“Estes revolucionários da Tradição devem a sua gloriosa impopularidade a serem na realidade tão modernistas como anti-políticos, anti-parlamentares e sindicalistas. A eles me prendem afinidades de espírito porque em muitos pontos da batalha nos viemos a encontrar como irmãos de armas. Mas, não tendo a honra de lhe pertencer oficialmente [refere-se ao Integralismo Lusitano] – habituado como estou a manter uma independência que me é indispensável -, posso dizer que este tem sido o mais consciente dos núcleos de pensamento contemporâneo. Reagindo com mística bravura, por mercê de uma crença estabelecida em bases orgânicas, contra a mentira caduca e já arruinada da actual sociedade política e económica, os integralistas são os portugueses que sabem o que querem. E o seu esforço, mesmo quando outros resultados não desse, sempre seria este: ficar como um documento de honra e de coragem.”
(Afonso Lopes Vieira, Em Demanda do Graal, Lisboa, 1922, p. 298).
(Afonso Lopes Vieira, Em Demanda do Graal, Lisboa, 1922, p. 298).
Éclogas de Agora
Afonso Lopes Vieira
Éclogas de Agora (2ª) de Afonso Lopes Vieira (1º ed., Set-Out., Edição de Autor, 1935) que foram "retiradas da distribuição" pouco depois de publicadas. Entre parêntesis rectos seguem algumas anotações necessárias a uma melhor clarificação do seu conteúdo histórico.
Interlocutores: Hipério [Hipólito Raposo] e Viviano [o Autor]
Viviano
Ó solidão, ditosa companhia
se no-la enche a consciência alegre!
Val-de-Lobos das almas que não vergam!
Exílio, pátria dos honrados homens!...
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos liberais-constitucionais, que vieram a fornecer ao Estado Novo de Oliveira Salazar o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado - Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
Silêncio assim tão novo
jamais pesou nos prados;
os rebanhos arquejam sufocados,
e nós, zagais do povo,
já deixámos as frautas e as cantigas
para apertar o punho dos cajados.
Que razão tem, pastores,
que nos tolham a voz?
Quem poderá jamais justificá-lo?
Se o que foi feito por amor de nós
é bom, deixai-nos todos bendizê-lo,
se é mau, devemos todos condená-lo!...
Mordaças não convêm a lusas bocas;
e senão vêde aqueles
grandes zagais antigos,
glórias desta ribeira,
chamados Gil Vicente
e Luís de Camões
e padre António Vieira,
que todos foram bravos,
todos falaram rijo
na Portuguesa Língua forte e clara
ou no paço dos reis
ou no divino Poema
ou na defesa épica de escravos!...
E nós, zagais que fomos
os primeiros na luta destemida,
havemos de ficar assim calados,
mais medrosos que os gados,
como ovelha que bala de perdida?
E quem manda calar-nos?
Esses que se abrigavam
nas cabanas amigas
ou nas tocas seguras
quando se armavam cá no prado as brigas!...
Hipério, amigo forte,
peguemos outra vez nestes cajados
tão useiros ao jogo
e de novo saiamos
com bravura e ardil
a pelejar co’os lobos que ajudámos
a penetrar no fundo do redil!...
Hipério
Sim, Viviano amigo,
Quando recordo os nossos companheiros,
uns já mortos, os outros desterrados,
minha alma se enternece e se faz triste.
Quanto esforço que andámos dispendendo,
quanta renúncia aos cómodos da vida!
Quanta estúpida injúria recebida
desses próprios que andámos defendendo.
Lembra-me o alto Antonius [António Sardinha]
que do jardim da raia,
cidade forte e branca,
com a pressa de quem pressente a morte
tanta luz derramou por estes prados!
Outro morreu primeiro,
moço e de mente clara,
Cordário [Adriano Xavier Cordeiro] era o seu nome;
Brácaro [Luís de Almeida Braga], zagal fino
que se apurou em Flandres,
lá guarda solitário o seu rebanho;
Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado
na peleja dos lobos,
vive longe de nós, em terra alheia;
Rebélio [José Pequito Rebelo] tão experto
nos profundos segredos da lavoura,
nunca foi por ninguém aproveitado;
Lucius [Afonso Lucas] foi salteado
e nos risos amargos se consola...
Meu Deus, que triste sorte!...
Todos no exílio, todos,
ou na pátria ou na morte.
Viviano
E tu próprio estiveste
preso em choupana agreste
donde não pude defender-te quando
maiorais, hoje lobos,
ouviram minha fala
que na ribeira Clara fui botando
[Referência ao julgamento de Hipólito Raposo no Tribunal de Santa Clara, no qual Afonso Lopes Vieira foi seu advogado de defesa]
Hipério
E tu mesmo, que foste perseguido
por furiosos zagais
quando cantaste esse zagal sem nome
que nas brigas de além morreu perdido.
[referência à prisão de Afonso Lopes Vieira, por motivo da publicação e apreensão da sua poesia «Ao Soldado Desconhecido» (morto em França), 1921.
Com efeito, os soldados - excelentes;
capitães, onde estais?
Certo é que sentimos o desterro
a que a nova alcateia nos condena,
a que repete em voz desentoada
canções da nossa avena !
[Referência à tentativa de apropriação do legado político e cultural do «Integralismo Lusitano» feita por alguns ex-integralistas, colaboradores de Salazar depois de 1929, Marcelo Caetano e Pedro Teotónio Pereira, entre outros]
E são lobos tão pérfidos no assalto,
tão matreiros, tão crus e tão gulosos,
que nos parece já que os outros lobos
em verdade eram menos perigosos!...
Viviano
Hipério, dizeis bem e eu mesmo o sinto;
os inimigos de antes muitas vezes
sendo brutais eram até corteses;
os de hoje são peçonha em água benta.
Mas os zagais mais moços
moços na idade, n’alma engelhadinhos -
que aprenderam connosco
a tocar e dançar, a serem homens,
quase todos estão daquela banda
donde a nós nos monteiam.
Ardente mocidade,
é mais feia a traição na tua idade
e horrendo que te comprem por traidora!
Por isso eu canto alegre,
sòzinho pelo prado:
Ó solidão, formosa companhia
se no-la enche o coração contente!
Não há luxo maior que o ser-se honrado.
Hipério
E pensar que lá longe
na estrangeira terra,
nesse exílio que dura há tantos anos,
vive aquele Pastor [O Rei, D. Duarte Nuno] que salvaria
estes campos da morte e da ruína
e dos lobos cruéis estas ovelhas!...
Pastor mais luso e nosso
outro se não conhece;
tem puras qualidades que rebrilham
entre as dos guardadores
da honra e da mantença das lavouras.
Ele é bravo e é pobre;
a nossa Língua fala
que um século vivido entre as alheias
jamais fez esquecida;
aprendeu na dureza
e alta dignidade
do pão do seu exílio
a saber como os pobres são honrados
quase só pelo serem,
e como o ventre obeso dos tiranos
do mando ou do dinheiro
é cousa dura e feia.
Se ele um dia viesse
aos nossos lusos prados
acabava-se a dança dos pastores
que são hóspedes caros ou ligeiros
da cabana onde em feno perfumado
se repolteriam todos,
monarcas da desordem
ou da vil tirania.
Oh! a danada dança,
dança desordenada!
Este espicaça o gado e açula os lobos;
esse é honrado e tapa os negros crimes;
aquele engorda e o gado está no fio;
outros querem livrar-se
e fugindo abandonam o rebanho...
Rendeiros todos são, nenhum é dono.
Pois como hão-de estimar a boa terra
quando a trazem de renda e a fatigam?
Um dia abalam - quem lhes faz as contas?
E se acaso um bom velho
de olhos azuis e de alma enamorada [Henrique de Paiva Couceiro]
se dispõe a guardar o gado solto,
os maus zagais do prado
vão e pegam-lhe fogo!
Quando virás um dia,
pastor que sejas dono e não rendeiro,
morador e não hóspede,
bem apegado à terra,
capaz de ter amor,
leal, nunca onzeneiro,
descendente daqueles que guardaram
as queridas ovelhas
sem jamais esfolá-las
nem à fome matá-las
nem à bruta tangê-las?...
Viviano
Amigo, que Pastor venha depressa
à terra sua e nossa
que com tanta mentira se esboroa
e com tão crua fome desfalece;
mas que sempre recorde
que descende dos ínclitos Pastores
que fizeram tão grande a nossa glória
porque amavam a terra
estimando-lhe a gente.
Mas que nunca se esqueça
de que provém do Mestre [O Mestre de Avis, Rei D. João I]
e do Segundo Joane [Rei D. João II].
O primeiro que foi senão o povo
coroado por chefe
e revendo-se todo
na sua própria imagem coroada?
Ó Fernão Lopes, conta
como os ventres ao sol
lá em Aljubarrota pelejavam! -
E Joane, «de fama sempiterna»,
destruiu, para bem desta lavoura,
as moagens que a terra devoravam!...
Que o Pastor que chamamos
assim como eles seja:
que respeite sem quebra
as nossas liberdades,
lembrando-se do verso que falando
Da Lusitana antiga liberdade
[Alusão às liberdades que os povos organizados nas comunas urbanas e nos concelhos rurais dispunham no reino de Portugal dos tempos medievais, retomando o formoso verso de Luís de Camões: "E vós, ó bem nascida segurança/ da lusitana antiga liberdade/ e não menos certíssima esperança/ de aumento da pequena Cristandade;/ vós, ó novo temor da Maura lança,/ maravilha fatal da nossa idade,/ dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,/ para do Mundo a Deus dar parte grande]
nos dá tamanha honra;
que toda a usura açaime
e o trabalho defenda;
que ame a lavoura, donde
um povo inteiro vive;
que não chame às províncias
do Além-mar colónias,
o que já é perdê-las;
[Alusão ao Acto Colonial (1930) e à ideologia colonialista das 1ª e 2ª Repúblicas, a que os integralistas se opunham]
que nunca ao pé consinta
as cortesãs beatas,
os duques descarados,
os condes financeiros,
a fim de que essa corte seja aquela
corte de alto esplendor
onde o chefe da Casa
dos vinte e quatro ofícios
penetre entre brandões que se acenderam
para honras lhe dar de Embaixador!
Obras de Afonso Lopes Vieira
O Encoberto
Cavaleiro do Sonho e do Desejo,
guarda no santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.
Sonho de além e de glória,
há tanto, há tanto
o sonha um Povo inteiro!
Maravilha e encanto
da nossa história:
- oh Manhã de Nevoeiro...
Oh manhã misteriosa
que alvoreces em nós teu rompante claror,
teu messiânico alvor,
manhã de além, alva saudosa,
- tu és nossa força que não passa,
teu sonho em nós revive ao longe e ao perto,
manhã sem dia, oh manhã de Graça,
em que há de vir o Encoberto...
Místico Paladino iluminado,
que ao areal arrastou nossa alma em flor
e jogou a sorrir nosso destino e sorte,
ele era vivo antes de Desejado,
ele era vivo em nosso sonho e amor,
- e nunca o levou a morte!
Ele é vivo e é eterno! Horas ansiadas
em que o sinto, no meu sangue, em mim...
Ele vive nas Ilhas Encantadas
da nossa alma sem fim...
E, oh maravilha!
em toda a hora do perigo e do temor,
o Encoberto volta da sua Ilha,
e salva-nos, e salva-nos, Senhor!...
E a Esperança imortal,
surda palpita na manhã rompente!
Cerra-se a névoa alucinadamente,
Portugal boia no nevoeiro...
E o Cavaleiro
do Sonho e do Desejo
guarda no Santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.
(In Ilhas de Bruma, 1918)
Éclogas de Agora (2ª) de Afonso Lopes Vieira (1º ed., Set-Out., Edição de Autor, 1935) que foram "retiradas da distribuição" pouco depois de publicadas. Entre parêntesis rectos seguem algumas anotações necessárias a uma melhor clarificação do seu conteúdo histórico.
Interlocutores: Hipério [Hipólito Raposo] e Viviano [o Autor]
Viviano
Ó solidão, ditosa companhia
se no-la enche a consciência alegre!
Val-de-Lobos das almas que não vergam!
Exílio, pátria dos honrados homens!...
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos liberais-constitucionais, que vieram a fornecer ao Estado Novo de Oliveira Salazar o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado - Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
Silêncio assim tão novo
jamais pesou nos prados;
os rebanhos arquejam sufocados,
e nós, zagais do povo,
já deixámos as frautas e as cantigas
para apertar o punho dos cajados.
Que razão tem, pastores,
que nos tolham a voz?
Quem poderá jamais justificá-lo?
Se o que foi feito por amor de nós
é bom, deixai-nos todos bendizê-lo,
se é mau, devemos todos condená-lo!...
Mordaças não convêm a lusas bocas;
e senão vêde aqueles
grandes zagais antigos,
glórias desta ribeira,
chamados Gil Vicente
e Luís de Camões
e padre António Vieira,
que todos foram bravos,
todos falaram rijo
na Portuguesa Língua forte e clara
ou no paço dos reis
ou no divino Poema
ou na defesa épica de escravos!...
E nós, zagais que fomos
os primeiros na luta destemida,
havemos de ficar assim calados,
mais medrosos que os gados,
como ovelha que bala de perdida?
E quem manda calar-nos?
Esses que se abrigavam
nas cabanas amigas
ou nas tocas seguras
quando se armavam cá no prado as brigas!...
Hipério, amigo forte,
peguemos outra vez nestes cajados
tão useiros ao jogo
e de novo saiamos
com bravura e ardil
a pelejar co’os lobos que ajudámos
a penetrar no fundo do redil!...
Hipério
Sim, Viviano amigo,
Quando recordo os nossos companheiros,
uns já mortos, os outros desterrados,
minha alma se enternece e se faz triste.
Quanto esforço que andámos dispendendo,
quanta renúncia aos cómodos da vida!
Quanta estúpida injúria recebida
desses próprios que andámos defendendo.
Lembra-me o alto Antonius [António Sardinha]
que do jardim da raia,
cidade forte e branca,
com a pressa de quem pressente a morte
tanta luz derramou por estes prados!
Outro morreu primeiro,
moço e de mente clara,
Cordário [Adriano Xavier Cordeiro] era o seu nome;
Brácaro [Luís de Almeida Braga], zagal fino
que se apurou em Flandres,
lá guarda solitário o seu rebanho;
Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado
na peleja dos lobos,
vive longe de nós, em terra alheia;
Rebélio [José Pequito Rebelo] tão experto
nos profundos segredos da lavoura,
nunca foi por ninguém aproveitado;
Lucius [Afonso Lucas] foi salteado
e nos risos amargos se consola...
Meu Deus, que triste sorte!...
Todos no exílio, todos,
ou na pátria ou na morte.
Viviano
E tu próprio estiveste
preso em choupana agreste
donde não pude defender-te quando
maiorais, hoje lobos,
ouviram minha fala
que na ribeira Clara fui botando
[Referência ao julgamento de Hipólito Raposo no Tribunal de Santa Clara, no qual Afonso Lopes Vieira foi seu advogado de defesa]
Hipério
E tu mesmo, que foste perseguido
por furiosos zagais
quando cantaste esse zagal sem nome
que nas brigas de além morreu perdido.
[referência à prisão de Afonso Lopes Vieira, por motivo da publicação e apreensão da sua poesia «Ao Soldado Desconhecido» (morto em França), 1921.
Com efeito, os soldados - excelentes;
capitães, onde estais?
Certo é que sentimos o desterro
a que a nova alcateia nos condena,
a que repete em voz desentoada
canções da nossa avena !
[Referência à tentativa de apropriação do legado político e cultural do «Integralismo Lusitano» feita por alguns ex-integralistas, colaboradores de Salazar depois de 1929, Marcelo Caetano e Pedro Teotónio Pereira, entre outros]
E são lobos tão pérfidos no assalto,
tão matreiros, tão crus e tão gulosos,
que nos parece já que os outros lobos
em verdade eram menos perigosos!...
Viviano
Hipério, dizeis bem e eu mesmo o sinto;
os inimigos de antes muitas vezes
sendo brutais eram até corteses;
os de hoje são peçonha em água benta.
Mas os zagais mais moços
moços na idade, n’alma engelhadinhos -
que aprenderam connosco
a tocar e dançar, a serem homens,
quase todos estão daquela banda
donde a nós nos monteiam.
Ardente mocidade,
é mais feia a traição na tua idade
e horrendo que te comprem por traidora!
Por isso eu canto alegre,
sòzinho pelo prado:
Ó solidão, formosa companhia
se no-la enche o coração contente!
Não há luxo maior que o ser-se honrado.
Hipério
E pensar que lá longe
na estrangeira terra,
nesse exílio que dura há tantos anos,
vive aquele Pastor [O Rei, D. Duarte Nuno] que salvaria
estes campos da morte e da ruína
e dos lobos cruéis estas ovelhas!...
Pastor mais luso e nosso
outro se não conhece;
tem puras qualidades que rebrilham
entre as dos guardadores
da honra e da mantença das lavouras.
Ele é bravo e é pobre;
a nossa Língua fala
que um século vivido entre as alheias
jamais fez esquecida;
aprendeu na dureza
e alta dignidade
do pão do seu exílio
a saber como os pobres são honrados
quase só pelo serem,
e como o ventre obeso dos tiranos
do mando ou do dinheiro
é cousa dura e feia.
Se ele um dia viesse
aos nossos lusos prados
acabava-se a dança dos pastores
que são hóspedes caros ou ligeiros
da cabana onde em feno perfumado
se repolteriam todos,
monarcas da desordem
ou da vil tirania.
Oh! a danada dança,
dança desordenada!
Este espicaça o gado e açula os lobos;
esse é honrado e tapa os negros crimes;
aquele engorda e o gado está no fio;
outros querem livrar-se
e fugindo abandonam o rebanho...
Rendeiros todos são, nenhum é dono.
Pois como hão-de estimar a boa terra
quando a trazem de renda e a fatigam?
Um dia abalam - quem lhes faz as contas?
E se acaso um bom velho
de olhos azuis e de alma enamorada [Henrique de Paiva Couceiro]
se dispõe a guardar o gado solto,
os maus zagais do prado
vão e pegam-lhe fogo!
Quando virás um dia,
pastor que sejas dono e não rendeiro,
morador e não hóspede,
bem apegado à terra,
capaz de ter amor,
leal, nunca onzeneiro,
descendente daqueles que guardaram
as queridas ovelhas
sem jamais esfolá-las
nem à fome matá-las
nem à bruta tangê-las?...
Viviano
Amigo, que Pastor venha depressa
à terra sua e nossa
que com tanta mentira se esboroa
e com tão crua fome desfalece;
mas que sempre recorde
que descende dos ínclitos Pastores
que fizeram tão grande a nossa glória
porque amavam a terra
estimando-lhe a gente.
Mas que nunca se esqueça
de que provém do Mestre [O Mestre de Avis, Rei D. João I]
e do Segundo Joane [Rei D. João II].
O primeiro que foi senão o povo
coroado por chefe
e revendo-se todo
na sua própria imagem coroada?
Ó Fernão Lopes, conta
como os ventres ao sol
lá em Aljubarrota pelejavam! -
E Joane, «de fama sempiterna»,
destruiu, para bem desta lavoura,
as moagens que a terra devoravam!...
Que o Pastor que chamamos
assim como eles seja:
que respeite sem quebra
as nossas liberdades,
lembrando-se do verso que falando
Da Lusitana antiga liberdade
[Alusão às liberdades que os povos organizados nas comunas urbanas e nos concelhos rurais dispunham no reino de Portugal dos tempos medievais, retomando o formoso verso de Luís de Camões: "E vós, ó bem nascida segurança/ da lusitana antiga liberdade/ e não menos certíssima esperança/ de aumento da pequena Cristandade;/ vós, ó novo temor da Maura lança,/ maravilha fatal da nossa idade,/ dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,/ para do Mundo a Deus dar parte grande]
nos dá tamanha honra;
que toda a usura açaime
e o trabalho defenda;
que ame a lavoura, donde
um povo inteiro vive;
que não chame às províncias
do Além-mar colónias,
o que já é perdê-las;
[Alusão ao Acto Colonial (1930) e à ideologia colonialista das 1ª e 2ª Repúblicas, a que os integralistas se opunham]
que nunca ao pé consinta
as cortesãs beatas,
os duques descarados,
os condes financeiros,
a fim de que essa corte seja aquela
corte de alto esplendor
onde o chefe da Casa
dos vinte e quatro ofícios
penetre entre brandões que se acenderam
para honras lhe dar de Embaixador!
Obras de Afonso Lopes Vieira
- 1898 - Para quê?
- 1899 - Náufrago - versos lusitanos
- 1900 - Auto da Sebenta
- 1900 - Elegia da Cabra
- 1900 - Meu Adeus
- 1906 - Ar Livre
- 1901 - O Poeta Saudade
- 1904 - Marques - História de um Peregrino
- 1905 - Poesias Escolhidas
- 1905 - O Encoberto
- 1910 - O Pão e as Rosas
- 1910 - Gil Vicente - Monólogo do Vaqueiro
- 1911 - O Povo e os Poetas Portugueses
- 1911 - Rosas Bravas
- Autozinho da Barca do Inferno (adaptação) (1911)
- Os Animais Nossos Amigos (1911)
- Canções do Vento e do Sol (1912)
- Bartolomeu Marinheiro (1912)
- Canto Infantil (1913)
- O Soneto dos Túmulos (1913)
- Inês de Castro na Poesia e na Lenda (1914)
- A Campanha Vicentina (1914)
- A Poesia dos Painéis de São Vicente (1915)
- Poesias sobre as Cenas de Schumann (1916)
- Autos de Gil Vicente (1917)
- Canções de Saudade e de Amor (1917)
- Ilhas de Bruma (1918)
- Cancioneiro de Coimbra (1920)
- Crisfal (1920)
- Cantos Portugueses (1922)
- Em Demanda do Graal (1922)
- País Lilás, Desterro Azul (1922)
- O Romance de Amadis (1923)
- Da Reintegração dos Primitivos Portugueses (1924)
- Diana (1925)
- 1925 - Ao Soldado Desconhecido
- 1928 - Os Versos de Afonso Lopes Vieira
- 1929 - Os Lusíadas
- O Poema do Cid (tradução) (1930)
- O livro do Amor de João de Deus (1930)
- Fátima (1931)
- Poema da Oratória de Rui Coelho (1931)
- Animais Nossos Amigos (1932)
- Santo António (1932)
- Lírica de Camões (1932)
- Relatório e Contas da Minha Viagem a Angola (1935)
- Éclogas de Agora (1935) (livro proibido até ao 25 de Abril de 1974)
- Ao Povo de Lisboa (1938)
- O Conto de Amadis de Portugal (1940)
- Poesias de Francisco Rodrigues Lobo (1940)
- A Paixão de Pedro o Cru (1940)
- Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa (1940)
- O Carácter de Camões (1941)
- Cartas de Soror Mariana (tradução) (1942)
- Camões (filme de 1946) (argumento)
- Nova Demanda do Graal (1947)
- Branca Flor e Frei Malandro (1947)
O Encoberto
Cavaleiro do Sonho e do Desejo,
guarda no santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.
Sonho de além e de glória,
há tanto, há tanto
o sonha um Povo inteiro!
Maravilha e encanto
da nossa história:
- oh Manhã de Nevoeiro...
Oh manhã misteriosa
que alvoreces em nós teu rompante claror,
teu messiânico alvor,
manhã de além, alva saudosa,
- tu és nossa força que não passa,
teu sonho em nós revive ao longe e ao perto,
manhã sem dia, oh manhã de Graça,
em que há de vir o Encoberto...
Místico Paladino iluminado,
que ao areal arrastou nossa alma em flor
e jogou a sorrir nosso destino e sorte,
ele era vivo antes de Desejado,
ele era vivo em nosso sonho e amor,
- e nunca o levou a morte!
Ele é vivo e é eterno! Horas ansiadas
em que o sinto, no meu sangue, em mim...
Ele vive nas Ilhas Encantadas
da nossa alma sem fim...
E, oh maravilha!
em toda a hora do perigo e do temor,
o Encoberto volta da sua Ilha,
e salva-nos, e salva-nos, Senhor!...
E a Esperança imortal,
surda palpita na manhã rompente!
Cerra-se a névoa alucinadamente,
Portugal boia no nevoeiro...
E o Cavaleiro
do Sonho e do Desejo
guarda no Santo Graal,
com a nossa Saudade e o nosso Beijo,
- o sangue de Portugal.
(In Ilhas de Bruma, 1918)