Henrique Barrilaro Ruas, Em que consiste exactamente o perigo espanhol, História, Novembro 2002, pp. 34-37 [com algumas correcções introduzidas pelo Autor]
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder ...o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, nobilíssimo) Euzkadi.
O “perigo espanhol” é doença quase endémica entre portugueses. A bem dizer, só recentemente, com o fenómeno um tanto snob do anti-nacionalismo, é que se tem perdido essa antiga sensação. Pessoalmente, com sangue materno de origem espanhola (mas andaluz – de ascendência genovesa – e basco), com uma educação de patriotismo quase romântico, com muita acentuada atenção aos factos históricos mais simbólicos, devo confessar que sempre senti esse perigo e a vontade de o enfrentar. Mas nunca deixei de ter simpatia e admiração pela Espanha, e sempre tenho procurado levar os meus amigos mais exaltadamente desconfiados e hostis a aceitarem que os Espanhóis não são um perigo por odiarem Portugal, mas por amarem Portugal inadequadamente, ou de modo insensato.
Ao longo dos tempos, o “perigo espanhol” manifestou-se de várias maneiras: desde o altivo paternalismo de Afonso VII (apesar do encontro de 4 e 5 de Outubro de 1143), até à paixão incontrolada de João I ou de Filipe II; desde o absorvente imperialismo de Filipe IV até à idolatria napoleónica de Godoy; desde o insolente intervencionismo de Afonso XIII até ao de Franco (já perto de morrer).
De todas essas modalidades, nem todas elas postas em prática ou sequer experimentadas, a mais grave terá sido a de Godoy. Porque foi então que o imperialismo castelhano (muitas vezes apenas sonhado) se conjugou com outro imperialismo mais poderoso, e um e outro decidiram acabar com Portugal. E também porque, de esse absurdo e vergonhoso conluio, fica no corpo de Portugal a “chaga do lado”: ainda hoje, Olivença está sob o domínio espanhol.
Direi, pois, que acredito no “perigo espanhol”. Direi que, para mim, o perigo espanhol está mais forte, mais opulento, mais complexo e mais extenso; porque se confunde com o que chamo o perigo europeu, que para nós, portugueses, está propriamente representado por aquele primeiro perigo. Estou convencido de que os espanhóis aceitaram facilmente o projecto europeu (que não parecia poder ser simpático ao seu profundo e sensível nacionalismo), exactamente por assim se lhes oferecer a ocasião propícia para pôr em prática o antigo sonho da unidade peninsular. Foi uma coisa que logo entendi (ou intuí) quando, em 1948, ouvi Denis de Rougemont defender, na Cidade Universitária de Paris, a tese da Federação Europeia. Proposta pelo orador a sua visão da futura Europa, a imensa maioria da larga assistência (em que havia bastantes espanhóis) votou a favor, contra dois votos (o meu e o de uma belga) e com meia dúzia de abstenções, algumas das quais eram espanholas. Nunca mais deixei de compreender como coisa natural a posição espanhola favorável à europeização crescente.
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder. O absurdo tratado de Fontainebleau não foi avante. Mas o tratadozinho de Badajoz, que devia ser desfeito no Congresso de Viena, como primeiro ensaio da destruição de Portugal por Napoleão e Godoy, ultrapassou vitoriosamente a barreira da Política geral, e ainda hoje pesa nas relações luso-espanholas. Tal foi a força dessa coligação imperialista.
Mas eu prefiro abordar o tema numa perspectiva diferente. Não a partir de experiências, de casos concretos, de anormalidades, mas antes a pensar em grandes linhas da História. No rosto positivo da História.
O que mais importa, penso eu, é considerar o que é que está – ou pode estar – em perigo, quando se fala em “perigo espanhol”. Uma coisa é ver, conhecer o perigo em si mesmo, na matéria que o compõe, nas formas que tem assumido ou pode vir a assumir. Outra coisa, bem mais interessante, é saber em que consiste esse perigo quanto ao que é ameaçado. (Há fortíssimas tempestades que varrem os desertos e os mares e as montanhas – e que nada ou quase nada significam para a gente humana. Há tempestades – ou sismos – bem mais pequenos em si, e que provocam terríveis desastres para a humanidade.) Interessa, pois, para pesar o “perigo espanhol”, olhar claramente para aquilo que está ou pode estar em perigo. Neste sentido, ao menos para nós, portugueses, o “perigo espanhol” ganha significado bem concreto, e revela uma inesperada transcendência.
Ou seja, a visão ou descoberta do “perigo espanhol” em termos funcionais, ou de apreciação relativa, ou de dinâmica histórica, ou de polémica civilizacional, constitui virtualmente uma tragédia para a humanidade.
Se o “perigo espanhol” tivesse sido eficaz, plenamente ou quase vitorioso, não só o Povo português como, em diversos graus, muitos outros povos, vastíssimas regiões do mundo, teriam perdido ou nunca teriam alcançado certos bens políticos, económicos, culturais, espirituais, de altíssima importância. Tanto mais que não podemos esquecer o que significa prioridade portuguesa para uma Europa habituada a viver e a morrer sobre si mesma, inegavelmente engenhosa, artística, “sofisticada”, capaz de se inebriar com os perfumes do seu próprio corpo e do seu próprio espírito, provavelmente apegada para sempre à deslumbrante contemplação do umbigo...
Sem Aljubarrota, sem Montes Claros, sem as Linhas de Torres (tornadas necessárias também pela convergência do “perigo espanhol” com o, então campeante, perigo francês) a já grande ameaça que acompanha quase sempre a nossa História teria instalado no mundo um “Portugal” bem diferente, um “Portugal” paralelo, ou sombra, de Espanha.
* * *
Em 1949, no mês de Julho, reuniu-se perto de Salzburgo o 1º Congresso das “Nouvelles Equipes Internationales”, de raiz democrata-cristã e federalista. A convite da delegação francesa, e apesar de ter declarado não ser democrata-cristão (mas cristão social) nem federalista-europeu, desloquei-me de Paris (onde terminava dois anos de estudos) e tomei parte nos trabalhos, na qualidade de observador português. (Era, de facto, exemplar único.) Tive a oportunidade de, durante alguns dias, conviver com dois delegados do País Basco, um dos quais era irmão do Presidente Aguirre (então residente, de preferência, em Biarritz) e o outro se chamava (o nome tornou-se, há poucos anos, muito conhecido) Iñaki de Rentería. Este último tinha estado, pouco antes, nos Pirenéus, como guerrilheiro anti-franquista. Ambos me diziam (além de outras coisas que para este caso interessam menos) que o problema histórico português – o problema da sua soberania plena – era completamente diferente do problema basco. Porque Portugal sempre tivera política diplomática própria, e tambem porque havia o Ultramar. Estou a vê-los, na Áustria, e, dias depois, em Paris, na própria casa do Presidente Aguirre, a explanar estas e outras ideias claras e distintas. As fotografias que deles conservo avivam a recordação pessoal. E acentuam, em diferente perspectiva, os traços essenciais da questão que nos ocupa. Porque o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, no bilíssimo) Euzkadi.
Tal confusão (ou outras semelhantes a ela) não depende necessariamente de Espanha. Pode ser obra dos Portugueses. Como todas as versões do “perigo espanhol” que ao longo deste escrito fomos apresentando.
(In História, Novembro 2002, pp. 34-37; com algumas correcções introduzidas pelo Autor)
Ao longo dos tempos, o “perigo espanhol” manifestou-se de várias maneiras: desde o altivo paternalismo de Afonso VII (apesar do encontro de 4 e 5 de Outubro de 1143), até à paixão incontrolada de João I ou de Filipe II; desde o absorvente imperialismo de Filipe IV até à idolatria napoleónica de Godoy; desde o insolente intervencionismo de Afonso XIII até ao de Franco (já perto de morrer).
De todas essas modalidades, nem todas elas postas em prática ou sequer experimentadas, a mais grave terá sido a de Godoy. Porque foi então que o imperialismo castelhano (muitas vezes apenas sonhado) se conjugou com outro imperialismo mais poderoso, e um e outro decidiram acabar com Portugal. E também porque, de esse absurdo e vergonhoso conluio, fica no corpo de Portugal a “chaga do lado”: ainda hoje, Olivença está sob o domínio espanhol.
Direi, pois, que acredito no “perigo espanhol”. Direi que, para mim, o perigo espanhol está mais forte, mais opulento, mais complexo e mais extenso; porque se confunde com o que chamo o perigo europeu, que para nós, portugueses, está propriamente representado por aquele primeiro perigo. Estou convencido de que os espanhóis aceitaram facilmente o projecto europeu (que não parecia poder ser simpático ao seu profundo e sensível nacionalismo), exactamente por assim se lhes oferecer a ocasião propícia para pôr em prática o antigo sonho da unidade peninsular. Foi uma coisa que logo entendi (ou intuí) quando, em 1948, ouvi Denis de Rougemont defender, na Cidade Universitária de Paris, a tese da Federação Europeia. Proposta pelo orador a sua visão da futura Europa, a imensa maioria da larga assistência (em que havia bastantes espanhóis) votou a favor, contra dois votos (o meu e o de uma belga) e com meia dúzia de abstenções, algumas das quais eram espanholas. Nunca mais deixei de compreender como coisa natural a posição espanhola favorável à europeização crescente.
Quando dois impérios se conjugam, e o menos forte se submete ao mais forte, os terceiros têm tudo a perder. O absurdo tratado de Fontainebleau não foi avante. Mas o tratadozinho de Badajoz, que devia ser desfeito no Congresso de Viena, como primeiro ensaio da destruição de Portugal por Napoleão e Godoy, ultrapassou vitoriosamente a barreira da Política geral, e ainda hoje pesa nas relações luso-espanholas. Tal foi a força dessa coligação imperialista.
Mas eu prefiro abordar o tema numa perspectiva diferente. Não a partir de experiências, de casos concretos, de anormalidades, mas antes a pensar em grandes linhas da História. No rosto positivo da História.
O que mais importa, penso eu, é considerar o que é que está – ou pode estar – em perigo, quando se fala em “perigo espanhol”. Uma coisa é ver, conhecer o perigo em si mesmo, na matéria que o compõe, nas formas que tem assumido ou pode vir a assumir. Outra coisa, bem mais interessante, é saber em que consiste esse perigo quanto ao que é ameaçado. (Há fortíssimas tempestades que varrem os desertos e os mares e as montanhas – e que nada ou quase nada significam para a gente humana. Há tempestades – ou sismos – bem mais pequenos em si, e que provocam terríveis desastres para a humanidade.) Interessa, pois, para pesar o “perigo espanhol”, olhar claramente para aquilo que está ou pode estar em perigo. Neste sentido, ao menos para nós, portugueses, o “perigo espanhol” ganha significado bem concreto, e revela uma inesperada transcendência.
- “Perigo espanhol” é negar, ou contradizer, ou pôr em causa, ou desprezar a soberania do povo português. Pode ser que, para alguns grandes povos, a soberania não tenha importância essencial. Mas nós, portugueses, aqui, na Península, sempre precisámos dessa alta muralha, dessa defesa insubstituível, desse sinal esplêndido. Quisemos a independência – e não foi por capricho. Ganhámos a independência. Criámos o Pacto Sucessório, que iria permitir a D. Afonso Henriques a Conferência de Zamora e a espantosa salvação do reino quando do desastre de Badajoz. Criámos um vasto sistema de alianças de base matrimonial, dentro e fora da Península. Criámos a Aliança Inglesa (que já tem formas vivas no primeiro reinado), que nos vai ajudar a contra-balançar o poderio castelhano ainda em tempos de D. Fernando. Organizámos as Forças Armadas com estruturas defensivas que tinham atingido, no reinado de D. Sebastião, tal densidade e qualidade que nos viriam a dar a vitória da Guerra da Restauração e nas Invasões Francesas.
- “Perigo espanhol” é negar ou pôr em dúvida a realidade comunitária dotada de consciência “para-nacional” (Pierre David) e que constituía já uma “república” antes de assumir a forma de Estado nacional. (De certa maneira, essa comunidade tinha por fundamento os Lusitanos de Viriato e, como reino dos Suevos, chegara a aliar-se ao Império Romano do Oriente.)
- “Perigo espanhol” é, também, negar ou contradizer, ou sobretudo, menosprezar como ornato barroco o carácter institucional permanente do centro-cume do Estado nacional: uma realeza hereditária mas aberta ao critério absoluto do Interesse Nacional, como se viu em 1245, em 1383-85, em 1640-1641, em 1667-68, em 1698, e na controvérsia de 1826-34. Abater ou conservar abatida essa instituição cria uma forma notável de “perigo espanhol”, sempre que a Espanha é regida em monarquia. Porque logo Portugal tende a ser tomado como análogo à Galiza, ao País Basco, à Catalunha... O que já tem visto e sofrido, de vários modos; por exemplo, em Santiago de Compostela, num falhado “frente a frente” do Rei de Espanha com o Presidente Jorge Sampaio.
- “Perigo espanhol” é, também, negar, adormecer, pôr em banho-maria a indiscutível prioridade portuguesa das Descobertas marítimas, na colonização sistemática, na evangelização permanente fora da Europa. Esquecer que os arquipélagos da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde, foram os pioneiros da Cultura Europeia (como tal nascente) na época em que o Renascimento dava aos europeus a auto-consciência.
- “Perigo espanhol” é negar ou esquecer que foi Portugal que renovou a Historiografia europeia, dando-lhe dimensões de universalidade, apenas comparável àquela que marca os primeiros séculos do Cristianismo.
- “Perigo espanhol” é ignorar ou desprezar a origem portuguesa de certas formas culturais que vão estar presentes do Extremo Oriente ao Extremo Ocidente e têm pontos altos o culto ao Espírito Santo, a solidariedade comunitária, o carácter festivo do bem-fazer, a igualdade social própria das Santas Casas da Misericórdia.
- “Perigo espanhol” é fazer-se alguém surdo à língua portuguesa, nossa “pátria”, supor indiferente à riqueza da humanidade que entre os Trovadores e Rosalía de Castro se estendesse um imenso deserto de silêncio – ou de canto e discursos castelhanos -, ou se pudesse ouvir o Cancioneiro Geral, e Fernão Lopes, e o Leal Conselheiro, e a Menina e Moça, e Gil Vicente, e Barros, e Camões, e Vieira, e Rodrigues Lobo e Bocage e Garrett e Camilo...
- “Perigo espanhol” é fazer de conta que a acção dos Portugueses foi equivalente à dos Espanhóis na América do Sul, e que só por acaso é que metade desse continente constitui o Brasil, ao passo que a outra metade se divide em nove Estados nacionais e alguns territórios mal saídos do colonialismo.
Ou seja, a visão ou descoberta do “perigo espanhol” em termos funcionais, ou de apreciação relativa, ou de dinâmica histórica, ou de polémica civilizacional, constitui virtualmente uma tragédia para a humanidade.
Se o “perigo espanhol” tivesse sido eficaz, plenamente ou quase vitorioso, não só o Povo português como, em diversos graus, muitos outros povos, vastíssimas regiões do mundo, teriam perdido ou nunca teriam alcançado certos bens políticos, económicos, culturais, espirituais, de altíssima importância. Tanto mais que não podemos esquecer o que significa prioridade portuguesa para uma Europa habituada a viver e a morrer sobre si mesma, inegavelmente engenhosa, artística, “sofisticada”, capaz de se inebriar com os perfumes do seu próprio corpo e do seu próprio espírito, provavelmente apegada para sempre à deslumbrante contemplação do umbigo...
Sem Aljubarrota, sem Montes Claros, sem as Linhas de Torres (tornadas necessárias também pela convergência do “perigo espanhol” com o, então campeante, perigo francês) a já grande ameaça que acompanha quase sempre a nossa História teria instalado no mundo um “Portugal” bem diferente, um “Portugal” paralelo, ou sombra, de Espanha.
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Em 1949, no mês de Julho, reuniu-se perto de Salzburgo o 1º Congresso das “Nouvelles Equipes Internationales”, de raiz democrata-cristã e federalista. A convite da delegação francesa, e apesar de ter declarado não ser democrata-cristão (mas cristão social) nem federalista-europeu, desloquei-me de Paris (onde terminava dois anos de estudos) e tomei parte nos trabalhos, na qualidade de observador português. (Era, de facto, exemplar único.) Tive a oportunidade de, durante alguns dias, conviver com dois delegados do País Basco, um dos quais era irmão do Presidente Aguirre (então residente, de preferência, em Biarritz) e o outro se chamava (o nome tornou-se, há poucos anos, muito conhecido) Iñaki de Rentería. Este último tinha estado, pouco antes, nos Pirenéus, como guerrilheiro anti-franquista. Ambos me diziam (além de outras coisas que para este caso interessam menos) que o problema histórico português – o problema da sua soberania plena – era completamente diferente do problema basco. Porque Portugal sempre tivera política diplomática própria, e tambem porque havia o Ultramar. Estou a vê-los, na Áustria, e, dias depois, em Paris, na própria casa do Presidente Aguirre, a explanar estas e outras ideias claras e distintas. As fotografias que deles conservo avivam a recordação pessoal. E acentuam, em diferente perspectiva, os traços essenciais da questão que nos ocupa. Porque o “perigo espanhol” é hoje, numa Europa outra vez egoísta e carolíngia, que se confunda Portugal com o (aliás, no bilíssimo) Euzkadi.
Tal confusão (ou outras semelhantes a ela) não depende necessariamente de Espanha. Pode ser obra dos Portugueses. Como todas as versões do “perigo espanhol” que ao longo deste escrito fomos apresentando.
(In História, Novembro 2002, pp. 34-37; com algumas correcções introduzidas pelo Autor)