o vago. E cá no fundo
minh'alma que se excede e que se aterra,
ó Hálito-Supremo em que eu me inundo!
Ó Hálito-Supremo!... É noite escura.
E o Criador no enlevo em que eu me alago
domina e empolga a Sua criatura.
Sucumbe em mim o bicho vil da terra
E como no Princípio sobre o vago
O Espírito de Deus flutua e erra.
(In Epopeia da Planície)
NO DESERTO
Chegaram os camelos junto ao poço,
Quando Rebeca tinha a urna cheia.
Foram momentos esses de alvoroço,
Bem raros de encontrar em terra alheia.
Também meu coração, menino moço,
Nos cardos do caminho se golpeia.
Ouço-te os passos, dentro de alma eu ouço
O eco dos teus passos sobre a areia.
Busquei-te no deserto longamente...
Como Rebeca outrora, condoída,
Surgiste, calma, na poeira ardente.
De ânfora baixa, à boca da cisterna,
Ficaste assim, para toda a tua vida,
Matando a minha sede, que é eterna!
(In Chuva da Tarde)
VELHO MOTIVO
Soneto de Jacob, pastor antigo,
– soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
O que eu servira para viver contigo,
– tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
E vou sofrendo a minha pena amarga,
– pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!
(In Chuva da Tarde)
MEMÓRIA
Meu coração de lusitano antigo
bateu às portas de Toledo, a estranha.
Mais roto e ensanguentado que um mendigo.
só a saudade as passos lhe acompanha.
Pois a saudade ali me deu abrigo.
ao pé do Tejo que a Toledo banha.
Levava os dias a falar comigo,
como um pastor com outro na montanha.
Em todo o mundo há terra portuguesa,
desde que a alma a tenha na lembrança
e a sirva sempre com fervor igual.
Talvez por isso, em horas de tristeza,
eu pude à sua amada semelhança
criar p'ra mim um novo Portugal!
(In Na Corte da Saudade)
VERSOS DO TRINCO DA PORTA
Versos do trinco da porta,
- Louvado seja o Senhor!
A casa é Deus quem ma guarda,
Ninguém a guarda melhor!
Batem os pobres à porta,
- Batem com ar de humildade.
"Eu sei que é pouco irmãozinho!
É pouco, mas de vontade!"
Quem é que a porta abriria,
Com modos de atrevimento?
São coisas da criadagem!
Não foi ninguém, - é o vento!
Mexem no trinco da porta.
- "Levante, faça favor!"
A entrada nunca se nega
Seja a visita quem for!
Não vês a porta batendo?
Que aragem essa que corta!
Em toda a volta do dia,
Não pára o trinco da porta!
Trinco da porta caindo
Sobre a partida de alguém...
Oh, quantos vão e não voltam?!
São os que a morte lá tem!
(In Quando as Nascentes Despertam)
Tudo o que sou o sou por obra e graça
da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.
Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.
Olhai-me: - Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.
«O que estaria além da curva estreita?»
- E da pergunta, a cada instante feita.
nasceu em mim a ânsia p'ra o Infinito.
(In A Epopeia da Planície)
À PEDRA DA LAREIRA
«...na parede das cozinhas (no Alentejo) se vê a «boneca»... ou frade, de tijolo, o que... se correlaciona com o Lar familiaris.» - Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia
O espírito da Casa se encarna,
em ti ganhou feições, tomou feitio.
Quem hoje, desprezada, o lume ampara,
por ela o lume ardeu, temente e pio.
A gente dalgum dia em ti criara
um deus familiar, sem atavio.
Eu me persino, ó minha Pedra-de-Ara,
e sobre ti o invoco e propicio!
De pais a filhos, num cortejo imenso,
altar doméstico, tu és a fala
dessa ascensão carnal d'aonde eu vim!
E assim à tua face, quando penso
que a vida que me deram hei-de dá-la,
sinto a Imortalidade dentro de mim!
(In Epopeia da Planície)
A OLIVENÇA, A PERDIDA
Fiel ao sangue, nossa irmã germana,
chora Olivença as suas horas más
junto do rio que tornou atrás,
quando soou a trompa castelhana.
Ó Casa de Antre Tejo-e-Guadiana,
lembra-te dela que entre ferros jaz!
Não a dobrou a guerra nem a paz,
- fiel ao sangue, o sangue a ti a irmana!
E todo aquele em quem ainda viva
o ardor da Raça e a voz que nele anseia,
se for p'ra além da raia alguma vez,
é Olivença, nossa irmã cativa
lá onde com surpresa a gente alheia
oiça dizer adeus em português!
(In Epopeia da Planície)
VARIAÇÕES DA SAUDADE
V
Saudade, pão de sustento,
meu vinho de consagrar
ai, Deus, i u é, Saudade,
sem ti não posso passar!
VIII
Saudades vivas da Terra,
- vivas saudades do Mar...
Oh, o desejo impossível
de se partir e ficar!
XI
Sereias, Nau Catrineta,
Sete-Partidas do Mundo...
- Quem é que mede a Saudade,
se é como um poço sem fundo ?!
XVI
«A vida acaba na morte,
não pode a alma morrer!»
Oh, a saudade sem nome
de ser a gente e não ser!
(In Epopeia da Planície)
A EL-REY
«Nos liberi sumus, Rex noster libert est, et manus nostrae nos liberaverunt!»
- OS CAVALEIROS DE ALMACAVE
De capa e volta, de calção e vara,
hei-de ir, Procurador do meu Concelho,
falar ao Senhor-Rey com fala clara,
dizer-lhe uma oratória que aparelho!
Cortes-Gerais. O Reyno se prepara
p'ra ouvir a voz dos Povos em conselho,
Monforte ao Banco-Doze me mandara.
Real! Real! - e incline-se o joelho.
Ó Deus de Ourique, cumpre o prometido!
Leva-nos contra os novos muçulmanos,
- nós somos livres, livre é o nosso Rey!
Eu reconheço-lhe o morrião florido.
Onde eu me achava há setecentos anos
com ele, já erguido, me encontrei!
(
In Epopeia da Planície)
Eles o afirmam com aspecto grave,
- eles o afirmam com profunda voz.
Um coro imenso reboou pela nave:
- «O Rei é livre e livres somos nós!»
- «O Rei é livre!» E o grito de Almacave
não foi somente o grito dos Avós.
Por mais que o tempo em nossas veias cave,
nunca desata esses antigos nós!
«O Rei é livre!» E com seu elmo erguido,
é Portugal tornado corpo e alma
na sucessão do tempo indefinido!
O sangue o diz! E o sangue não se engana!
Que ver o Rei na sua força calma,
é ver a Pátria com figura humana!
(In Pequena Casa Lusitana.)
DEUS NA PLANÍCIE
O espírito de Deus flutua e erra
por todo este côncavo profundo.
Assim errava Ele sobre a terra
quando pensou na criação do Mundo.
É noite. Aqui não há mar nem serra.
Há o infinito, o vago. E cá no fundo
minh'alma que se excede e que se aterra,
ó Hálito-Supremo em que eu me inundo!
Ó Hálito-Supremo!... É noite escura.
E o Criador no enlevo em que eu me alago
domina e empolga a Sua criatura.
Sucumbe em mim o bicho vil da terra
E como no Princípio sobre o vago
O Espírito de Deus flutua e erra.
(In Epopeia da Planície)
NO DESERTO
Chegaram os camelos junto ao poço,
Quando Rebeca tinha a urna cheia.
Foram momentos esses de alvoroço,
Bem raros de encontrar em terra alheia.
Também meu coração, menino moço,
Nos cardos do caminho se golpeia.
Ouço-te os passos, dentro de alma eu ouço
O eco dos teus passos sobre a areia.
Busquei-te no deserto longamente...
Como Rebeca outrora, condoída,
Surgiste, calma, na poeira ardente.
De ânfora baixa, à boca da cisterna,
Ficaste assim, para toda a tua vida,
Matando a minha sede, que é eterna!
(In Chuva da Tarde)
VELHO MOTIVO
Soneto de Jacob, pastor antigo,
– soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
O que eu servira para viver contigo,
– tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
E vou sofrendo a minha pena amarga,
– pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!
(In Chuva da Tarde)
MEMÓRIA
Meu coração de lusitano antigo
bateu às portas de Toledo, a estranha.
Mais roto e ensanguentado que um mendigo.
só a saudade as passos lhe acompanha.
Pois a saudade ali me deu abrigo.
ao pé do Tejo que a Toledo banha.
Levava os dias a falar comigo,
como um pastor com outro na montanha.
Em todo o mundo há terra portuguesa,
desde que a alma a tenha na lembrança
e a sirva sempre com fervor igual.
Talvez por isso, em horas de tristeza,
eu pude à sua amada semelhança
criar p'ra mim um novo Portugal!
(In Na Corte da Saudade)
VERSOS DO TRINCO DA PORTA
Versos do trinco da porta,
- Louvado seja o Senhor!
A casa é Deus quem ma guarda,
Ninguém a guarda melhor!
Batem os pobres à porta,
- Batem com ar de humildade.
"Eu sei que é pouco irmãozinho!
É pouco, mas de vontade!"
Quem é que a porta abriria,
Com modos de atrevimento?
São coisas da criadagem!
Não foi ninguém, - é o vento!
Mexem no trinco da porta.
- "Levante, faça favor!"
A entrada nunca se nega
Seja a visita quem for!
Não vês a porta batendo?
Que aragem essa que corta!
Em toda a volta do dia,
Não pára o trinco da porta!
Trinco da porta caindo
Sobre a partida de alguém...
Oh, quantos vão e não voltam?!
São os que a morte lá tem!
(In Quando as Nascentes Despertam)