Sobre uma campa
António Sardinha
António Sardinha, "Sobre uma campa" in De Vita et Moribus - Casos e Almas, Lisboa, Ferin, 1931, pp. 179-183.
A morte da viúva de Oliveira Martins deixou-me pensativo e perturbado. Conheci há três anos a modesta senhora, que foi, silenciosamente, não só a companheira daquele que a uniu ao seu destino, mas aínda a grande amiga de Antero de Quental.
Antero dedicou-lhe, até, o seu soneto célebre:
Antero dedicou-lhe, até, o seu soneto célebre:
«Na mão de Deus, na sua mão direita.
Descansou, afinal, meu coração! »
Descansou, afinal, meu coração! »
E dedicou-lho, talvez, porque no convívio recolhido do lar de Oliveira Martins, da fé sereníssima da santa mulher que o enchia do perfume discreto das suas virtudes cristãs, Antero recebesse algum lampejo fugitivo da graça divina.
Anda por estudar a influência que por ventura o ambiente doméstico tenha exercido na vida mental e social das individualidades como Oliveira Martins, acima da craveira comum. Nem todos serão, dentro da norma conjugal, uns inadaptados, em consequência da sua personalidade exuberante.
Ocorrem-me agora, precisamente, certas palavras emocionantes do velho Sorel, que, depois de combater ousadamente a Democracia, sem dúvida por amor à Violência, sua deusa querida, se abandonou, encantado, à quimera rubra do bolchevismo.
Diz ele algures, a propósito de Rousseau:
«Feliz do homem que encontrou a mulher dedicada, enérgica e orgulhosa do seu amor, que saberá sempre tornar-lhe presente a sua juventude, que impedirá a sua alma de soçobrar, que lhe recordará, a todo o instante, os deveres da sua condição, revelando-lhe, talvez, o seu próprio génio! É assim que a nossa vida intelectual depende, em grande parte, do acaso de um encontro... A escolha da esposa é um dos actos em que melhor se manifesta a psicologia de um homem.»
Dificilmente se compreende como Rousseau, vítima do seu desarranjo sentimental, houvesse de inspirar a Georges Sorel tão nobres reflexões. A não ser pela salutar repugnância moral que na existência do solitário de Ermenonville, nos suscita a ideia de uma M. de Warens ou de uma Teresa.
O que é certo é que a «psicologia profunda» de Oliveira Martins manifestou-se superiormente na escolha da sua companheira, que morre quase anonimamente, — ela que anonimamente vivera, repartida entre as suas obras de piedade e a sua dedicação à memória do marido.
Nunca a mim me esquecerá o encanto melancólico da minha visita ao gabinete de trabalho do historiador! Comemorando o aniversário da sua morte, tracejara de corrida quaisquer descoloridas linhas de homenagem. Pois não tardou a surpreender-me uma carta da ilustre senhora, com o mais enternecido dos agradecimentos, - carta em que me convidava, como devoto de seu marido, a passar um momento junto dos livros dele, na casa que Oliveira Martins aquecera com a labareda infatigável do seu alto espírito.
Aceitei, com mal reprimido alvoroço. Recebeu-me uma sombra — a viúva do historiador. E entre sombras divaguei, como num jazigo, já demorando a vista no retrato do desembargador Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, ministro de Isabel Maria, salvo erro, — e de quem Oliveira Martins, seu neto, herdaria seguramente a bela conformação psicológica que o conduziu quase às portas do Tradicionalismo; já contemplando Nuno Álvares, numa reprodução a óleo, - assinada por el-rei D. Carlos, — da gravura que vem na Crónica do Condestável, edição de 1526.
Precisamente por debaixo dessa recordação amiga do Monarca que Oliveira Martins quis fazer tão grande, abria os seus braços hirtos a cadeira em que o historiador expirou.
Carinhosamente, num como que sonambulismo de quem vivia apenas para o seu mundo de visões interiores, a viúva de Oliveira Martins ia-me marginando a visita com o detalhe murmurado das suas indicações. Gelava tudo aquilo, como se gela num museu ou numa necrópole deserta, - embora na rua cantasse a claridade cáustica de um meio dia de Agosto.
Mais do que nunca eu senti ali o horror de passarmos na existência sem alguém que nos continue!
Como uma chama débil, ali ainda havia uma velhinha suave. Mas quando a velhinha partisse com o seu perfume de ânfora vazia, - das ânforas vazias da imagem pessimista de Renan? E atraiam-me agora as velas, a cuja luz o historiador trabalhara, porque milagre assombroso de amor e de cuidado, - conservando intactos os morrões ardidos, quase vinte anos mais tarde!
«Pois pode voltar sempre que queira! Os livros de meu marido estão ao seu dispor!, Agradecendo, puxei de um ao acaso. Saiu-me a interessante monografia do espanhol Ximenez de Sandoval sobre a batalha de Aljubarrota. Tomei nota, a disfarçar a minha emoção. Porque, - mais longe, o que eu tinha diante dos meus olhos, - o que não se apagava dentro de mim, era a lembrança da agonia cristianíssima de Oliveira Martins, rezando a Avé-Maria com aquela mesma velhinha que eu ali via ao meu lado, - então com outro vigor, mas com a mesma fé transparente e inabalável.
Anda por estudar a influência que por ventura o ambiente doméstico tenha exercido na vida mental e social das individualidades como Oliveira Martins, acima da craveira comum. Nem todos serão, dentro da norma conjugal, uns inadaptados, em consequência da sua personalidade exuberante.
Ocorrem-me agora, precisamente, certas palavras emocionantes do velho Sorel, que, depois de combater ousadamente a Democracia, sem dúvida por amor à Violência, sua deusa querida, se abandonou, encantado, à quimera rubra do bolchevismo.
Diz ele algures, a propósito de Rousseau:
«Feliz do homem que encontrou a mulher dedicada, enérgica e orgulhosa do seu amor, que saberá sempre tornar-lhe presente a sua juventude, que impedirá a sua alma de soçobrar, que lhe recordará, a todo o instante, os deveres da sua condição, revelando-lhe, talvez, o seu próprio génio! É assim que a nossa vida intelectual depende, em grande parte, do acaso de um encontro... A escolha da esposa é um dos actos em que melhor se manifesta a psicologia de um homem.»
Dificilmente se compreende como Rousseau, vítima do seu desarranjo sentimental, houvesse de inspirar a Georges Sorel tão nobres reflexões. A não ser pela salutar repugnância moral que na existência do solitário de Ermenonville, nos suscita a ideia de uma M. de Warens ou de uma Teresa.
O que é certo é que a «psicologia profunda» de Oliveira Martins manifestou-se superiormente na escolha da sua companheira, que morre quase anonimamente, — ela que anonimamente vivera, repartida entre as suas obras de piedade e a sua dedicação à memória do marido.
Nunca a mim me esquecerá o encanto melancólico da minha visita ao gabinete de trabalho do historiador! Comemorando o aniversário da sua morte, tracejara de corrida quaisquer descoloridas linhas de homenagem. Pois não tardou a surpreender-me uma carta da ilustre senhora, com o mais enternecido dos agradecimentos, - carta em que me convidava, como devoto de seu marido, a passar um momento junto dos livros dele, na casa que Oliveira Martins aquecera com a labareda infatigável do seu alto espírito.
Aceitei, com mal reprimido alvoroço. Recebeu-me uma sombra — a viúva do historiador. E entre sombras divaguei, como num jazigo, já demorando a vista no retrato do desembargador Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, ministro de Isabel Maria, salvo erro, — e de quem Oliveira Martins, seu neto, herdaria seguramente a bela conformação psicológica que o conduziu quase às portas do Tradicionalismo; já contemplando Nuno Álvares, numa reprodução a óleo, - assinada por el-rei D. Carlos, — da gravura que vem na Crónica do Condestável, edição de 1526.
Precisamente por debaixo dessa recordação amiga do Monarca que Oliveira Martins quis fazer tão grande, abria os seus braços hirtos a cadeira em que o historiador expirou.
Carinhosamente, num como que sonambulismo de quem vivia apenas para o seu mundo de visões interiores, a viúva de Oliveira Martins ia-me marginando a visita com o detalhe murmurado das suas indicações. Gelava tudo aquilo, como se gela num museu ou numa necrópole deserta, - embora na rua cantasse a claridade cáustica de um meio dia de Agosto.
Mais do que nunca eu senti ali o horror de passarmos na existência sem alguém que nos continue!
Como uma chama débil, ali ainda havia uma velhinha suave. Mas quando a velhinha partisse com o seu perfume de ânfora vazia, - das ânforas vazias da imagem pessimista de Renan? E atraiam-me agora as velas, a cuja luz o historiador trabalhara, porque milagre assombroso de amor e de cuidado, - conservando intactos os morrões ardidos, quase vinte anos mais tarde!
«Pois pode voltar sempre que queira! Os livros de meu marido estão ao seu dispor!, Agradecendo, puxei de um ao acaso. Saiu-me a interessante monografia do espanhol Ximenez de Sandoval sobre a batalha de Aljubarrota. Tomei nota, a disfarçar a minha emoção. Porque, - mais longe, o que eu tinha diante dos meus olhos, - o que não se apagava dentro de mim, era a lembrança da agonia cristianíssima de Oliveira Martins, rezando a Avé-Maria com aquela mesma velhinha que eu ali via ao meu lado, - então com outro vigor, mas com a mesma fé transparente e inabalável.
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Despedi-me, anunciando-me para depressa.
Veio, porém, o exílio e eu não tornei a vêr a bondosa senhora. Escrevi-lhe, é certo. Mas a minha carta, por dolorosa casualidade, entraria na casa da calçada dos Caetanos, talvez, à hora em que a sua dona ia a sepultar...
Desfeita na confusão das formas transitórias, prometo, no entanto, que hei-de recordá-la sempre, porque nunca se pode olvidar quem, como a viúva de Oliveira Martins, segurando um Crucifixo com a mão trémula, ajudou heroicamente seu marido a bem morrer.
Ela foi a exemplificação perfeita das muitas virtudes anónimas e obscuras, graças às quais, apesar de tudo, Portugal consegue obter ainda misericórdia perante a ira do Senhor. Decoremos-lhe o nome para o ensinarmos a nossas esposas, enquanto já dentro dos muros da Jerusalém gloriosa e eterna, ela repete agora, satisfeita e mansa, esse requiem do grande desgraçado que na sua piedade alguma vez encontraria ancoradouro para as tempestades que lhe perderam a alma:
Veio, porém, o exílio e eu não tornei a vêr a bondosa senhora. Escrevi-lhe, é certo. Mas a minha carta, por dolorosa casualidade, entraria na casa da calçada dos Caetanos, talvez, à hora em que a sua dona ia a sepultar...
Desfeita na confusão das formas transitórias, prometo, no entanto, que hei-de recordá-la sempre, porque nunca se pode olvidar quem, como a viúva de Oliveira Martins, segurando um Crucifixo com a mão trémula, ajudou heroicamente seu marido a bem morrer.
Ela foi a exemplificação perfeita das muitas virtudes anónimas e obscuras, graças às quais, apesar de tudo, Portugal consegue obter ainda misericórdia perante a ira do Senhor. Decoremos-lhe o nome para o ensinarmos a nossas esposas, enquanto já dentro dos muros da Jerusalém gloriosa e eterna, ela repete agora, satisfeita e mansa, esse requiem do grande desgraçado que na sua piedade alguma vez encontraria ancoradouro para as tempestades que lhe perderam a alma:
«Na mão de Deus, na sua mão direita.
Descansou, afinal, meu coração!»
Descansou, afinal, meu coração!»
Esposa / Dona / Oliveira Martins / Antero de Quental / Georges Sorel / Rousseau / Renan / Joaquim Pedro Gomes de Oliveira / rei D. Carlos / Ximenez de Sandoval
Victória de Mascarenhas Barbosa (1842 - ?) , viúva de Oliveira Martins, era filha de Francisco Bento Barbosa da Cunha e de Eugénia de Mascarenhas. Joaquim Pedro e Victória casaram em 10 de Março de 1865, não deixando descendência.