Meu prezado camarada: Determina-me a mandar ao Fradique estas linhas um dever comigo mesmo contraído, desde que há vinte anos, com outros rapazes, artistas, poetas e escritores de todas as tendências, me associei ao protesto público que se seguiu à decisão do júri do concurso para o monumento do Marquês de Pombal, nessas semanas febris em que se alevantaram acima de todas, as vozes de António Arroio, Guerra Junqueiro e outros ilustres portugueses. Mais tarde, quando da adjudicação definitiva, ao fim de complicados incidentes burocráticos, novamente declarei num jornal que à minha geração pertencia o encargo de evitar que esse projecto fosse erguido, ou o dever de o demolir, se algum dia chegasse a termo de realização. Por isso, não venho de súbito atirar pedras ao monumento: em nome da coerência, compete-me advogar, embora sozinho, o dever de lhe tirar as pedras, uma a uma, até à base, para libertar o bronze das formas inglórias a que ali o sujeitaram. Na hora em que um novo infortúnio vai cair sobre esta cidade, escrevo-lhe dolorosamente constrangido, não para apresentar uma dissertação, mas para formular alguns reparos com que posso, mas não desejo, agravar o amor-próprio dos autores e colaboradores do monumento. Os que conheço, quero, neste caso, considerá-los como inexistentes, certo como estou de que, se esta fosse a sua glória ou mérito mais assinalado, eles teriam iludido o destino que os fez artistas. Os seus trabalhos foram pagos com o dinheiro da Nação; deve-Ihes agora o público o sereno juízo do seu labor, por certo honrado, mas evidentemente errado e infeliz. É possível que o Marquês mereça aquele monumento e que ele seja, como por aí corre de boca em boca, a justa vingança dos jesuítas; mas a cidade de Lisboa não merece seguramente semelhante desdouro plástico que já está na Rotunda a toldar o sol e a estorvar o trânsito. Na segunda praça da cidade, o maior dos seus monumentos ficará sendo uma combinação de insignes fealdades, o testemunho permanente de mal inspirada concepção, quase de infantil capricho. Neste caso triste, hoje como em 1914, não discuto a iniquidade da consagração, em tais termos, de uma figura que geralmente se considera uma expressão divisora do pensamento histórico e do sentimento público em Portugal. Não são os artistas os culpados da preferência que foi dada ao Marquês entre tantos vultos de incontestada significação nacional, como o infante D. Henrique, Vasco da Gama, João Pinto Ribeiro, Gualdim Pais, Nun' Alvares ou Mousinho de Albuquerque. Essa preterição apenas prova que a estátua traz origem mais profunda e tenebrosa do que a de uns caboucos que tivessem quarenta metros de profundidade... Neste momento é oportuno avaliar e julgar apenas a versão plástica da glória cívica, oficialmente atribuída ao ministro de D. José. E ao primeiro relance de olhos, depara-se-nos um conjunto sem proporção, a que falta homogeneidade nos componentes e no estilo, uma redundância sem valor sintético que elevá-lo pudesse à categoria de símbolo glorificador; e vamos vendo depois sucessivas aposições de fragmentos, como se de várias proveniências se acumulassem figuras e grupos, conseguindo-se apenas um aglomerado, pela incapacidade de compor e formar um organismo, com a necessária unidade. Pretendeu-se fazer ali, na verdade, a narrativa plastificada e escrita dos factos mais notáveis do reinado do Marquês, desde o terramoto de 1755 até ao esforço do operário a soprar numa bexiga que não temos esperança de vir a ser garrafa na Marinha Grande. Arbitrária e enigmática, a associação de um leão deformado por elefantíase, com uma figura humana mal plantada, sem respeito de proporções nem de anatomia, peso compacto que esmaga toda a massa da construção, grupo desditoso que, para se consolar, meditará na secreta aspiração de vir um dia a fundir-se em centauro, para justo castigo de quem ousou concebê-lo... Preferível seria que o Marquês, novo Hércules de casaca e cabeleira, ali se representasse a matar intrepidamente, às bastonadas, a hidra venenosa da reacção. Não furtando os olhos a uma junta de bois hidrópicos e à mulher extática que pela soga os devia guiar, t e m o s de considerar com pasmo, o navio de comércio a emergir por metade das entranhas do monumento, já com a República no arejo da vante, e destinado a singrar no céu ou na terra, por não caber no recipiente de água doce que lhe destinaram e onde tomam escasso banho de tub os cavalos e toda a comparsaria mitológica que entrou no drama do terramoto. Depois, a figura alegórica de Lisboa ergue a camisa com decisão, como frineia, desesperada de não poder lavá-la na mesma água e batê-la merecidamente no próprio escudo que tem aos pés. Na parte posterior, senta-se de costas para um templo grego, uma figuração alcunhada de Minerva, não grega, nem helénica, mas com ascendência egípcio-assíria, que empunha uma lança e ainda virá a sustentar uma vitória. Assim se traduzem plasticamente, neste ano da Graça, os Estatutos que o Marquês levou à Universidade de Coimbra. Na cornija uma legenda latina elucida o investigador, mas, a-pesar-disso, nós, os que por lá andámos, recusamo-nos a crer na transcendência do símbolo. E porque o meu intento não é analisar os pormenores, medalhões, legendas, trofeus e a restante zoologia de mamíferos e aves que lá se podem ver, resta-me lastimar de novo a preocupação de expor em vez de exprimir, de narrar em lugar de simbolizar com alegorias concordantes e tão próprias do estilo e da feição mental da época. Na história descritiva do Marquês, temos então de notar a ausência do suplício de João Baptista Pele, com os membros decepados, amarrado a dois cavalos que o dilaceraram, a correr pelo areal da Junqueira; faltam a execução dos Távoras e o incêndio da Trafaria, não esquecendo o martírio do padre Malagrida, crueldades de magnitude neroniana, capazes de inflamar a inspiração de um artista de génio. Ao ver aquele dispêndio inútil de esforços e de dinheiro, manda a justiça reconhecer que em tal praça, com massas arquitectónicas que vão de grades de jardinetos em praia barata, até prédios de rendimento com cinco andares, de cocheiras e mirantículos de folha de ferro, atirando para moiriscos, até um fundo de terras que oscila entre lago e bosque - nenhum outro projecto lograria vingar majestosamente, porque a vulgaridade, o desconcerto e a penúria circundantes malograriam toda a realização, por muito bela que fosse. Mas o que está, não devia ali permanecer, se existisse Poder Público atento às exigências de um ressurgimento no aspecto educativo, se uma Câmara pudesse ter a liberdade e o desassombro de não aceitar, em nome da cidade de Lisboa, uma dádiva que a empobrece e a deslustra. Por mim que nada posso, limito-me a renovar o protesto da minha mocidade, sentindo vivamente que, pela satisfação própria de ver confirmado um juízo distante, tenha de considerar o monumento ainda mais horrendo e condenável do que se me representou no projecto da maqueta do concurso. Ao fazer estas ligeiras reflexões, em que não posso louvar o trabalho alheio, tenho pena dos artistas como homens, e sinto tristeza pela cidade de Lisboa, ao receber um monumento que só poderá ser admirado pela gente ignara, sem que de tantos e tão longos esforços resulte para as gerações de hoje e do futuro, uma expressão de grandeza e de beleza urbana, em que possam recrear-se os olhos, contentar-se o gosto e elevar-se o espírito. Com os meus agradecimentos, creia-me com velha estima, Seu camarada e amigo,