O Integralismo Lusitano incomodou Aquilino Ribeiro
Na obra O Arcanjo Negro, um romance que reconstrói acontecimentos à roda da revolta militar de 28 de Maio de 1926 (a acção no Arcanjo Negro decorre de 1925 a 1929), Aquilino Ribeiro quis transmitir uma ideia negativa do Integralismo. No capítulo III da sua prosa travam diálogo a personagem principal, Ricardo Tavarede, e seu primo, Filipe Alvarenga:
"Ricardo agora olhava para ele [Filipe], depois de baixar do seu sonho, faces encovadas, não sabia que espécie de amarelidão viscosa a escorrer por elas. Mas luzia-lhe nas pupilas um fulgor satisfeito, reflexo à certa do entusiasmo que não deixara de suscitar em seu ânimo o novo canto épico da trapalhada heróico-carbonária. Tudo nele fogo de palhas. Mas aquele estado de alma, entre beócio e niilista, irritou-o. E, torcendo subitamente para ele de sua deambulação pelo quarto, gritou-lhe:
- Tu ouviste o que eu disse?
- Ouvi.
- Então que disse eu?...
- Homem, contaste a proeza do Bravo e queres que te não interrompam as digestões e a boa inteligência em que estás com a situação. Fico inteirado.
- Boa inteligência?... Que queres dizer com isso?
- Não és o Bramante da era nova? Não te fazem favor, mas em suma tu contas para as podestades.
- Percebo, queres referir-te ao monumento GÉNIO DA RAÇA, em que colaborei com o França? De facto a nossa maquette foi preferida, mas em concurso público, alma de cântaro, em concurso público!
- Eu sei. Seja como for, Mecenas ressuscitou neste jardim à beira mar dezanove séculos andados da era de Cristo. Olha, ainda não pude ir visitar a exposição. Quero ver se lá vou amanhã. Estou com curiosidade de ver como te desenvencilhaste de semelhante problema.
- Então qual é a característica principal da nossa índole?
- Não sei. Talvez a preguiça, talvez a estupidez...
- Não digas heresias.
- Então dize tu...
- Raciocina um pouco...
- Mandas-me raciocinar! Se me obrigassem a dar uma resposta concreta a tal idiotice, que diria eu?... Espera lá... Punha um cochicho dentro duma gaiola a comer alpista dada pela mão da Virgem Maria: o lirismo; Barrabás de cruz às costas: a miséria; um homem de sombreiro de plumas e de gibão a armar o laço aos pretos: a rapina histórica. Uma das três coisas.
- Vai-te para o Diabo! Imaginas que estás na Brasileira a deitar piada! Felizmente a nação e a raça vão passando de saúde como as caravanas. Uma conta à beira de oitocentos anos e porque os conta tem seiva própria, cerne próprio e individualidade na floresta dos povos; a outra irradiou pelo mundo, tendo criado um instrumento inigualável de cultura que é a língua, e a sua imortalidade está nos impérios que fundou, não precisando mais do que o Brasil no testamento. Espíritos como o teu, satânicos e furta-cores, é que estabelecem a confusão... levam a duvidar. Diz lá: não é Portugal um país de agricultores?... De marinheiros?... Dize?... Equilíbrios por um lado, aventura por outro. Africanos, latinos, bárbaros do Norte, árabes deviam ter caldeado no jazigo étnico como escórias no cadinho. Por outra, à beira do Atlântico o português não foi a sentinela da Europa contra o muçulmano, de modo geral contra o asiático? Simbolizar o nosso génio é pôr em evidência esses valores históricos, valores de sobejo para ter existência própria, carácter próprio, vender e dar glória, blasonar de quem nos pede a razão de ser.”
É então que Aquilino põe na fala de Ricardo Tavarede - "o iconoclasta", partidário de um "coercitivo e regulador eugenismo", para quem o português "é um íncola degenerado" -, a seguinte objecção como remate:
“- Já ouvi isso a uma pseudo-doutrina nacionalista mascavada de maurraísmo, saudosismo, miguelismo e patetismo, chamada integralismo. Adiante, levanto-me e almoças connosco...”
- Tu ouviste o que eu disse?
- Ouvi.
- Então que disse eu?...
- Homem, contaste a proeza do Bravo e queres que te não interrompam as digestões e a boa inteligência em que estás com a situação. Fico inteirado.
- Boa inteligência?... Que queres dizer com isso?
- Não és o Bramante da era nova? Não te fazem favor, mas em suma tu contas para as podestades.
- Percebo, queres referir-te ao monumento GÉNIO DA RAÇA, em que colaborei com o França? De facto a nossa maquette foi preferida, mas em concurso público, alma de cântaro, em concurso público!
- Eu sei. Seja como for, Mecenas ressuscitou neste jardim à beira mar dezanove séculos andados da era de Cristo. Olha, ainda não pude ir visitar a exposição. Quero ver se lá vou amanhã. Estou com curiosidade de ver como te desenvencilhaste de semelhante problema.
- Então qual é a característica principal da nossa índole?
- Não sei. Talvez a preguiça, talvez a estupidez...
- Não digas heresias.
- Então dize tu...
- Raciocina um pouco...
- Mandas-me raciocinar! Se me obrigassem a dar uma resposta concreta a tal idiotice, que diria eu?... Espera lá... Punha um cochicho dentro duma gaiola a comer alpista dada pela mão da Virgem Maria: o lirismo; Barrabás de cruz às costas: a miséria; um homem de sombreiro de plumas e de gibão a armar o laço aos pretos: a rapina histórica. Uma das três coisas.
- Vai-te para o Diabo! Imaginas que estás na Brasileira a deitar piada! Felizmente a nação e a raça vão passando de saúde como as caravanas. Uma conta à beira de oitocentos anos e porque os conta tem seiva própria, cerne próprio e individualidade na floresta dos povos; a outra irradiou pelo mundo, tendo criado um instrumento inigualável de cultura que é a língua, e a sua imortalidade está nos impérios que fundou, não precisando mais do que o Brasil no testamento. Espíritos como o teu, satânicos e furta-cores, é que estabelecem a confusão... levam a duvidar. Diz lá: não é Portugal um país de agricultores?... De marinheiros?... Dize?... Equilíbrios por um lado, aventura por outro. Africanos, latinos, bárbaros do Norte, árabes deviam ter caldeado no jazigo étnico como escórias no cadinho. Por outra, à beira do Atlântico o português não foi a sentinela da Europa contra o muçulmano, de modo geral contra o asiático? Simbolizar o nosso génio é pôr em evidência esses valores históricos, valores de sobejo para ter existência própria, carácter próprio, vender e dar glória, blasonar de quem nos pede a razão de ser.”
É então que Aquilino põe na fala de Ricardo Tavarede - "o iconoclasta", partidário de um "coercitivo e regulador eugenismo", para quem o português "é um íncola degenerado" -, a seguinte objecção como remate:
“- Já ouvi isso a uma pseudo-doutrina nacionalista mascavada de maurraísmo, saudosismo, miguelismo e patetismo, chamada integralismo. Adiante, levanto-me e almoças connosco...”
* * * * *
Aquilino Ribeiro participou na efémera revista Homens Livres - Livres da Finança & dos Partidos (1923), juntando seareiros e integralistas, com um texto intitulado "Em torno do problema da raça", onde se pode ler: a “raça (portuguesa) desce a vertente rápida do seu aniquilamento”, acrescentando: “A raça, na sua maioria, é constituída por impaludados e luxuriosos, - impaludismo que a migração secular trouxe ao sangue português, e luxúria que, mercê do clima, educação sexual, cruzamento com outras raças inferiores, se infiltrou também no sangue da grei.” ("Em torno do problema da raça", Homens Livres, nº 1, 1 de Dezembro de 1923, p. 14).
Em 1939-1940, ao escrever na Cruz Quebrada o Arcanjo Negro, o teor da caricatura e ataque ao Integralismo, chegando ao "patetismo", retomava uma antiga querela entre os homens do Pelicano e da Seara. Num ponto se dizia ali a verdade: o Integralismo, embora tivesse surgido em apoio à causa do rei deposto em 1910, D. Manuel II, foi inquestionável o seu miguelismo histórico e doutrinário. Os outros "ismos", que Aquilino lhes atribuiu pela boca de Ricardo Tavarede, eram peças de uma história contada às avessas pelos Seareiros. Ao contrário do que se sugeria, os integralistas não eram Saudosistas (surgiram, em 1913, em reacção ao saudosismo dos republicanos da revista A Águia) e, bem antes da condenação papal da Action française de Charles Maurras, o secretário do Integralismo, Hipólito Raposo, pronunciara uma conferência - depois publicada sob o título Dois nacionalismos - colocando em evidência o que separava o Integralismo do "maurraísmo".
Em 1940, o que continuava a perturbar e a incomodar Aquilino era o multiracialismo imperial português, que os integralistas acolhiam no ser português como algo de positivo, em linha com a perspectiva luso-tropicalista de Gilberto Freire desenvolvida em reação às teses das superioridades raciais da época, mormente do Nazismo (Gilberto Freire, O mundo que o português criou, 1940).
É possível que o racismo de Aquilino Ribeiro fosse um eco das teses do “nacionalismo rácico” (ou étnico) do republicano Teófilo Braga, ou mesmo de um Oliveira Martins, a quem repugnava a ideia de que Portugal pudesse ser uma “nação mestiça”. O racismo era moeda corrente no ambiente republicano, constituindo um pomo mais de discórdia com os integralistas, para quem a nação portuguesa era e devia permanecer plurirracial e pluricontinental. Em 1926, um outro Seareiro, Raul Proença, tal como a personagem Ricardo Tavarede, saíra também em defesa da Eugenia, de uma "política da Raça" como a mais importante das políticas, "defendendo o português de maiores abastardamentos" (in A Ditadura Militar, 1926, p. 65).
Ao escrever o romance O Arcanjo Negro, Aquilino Ribeiro mantinha intacta a sua aversão ao ideário do Integralismo Lusitano e à história de cruzamento dos portugueses com o que designa por "outras raças inferiores".
19.09.2024 - J. M. Q.
Em 1939-1940, ao escrever na Cruz Quebrada o Arcanjo Negro, o teor da caricatura e ataque ao Integralismo, chegando ao "patetismo", retomava uma antiga querela entre os homens do Pelicano e da Seara. Num ponto se dizia ali a verdade: o Integralismo, embora tivesse surgido em apoio à causa do rei deposto em 1910, D. Manuel II, foi inquestionável o seu miguelismo histórico e doutrinário. Os outros "ismos", que Aquilino lhes atribuiu pela boca de Ricardo Tavarede, eram peças de uma história contada às avessas pelos Seareiros. Ao contrário do que se sugeria, os integralistas não eram Saudosistas (surgiram, em 1913, em reacção ao saudosismo dos republicanos da revista A Águia) e, bem antes da condenação papal da Action française de Charles Maurras, o secretário do Integralismo, Hipólito Raposo, pronunciara uma conferência - depois publicada sob o título Dois nacionalismos - colocando em evidência o que separava o Integralismo do "maurraísmo".
Em 1940, o que continuava a perturbar e a incomodar Aquilino era o multiracialismo imperial português, que os integralistas acolhiam no ser português como algo de positivo, em linha com a perspectiva luso-tropicalista de Gilberto Freire desenvolvida em reação às teses das superioridades raciais da época, mormente do Nazismo (Gilberto Freire, O mundo que o português criou, 1940).
É possível que o racismo de Aquilino Ribeiro fosse um eco das teses do “nacionalismo rácico” (ou étnico) do republicano Teófilo Braga, ou mesmo de um Oliveira Martins, a quem repugnava a ideia de que Portugal pudesse ser uma “nação mestiça”. O racismo era moeda corrente no ambiente republicano, constituindo um pomo mais de discórdia com os integralistas, para quem a nação portuguesa era e devia permanecer plurirracial e pluricontinental. Em 1926, um outro Seareiro, Raul Proença, tal como a personagem Ricardo Tavarede, saíra também em defesa da Eugenia, de uma "política da Raça" como a mais importante das políticas, "defendendo o português de maiores abastardamentos" (in A Ditadura Militar, 1926, p. 65).
Ao escrever o romance O Arcanjo Negro, Aquilino Ribeiro mantinha intacta a sua aversão ao ideário do Integralismo Lusitano e à história de cruzamento dos portugueses com o que designa por "outras raças inferiores".
19.09.2024 - J. M. Q.