1913 - António Sardinha - O sentido Nacional duma Existência
Por expressa decisão de António Sardinha, o seu primeiro livro em prosa intitulado O Sentido Nacional de uma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913, ed. de 1969), foi retirado de circulação e inutilizado.
Naquela época, com vinte e poucos anos, António Sardinha abandonou o jacobinismo republicano, convertendo-se ao catolicismo e ao ideário monárquico. Este livro seria a sua primeira obra em prosa, homenageando um seu conterrâneo, António Tomás Pires, dando testemunho do seu novo posicionamento ideológico. A decisão de o inutilizar não pode ter sido tomada de animo leve.
Em 1969, porém, o bibliófilo Eurico Gama, desenterrou o cadáver, tornando-o um texto incontornável para a história da evolução do pensamento de António Sardinha. Dado que ele evoluiu do jacobinismo para o catolicismo e do republicanismo para o monarquismo, este é um documento a considerar precisamente por ter sido inutilizado pelo Autor. A primeira questão que se nos impõe é esta: porque é que António Sardinha rejeitou e inutilizou este livro?
Sem pretender aqui apresentar conclusão sobre o assunto, o que só António Sardinha poderia fazer, dois aspectos me chamaram a atenção.
Em primeiro lugar, o estilo de escrita que, por vezes, faz lembrar o de outros republicanos da época, como Teófilo Braga, que António Sardinha apreciou no seus tempos de estudante em Coimbra. Quem já tiver lido alguns ensaios posteriores de Sardinha, poderá observar algum contraste de estilo com este livro por ele proscrito, aqui ainda preso a uma verbosidade típica nos republicanos da época. Até 1913, era esse o ambiente mental e estilístico que ele tinha como referência.
Além do estilo, algum do seu conteúdo poderá também ter estado na base da sua radical decisão. Um dos autores citados em epígrafe, o neurologista Jules-Auguste Soury (1842-1915), era muito apreciado por republicanos jacobinos, anti-religiosos e anti-clericais. Soury publicou uma "psicopatologia de Jesus", diagnosticando-lhe demência (Jesus et les Évangiles, Paris, 1878), produzindo depois teorias de determinismo e supremacia racial, a que não é legítimo furtar um acentuado anti-semitismo. O cientismo, o anti-semitismo e o racismo eram comuns nos meios republicanos da época. O racismo de republicanos como Aquilino Ribeiro ou Raul Proença, por exemplo, foi por demais evidente, chegando a atribuir a decadência portuguesa a uma profunda "causa psíquica e fisiológica": uma "degradação étnica" em resultado de "conúbios aviltantes", de cruzamentos com "raças inferiores" (Aquilino Ribeiro, "Em torno do problema da raça", Homens Livres, nº 1, 1 de Dezembro de 1923, p. 14; Raul Proença, Panfletos, Lisboa, 1926, pp. 57 e 58).
Em vão se procurará em António Sardinha e nos seus pares do Integralismo Lusitano a defesa de uma "política fisiológica", como a de Proença no citado Panfleto (p. 65). A matriz católica, universalista, do pensamento integralista, manteve-os imunes ao cientismo racista e à Eugenia presente nos ambientes republicanos e concreta e explicitamente em Raul Proença. Na sua juventude, porém, António Sardinha identificou-se com o republicanismo jacobino. Além da epígrafe de Jules Soury, é possível encontrar no corpo do texto desse seu primeiro livro, ecos de cientismos com vincada índole racista. Em 1913, António Sardinha estava já porém em processo de profunda transformação mental e espiritual. Logo no início do ano, em carta para Luís de Almeida Braga, confessava:
"A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim (...) Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança. Como te repudiar?"
Em Dezembro, Sardinha anunciava por fim explicitamente a sua conversão: "Recordas-te, Luís, de um dia me, dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal."
Lá mais para diante, no prefácio que preparou para Na Feira dos Mitos (1926), obra póstuma mas ainda por si organizada, sob o título "Eu pecador, me confesso", Sardinha referiu-se explicitamente à "anarquia mental" dos seus vinte anos. É possível que numa segunda leitura de O Sentido Nacional de uma Existência, com o livro já editado e composto na tipografia, tenha tomado consciência de que algo de muito errado ou repulsivo ali se apresentava, decidindo-se pela sua integral inutilização. Ao nascer para uma nova vida espiritual, cívica e política, Sardinha poderá ter querido libertar-se de "certas excrescências" que considerou indignas de si. Mais tarde, é significativo que António Sardinha tenha sentido que devia a seguinte explicação: “o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional" (Purgatório das Ideias, 1929, p. 164). Sem dúvida que Sardinha associava um atributo negativo aos judeus, mas mostrava também que via no anti-semitismo “étnico” e “confessional” algo de reprovável e que isso o afastaria do universalismo a que aspirava.
Nesse livro por si proscrito, estava o seguinte conselho aos historiadores: "não se examinem factos de ontem com uma consciência de hoje (...) Nenhum poder nos investe no direito de chamar ao pretório o tempo que passou só porque não se combina nem coincide com as normas que regem o nosso."
Não há antídoto para a desonestidade intelectual e a má-fé, mas vale a pena acrescentar uma "nota final": “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
J.M.Q.
29.XII.2023
Naquela época, com vinte e poucos anos, António Sardinha abandonou o jacobinismo republicano, convertendo-se ao catolicismo e ao ideário monárquico. Este livro seria a sua primeira obra em prosa, homenageando um seu conterrâneo, António Tomás Pires, dando testemunho do seu novo posicionamento ideológico. A decisão de o inutilizar não pode ter sido tomada de animo leve.
Em 1969, porém, o bibliófilo Eurico Gama, desenterrou o cadáver, tornando-o um texto incontornável para a história da evolução do pensamento de António Sardinha. Dado que ele evoluiu do jacobinismo para o catolicismo e do republicanismo para o monarquismo, este é um documento a considerar precisamente por ter sido inutilizado pelo Autor. A primeira questão que se nos impõe é esta: porque é que António Sardinha rejeitou e inutilizou este livro?
Sem pretender aqui apresentar conclusão sobre o assunto, o que só António Sardinha poderia fazer, dois aspectos me chamaram a atenção.
Em primeiro lugar, o estilo de escrita que, por vezes, faz lembrar o de outros republicanos da época, como Teófilo Braga, que António Sardinha apreciou no seus tempos de estudante em Coimbra. Quem já tiver lido alguns ensaios posteriores de Sardinha, poderá observar algum contraste de estilo com este livro por ele proscrito, aqui ainda preso a uma verbosidade típica nos republicanos da época. Até 1913, era esse o ambiente mental e estilístico que ele tinha como referência.
Além do estilo, algum do seu conteúdo poderá também ter estado na base da sua radical decisão. Um dos autores citados em epígrafe, o neurologista Jules-Auguste Soury (1842-1915), era muito apreciado por republicanos jacobinos, anti-religiosos e anti-clericais. Soury publicou uma "psicopatologia de Jesus", diagnosticando-lhe demência (Jesus et les Évangiles, Paris, 1878), produzindo depois teorias de determinismo e supremacia racial, a que não é legítimo furtar um acentuado anti-semitismo. O cientismo, o anti-semitismo e o racismo eram comuns nos meios republicanos da época. O racismo de republicanos como Aquilino Ribeiro ou Raul Proença, por exemplo, foi por demais evidente, chegando a atribuir a decadência portuguesa a uma profunda "causa psíquica e fisiológica": uma "degradação étnica" em resultado de "conúbios aviltantes", de cruzamentos com "raças inferiores" (Aquilino Ribeiro, "Em torno do problema da raça", Homens Livres, nº 1, 1 de Dezembro de 1923, p. 14; Raul Proença, Panfletos, Lisboa, 1926, pp. 57 e 58).
Em vão se procurará em António Sardinha e nos seus pares do Integralismo Lusitano a defesa de uma "política fisiológica", como a de Proença no citado Panfleto (p. 65). A matriz católica, universalista, do pensamento integralista, manteve-os imunes ao cientismo racista e à Eugenia presente nos ambientes republicanos e concreta e explicitamente em Raul Proença. Na sua juventude, porém, António Sardinha identificou-se com o republicanismo jacobino. Além da epígrafe de Jules Soury, é possível encontrar no corpo do texto desse seu primeiro livro, ecos de cientismos com vincada índole racista. Em 1913, António Sardinha estava já porém em processo de profunda transformação mental e espiritual. Logo no início do ano, em carta para Luís de Almeida Braga, confessava:
"A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim (...) Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança. Como te repudiar?"
Em Dezembro, Sardinha anunciava por fim explicitamente a sua conversão: "Recordas-te, Luís, de um dia me, dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal."
Lá mais para diante, no prefácio que preparou para Na Feira dos Mitos (1926), obra póstuma mas ainda por si organizada, sob o título "Eu pecador, me confesso", Sardinha referiu-se explicitamente à "anarquia mental" dos seus vinte anos. É possível que numa segunda leitura de O Sentido Nacional de uma Existência, com o livro já editado e composto na tipografia, tenha tomado consciência de que algo de muito errado ou repulsivo ali se apresentava, decidindo-se pela sua integral inutilização. Ao nascer para uma nova vida espiritual, cívica e política, Sardinha poderá ter querido libertar-se de "certas excrescências" que considerou indignas de si. Mais tarde, é significativo que António Sardinha tenha sentido que devia a seguinte explicação: “o judaísmo não assume para nós sinónimo diverso do de plutocratismo. É mais facto moral e económico do que, estritamente, um facto étnico ou confessional" (Purgatório das Ideias, 1929, p. 164). Sem dúvida que Sardinha associava um atributo negativo aos judeus, mas mostrava também que via no anti-semitismo “étnico” e “confessional” algo de reprovável e que isso o afastaria do universalismo a que aspirava.
Nesse livro por si proscrito, estava o seguinte conselho aos historiadores: "não se examinem factos de ontem com uma consciência de hoje (...) Nenhum poder nos investe no direito de chamar ao pretório o tempo que passou só porque não se combina nem coincide com as normas que regem o nosso."
Não há antídoto para a desonestidade intelectual e a má-fé, mas vale a pena acrescentar uma "nota final": “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
J.M.Q.
29.XII.2023