Olhando o caminho
À MEMÓRIA DO DOUTOR MANUEL FERREIRA DEUSDADO, AMIGO E MESTRE QUERIDO QUE EM PORTUGAL FOI O PRIMEIRO A ENCONTRAR PELOS CAMINHOS PERDIDOS DA INTELIGÊNCIA A DUPLA VERDADE CATÓLICA E MONÁRQUICA DA NOSSA RAÇA
António Sardinha
Talvez que à frente deste volume [Ao Ritmo da Ampulheta] devesse redigir a minha confissão intelectual. Filho dum século que envenenou a inteligência e perverteu a sensibilidade, eu posso levantar as mãos a Deus e agradecer-lhe, prostrado no átrio dos tempos novos, a graça de me haver tirado a alma do Egipto, levando-me a tocar com o dedo a mentira ignóbil dos ídolos em triunfo na praça pública. Bem cedo o sal que sobe à mesa do Senhor me ateou no espírito uma ânsia de repouso, de quietação, de síntese. Eu não descendia daqueles estranhos povos do fabulista que tinham apenas por única linguagem o terrível monossílabo — «Não!» No meu sangue gritava, e protestava, ouvindo a areia cair na ampulheta, um nobre desejo de durar, de construir. Sabia que o deserto era enorme, — que faltavam os roteiros e se ignorava o que estaria para além. Nem por isso o meu ardor desfaleceu, olhando a vastidão imensa do caminho a percorrer. Sou um homem de boa-vontade, — e como homem de boa-vontade me persigno e declaro. As páginas que se enfeixam no presente livro não são mais que marcos levantados a afirmar o meu esforço de soldado da contra-revolução. Contra-revolução religiosa e contra-revolução política, pelo regresso, a um tempo humilde e desassombrado, à via [na 1ª ed., "vida"; nota da 2ª ed.] desacreditada da tradição. Quando parti para o combate, poucos mais encontrei na mesma fila. Hoje, na desordem criadora em que Portugal se debate, há já uma aragem de esperança, impregnada da energia iluminada com que iniciamos a cruzada - os meus pares e eu!
Pesa sobre nós — «anti-modernos» e «ultra-modernos», na bela definição de Jacques Maritain— pesa sobre nós o silêncio, que só nos dignifica, de uma sociedade de judeus, de cocainómanos e de banqueiros, a quem soavam como golpes de azorrague, as verdades fortes que nós surgimos a pregar, — as verdades fortes, as verdades duras, de que tanto falava o senhor de Bonald ["o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional"; António Sardinha, Purgatório das Ideias, Lisboa, 1929, p. 164 (nota desta edição, para o Leitor bem intencionado)]. Cabe-nos assim o destino de todos os renovadores. Profetizando a queda das babilónias marcadas pelo conúbio canalha do sabre e do dito, nós não agradaríamos decerto aos que vivem das fórmulas e das convenções, — aos que queimam incenso a Jehovah, mas depõem também oferendas nas aras de Belphegor. No meio da hostilidade lentejoulada dos carnets-mondains e dos apupos ignaros dos detentores tatuados da Opinião Pública, uma glória nos pertence, — una e indivisível: — a glória de havermos restituído Portugal à integridade da sua consciência histórica, ao sentimento adormecido da sua realidade eterna como Pátria.
As nossas campanhas nacionalistas desceram das Letras à Política, — subiram da Acção à atmosfera Diáfana das Ideias. Tudo se obliterara entre nós, — desde o instinto das nossas raízes seculares até à posição que nos tocava, como raça e como Estado, no drama agudíssimo das nações contemporâneas. Como se o solo sagrado da terra dos Avós se tivesse transformado num tablado ignominioso de títeres de feira, só passavam e repassavam diante dos nossos olhos doridos, como uma teoria de sombras inferiores, os personagens de Eça de Queiroz. A comédia, trágico-comédia, Senhor meu Deus! —, repartia-se em actos e jornadas. Restauração monárquica? Assomava logo, inevitável e decorativo, o conde de Gouvarinho, o conselheiro Acácio, a barriga do cónego Dias, a concavidade majestosa de Pacheco. Defesa da República, — intervenção na guerra? Imediatamente, como duma caixa de molas, rebentava-nos, estridente e salivosa, a pupilagem incontável do Palma Cavalão e do Paulo dos Móveis. Só o intelectualismo insatisfeito de Fradique Mendes se apagava numa penumbra discreta, refugiado na leitura de Taine, — mas no Taine das Origines de la France contemporaine.
Porque aparecemos nós então, — se nada já restava da grei antiga, na dissolução geral em que o Liberalismo abismava as mentalidades e os caracteres? Não sairá da minha pena a resposta, porque a outros cumpre, com mais tranquila segurança, ajuizar da função que fomos chamados a desempenhar, — no secreto e profundo providencialismo que rege a sorte dos homens e imprime directrizes aos povos. No entanto, se existe, como creio que existe, uma genealogia oculta de que nós somos a continuidade e a floração, para que melhor lhe surpreendamos o fio esclarecedor, recorramos aos últimos períodos de Oliveira Martins na sua História de Portugal. "Daí vem o caso — escreve ele —, talvez único na Europa, de um povo que, não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e amor pelas suas tradições, pelos seus homens superiores, que não só vive de copiar, literária e politicamente, a França, de um modo servil e indiscreto, que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio, com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco. Quando uma nação se condena pela boca de seus próprios filhos, é difícil, sendo impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva". E o historiador, reagindo contra a dureza clínica do seu diagnóstico, acrescenta: — "Continua ainda a decomposição nacional, apenas interrompida de um modo aparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas, fomentadas pelo militarismo universal? Ou presenciamos um fenómeno de obscura reconstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa mudez patriótica, sob a desesperança por que toda a parte ri e geme, crepitará latente e ignota a chama de um pensamento indefinido ainda?"
Suspensa a interrogação de Oliveira Martins, verificamos agora que a decomposição nacional continuaria, passando por transes inesperados, sofrendo aspectos e modificações nunca imaginadas. Mas, latente e ignota, como num casulo de encanto, crepitava sem dúvida entre as cinzas da casa em ruína, a chama dum pensamento «indefinido ainda». Que pensamento era esse, — donde é que ele nos vinha? Era o último clarão do génio ancestral da Pátria, — vinha-nos instintivamente das próprias razões de ser, tanto territoriais, com morais, do Portugal bem amado de todos nós. A dissolução começara com o individualismo solto da Renascença, somado às variadas influências desnaturalizadoras da nossa posição de cais da Europa. Fatalidade geográfica, que a mistura com gentes e costumes e tratos os mais desvairados agravaria, seguir o rumo das suas consequências mortíferas será instruir o processo da nossa decadência. Aproveitemos, porém, no actual momento o que mais directamente importa ao fito das nossas considerações. E então reconheceremos que os germens de desagregação com que afincadamente nos íamos dessorando e pulverizando, adquiriram um poder de incalculável virulência ao erigirem-se, com as doutrinas do Liberalismo, em método de salvação colectiva. A fase definitiva da enfermidade atingia-se assim plenamente, pela penetração decisiva nos órgãos sensíveis da vida da Nação de quanto se nos denunciava de mais antagónico com as longas e sábias aquisições do seu génio e experiência secular.
Pausadamente, numa vagarosa germinação, desenha-se também desde as avançadas do resgate. São protestos isolados, ainda sem a visão de uma linha de conjunto, — duma finalidade arquitectónica. Manifestam-se primeiro nos que eu chamarei «doutores» da nossa Contra-Revolução. São os panfletários do miguelismo, — os fiéis da realeza pura que, transitando para lá do campo da resistência sentimental, procuraram para os seus conceitos duma sociologia titubeante o fulgor mal entrevisto da confirmação filosófica. Acompanham-nos de perto tanto Herculano, como Garrett — o Garrett do Romanceiro e dos seus afervorados discursos municipalistas, e o Herculano dos Opúsculos, sobretudo, onde se encontra bem o rosto da verdadeira constituição e económica e social da nacionalidade.
Depois... Depois, o cortejo engrossa. Engrossam-no, embora com gritos estridentes de heresiarcas, os Sagitários admiráveis que formaram grupo em torno de Antero. "Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição" — declararia o poeta dos Sonetos na sua célebre carta autobiográfica a Wilhelm Storck. Batera a hora dolorosa da Análise, e através de Antero e por seus amigos Portugal incorporava-se na grande tragédia que para a inteligência foi o século que findou.
Afirmativo, Antero asfixiava-se na floresta de espesso subjectivismo que a mentira racionalista lhe interpusera no seu mundo interior, separando a Vontade da Razão, — a Acção do Pensamento. Da velha torre solarenga nada mais restava, senão à flor da terra o desenho vago dos alicerces. E o que fora até aí mero impulso de defesa ou voz alarmada de prevenção, volve-se em Antero e nos seus camaradas num apelo exasperado para a intervenção cirúrgica. Assim devemos compreender o árduo trabalho demolidor de um Eça, de um Oliveira Martins. Com o que eles não transigiam era com o aparato hipócrita do existente, era com o cache-nez do duque de Ávila ou com o senhor Melício do Jornal do Comércio — símbolos duma sociedade que se anquilosara, satisfeita e rechonchuda, na adoração da própria passividade. E bem se lhe pode aplicar, a essa gloriosa hoste de Antecipados, o que um Eça de Queiroz observaria de outro — Ramalho Ortigão: — "Na invasão asiática do Cristianismo — havia a legião dos iconoclastas, para derrubar os ídolos e, atrás, a coorte dos apóstolos, para fundar a Lei-Nova. As Farpas eram os iconoclastas: vinham para desmantelar os bustos olímpicos: deviam deixar aos S. Paulos o cuidado de plantar as cruzes."
O cuidado de plantar as cruzes! Quem as plantou, senão os desiludidas da quimera doida da Revolução, que Proudhon, ensinando-os a amá-la, lhes ensinaria também a desarticular, peça por peça, no seu combate incessante às estultas superstições liberalistas. Pondera Antero na sua Correspondência: — "Os romances de Balzac são uma verdadeira história íntima do nosso século, e tenho admirado como em certas coisas capitais (como a influência da bancocracia, a anarquia do livre câmbio, as ilusões do constitucionalismo, etc.) a sua observação despreocupada da sociedade se encontra e concorda com a crítica sistemática do grande Proudhon." A crítica sistemática do grande Proudhon concordando com a moralidade dos romances de Balzac! E por aqui, pelo reconhecimento espontâneo, por parte de Antero, da identidade do filósofo revolucionário com o sociólogo de La comédie humaine, se nos denuncia o elo de ligação que a Pátria ancestral prendia tão intimamente os inadaptados das Conferências do Casino. Não é, deste modo, incongruência nenhuma que o mesmo Antero, dirigindo-se a Frederico Diniz Ayala, comentasse: — "A história que narra é, afinal, uma página mais, soez e grotesca se quiser, mas uma página do movimento político naturalista chamado das nacionalidades, que é uma das feições mais notáveis do nosso século. Por outro lado, a política anti-portuguesa do partido regenerador nesta questão, é mais uma completa manifestação de incompatibilidade do liberalismo com o nacionalismo, cujas raízes e essência são muito outras."
Antero definia, em breves traços, a antinomia insolúvel do Nacionalismo com o Liberalismo. É que o fundo dramático de Oliveira Martins, no Portugal Contemporâneo, outro não é o ponto em que a nossa genealogia mental sobe da heterogeneidade das contribuições avulsas à plenitude de uma consciência própria. De então para cá, embora o período de reconstrução se adivinhe distante, nunca mais cessou em Portugal o combate à tara desorganizadora que envilecia a nacionalidade, a partir da Renascença, mas que o Romantismo-Político elevara à potencialidade extrema. O mal prosseguiria, é certo, na sua máxima curva, mas já as forças que no futuro o haviam de contrabarreirar e dominar, porventura, entravam a conjugar-se, de aqui e de além, traduzindo o aflorar das reservas sãs da Terra e da Raça. Em tal conjunto de actividades, temos que contar com a energia desbravadora do republicanismo ideológico dos homens de 91. Houve neles uma intensa flama nacionalista, que jamais se conciliaria com o regímen de Judeus e de Mulatos em que o constitucionalismo conclui entre nós.
De diferentes derivações se vinha convergindo, pois, para a revelação do tal pensamento ainda indefinido, de que nos fala Oliveira Martins. O labor modesto dos folcloristas e arqueólogos somava-se prometedoramente ao renascimento intentado nos outros campos. O projecto de lei do Fomento rural é pedra que pertence ao mesmo edifício, para que a Portugália, — de dois republicanos, Rocha Peixoto e Ricardo Severo, — tão afanosamente e com tantos materiais concorreria. De Manuel da Silva Gaio a Afonso Lopes Vieira, o lusismo, ou seja o neo-garrettianismo, desdobrava com voo rápido os seus primeiros ensaios. Só as realizações faltavam na obra de conjunto, embora não faltassem em detalhe, porque os morbos depositados no coração ingénuo da Pátria careciam de se expandir mais fortemente, para que a lição iluminasse a todos e a ninguém de boa fé se permitisse já o apelo para messianismos inconsistentes e ignaros.
Tal é a hereditariedade espiritual a que nos acolhemos filialmente, — nós que em 1914 pegámos do arado, lançando na herdade lusitana um sulco tão profundo que já não há vento daninho que o possa apagar. A nossa faina de semeadores não conheceu mais um minuto de descanso ou adormecimento.
Do que tem sido essa batalha, ou defrontando-nos com a anarquia que nos desagrega, ou fazendo face ao peso morto que ameaça sufocar, no seu pretenso conservantismo, o princípio de renovo em que Portugal parece querer florir, - do que tem sido essa batalha não é para aqui o contá-lo e comentá-lo. Basta que assinalemos com a maior humildade de propósitos o trajecto que já se andou, tanto em extensão como em intensidade. Na desordem geral, dos espíritos, sente-se, apalpa-se uma certeza, uma coesão que se desenha e robustece, e aumenta. Frutifica o sincero entusiasmo do reduzido grupo de vontades que em 1914 se meteu à empresa penosa de restaurar a alma da Pátria, voltando à senda esquecida da sua tradição.
E porque se escreve a palavra "tradição", entendemos dever precisar-lhe o sentido. Não se trata de um regresso — duma suspensão. Filosófica e historicamente o nosso conceito de "tradição" equivale a dinamismo e continuidade. Estamos, por isso, bem longe de nos confinarmos numa ideia saudosista da sociedade que foi ou das gerações que passaram. Pelo contrário, abertos às solicitações clamorosas deste instante de febre, olhamos o futuro com um alto desejo de o prepararmos, melhor e mais belo, do que é a actualidade, tão horizontal e espessa em que vivemos. Eis porque se nos ajustam inteiramente as considerações seguintes de Jacques Maritain. "En tout cas une chose est claire à nos yeux: c'est que nous ne luttons pas pour la défense et le maintien de «l'ordre» social et politique actuel. Nous luttons pour sauvergader les éléments de justice et de vérité, les restes du patrimoine humain, les réserves divines qui subsistent sur Ia terre, et pour préparer et réaliser l'ordre nouveau qui doit remplacer le présent désordre". E, terminante, num período curto, em que a energia da frase se conjuga à energia das intenções, Jacques Maritain sintetiza o seu rumo de peregrino, em termos que se ajustam a nós perfeitamente, - "Nous haïssons donc l'iniquité révolutionaire-bourgeoise qui enveloppe et vicie aujourd'hui la civilisation, comme nous haïssons l'iniquité révolutionaire-prolétarienne qui veut l'anéantir."
Reflectindo no seu conflito o conflito da sociedade em geral, a sociedade portuguesa dissolve-se, vai-se, varrida pelo individualismo nas suas últimas e extremadas consequências. Serenos, no raciocínio das nossas convicções que a fé amplia num fundo de claridade invencível, não há desânimo que nos vença, nem tormenta que nos vergue. Salve-se o que subsista ainda de divino e de humano no amontoado de coisas sem nexo em que Portugal se subverte, incaracterizado e difamado. É obedecendo a tão religiosa obrigação para com Deus e para com a Pátria, criada à sua Semelhança e Imagem, que nós não desfalecemos nem um instante sequer na jornada empreendida, já se completaram nove anos, quando a mocidade nos punha nas veias fanfarras de triunfo. Semeou-se? Pois colher-se-á! E para que resulte em outras colheitas, e a seara cresça sempre, viçosa e farta, de novo entregamos à graça das Estações um pequeno punhado de grão, por acaso guardado no nosso pequeno celeiro.
Elvas, Quinta do Bispo, Janeiro de 1923.
Talvez que à frente deste volume [Ao Ritmo da Ampulheta] devesse redigir a minha confissão intelectual. Filho dum século que envenenou a inteligência e perverteu a sensibilidade, eu posso levantar as mãos a Deus e agradecer-lhe, prostrado no átrio dos tempos novos, a graça de me haver tirado a alma do Egipto, levando-me a tocar com o dedo a mentira ignóbil dos ídolos em triunfo na praça pública. Bem cedo o sal que sobe à mesa do Senhor me ateou no espírito uma ânsia de repouso, de quietação, de síntese. Eu não descendia daqueles estranhos povos do fabulista que tinham apenas por única linguagem o terrível monossílabo — «Não!» No meu sangue gritava, e protestava, ouvindo a areia cair na ampulheta, um nobre desejo de durar, de construir. Sabia que o deserto era enorme, — que faltavam os roteiros e se ignorava o que estaria para além. Nem por isso o meu ardor desfaleceu, olhando a vastidão imensa do caminho a percorrer. Sou um homem de boa-vontade, — e como homem de boa-vontade me persigno e declaro. As páginas que se enfeixam no presente livro não são mais que marcos levantados a afirmar o meu esforço de soldado da contra-revolução. Contra-revolução religiosa e contra-revolução política, pelo regresso, a um tempo humilde e desassombrado, à via [na 1ª ed., "vida"; nota da 2ª ed.] desacreditada da tradição. Quando parti para o combate, poucos mais encontrei na mesma fila. Hoje, na desordem criadora em que Portugal se debate, há já uma aragem de esperança, impregnada da energia iluminada com que iniciamos a cruzada - os meus pares e eu!
Pesa sobre nós — «anti-modernos» e «ultra-modernos», na bela definição de Jacques Maritain— pesa sobre nós o silêncio, que só nos dignifica, de uma sociedade de judeus, de cocainómanos e de banqueiros, a quem soavam como golpes de azorrague, as verdades fortes que nós surgimos a pregar, — as verdades fortes, as verdades duras, de que tanto falava o senhor de Bonald ["o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional"; António Sardinha, Purgatório das Ideias, Lisboa, 1929, p. 164 (nota desta edição, para o Leitor bem intencionado)]. Cabe-nos assim o destino de todos os renovadores. Profetizando a queda das babilónias marcadas pelo conúbio canalha do sabre e do dito, nós não agradaríamos decerto aos que vivem das fórmulas e das convenções, — aos que queimam incenso a Jehovah, mas depõem também oferendas nas aras de Belphegor. No meio da hostilidade lentejoulada dos carnets-mondains e dos apupos ignaros dos detentores tatuados da Opinião Pública, uma glória nos pertence, — una e indivisível: — a glória de havermos restituído Portugal à integridade da sua consciência histórica, ao sentimento adormecido da sua realidade eterna como Pátria.
As nossas campanhas nacionalistas desceram das Letras à Política, — subiram da Acção à atmosfera Diáfana das Ideias. Tudo se obliterara entre nós, — desde o instinto das nossas raízes seculares até à posição que nos tocava, como raça e como Estado, no drama agudíssimo das nações contemporâneas. Como se o solo sagrado da terra dos Avós se tivesse transformado num tablado ignominioso de títeres de feira, só passavam e repassavam diante dos nossos olhos doridos, como uma teoria de sombras inferiores, os personagens de Eça de Queiroz. A comédia, trágico-comédia, Senhor meu Deus! —, repartia-se em actos e jornadas. Restauração monárquica? Assomava logo, inevitável e decorativo, o conde de Gouvarinho, o conselheiro Acácio, a barriga do cónego Dias, a concavidade majestosa de Pacheco. Defesa da República, — intervenção na guerra? Imediatamente, como duma caixa de molas, rebentava-nos, estridente e salivosa, a pupilagem incontável do Palma Cavalão e do Paulo dos Móveis. Só o intelectualismo insatisfeito de Fradique Mendes se apagava numa penumbra discreta, refugiado na leitura de Taine, — mas no Taine das Origines de la France contemporaine.
Porque aparecemos nós então, — se nada já restava da grei antiga, na dissolução geral em que o Liberalismo abismava as mentalidades e os caracteres? Não sairá da minha pena a resposta, porque a outros cumpre, com mais tranquila segurança, ajuizar da função que fomos chamados a desempenhar, — no secreto e profundo providencialismo que rege a sorte dos homens e imprime directrizes aos povos. No entanto, se existe, como creio que existe, uma genealogia oculta de que nós somos a continuidade e a floração, para que melhor lhe surpreendamos o fio esclarecedor, recorramos aos últimos períodos de Oliveira Martins na sua História de Portugal. "Daí vem o caso — escreve ele —, talvez único na Europa, de um povo que, não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e amor pelas suas tradições, pelos seus homens superiores, que não só vive de copiar, literária e politicamente, a França, de um modo servil e indiscreto, que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio, com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco. Quando uma nação se condena pela boca de seus próprios filhos, é difícil, sendo impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva". E o historiador, reagindo contra a dureza clínica do seu diagnóstico, acrescenta: — "Continua ainda a decomposição nacional, apenas interrompida de um modo aparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas, fomentadas pelo militarismo universal? Ou presenciamos um fenómeno de obscura reconstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa mudez patriótica, sob a desesperança por que toda a parte ri e geme, crepitará latente e ignota a chama de um pensamento indefinido ainda?"
Suspensa a interrogação de Oliveira Martins, verificamos agora que a decomposição nacional continuaria, passando por transes inesperados, sofrendo aspectos e modificações nunca imaginadas. Mas, latente e ignota, como num casulo de encanto, crepitava sem dúvida entre as cinzas da casa em ruína, a chama dum pensamento «indefinido ainda». Que pensamento era esse, — donde é que ele nos vinha? Era o último clarão do génio ancestral da Pátria, — vinha-nos instintivamente das próprias razões de ser, tanto territoriais, com morais, do Portugal bem amado de todos nós. A dissolução começara com o individualismo solto da Renascença, somado às variadas influências desnaturalizadoras da nossa posição de cais da Europa. Fatalidade geográfica, que a mistura com gentes e costumes e tratos os mais desvairados agravaria, seguir o rumo das suas consequências mortíferas será instruir o processo da nossa decadência. Aproveitemos, porém, no actual momento o que mais directamente importa ao fito das nossas considerações. E então reconheceremos que os germens de desagregação com que afincadamente nos íamos dessorando e pulverizando, adquiriram um poder de incalculável virulência ao erigirem-se, com as doutrinas do Liberalismo, em método de salvação colectiva. A fase definitiva da enfermidade atingia-se assim plenamente, pela penetração decisiva nos órgãos sensíveis da vida da Nação de quanto se nos denunciava de mais antagónico com as longas e sábias aquisições do seu génio e experiência secular.
Pausadamente, numa vagarosa germinação, desenha-se também desde as avançadas do resgate. São protestos isolados, ainda sem a visão de uma linha de conjunto, — duma finalidade arquitectónica. Manifestam-se primeiro nos que eu chamarei «doutores» da nossa Contra-Revolução. São os panfletários do miguelismo, — os fiéis da realeza pura que, transitando para lá do campo da resistência sentimental, procuraram para os seus conceitos duma sociologia titubeante o fulgor mal entrevisto da confirmação filosófica. Acompanham-nos de perto tanto Herculano, como Garrett — o Garrett do Romanceiro e dos seus afervorados discursos municipalistas, e o Herculano dos Opúsculos, sobretudo, onde se encontra bem o rosto da verdadeira constituição e económica e social da nacionalidade.
Depois... Depois, o cortejo engrossa. Engrossam-no, embora com gritos estridentes de heresiarcas, os Sagitários admiráveis que formaram grupo em torno de Antero. "Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição" — declararia o poeta dos Sonetos na sua célebre carta autobiográfica a Wilhelm Storck. Batera a hora dolorosa da Análise, e através de Antero e por seus amigos Portugal incorporava-se na grande tragédia que para a inteligência foi o século que findou.
Afirmativo, Antero asfixiava-se na floresta de espesso subjectivismo que a mentira racionalista lhe interpusera no seu mundo interior, separando a Vontade da Razão, — a Acção do Pensamento. Da velha torre solarenga nada mais restava, senão à flor da terra o desenho vago dos alicerces. E o que fora até aí mero impulso de defesa ou voz alarmada de prevenção, volve-se em Antero e nos seus camaradas num apelo exasperado para a intervenção cirúrgica. Assim devemos compreender o árduo trabalho demolidor de um Eça, de um Oliveira Martins. Com o que eles não transigiam era com o aparato hipócrita do existente, era com o cache-nez do duque de Ávila ou com o senhor Melício do Jornal do Comércio — símbolos duma sociedade que se anquilosara, satisfeita e rechonchuda, na adoração da própria passividade. E bem se lhe pode aplicar, a essa gloriosa hoste de Antecipados, o que um Eça de Queiroz observaria de outro — Ramalho Ortigão: — "Na invasão asiática do Cristianismo — havia a legião dos iconoclastas, para derrubar os ídolos e, atrás, a coorte dos apóstolos, para fundar a Lei-Nova. As Farpas eram os iconoclastas: vinham para desmantelar os bustos olímpicos: deviam deixar aos S. Paulos o cuidado de plantar as cruzes."
O cuidado de plantar as cruzes! Quem as plantou, senão os desiludidas da quimera doida da Revolução, que Proudhon, ensinando-os a amá-la, lhes ensinaria também a desarticular, peça por peça, no seu combate incessante às estultas superstições liberalistas. Pondera Antero na sua Correspondência: — "Os romances de Balzac são uma verdadeira história íntima do nosso século, e tenho admirado como em certas coisas capitais (como a influência da bancocracia, a anarquia do livre câmbio, as ilusões do constitucionalismo, etc.) a sua observação despreocupada da sociedade se encontra e concorda com a crítica sistemática do grande Proudhon." A crítica sistemática do grande Proudhon concordando com a moralidade dos romances de Balzac! E por aqui, pelo reconhecimento espontâneo, por parte de Antero, da identidade do filósofo revolucionário com o sociólogo de La comédie humaine, se nos denuncia o elo de ligação que a Pátria ancestral prendia tão intimamente os inadaptados das Conferências do Casino. Não é, deste modo, incongruência nenhuma que o mesmo Antero, dirigindo-se a Frederico Diniz Ayala, comentasse: — "A história que narra é, afinal, uma página mais, soez e grotesca se quiser, mas uma página do movimento político naturalista chamado das nacionalidades, que é uma das feições mais notáveis do nosso século. Por outro lado, a política anti-portuguesa do partido regenerador nesta questão, é mais uma completa manifestação de incompatibilidade do liberalismo com o nacionalismo, cujas raízes e essência são muito outras."
Antero definia, em breves traços, a antinomia insolúvel do Nacionalismo com o Liberalismo. É que o fundo dramático de Oliveira Martins, no Portugal Contemporâneo, outro não é o ponto em que a nossa genealogia mental sobe da heterogeneidade das contribuições avulsas à plenitude de uma consciência própria. De então para cá, embora o período de reconstrução se adivinhe distante, nunca mais cessou em Portugal o combate à tara desorganizadora que envilecia a nacionalidade, a partir da Renascença, mas que o Romantismo-Político elevara à potencialidade extrema. O mal prosseguiria, é certo, na sua máxima curva, mas já as forças que no futuro o haviam de contrabarreirar e dominar, porventura, entravam a conjugar-se, de aqui e de além, traduzindo o aflorar das reservas sãs da Terra e da Raça. Em tal conjunto de actividades, temos que contar com a energia desbravadora do republicanismo ideológico dos homens de 91. Houve neles uma intensa flama nacionalista, que jamais se conciliaria com o regímen de Judeus e de Mulatos em que o constitucionalismo conclui entre nós.
De diferentes derivações se vinha convergindo, pois, para a revelação do tal pensamento ainda indefinido, de que nos fala Oliveira Martins. O labor modesto dos folcloristas e arqueólogos somava-se prometedoramente ao renascimento intentado nos outros campos. O projecto de lei do Fomento rural é pedra que pertence ao mesmo edifício, para que a Portugália, — de dois republicanos, Rocha Peixoto e Ricardo Severo, — tão afanosamente e com tantos materiais concorreria. De Manuel da Silva Gaio a Afonso Lopes Vieira, o lusismo, ou seja o neo-garrettianismo, desdobrava com voo rápido os seus primeiros ensaios. Só as realizações faltavam na obra de conjunto, embora não faltassem em detalhe, porque os morbos depositados no coração ingénuo da Pátria careciam de se expandir mais fortemente, para que a lição iluminasse a todos e a ninguém de boa fé se permitisse já o apelo para messianismos inconsistentes e ignaros.
Tal é a hereditariedade espiritual a que nos acolhemos filialmente, — nós que em 1914 pegámos do arado, lançando na herdade lusitana um sulco tão profundo que já não há vento daninho que o possa apagar. A nossa faina de semeadores não conheceu mais um minuto de descanso ou adormecimento.
Do que tem sido essa batalha, ou defrontando-nos com a anarquia que nos desagrega, ou fazendo face ao peso morto que ameaça sufocar, no seu pretenso conservantismo, o princípio de renovo em que Portugal parece querer florir, - do que tem sido essa batalha não é para aqui o contá-lo e comentá-lo. Basta que assinalemos com a maior humildade de propósitos o trajecto que já se andou, tanto em extensão como em intensidade. Na desordem geral, dos espíritos, sente-se, apalpa-se uma certeza, uma coesão que se desenha e robustece, e aumenta. Frutifica o sincero entusiasmo do reduzido grupo de vontades que em 1914 se meteu à empresa penosa de restaurar a alma da Pátria, voltando à senda esquecida da sua tradição.
E porque se escreve a palavra "tradição", entendemos dever precisar-lhe o sentido. Não se trata de um regresso — duma suspensão. Filosófica e historicamente o nosso conceito de "tradição" equivale a dinamismo e continuidade. Estamos, por isso, bem longe de nos confinarmos numa ideia saudosista da sociedade que foi ou das gerações que passaram. Pelo contrário, abertos às solicitações clamorosas deste instante de febre, olhamos o futuro com um alto desejo de o prepararmos, melhor e mais belo, do que é a actualidade, tão horizontal e espessa em que vivemos. Eis porque se nos ajustam inteiramente as considerações seguintes de Jacques Maritain. "En tout cas une chose est claire à nos yeux: c'est que nous ne luttons pas pour la défense et le maintien de «l'ordre» social et politique actuel. Nous luttons pour sauvergader les éléments de justice et de vérité, les restes du patrimoine humain, les réserves divines qui subsistent sur Ia terre, et pour préparer et réaliser l'ordre nouveau qui doit remplacer le présent désordre". E, terminante, num período curto, em que a energia da frase se conjuga à energia das intenções, Jacques Maritain sintetiza o seu rumo de peregrino, em termos que se ajustam a nós perfeitamente, - "Nous haïssons donc l'iniquité révolutionaire-bourgeoise qui enveloppe et vicie aujourd'hui la civilisation, comme nous haïssons l'iniquité révolutionaire-prolétarienne qui veut l'anéantir."
Reflectindo no seu conflito o conflito da sociedade em geral, a sociedade portuguesa dissolve-se, vai-se, varrida pelo individualismo nas suas últimas e extremadas consequências. Serenos, no raciocínio das nossas convicções que a fé amplia num fundo de claridade invencível, não há desânimo que nos vença, nem tormenta que nos vergue. Salve-se o que subsista ainda de divino e de humano no amontoado de coisas sem nexo em que Portugal se subverte, incaracterizado e difamado. É obedecendo a tão religiosa obrigação para com Deus e para com a Pátria, criada à sua Semelhança e Imagem, que nós não desfalecemos nem um instante sequer na jornada empreendida, já se completaram nove anos, quando a mocidade nos punha nas veias fanfarras de triunfo. Semeou-se? Pois colher-se-á! E para que resulte em outras colheitas, e a seara cresça sempre, viçosa e farta, de novo entregamos à graça das Estações um pequeno punhado de grão, por acaso guardado no nosso pequeno celeiro.
Elvas, Quinta do Bispo, Janeiro de 1923.