1913 - António Sardinha - O sentido Nacional duma Existência
Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egito. - António Sardinha
Por expressa decisão de António Sardinha (1887-1925), o seu primeiro livro em prosa intitulado O Sentido Nacional de uma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913, ed. de 1969), foi retirado de circulação e inutilizado.
Naquela época, com vinte e poucos anos, António Sardinha abandonou o jacobinismo republicano, voltando ao catolicismo e adoptando o ideário monárquico. Este livro seria a sua primeira obra em prosa, homenageando um etnógrafo seu conterrâneo, António Tomás Pires (1850-1913), e, no mesmo passo, dando público testemunho do seu novo posicionamento espiritual e político. A decisão de inutilizar este livro não deverá ter sido tomada de animo leve. Em 1969, porém, o bibliófilo Eurico Gama, desenterrou o cadáver. Dada a muito recente reconversão religiosa e mudança de ideário político, este é um documento a considerar precisamente por ter sido inutilizado pelo seu Autor.
A primeira questão que se nos impõe é esta: porque é que António Sardinha rejeitou e inutilizou este livro?
A obra O Valor da Raça (1915), veio a ser o seu primeiro livro em prosa, cumprindo uma motivação ou função semelhante: dar conta do seu novo ideário político e lançar o que designa no subtítulo por "Introdução a uma Campanha Nacional". Pelo testemunho de Luís Chaves, sabemos que O Valor da Raça por pouco não terá sido também inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos - As origens portuguesas em António Sardinha", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Sem pretender apresentar conclusão sobre o assunto, o que só o Autor poderia fazer, dois aspectos chamam a atenção.
Em primeiro lugar, o estilo de escrita que, por vezes, faz lembrar o de outros republicanos da época, como Teófilo Braga, que Sardinha apreciou enquanto estudante em Coimbra. Ao ler os seus ensaios posteriores, é flagrante o contraste no estilo, aqui ainda por vezes preso a uma verbosidade truculenta. Até 1913, foi esse o seu ambiente mental e estilístico de referência.
Além do estilo, algum do conteúdo poderá também ter estado na base de uma tão radical decisão. Esta obra de 1913 apresenta duas epígrafes: uma de Honoré de Balzac (1799-1850) e outra de Jules-Auguste Soury (1842-1915). Ao publicar O Valor da Raça, Sardinha repete a epígrafe de Balzac - referindo os dois princípios retirados do pórtico de La Comédie Humaine, o Catolicismo e a Realeza - mas suprime a epígrafe de Jules Soury, um neurologista muito apreciado pelos republicanos mais jacobinos, anti-religiosos e anti-clericais. Soury era o autor de uma "psicopatologia de Jesus", com um diagnóstico de demência (Jesus et les Évangiles, Paris, 1878), produzindo depois também teorias científicas de determinismo e supremacia racial, a que não é legítimo furtar um acentuado anti-semitismo.
Poucos anos antes, António Sardinha identificava-se com o republicanismo jacobino, com o positivismo e o cientismo prevalecente nesses meios, em luta contra o que designavam por "obscurantismos clericais". Além da epígrafe de Jules Soury, encontram-se neste seu primeiro livro ecos de teorias de supremacia racial, bem presentes em republicanos da época, como Aquilino Ribeiro ou Raul Proença, por exemplo, que viriam a atribuir a decadência portuguesa a uma profunda "causa psíquica e fisiológica": uma "degradação étnica" em resultado de "conúbios aviltantes", de cruzamentos com "raças inferiores". Entre os republicanos, Raul Proença sairá mesmo depois em defesa de uma "política da Raça", de uma "política fisiológica" ou Eugenia [Aquilino Ribeiro, "Em torno do problema da raça", Homens Livres, nº 1, 1 de Dezembro de 1923, p. 14; Raul Proença, Panfletos, Lisboa, 1926, pp. 57 - 58; ver a defesa de uma "política fisiológica" na página 65]. Nesse primeiro livro proscrito de prosa, curiosamente, era o jovem António Sardinha quem não deixava de advertir: "não se examinem factos de ontem com uma consciência de hoje (...). Nenhum poder nos investe no direito de chamar ao pretório o tempo que passou só porque não se combina nem coincide com as normas que regem o nosso."
Entre 1913 e 1915, sabemos que António Sardinha estava em profundo processo de transformação mental e espiritual. Em 1913, escrevia por carta para o seu amigo Luís de Almeida Braga:
"A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim (...) Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança."
Em Dezembro desse ano, Sardinha anunciava por fim a sua conversão: "Recordas-te, Luís, de um dia me dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal."
Mais tarde, no prefácio que preparou para Na Feira dos Mitos (1926), obra póstuma ainda por si organizada, sob o título "Eu pecador, me confesso", Sardinha referiu-se à "anarquia mental" dos seus vinte anos. Em 1913, ao nascer para uma nova vida espiritual, cívica e política, Sardinha poderá ter querido libertar-se de "certas excrescências" que desde logo considerou indignas de si. É significativo que António Sardinha, decerto sacudindo anti-semitismos espúrios, tenha depois escrito: “o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional" (Purgatório das Ideias, 1929, p. 164).
Os ambientes do ateísmo e do republicanismo jacobino, que frequentou na juventude, deixaram marcas nos escritos de António Sardinha. Apesar de ter morrido jovem, com apenas 37 anos, também por isso a sua obra constitui um importante documento histórico, revelando-nos, na letra e no espírito, um singular processo de depuração e de ascese no acertar do passo com a espiritualidade dos seus pares do Integralismo Lusitano. Não servindo de antídoto da desonestidade intelectual e da má-fé, vale a pena repetir aqui a "nota final" inscrita pelos editores de Na Feira dos Mitos:
“Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
J.M.Q.
17.10.2024
Naquela época, com vinte e poucos anos, António Sardinha abandonou o jacobinismo republicano, voltando ao catolicismo e adoptando o ideário monárquico. Este livro seria a sua primeira obra em prosa, homenageando um etnógrafo seu conterrâneo, António Tomás Pires (1850-1913), e, no mesmo passo, dando público testemunho do seu novo posicionamento espiritual e político. A decisão de inutilizar este livro não deverá ter sido tomada de animo leve. Em 1969, porém, o bibliófilo Eurico Gama, desenterrou o cadáver. Dada a muito recente reconversão religiosa e mudança de ideário político, este é um documento a considerar precisamente por ter sido inutilizado pelo seu Autor.
A primeira questão que se nos impõe é esta: porque é que António Sardinha rejeitou e inutilizou este livro?
A obra O Valor da Raça (1915), veio a ser o seu primeiro livro em prosa, cumprindo uma motivação ou função semelhante: dar conta do seu novo ideário político e lançar o que designa no subtítulo por "Introdução a uma Campanha Nacional". Pelo testemunho de Luís Chaves, sabemos que O Valor da Raça por pouco não terá sido também inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos - As origens portuguesas em António Sardinha", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Sem pretender apresentar conclusão sobre o assunto, o que só o Autor poderia fazer, dois aspectos chamam a atenção.
Em primeiro lugar, o estilo de escrita que, por vezes, faz lembrar o de outros republicanos da época, como Teófilo Braga, que Sardinha apreciou enquanto estudante em Coimbra. Ao ler os seus ensaios posteriores, é flagrante o contraste no estilo, aqui ainda por vezes preso a uma verbosidade truculenta. Até 1913, foi esse o seu ambiente mental e estilístico de referência.
Além do estilo, algum do conteúdo poderá também ter estado na base de uma tão radical decisão. Esta obra de 1913 apresenta duas epígrafes: uma de Honoré de Balzac (1799-1850) e outra de Jules-Auguste Soury (1842-1915). Ao publicar O Valor da Raça, Sardinha repete a epígrafe de Balzac - referindo os dois princípios retirados do pórtico de La Comédie Humaine, o Catolicismo e a Realeza - mas suprime a epígrafe de Jules Soury, um neurologista muito apreciado pelos republicanos mais jacobinos, anti-religiosos e anti-clericais. Soury era o autor de uma "psicopatologia de Jesus", com um diagnóstico de demência (Jesus et les Évangiles, Paris, 1878), produzindo depois também teorias científicas de determinismo e supremacia racial, a que não é legítimo furtar um acentuado anti-semitismo.
Poucos anos antes, António Sardinha identificava-se com o republicanismo jacobino, com o positivismo e o cientismo prevalecente nesses meios, em luta contra o que designavam por "obscurantismos clericais". Além da epígrafe de Jules Soury, encontram-se neste seu primeiro livro ecos de teorias de supremacia racial, bem presentes em republicanos da época, como Aquilino Ribeiro ou Raul Proença, por exemplo, que viriam a atribuir a decadência portuguesa a uma profunda "causa psíquica e fisiológica": uma "degradação étnica" em resultado de "conúbios aviltantes", de cruzamentos com "raças inferiores". Entre os republicanos, Raul Proença sairá mesmo depois em defesa de uma "política da Raça", de uma "política fisiológica" ou Eugenia [Aquilino Ribeiro, "Em torno do problema da raça", Homens Livres, nº 1, 1 de Dezembro de 1923, p. 14; Raul Proença, Panfletos, Lisboa, 1926, pp. 57 - 58; ver a defesa de uma "política fisiológica" na página 65]. Nesse primeiro livro proscrito de prosa, curiosamente, era o jovem António Sardinha quem não deixava de advertir: "não se examinem factos de ontem com uma consciência de hoje (...). Nenhum poder nos investe no direito de chamar ao pretório o tempo que passou só porque não se combina nem coincide com as normas que regem o nosso."
Entre 1913 e 1915, sabemos que António Sardinha estava em profundo processo de transformação mental e espiritual. Em 1913, escrevia por carta para o seu amigo Luís de Almeida Braga:
"A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim (...) Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança."
Em Dezembro desse ano, Sardinha anunciava por fim a sua conversão: "Recordas-te, Luís, de um dia me dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal."
Mais tarde, no prefácio que preparou para Na Feira dos Mitos (1926), obra póstuma ainda por si organizada, sob o título "Eu pecador, me confesso", Sardinha referiu-se à "anarquia mental" dos seus vinte anos. Em 1913, ao nascer para uma nova vida espiritual, cívica e política, Sardinha poderá ter querido libertar-se de "certas excrescências" que desde logo considerou indignas de si. É significativo que António Sardinha, decerto sacudindo anti-semitismos espúrios, tenha depois escrito: “o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional" (Purgatório das Ideias, 1929, p. 164).
Os ambientes do ateísmo e do republicanismo jacobino, que frequentou na juventude, deixaram marcas nos escritos de António Sardinha. Apesar de ter morrido jovem, com apenas 37 anos, também por isso a sua obra constitui um importante documento histórico, revelando-nos, na letra e no espírito, um singular processo de depuração e de ascese no acertar do passo com a espiritualidade dos seus pares do Integralismo Lusitano. Não servindo de antídoto da desonestidade intelectual e da má-fé, vale a pena repetir aqui a "nota final" inscrita pelos editores de Na Feira dos Mitos:
“Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
J.M.Q.
17.10.2024