O Integralismo Lusitano e a herança dos "Vencidos da Vida"
José Manuel Quintas
[O Integralismo Lusitano expressou um pensamento político tradicionalista anti-conservador, estabelecido em torno de uma consciência da individualidade espiritual e cultural dos portugueses, numa reflexão teórica sobre a Tradição e a História Pátrias. Partindo de uma sumária apresentação do teor desse pensamento político, aqui se procura captar parte do seu conteúdo de renovação e de protesto, em especial aquele que tem directos antecedentes problemáticos e afirmativos na Geração de 70 pós-Ultimatum (1890), na sua derradeira fase de "Vencidos da Vida".
O presente texto foi escrito em Setembro de 1997, para vir a ser lido na Abertura Solene das Aulas da Academia da Força Aérea, e foi depois reelaborado parcialmente, ao publicar "Os monárquicos e as eleições presidenciais de 1958" (in Humberto Delgado - as eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173). O desenvolvimento narrativo e argumentativo deste texto, baseado em fontes historiográficas parcialmente inéditas, constitui parte de Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano (Editorial Nova Ática, 2004).
Concebido para ser lido numa cerimónia, o presente texto apresenta tons e ritmos que se julgaram adequados à audição. Esta edição foi ainda aligeirada pela exclusão de notas e referências bibliográficas de rodapé. - J. M. Q.]
Índice
1. Apresentando o Integralismo Lusitano.
2. A Geração de 70 e o acertar do passo com a Europa.
3. O choque do Ultimatum britânico e o grupo de «Os Vencidos da Vida».
4. Os «Vencidos da Vida» e as novas propostas de regeneração.
5. «Carta de um Velho a um Novo» — o render da guarda entre duas gerações.
No ambiente subtil e esterilizador dessa conspiração permanente que é a essência do parlamentarismo… [os partidos] perderam a noção da realidade; e enquanto o mundo se transforma vão repetindo maquinalmente as costumadas teses duma filosofia caduca e que nem já compreendem. - Antero de Quental in Prosas.
Nós viemos em linha recta da fraqueza generosa de Gonçalo Mendes Ramires. E se alguém, lá mais para diante, pensar em escrever a novela do nosso esforço, eu creio que lhe chamará com verdade «O filho de Ramires!». António Sardinha, "No jardim da Raça", in Ao Ritmo da Ampulheta.
1. Apresentando o Integralismo Lusitano.
A expressão "Integralismo Lusitano" foi cunhada por Luís de Almeida Braga, em 1913, na revista Alma Portuguesa, editada na Bélgica por um grupo de expatriados monárquicos. Em 1914, aquela expressão surgiu inscrita no lançamento da revista Nação Portuguesa, para designar um programa político monárquico e um movimento de ideias políticas acabado de se constituir.
Mas quem eram e ao que vinham os integralistas lusitanos?
Ao lançarem a revista Nação Portuguesa, os integralistas eram um grupo de jovens, quase todos acabados de sair da Universidade de Coimbra: Hipólito Raposo (1885-1953), Luís de Almeida Braga (1886-1970), António Sardinha (1887-1925), Alberto Monsaraz (1889-1959), José Pequito Rebelo (1893-1983).
O que logo ressaltava era a sua extrema juventude: Hipólito Raposo, o mais velho do grupo, tinha 29 anos, Pequito Rebelo, o mais jovem, tinha apenas 21; a média de idades não ultrapassava os 24 anos.
Quanto aos seus propósitos, era Alberto de Monsaraz, o director da revista, quem, ao assinar o seu primeiro editorial — uma "Carta Aberta" dirigida a Moreira de Almeida — se identificava como "um português tão desiludido do 4 como do 5 de Outubro". A mensagem de Alberto de Monsaraz não podia ser mais clara: dirigindo-se aos monárquicos, afirmava-lhes que a recém-deposta "Monarquia Constitucional" não lhes servia. Para os integralistas, a Monarquia derrubada era um corpo estranho à Nação. Havia que retornar à Monarquia, sim, mas à verdadeira Monarquia Portuguesa. Os portugueses haviam esquecido em que consistia uma tal Monarquia; os integralistas ali estavam para o explicar aos próprios monárquicos. No final da "Anunciação" da Nação Portuguesa soava o aviso: "saibam-no os senhores que governam, mais os cidadãos que obedecem, nós vimos reatar a Tradição".
Ficando claro que não se propunham uma simples restauração da Monarquia deposta, havia, ainda assim, quem pudesse achar estranho que entre os integralistas, em posto de comando, surgisse António Sardinha, que fora um dos mais distintos estudantes republicanos do seu tempo e que chegara a trocar correspondência com Teófilo Braga. Em breve se ficaria a saber que o Integralismo Lusitano contava nas suas fileiras com outros ex-republicanos como João do Amaral ou Domingos Garcia Pulido.
Agregando monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta, e republicanos convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada, a questão não podia deixar de se colocar: de que Tradição se reivindicavam? Com que ideias, tomadas de que mestres, se formara esse movimento de jovens que se propunha reatar a Tradição portuguesa?
Os integralistas, do mesmo passo que apresentaram um índice de soluções políticas sob o título "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar" — indicavam também, desde os primeiros números da revista Nação Portuguesa, as fontes do seu pensamento político: os Mestres do pensamento político português que, ao longo dos séculos, alicerçaram e ergueram as instituições do Reino de Portugal.
Era o pensamento político que, do mesmo passo, reconhecia os foros e liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecia as regras da sua representação em Cortes e definia o conteúdo dos pactos que os Reis juravam respeitar (ao Rei, cuja autoridade era entendida como um serviço, cumpria reger os destinos da República).
Tanto quanto é aqui possível sintetizar os princípios fundamentais desse pensamento político, saliente-se que entendiam a Nação Portuguesa como o resultado de um processo histórico, no qual se firmara uma estreita aliança entre o Rei, o Povo e a sua Igreja. Ao Rei, entendiam-no como a cabeça do Reino, o agente centrípeto em que todos se reconheciam — era "a Pátria com figura humana", na célebre fórmula de António Sardinha. Ao Povo entendiam-no como soberano, com uma soberania participada, isto é, recebida de Deus. Sendo Deus a fonte do poder, competia aos homens a determinação da forma que havia de assumir. Entre o Povo e o Magistrado (ou Rei) verificava-se um contrato pelo qual o Povo atribuia os poderes que desejava fossem por ele exercidos. O Povo era, assim, anterior e superior ao Rei, à autoridade. Em rigor, o Rei recebia o poder imediatamente do povo, mediatamente de Deus. Ao ser-lhe atribuído o poder, o seu detentor ficava sendo superior a quem o atribuíra, mas obrigado ao respeito dos termos do contrato estabelecido no acto da atribuição. Assim, o Povo transmitindo o poder ao Rei (por sua vez transmissível aos sucessores) por intermédio de um pacto, reservava-se in habitu o poder transferido. Não se defendia que o Povo podia revogar a transferência do poder ao Rei — o que seria contrário ao princípio de que pacta sunt servanda — antes se defendia que ao Povo assistia o direito de o depor. O Rei era entendido como um gestor da República, obrigado a uma administração que lhe era conferida pelo povo. O Rei servia a Pátria, não era a Pátria que servia o Rei, no que se seguia o célebre preceito enunciado pelo doutor João Pinto Ribeiro: "Os Reys não foram criados, & ordenados para sua utilidade, y proveito, se não em benefício, & prol do Reyno...".
Para os integralistas fora aquele o pensamento político que levantara o reino de Portugal contra as pretensões de Castela, que fundara a legitimidade da Dinastia de Avis e sustentara a Restauração de 1640; era o pensamento político que se expressara, desde os alvores da nacionalidade até ao último quartel do século XVII, através de uma vasta plêiade de escritores, de que os integralistas destacavam, entre tantos outros: Álvaro Pais, Frei António de Beja, Jerónimo Osório, Diogo de Paiva, Frei Manuel dos Anjos, Frei Jacinto de Deus, Sousa de Macedo, Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia.
Nas formulações políticas daqueles canonistas e jurisconsultos se encontrava o cerne do pensamento que melhor corporizara a Tradição política da Monarquia Portuguesa. Neles se expressara o pensamento político português que, após a Restauração de 1640, recebera sucessivos tratos de polé, primeiro no plano das ideias, depois no das instituições; desde o advento do absolutismo iluminado pela mão do Marquês de Pombal, até ao período do chamado "Constitucionalismo", definitivamente implantado na década de 1830.
Mas o pensamento político português resistira às infiltrações estrangeiradas do século das Luzes, sobrevivendo em autores como Sousa Farinha, Rodrigues Leitão, Marquês de Penalva e, nos inícios do século XIX, seria continuado por Fortunato de São Boaventura, José da Gama e Castro, Faustino José da Madre de Deus, Francisco Alexandre Lobo, Acúrcio das Neves, Gouveia Pinto, Ribeiro Saraiva, Visconde de Santarém... Os integralistas não se mostravam dispostos a permitir o esquecimento ou adulteração daquele pensamento político; os integralistas surgem com o firme propósito de o recuperar e adequar às exigências dos novos tempos; o pensamento político que ajudara a fazer a Nação não podia morrer, sob o risco de morrer com ele a própria Nação.
Para os integralistas lusitanos não fora a implantação da República que, em rigor, quebrara a Tradição política portuguesa. A República era apenas a continuação da Monarquia da Carta, ainda que "uma continuação agravada, nos princípios e nos factos": destronara-se o Rei e passara a dominar o mito que identificava a Democracia com o regime republicano. Para os integralistas, a Democracia e a defesa da Res publica não era o verdadeiro programa daqueles que a si próprios se designavam por "democráticos" e "republicanos". O que o regime implantado em 5 de Outubro de 1910 instituíra era, em rigor, um "governo de classe contra as classes"; o governo de uma aristocracia plutocrática (representada pelos políticos dos partidos) contra os interesses de uma grande massa de deserdados". Perante a legião de políticos monárquicos "adesivando" à 1ª República, era o ex-republicano António Sardinha quem advertia: "«Aqui d'El-Rei!» — hão-de gritar no futuro, já desimaginadas da mentira igualitária com que as entretêm e exploram, as sofredoras legiões proletárias em busca de um sustentáculo incorruptível que não se firme na confusão das classes...".
Fizeram-se desentendidos, quer os derrotados monárquicos cartistas, quer os "republicanos" vitoriosos e, não obstante as longas listas de fontes inspiradoras que os integralistas iam indicando e explicando, bem cedo os acusaram de plágio de ideias de origem estrangeira, chegando a atribuir-se-lhes directa inspiração num movimento neo-monárquico francês, a Action française, que, naquela época, fazia furor nos meios intelectuais parisienses.
* * *
Nos breves minutos de que disponho, proponho-me repor aqui um pouco da verdade histórica que tratei de forma desenvolvida no estudo intitulado Filhos de Ramires. Aí demonstrei como o Integralismo Lusitano expressou um pensamento político anti-conservador e inovador, estabelecido em torno de uma consciência da individualidade espiritual e cultural dos portugueses, numa reflexão sobre a Tradição e a História Pátrias. Aí evidenciei serem de origem portuguesa as principais linhas do seu pensamento e como as fontes, que geneticamente os explicam, partiram da problemática estabelecida pela Geração de 70 (2º romantismo português), que é preciso acompanhar no desenvolvimento ideológico provocado pelo choque do Ultimatum britânico (1890), até atingir a última fase de os "Vencidos da Vida".
Aqui retomarei, de forma necessariamente breve, alguns dos traços da herança de protesto político-cultural que a Geração de 70 transmitiu ao Integralismo Lusitano: o protesto contra o que restava do Conselheirismo monárquico-constitucional; o protesto contra a violência que se proclamava Revolução e era entendido como desordem; o protesto contra a democracia parlamentar, entendida como um cesarismo disfarçado em que se negavam as liberdades e uma verdadeira representação democrática. No final, escutaremos as palavras do último sobrevivente da geração de 70, o Vencido da Vida Ramalho Ortigão, reconhecendo e saudando o esforço dos integralistas, naquilo que é o documento vivo de um verdadeiro render da guarda a um património intelectual que encontrara, nas condições e exigências do tempo, o actualizado e justo remate.
2. A «Geração de 70» procurando acertar o passo com a Europa.
Na questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865), ficou justamente célebre uma frase de Antero de Quental arremessada contra António Feliciano de Castilho: "Quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa (...): é Paris, é Londres, é Berlim" - esta frase como que sintetiza o espírito das primícias da Geração de 70.
Um espírito que Antero expressaria depois nas Conferências do Casino (em 1871) ao diagnosticar as raízes da decadência peninsular. No fundo de tudo, o descompasso de Portugal e de Espanha com a Europa moderna; na produção, nas instituições, nas mentalidades. Era o tempo em que a mensagem dos homens de setenta se firmava na proclamada necessidade de uma substituição ontológica da nação portuguesa, propugnando-se-lhe um novo interior conforme ao figurino progressista centro-europeu.
Entre 1865 e 1870, a esperança regeneracionista nascera estrangeirada. É pelo testemunho de Eça de Queiroz que sabemos como a mocidade das escolas recebeu ávida esse mundo novo que, através dos caminhos de ferro, a Europa lhe arremessava aos pacotes. O próprio Antero de Quental descobrira a Humanidade lendo autores como Augusto Comte, Emile Littré e Stuart Mill. E estávamos nas vésperas de Teófilo Braga obter a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras (1872), a que se seguiu o surto positivista das Escolas jurídicas, médicas e politécnicas onde se estudava pelos manuais franceses.
Os acontecimentos políticos e culturais, subsequentes à realização das Conferências do Casino, revelaram duas visões e sentimentos contraditórios acerca das possibilidades da regeneração portuguesa: de um lado, a crença de que se Portugal viesse a acertar o passo com a Europa, a regeneração seria possível; do outro, a percepção de que havia atavismos insuperáveis. O positivismo, no qual se firmara a proposta regeneradora, trazia-lhes decepção e esperança: decepção, quando os confrontava com "o atraso" português; esperança, quando se acreditava no poder transformador de élites esclarecidas. Se o sentimento negativo se alimentava na percepção da alteridade peninsular no quadro europeu, também o espírito positivo se viria a encher de esperança com o estudo da História como via para compreender as condições de progresso.
Num primeiro momento, do mesmo passo que se alargava e aprofundava o espírito positivo, não pararia de crescer uma imagem muito pouco positiva de Portugal, quando não um profundo cepticismo acerca deste que muitos consideravam já como um "povo póstumo".
A literatura desses anos aí ficará para o testemunhar. A pouco e pouco, a cada romance de Eça — O Crime do Padre Amaro (1876), O Primo Basílio (1878), A Relíquia (1887) e Os Maias (1888) —; a cada folhetim das Farpas, em cada página de História de Oliveira Martins — História de Portugal (1879) e Portugal Contemporâneo (1881) —, a descrença na regeneração não parava de crescer.
3. O choque do Ultimatum britânico e o grupo dos «Vencidos da Vida».
Mas eis que, com a cedência ao Ultimatum britânico (Janeiro de 1890), se pressente a mudança.
A par da violenta explosão de indignação popular, do gesto largo dos tribunos, da palavra enfática dos jornalistas contra a "pérfida Albion", surgiram peditórios públicos numa "Grande Subscrição Nacional" para, como então se dizia, "prover às necessidades imediatas do municiamento e equipamento do nosso exército.
Logo aí se pode observar o quilate diverso da via apontada por Antero de Quental, o conferente das causas da decadência dos povos peninsulares. Em 26 de Janeiro de 1890, nas páginas do jornal A Província, à solução belicista implícita na "Grande Subscrição Nacional", Antero, para espanto de muitos, contrapôs a via da expiação: havia que fazer "um acto de contrição da consciência pública" e "uma reforma dos sentimentos e dos costumes". Mas dizia mais Antero de Quental: "O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil, emendarmos os defeitos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela será salvadora".
Antero vai em seguida aceitar o convite de Luís de Magalhães para ser Presidente da Liga Patriótica do Norte, apelando para a "restauração das forças nacionais", de cujo edifício a Liga constituiria a primeira pedra.
Sabe-se como aquele incêndio patriótico, ateado pelo Ultimatum, não passou de um "fogo de palha: clarão de um momento". Mas aquele era bem um novo Antero, que não muito depois afirmaria que a "íntima e indispensável unidade moral da nação não poderia restabelecer-se pela revolução, que seria a maior das calamidades, mas pela conversão do Estado à sua verdadeira missão de representante e intérprete do sentimento Nacional".
A Liga Patriótica do Norte terá sido o "derradeiro fantasma" de Antero, como ele mesmo lhe chamaria. Mas Antero acreditou. No testemunho de Eça de Queiroz, Antero "acreditou com deslumbrado ardor, em coisas inacreditáveis — na mocidade iniciadora; na contrição dos velhos partidos pecadores; na alma quinhentista de Portugal ressurgindo; no despertar de um povo, com a vontade bem consciente, e formulada em comícios, de ser novamente esforçado e grande!".
Era a época em que muitas figuras cimeiras da vida política e literária portuguesa, chicoteadas pela brutalidade britânica, iam inflectindo claramente a sua postura: a ofensiva contra a psicologia, a sociologia e a cultura portuguesa cedia o lugar ao fervor patriótico; a via da regeneração, que mais do que nunca urgia encetar, buscava agora outros caminhos.
Ramalho Ortigão suspendeu as Farpas; era tempo de, como ele dizia, procurar "reanimar o touro, de deixar-lhe recuperar forças e autoconvicção". Passou a preparar a publicação de O Culto da Arte em Portugal (1896).
Eça de Queiroz, também liberto das Farpas, foi escrever, a partir do conto Civilização (1892), o romance A Cidade e as Serras (a primeira versão é de 1895), e a Ilustre Casa de Ramires (iniciada em 1894 para ficar concluída em 1900, pouco antes de morrer).
Oliveira Martins deu sinal de ter esgotado o seu interesse pelo estudo das sociedades e culturas "primitivas" — interesse particularmente vivo na primeira metade da década de 80 — atirando-se a Os Lusíadas e a Renascença em Portugal (1891), Portugal em África (1891), bem como ao seu políptico sobre a exemplar dinastia de Avis com Os Filhos de D. João I (1891), Vida de Nun'Álvares (1892) (de O Príncipe Perfeito (1895) deixou-nos ainda um capítulo) surpreendendo-o a morte antes de escrever as biografias Afonso de Albuquerque e D. Sebastião.
Também Teófilo Braga, tendo já publicado os Contos Tradicionais do Povo Português (1883), abriu em As modernas ideias na literatura portuguesa (1892) um parêntesis temático em que se tornou claro o seu acrescido apego ao "sentimento da nacionalidade", passando a apresentar às novas gerações alguns modelos de portugalidade em obras como A Pátria Portuguesa (1894), Mar Tenebroso (1894), O Velho do Restelo (1898), O Baptismo das Naus (1898), Os Doze de Inglaterra (1902), Viriato (1903), Frei Gil de Santarém (1905). Este parêntesis temático só viria a encerrar-se com a edição do Romanceiro Geral Português, em 1906.
Os poetas também não ficariam imunes ao novo élan: Guerra Junqueiro passou do canto fúnebre da Finis Patriae (1890) para a Pátria (1896) redentora; enquanto António Nobre, evoluiu de um algo ambíguo decadentismo do Só (1892), para uma nova esperança bem expressa no poema inacabado O Desejado (1895-99). Aquele António Nobre do Só que logo fizera brotar o neo-garrettismo das Palavras Loucas (1894) de um Alberto de Oliveira.
E foi nos domínios da historiografia e das ciências sociais que a palavra "tradição" se instalou vigorosa como o santo e a senha do novo movimento. Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Sousa Viterbo, Adolfo Coelho, Carolina Michaelis de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Lúcio de Azevedo, Leite de Vasconcelos, Ricardo Severo..., concorriam a realizar, nas mais variadas disciplinas científicas e de forma académica, o estudo da tradição cultural portuguesa: na arte, na literatura, na linguagem popular, etc..
Se o espírito crítico negativista ainda prossegue, era o próprio pendor positivista que se reforçava agora no reconhecimento da necessidade do estudo da História para conhecimento das formas de progresso.
Mesmo se os trabalhos realizados estavam em paralelo com o que se produzia em França, na Alemanha e na Inglaterra, nos primeiros anos do século XX, sente-se já bem firmado o novo élan: o espírito da Geração de 70 expresso nas Conferências do Casino metamorfoseara-se, passando a ser outros os caminhos a galgar na via da regeneração nacional.
4. Os «Vencidos da Vida» e as novas propostas de regeneração.
Ainda antes do Ultimatum britânico, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, no seu Portugal Contemporâneo, entrara já a rever os dogmas historiográficos imperantes, não hesitando em considerar D. Miguel I como rei de Portugal, ao arrepio dos historiadores da situação liberal que teimavam em considerá-lo um usurpador. Para Oliveira Martins, D. Miguel I fora não apenas aclamado Rei de Portugal, como detinha a mesma legitimidade popular de D. João I, o Mestre de Avis.
Mas, a par do revisionismo historiográfico, é preciso notar que a crítica ao liberalismo da Carta, se vinha de trás, não parará de se aprofundar.
A mais moderna historiografia, não podendo tornear o tom aceradamente crítico da Geração de 70, tem retido dela o tom negativo e as propostas regeneradoras dos anos 70-80, ofuscando os seus desenvolvimentos pós-Ultimatum. Tende-se a considerar sobretudo a crítica ao rotativismo dos partidos, à corrupção instalada nas mais altas esferas políticas, afirmando ou insinuado que o problema da Monarquia da Carta era visto por aquela geração como se ficando a dever à corrupção da elites políticas, ao sistema do caricato, à inexistência de um amplo e bem informado colégio de eleitores. Ora é preciso sublinhar que o socialista Oliveira Martins impugnou, nos seus fundamentos doutrinários, os chamados regimes constitucionais; não era uma questão portuguesa, era uma questão internacional; não era um vício de pessoas, era um vício de sistema.
Ouçamos o diagnóstico proferido por Oliveira Martins em 24 de Agosto de 1891:
"Por toda a parte a vileza corrompe as instituições e a política. Por toda a parte os negócios do Estado estão inquinados da mesma lepra. Por toda a parte os políticos são a mesma cousa. Por toda a parte os brasseurs d'affaires compram as câmaras e a imprensa e as repartições. Por toda a parte quem quer que tenha o sentimento de dignidade própria se afasta, apertando o nariz, dessa podridão malcheirosa e tão repugnante nos que compram como nos que vendem, ou se vendem." E Oliveira Martins interrogava então, "E vem porventura isto de que os nossos tempos sejam intrinsecamente mais imorais do que outros? Não, por forma alguma, pois, ao contrário, nunca a moral pessoal foi mais levantada. Vem do equívoco universal em que as sociedades se agitam presas a fórmulas constitucionais transactas, agitadas vivamente por um espírito diverso. Jura-se ainda nos lábios pelos imortais princípios proclamados na revolução francesa, quando a verdade é que a agitação declarada do operariado reclama a constituição de fórmulas sociais que se não contêm nos famosos direitos do homem. Jura-se ainda pela soberania dos Estados, quando o instinto cosmopolita lavra nos costumes, pondo em cheque o patriotismo."
Oliveira Martins recusava explicitamente os princípios do constitucionalismo moderno, introduzidos em Portugal na sequência da Revolução de 1820 e, citando um conhecido publicista, não deixará de exclamar: "a liberdade era antiga, moderno é o absolutismo". Para Oliveira Martins, os males da sociedade portuguesa contemporânea "provinham, não só dos legados da História, como da influência deprimente e desorganizadora das teorias do naturalismo individualista, herdado da filosofia do séc. XVIII e popularizado pela Revolução Francesa".
Para Oliveira Martins era tempo de voltar a respeitar e garantir a representação das classes, das profissões, dos concelhos, etc.. As eleições, tal como vinham sendo praticadas, em que em vez de se representarem as classes, se representava apenas uma classe — a classe política distribuída pelos vários partidos ideológicos instituídos em nome do interesse geral — eram apenas "a máquina movida pelos ambiciosos, o realejo que toca a mesma ária aclamadora a todos os que lhe movem a manivela. Feitas a tiro, ou a cacete, ou a dinheiro, ou a empregos, as eleições liberais individualistas são o sofisma da representação; não por vicio dos homens, embora os homens sejam viciosos, mas por essência do errado princípio que as dirige. Só quando outra vez se compreender (e agora conscientemente) que a sociedade é um corpo vivo, e não um agregado de indivíduos: só então tornará a haver representação verdadeira e ordem na democracia".
Oliveira Martins não era um pensador anti-democrático, ao contrário do que alguma historiografia tem sugerido. Oliveira Martins não via verdadeira democracia nos regimes parlamentares alicerçados no monopólio da representação política por intermédio de partidos. Democracia verdadeira seria aquela em que a pluralidade dos órgãos constitutivos da Res publica obtivessem representação; verdadeira representação se alcançaria através de uma democracia orgânica.
Para Oliveira Martins, com a chamada "Regeneração" (de 1851 em diante) viera a febre dos "melhoramentos materiais" como aspiração e pensamento único. No plano do pensamento, as excepções, como Alexandre Herculano ou Almeida Garrett, apenas confirmavam a regra: perdera-se o hábito de pensar, escrevendo-se "por arte ou indústria, numa linguagem mascavada, o que vem cozinhado e requentado de Paris".
A Europa deixara de ser referência e exemplo a seguir. Mais do que acertar o passo com a mentalidade predominante na Europa, havia que descobrir internamente as condições do ressurgimento.
A Geração de 70 entrara a fazer a contrição pelo erro de diagnóstico cometido. Contritos, os sobreviventes vão passar a designar-se por Vencidos da Vida.
Mas, apesar de Vencidos, para esses homens, está a crescer uma nova esperança. Tendo-se tornado um círculo influente junto do Príncipe herdeiro, após a morte de D. Luís, em 1889, passaram a influenciar o novo Rei, D. Carlos. Foi Eça de Queiroz quem escreveu na Revista de Portugal logo que o Príncipe subiu ao Trono: "O Rei surge como a única força que no País ainda vive e opera".
E ali mesmo se abria um novo ciclo político, com os Vencidos da Vida a acreditarem que, por intermédio de um acrescido papel do Rei e de uma nova política externa liberta da velha aliança inglesa, se conseguiria debelar a crise provocada pelo regime oligárquico da Carta.
O assassínio do Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe, acabará por deitar por terra as suas últimas esperanças.
5. «Carta de um Velho a um Novo» — o render da guarda entre duas gerações.
Quando é implantada a 1ª República, do grupo dos Vencidos da Vida restava ainda Ramalho Ortigão, então com 74 anos.
Como reagiu Ramalho Ortigão à "Revolução de Outubro"? — Ramalho recusou-se de imediato a secretariar a Academia das Ciências e, remetendo a Teófilo Braga as chaves da Biblioteca da Ajuda, saiu para o exílio em Paris, mas não sem antes manifestar ao chefe do Governo Provisório da novel República, a sua repulsa em engrossar "o abjecto número de percevejos que de um buraco (estava) vendo nojosamente cobrir o leito da governação", enviando-lhe de presente "o seu chapéu alto, da melhor marca Gélot, calculando que lhe podia ser muito útil para as cerimónias presidenciais, e que para ele Ramalho era de todo supérfluo, agora que ia começar carreira nova e vestir, de novo, como aos vinte anos, o jaquetão de operário".
Poucos meses depois, decorria o mês de Janeiro de 1911, o mesmo Ramalho Ortigão, resolvia pegar na pena para se dirigir aos leitores da Gazeta de Notícias. A mirada escolhida, para reiniciar aquele que viria a ser o seu último farpeio, era a recente e vitoriosa "Revolução do 5 Outubro".
Ramalho Ortigão voltava a proclamar que não acreditava na anunciada mudança, nem via razões para alterar o seu julgamento de sempre acerca da "embusteira tirania do sufrágio", para deixar de deplorar o parlamentarismo, que agora prometia continuar ainda que sem os partidos do rotativismo. Se algo havia que lhe merecesse ser salientado nas últimas evoluções políticas, era ainda a "tenebrosa cumplicidade do último dos quatro ou cinco ministérios monárquicos que se sucederam ao assassinato impune do pobre rei D. Carlos".
Em Outubro de 1910, o triunfo dos revolucionários tivera um "desenlace quase incruento" — era certo —, mas só "em sua aparente superficialidade" fora aquela Revolução "o trágico desmoronamento instantâneo de todo um velho mundo".
Em 1914, Ramalho Ortigão entrava nos seus derradeiros tempos de vida. Ao morrer, morreriam com ele as últimas esperanças dos Vencidos da Vida, a esperança de uma regeneração portuguesa pela descoberta das condições internas para um ressurgimento? — Não! E é o próprio Ramalho quem, em carta para o integralista João do Amaral, saudando esse "movimento de novos" que despontava na vida política portuguesa, lhe fala dessa nova esperança que fazia sua: o Integralismo Lusitano. Eis as próprias palavras de Ramalho Ortigão:
"A orientação mental da mocidade contemporânea comparada à orientação dos rapazes do meu tempo estabelece entre as nossas respectivas cerebrações uma diferença de nível que desloca o eixo do respeito na sociedade em que vivemos obrigando a elite dos velhos a inclinar-se rendidamente à elite dos novos.
"Em face da batalha de sentimentos e de ideias no conflito português dos nossos dias entendo que à ala dos veteranos cabe o dever marcial de apresentar as suas armas a essa nova ala de namorados, que se não batem já pelo perecível prestígio da sua dama mas pela beleza imortal da sua convicção, e batem-se não em combate fortuito, de torneio de gala, mas em pugnas regulares e sucessivas em que quotidianamente arriscam os seus interesses, a sua liberdade e a sua vida"... "A incontestável superioridade d'essa plêiade estudiosa consiste em ter admiravelmente pressentido a necessidade culminante da reeducação integral do povo português".
Sintra - Academia da Força Aérea, 1997
(versão abreviada)
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[O Integralismo Lusitano expressou um pensamento político tradicionalista anti-conservador, estabelecido em torno de uma consciência da individualidade espiritual e cultural dos portugueses, numa reflexão teórica sobre a Tradição e a História Pátrias. Partindo de uma sumária apresentação do teor desse pensamento político, aqui se procura captar parte do seu conteúdo de renovação e de protesto, em especial aquele que tem directos antecedentes problemáticos e afirmativos na Geração de 70 pós-Ultimatum (1890), na sua derradeira fase de "Vencidos da Vida".
O presente texto foi escrito em Setembro de 1997, para vir a ser lido na Abertura Solene das Aulas da Academia da Força Aérea, e foi depois reelaborado parcialmente, ao publicar "Os monárquicos e as eleições presidenciais de 1958" (in Humberto Delgado - as eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173). O desenvolvimento narrativo e argumentativo deste texto, baseado em fontes historiográficas parcialmente inéditas, constitui parte de Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano (Editorial Nova Ática, 2004).
Concebido para ser lido numa cerimónia, o presente texto apresenta tons e ritmos que se julgaram adequados à audição. Esta edição foi ainda aligeirada pela exclusão de notas e referências bibliográficas de rodapé. - J. M. Q.]
Índice
1. Apresentando o Integralismo Lusitano.
2. A Geração de 70 e o acertar do passo com a Europa.
3. O choque do Ultimatum britânico e o grupo de «Os Vencidos da Vida».
4. Os «Vencidos da Vida» e as novas propostas de regeneração.
5. «Carta de um Velho a um Novo» — o render da guarda entre duas gerações.
No ambiente subtil e esterilizador dessa conspiração permanente que é a essência do parlamentarismo… [os partidos] perderam a noção da realidade; e enquanto o mundo se transforma vão repetindo maquinalmente as costumadas teses duma filosofia caduca e que nem já compreendem. - Antero de Quental in Prosas.
Nós viemos em linha recta da fraqueza generosa de Gonçalo Mendes Ramires. E se alguém, lá mais para diante, pensar em escrever a novela do nosso esforço, eu creio que lhe chamará com verdade «O filho de Ramires!». António Sardinha, "No jardim da Raça", in Ao Ritmo da Ampulheta.
1. Apresentando o Integralismo Lusitano.
A expressão "Integralismo Lusitano" foi cunhada por Luís de Almeida Braga, em 1913, na revista Alma Portuguesa, editada na Bélgica por um grupo de expatriados monárquicos. Em 1914, aquela expressão surgiu inscrita no lançamento da revista Nação Portuguesa, para designar um programa político monárquico e um movimento de ideias políticas acabado de se constituir.
Mas quem eram e ao que vinham os integralistas lusitanos?
Ao lançarem a revista Nação Portuguesa, os integralistas eram um grupo de jovens, quase todos acabados de sair da Universidade de Coimbra: Hipólito Raposo (1885-1953), Luís de Almeida Braga (1886-1970), António Sardinha (1887-1925), Alberto Monsaraz (1889-1959), José Pequito Rebelo (1893-1983).
O que logo ressaltava era a sua extrema juventude: Hipólito Raposo, o mais velho do grupo, tinha 29 anos, Pequito Rebelo, o mais jovem, tinha apenas 21; a média de idades não ultrapassava os 24 anos.
Quanto aos seus propósitos, era Alberto de Monsaraz, o director da revista, quem, ao assinar o seu primeiro editorial — uma "Carta Aberta" dirigida a Moreira de Almeida — se identificava como "um português tão desiludido do 4 como do 5 de Outubro". A mensagem de Alberto de Monsaraz não podia ser mais clara: dirigindo-se aos monárquicos, afirmava-lhes que a recém-deposta "Monarquia Constitucional" não lhes servia. Para os integralistas, a Monarquia derrubada era um corpo estranho à Nação. Havia que retornar à Monarquia, sim, mas à verdadeira Monarquia Portuguesa. Os portugueses haviam esquecido em que consistia uma tal Monarquia; os integralistas ali estavam para o explicar aos próprios monárquicos. No final da "Anunciação" da Nação Portuguesa soava o aviso: "saibam-no os senhores que governam, mais os cidadãos que obedecem, nós vimos reatar a Tradição".
Ficando claro que não se propunham uma simples restauração da Monarquia deposta, havia, ainda assim, quem pudesse achar estranho que entre os integralistas, em posto de comando, surgisse António Sardinha, que fora um dos mais distintos estudantes republicanos do seu tempo e que chegara a trocar correspondência com Teófilo Braga. Em breve se ficaria a saber que o Integralismo Lusitano contava nas suas fileiras com outros ex-republicanos como João do Amaral ou Domingos Garcia Pulido.
Agregando monárquicos que não se reconheciam na Monarquia deposta, e republicanos convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada, a questão não podia deixar de se colocar: de que Tradição se reivindicavam? Com que ideias, tomadas de que mestres, se formara esse movimento de jovens que se propunha reatar a Tradição portuguesa?
Os integralistas, do mesmo passo que apresentaram um índice de soluções políticas sob o título "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar" — indicavam também, desde os primeiros números da revista Nação Portuguesa, as fontes do seu pensamento político: os Mestres do pensamento político português que, ao longo dos séculos, alicerçaram e ergueram as instituições do Reino de Portugal.
Era o pensamento político que, do mesmo passo, reconhecia os foros e liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecia as regras da sua representação em Cortes e definia o conteúdo dos pactos que os Reis juravam respeitar (ao Rei, cuja autoridade era entendida como um serviço, cumpria reger os destinos da República).
Tanto quanto é aqui possível sintetizar os princípios fundamentais desse pensamento político, saliente-se que entendiam a Nação Portuguesa como o resultado de um processo histórico, no qual se firmara uma estreita aliança entre o Rei, o Povo e a sua Igreja. Ao Rei, entendiam-no como a cabeça do Reino, o agente centrípeto em que todos se reconheciam — era "a Pátria com figura humana", na célebre fórmula de António Sardinha. Ao Povo entendiam-no como soberano, com uma soberania participada, isto é, recebida de Deus. Sendo Deus a fonte do poder, competia aos homens a determinação da forma que havia de assumir. Entre o Povo e o Magistrado (ou Rei) verificava-se um contrato pelo qual o Povo atribuia os poderes que desejava fossem por ele exercidos. O Povo era, assim, anterior e superior ao Rei, à autoridade. Em rigor, o Rei recebia o poder imediatamente do povo, mediatamente de Deus. Ao ser-lhe atribuído o poder, o seu detentor ficava sendo superior a quem o atribuíra, mas obrigado ao respeito dos termos do contrato estabelecido no acto da atribuição. Assim, o Povo transmitindo o poder ao Rei (por sua vez transmissível aos sucessores) por intermédio de um pacto, reservava-se in habitu o poder transferido. Não se defendia que o Povo podia revogar a transferência do poder ao Rei — o que seria contrário ao princípio de que pacta sunt servanda — antes se defendia que ao Povo assistia o direito de o depor. O Rei era entendido como um gestor da República, obrigado a uma administração que lhe era conferida pelo povo. O Rei servia a Pátria, não era a Pátria que servia o Rei, no que se seguia o célebre preceito enunciado pelo doutor João Pinto Ribeiro: "Os Reys não foram criados, & ordenados para sua utilidade, y proveito, se não em benefício, & prol do Reyno...".
Para os integralistas fora aquele o pensamento político que levantara o reino de Portugal contra as pretensões de Castela, que fundara a legitimidade da Dinastia de Avis e sustentara a Restauração de 1640; era o pensamento político que se expressara, desde os alvores da nacionalidade até ao último quartel do século XVII, através de uma vasta plêiade de escritores, de que os integralistas destacavam, entre tantos outros: Álvaro Pais, Frei António de Beja, Jerónimo Osório, Diogo de Paiva, Frei Manuel dos Anjos, Frei Jacinto de Deus, Sousa de Macedo, Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia.
Nas formulações políticas daqueles canonistas e jurisconsultos se encontrava o cerne do pensamento que melhor corporizara a Tradição política da Monarquia Portuguesa. Neles se expressara o pensamento político português que, após a Restauração de 1640, recebera sucessivos tratos de polé, primeiro no plano das ideias, depois no das instituições; desde o advento do absolutismo iluminado pela mão do Marquês de Pombal, até ao período do chamado "Constitucionalismo", definitivamente implantado na década de 1830.
Mas o pensamento político português resistira às infiltrações estrangeiradas do século das Luzes, sobrevivendo em autores como Sousa Farinha, Rodrigues Leitão, Marquês de Penalva e, nos inícios do século XIX, seria continuado por Fortunato de São Boaventura, José da Gama e Castro, Faustino José da Madre de Deus, Francisco Alexandre Lobo, Acúrcio das Neves, Gouveia Pinto, Ribeiro Saraiva, Visconde de Santarém... Os integralistas não se mostravam dispostos a permitir o esquecimento ou adulteração daquele pensamento político; os integralistas surgem com o firme propósito de o recuperar e adequar às exigências dos novos tempos; o pensamento político que ajudara a fazer a Nação não podia morrer, sob o risco de morrer com ele a própria Nação.
Para os integralistas lusitanos não fora a implantação da República que, em rigor, quebrara a Tradição política portuguesa. A República era apenas a continuação da Monarquia da Carta, ainda que "uma continuação agravada, nos princípios e nos factos": destronara-se o Rei e passara a dominar o mito que identificava a Democracia com o regime republicano. Para os integralistas, a Democracia e a defesa da Res publica não era o verdadeiro programa daqueles que a si próprios se designavam por "democráticos" e "republicanos". O que o regime implantado em 5 de Outubro de 1910 instituíra era, em rigor, um "governo de classe contra as classes"; o governo de uma aristocracia plutocrática (representada pelos políticos dos partidos) contra os interesses de uma grande massa de deserdados". Perante a legião de políticos monárquicos "adesivando" à 1ª República, era o ex-republicano António Sardinha quem advertia: "«Aqui d'El-Rei!» — hão-de gritar no futuro, já desimaginadas da mentira igualitária com que as entretêm e exploram, as sofredoras legiões proletárias em busca de um sustentáculo incorruptível que não se firme na confusão das classes...".
Fizeram-se desentendidos, quer os derrotados monárquicos cartistas, quer os "republicanos" vitoriosos e, não obstante as longas listas de fontes inspiradoras que os integralistas iam indicando e explicando, bem cedo os acusaram de plágio de ideias de origem estrangeira, chegando a atribuir-se-lhes directa inspiração num movimento neo-monárquico francês, a Action française, que, naquela época, fazia furor nos meios intelectuais parisienses.
* * *
Nos breves minutos de que disponho, proponho-me repor aqui um pouco da verdade histórica que tratei de forma desenvolvida no estudo intitulado Filhos de Ramires. Aí demonstrei como o Integralismo Lusitano expressou um pensamento político anti-conservador e inovador, estabelecido em torno de uma consciência da individualidade espiritual e cultural dos portugueses, numa reflexão sobre a Tradição e a História Pátrias. Aí evidenciei serem de origem portuguesa as principais linhas do seu pensamento e como as fontes, que geneticamente os explicam, partiram da problemática estabelecida pela Geração de 70 (2º romantismo português), que é preciso acompanhar no desenvolvimento ideológico provocado pelo choque do Ultimatum britânico (1890), até atingir a última fase de os "Vencidos da Vida".
Aqui retomarei, de forma necessariamente breve, alguns dos traços da herança de protesto político-cultural que a Geração de 70 transmitiu ao Integralismo Lusitano: o protesto contra o que restava do Conselheirismo monárquico-constitucional; o protesto contra a violência que se proclamava Revolução e era entendido como desordem; o protesto contra a democracia parlamentar, entendida como um cesarismo disfarçado em que se negavam as liberdades e uma verdadeira representação democrática. No final, escutaremos as palavras do último sobrevivente da geração de 70, o Vencido da Vida Ramalho Ortigão, reconhecendo e saudando o esforço dos integralistas, naquilo que é o documento vivo de um verdadeiro render da guarda a um património intelectual que encontrara, nas condições e exigências do tempo, o actualizado e justo remate.
2. A «Geração de 70» procurando acertar o passo com a Europa.
Na questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865), ficou justamente célebre uma frase de Antero de Quental arremessada contra António Feliciano de Castilho: "Quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa (...): é Paris, é Londres, é Berlim" - esta frase como que sintetiza o espírito das primícias da Geração de 70.
Um espírito que Antero expressaria depois nas Conferências do Casino (em 1871) ao diagnosticar as raízes da decadência peninsular. No fundo de tudo, o descompasso de Portugal e de Espanha com a Europa moderna; na produção, nas instituições, nas mentalidades. Era o tempo em que a mensagem dos homens de setenta se firmava na proclamada necessidade de uma substituição ontológica da nação portuguesa, propugnando-se-lhe um novo interior conforme ao figurino progressista centro-europeu.
Entre 1865 e 1870, a esperança regeneracionista nascera estrangeirada. É pelo testemunho de Eça de Queiroz que sabemos como a mocidade das escolas recebeu ávida esse mundo novo que, através dos caminhos de ferro, a Europa lhe arremessava aos pacotes. O próprio Antero de Quental descobrira a Humanidade lendo autores como Augusto Comte, Emile Littré e Stuart Mill. E estávamos nas vésperas de Teófilo Braga obter a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras (1872), a que se seguiu o surto positivista das Escolas jurídicas, médicas e politécnicas onde se estudava pelos manuais franceses.
Os acontecimentos políticos e culturais, subsequentes à realização das Conferências do Casino, revelaram duas visões e sentimentos contraditórios acerca das possibilidades da regeneração portuguesa: de um lado, a crença de que se Portugal viesse a acertar o passo com a Europa, a regeneração seria possível; do outro, a percepção de que havia atavismos insuperáveis. O positivismo, no qual se firmara a proposta regeneradora, trazia-lhes decepção e esperança: decepção, quando os confrontava com "o atraso" português; esperança, quando se acreditava no poder transformador de élites esclarecidas. Se o sentimento negativo se alimentava na percepção da alteridade peninsular no quadro europeu, também o espírito positivo se viria a encher de esperança com o estudo da História como via para compreender as condições de progresso.
Num primeiro momento, do mesmo passo que se alargava e aprofundava o espírito positivo, não pararia de crescer uma imagem muito pouco positiva de Portugal, quando não um profundo cepticismo acerca deste que muitos consideravam já como um "povo póstumo".
A literatura desses anos aí ficará para o testemunhar. A pouco e pouco, a cada romance de Eça — O Crime do Padre Amaro (1876), O Primo Basílio (1878), A Relíquia (1887) e Os Maias (1888) —; a cada folhetim das Farpas, em cada página de História de Oliveira Martins — História de Portugal (1879) e Portugal Contemporâneo (1881) —, a descrença na regeneração não parava de crescer.
3. O choque do Ultimatum britânico e o grupo dos «Vencidos da Vida».
Mas eis que, com a cedência ao Ultimatum britânico (Janeiro de 1890), se pressente a mudança.
A par da violenta explosão de indignação popular, do gesto largo dos tribunos, da palavra enfática dos jornalistas contra a "pérfida Albion", surgiram peditórios públicos numa "Grande Subscrição Nacional" para, como então se dizia, "prover às necessidades imediatas do municiamento e equipamento do nosso exército.
Logo aí se pode observar o quilate diverso da via apontada por Antero de Quental, o conferente das causas da decadência dos povos peninsulares. Em 26 de Janeiro de 1890, nas páginas do jornal A Província, à solução belicista implícita na "Grande Subscrição Nacional", Antero, para espanto de muitos, contrapôs a via da expiação: havia que fazer "um acto de contrição da consciência pública" e "uma reforma dos sentimentos e dos costumes". Mas dizia mais Antero de Quental: "O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil, emendarmos os defeitos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela será salvadora".
Antero vai em seguida aceitar o convite de Luís de Magalhães para ser Presidente da Liga Patriótica do Norte, apelando para a "restauração das forças nacionais", de cujo edifício a Liga constituiria a primeira pedra.
Sabe-se como aquele incêndio patriótico, ateado pelo Ultimatum, não passou de um "fogo de palha: clarão de um momento". Mas aquele era bem um novo Antero, que não muito depois afirmaria que a "íntima e indispensável unidade moral da nação não poderia restabelecer-se pela revolução, que seria a maior das calamidades, mas pela conversão do Estado à sua verdadeira missão de representante e intérprete do sentimento Nacional".
A Liga Patriótica do Norte terá sido o "derradeiro fantasma" de Antero, como ele mesmo lhe chamaria. Mas Antero acreditou. No testemunho de Eça de Queiroz, Antero "acreditou com deslumbrado ardor, em coisas inacreditáveis — na mocidade iniciadora; na contrição dos velhos partidos pecadores; na alma quinhentista de Portugal ressurgindo; no despertar de um povo, com a vontade bem consciente, e formulada em comícios, de ser novamente esforçado e grande!".
Era a época em que muitas figuras cimeiras da vida política e literária portuguesa, chicoteadas pela brutalidade britânica, iam inflectindo claramente a sua postura: a ofensiva contra a psicologia, a sociologia e a cultura portuguesa cedia o lugar ao fervor patriótico; a via da regeneração, que mais do que nunca urgia encetar, buscava agora outros caminhos.
Ramalho Ortigão suspendeu as Farpas; era tempo de, como ele dizia, procurar "reanimar o touro, de deixar-lhe recuperar forças e autoconvicção". Passou a preparar a publicação de O Culto da Arte em Portugal (1896).
Eça de Queiroz, também liberto das Farpas, foi escrever, a partir do conto Civilização (1892), o romance A Cidade e as Serras (a primeira versão é de 1895), e a Ilustre Casa de Ramires (iniciada em 1894 para ficar concluída em 1900, pouco antes de morrer).
Oliveira Martins deu sinal de ter esgotado o seu interesse pelo estudo das sociedades e culturas "primitivas" — interesse particularmente vivo na primeira metade da década de 80 — atirando-se a Os Lusíadas e a Renascença em Portugal (1891), Portugal em África (1891), bem como ao seu políptico sobre a exemplar dinastia de Avis com Os Filhos de D. João I (1891), Vida de Nun'Álvares (1892) (de O Príncipe Perfeito (1895) deixou-nos ainda um capítulo) surpreendendo-o a morte antes de escrever as biografias Afonso de Albuquerque e D. Sebastião.
Também Teófilo Braga, tendo já publicado os Contos Tradicionais do Povo Português (1883), abriu em As modernas ideias na literatura portuguesa (1892) um parêntesis temático em que se tornou claro o seu acrescido apego ao "sentimento da nacionalidade", passando a apresentar às novas gerações alguns modelos de portugalidade em obras como A Pátria Portuguesa (1894), Mar Tenebroso (1894), O Velho do Restelo (1898), O Baptismo das Naus (1898), Os Doze de Inglaterra (1902), Viriato (1903), Frei Gil de Santarém (1905). Este parêntesis temático só viria a encerrar-se com a edição do Romanceiro Geral Português, em 1906.
Os poetas também não ficariam imunes ao novo élan: Guerra Junqueiro passou do canto fúnebre da Finis Patriae (1890) para a Pátria (1896) redentora; enquanto António Nobre, evoluiu de um algo ambíguo decadentismo do Só (1892), para uma nova esperança bem expressa no poema inacabado O Desejado (1895-99). Aquele António Nobre do Só que logo fizera brotar o neo-garrettismo das Palavras Loucas (1894) de um Alberto de Oliveira.
E foi nos domínios da historiografia e das ciências sociais que a palavra "tradição" se instalou vigorosa como o santo e a senha do novo movimento. Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Sousa Viterbo, Adolfo Coelho, Carolina Michaelis de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Lúcio de Azevedo, Leite de Vasconcelos, Ricardo Severo..., concorriam a realizar, nas mais variadas disciplinas científicas e de forma académica, o estudo da tradição cultural portuguesa: na arte, na literatura, na linguagem popular, etc..
Se o espírito crítico negativista ainda prossegue, era o próprio pendor positivista que se reforçava agora no reconhecimento da necessidade do estudo da História para conhecimento das formas de progresso.
Mesmo se os trabalhos realizados estavam em paralelo com o que se produzia em França, na Alemanha e na Inglaterra, nos primeiros anos do século XX, sente-se já bem firmado o novo élan: o espírito da Geração de 70 expresso nas Conferências do Casino metamorfoseara-se, passando a ser outros os caminhos a galgar na via da regeneração nacional.
4. Os «Vencidos da Vida» e as novas propostas de regeneração.
Ainda antes do Ultimatum britânico, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, no seu Portugal Contemporâneo, entrara já a rever os dogmas historiográficos imperantes, não hesitando em considerar D. Miguel I como rei de Portugal, ao arrepio dos historiadores da situação liberal que teimavam em considerá-lo um usurpador. Para Oliveira Martins, D. Miguel I fora não apenas aclamado Rei de Portugal, como detinha a mesma legitimidade popular de D. João I, o Mestre de Avis.
Mas, a par do revisionismo historiográfico, é preciso notar que a crítica ao liberalismo da Carta, se vinha de trás, não parará de se aprofundar.
A mais moderna historiografia, não podendo tornear o tom aceradamente crítico da Geração de 70, tem retido dela o tom negativo e as propostas regeneradoras dos anos 70-80, ofuscando os seus desenvolvimentos pós-Ultimatum. Tende-se a considerar sobretudo a crítica ao rotativismo dos partidos, à corrupção instalada nas mais altas esferas políticas, afirmando ou insinuado que o problema da Monarquia da Carta era visto por aquela geração como se ficando a dever à corrupção da elites políticas, ao sistema do caricato, à inexistência de um amplo e bem informado colégio de eleitores. Ora é preciso sublinhar que o socialista Oliveira Martins impugnou, nos seus fundamentos doutrinários, os chamados regimes constitucionais; não era uma questão portuguesa, era uma questão internacional; não era um vício de pessoas, era um vício de sistema.
Ouçamos o diagnóstico proferido por Oliveira Martins em 24 de Agosto de 1891:
"Por toda a parte a vileza corrompe as instituições e a política. Por toda a parte os negócios do Estado estão inquinados da mesma lepra. Por toda a parte os políticos são a mesma cousa. Por toda a parte os brasseurs d'affaires compram as câmaras e a imprensa e as repartições. Por toda a parte quem quer que tenha o sentimento de dignidade própria se afasta, apertando o nariz, dessa podridão malcheirosa e tão repugnante nos que compram como nos que vendem, ou se vendem." E Oliveira Martins interrogava então, "E vem porventura isto de que os nossos tempos sejam intrinsecamente mais imorais do que outros? Não, por forma alguma, pois, ao contrário, nunca a moral pessoal foi mais levantada. Vem do equívoco universal em que as sociedades se agitam presas a fórmulas constitucionais transactas, agitadas vivamente por um espírito diverso. Jura-se ainda nos lábios pelos imortais princípios proclamados na revolução francesa, quando a verdade é que a agitação declarada do operariado reclama a constituição de fórmulas sociais que se não contêm nos famosos direitos do homem. Jura-se ainda pela soberania dos Estados, quando o instinto cosmopolita lavra nos costumes, pondo em cheque o patriotismo."
Oliveira Martins recusava explicitamente os princípios do constitucionalismo moderno, introduzidos em Portugal na sequência da Revolução de 1820 e, citando um conhecido publicista, não deixará de exclamar: "a liberdade era antiga, moderno é o absolutismo". Para Oliveira Martins, os males da sociedade portuguesa contemporânea "provinham, não só dos legados da História, como da influência deprimente e desorganizadora das teorias do naturalismo individualista, herdado da filosofia do séc. XVIII e popularizado pela Revolução Francesa".
Para Oliveira Martins era tempo de voltar a respeitar e garantir a representação das classes, das profissões, dos concelhos, etc.. As eleições, tal como vinham sendo praticadas, em que em vez de se representarem as classes, se representava apenas uma classe — a classe política distribuída pelos vários partidos ideológicos instituídos em nome do interesse geral — eram apenas "a máquina movida pelos ambiciosos, o realejo que toca a mesma ária aclamadora a todos os que lhe movem a manivela. Feitas a tiro, ou a cacete, ou a dinheiro, ou a empregos, as eleições liberais individualistas são o sofisma da representação; não por vicio dos homens, embora os homens sejam viciosos, mas por essência do errado princípio que as dirige. Só quando outra vez se compreender (e agora conscientemente) que a sociedade é um corpo vivo, e não um agregado de indivíduos: só então tornará a haver representação verdadeira e ordem na democracia".
Oliveira Martins não era um pensador anti-democrático, ao contrário do que alguma historiografia tem sugerido. Oliveira Martins não via verdadeira democracia nos regimes parlamentares alicerçados no monopólio da representação política por intermédio de partidos. Democracia verdadeira seria aquela em que a pluralidade dos órgãos constitutivos da Res publica obtivessem representação; verdadeira representação se alcançaria através de uma democracia orgânica.
Para Oliveira Martins, com a chamada "Regeneração" (de 1851 em diante) viera a febre dos "melhoramentos materiais" como aspiração e pensamento único. No plano do pensamento, as excepções, como Alexandre Herculano ou Almeida Garrett, apenas confirmavam a regra: perdera-se o hábito de pensar, escrevendo-se "por arte ou indústria, numa linguagem mascavada, o que vem cozinhado e requentado de Paris".
A Europa deixara de ser referência e exemplo a seguir. Mais do que acertar o passo com a mentalidade predominante na Europa, havia que descobrir internamente as condições do ressurgimento.
A Geração de 70 entrara a fazer a contrição pelo erro de diagnóstico cometido. Contritos, os sobreviventes vão passar a designar-se por Vencidos da Vida.
Mas, apesar de Vencidos, para esses homens, está a crescer uma nova esperança. Tendo-se tornado um círculo influente junto do Príncipe herdeiro, após a morte de D. Luís, em 1889, passaram a influenciar o novo Rei, D. Carlos. Foi Eça de Queiroz quem escreveu na Revista de Portugal logo que o Príncipe subiu ao Trono: "O Rei surge como a única força que no País ainda vive e opera".
E ali mesmo se abria um novo ciclo político, com os Vencidos da Vida a acreditarem que, por intermédio de um acrescido papel do Rei e de uma nova política externa liberta da velha aliança inglesa, se conseguiria debelar a crise provocada pelo regime oligárquico da Carta.
O assassínio do Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe, acabará por deitar por terra as suas últimas esperanças.
5. «Carta de um Velho a um Novo» — o render da guarda entre duas gerações.
Quando é implantada a 1ª República, do grupo dos Vencidos da Vida restava ainda Ramalho Ortigão, então com 74 anos.
Como reagiu Ramalho Ortigão à "Revolução de Outubro"? — Ramalho recusou-se de imediato a secretariar a Academia das Ciências e, remetendo a Teófilo Braga as chaves da Biblioteca da Ajuda, saiu para o exílio em Paris, mas não sem antes manifestar ao chefe do Governo Provisório da novel República, a sua repulsa em engrossar "o abjecto número de percevejos que de um buraco (estava) vendo nojosamente cobrir o leito da governação", enviando-lhe de presente "o seu chapéu alto, da melhor marca Gélot, calculando que lhe podia ser muito útil para as cerimónias presidenciais, e que para ele Ramalho era de todo supérfluo, agora que ia começar carreira nova e vestir, de novo, como aos vinte anos, o jaquetão de operário".
Poucos meses depois, decorria o mês de Janeiro de 1911, o mesmo Ramalho Ortigão, resolvia pegar na pena para se dirigir aos leitores da Gazeta de Notícias. A mirada escolhida, para reiniciar aquele que viria a ser o seu último farpeio, era a recente e vitoriosa "Revolução do 5 Outubro".
Ramalho Ortigão voltava a proclamar que não acreditava na anunciada mudança, nem via razões para alterar o seu julgamento de sempre acerca da "embusteira tirania do sufrágio", para deixar de deplorar o parlamentarismo, que agora prometia continuar ainda que sem os partidos do rotativismo. Se algo havia que lhe merecesse ser salientado nas últimas evoluções políticas, era ainda a "tenebrosa cumplicidade do último dos quatro ou cinco ministérios monárquicos que se sucederam ao assassinato impune do pobre rei D. Carlos".
Em Outubro de 1910, o triunfo dos revolucionários tivera um "desenlace quase incruento" — era certo —, mas só "em sua aparente superficialidade" fora aquela Revolução "o trágico desmoronamento instantâneo de todo um velho mundo".
Em 1914, Ramalho Ortigão entrava nos seus derradeiros tempos de vida. Ao morrer, morreriam com ele as últimas esperanças dos Vencidos da Vida, a esperança de uma regeneração portuguesa pela descoberta das condições internas para um ressurgimento? — Não! E é o próprio Ramalho quem, em carta para o integralista João do Amaral, saudando esse "movimento de novos" que despontava na vida política portuguesa, lhe fala dessa nova esperança que fazia sua: o Integralismo Lusitano. Eis as próprias palavras de Ramalho Ortigão:
"A orientação mental da mocidade contemporânea comparada à orientação dos rapazes do meu tempo estabelece entre as nossas respectivas cerebrações uma diferença de nível que desloca o eixo do respeito na sociedade em que vivemos obrigando a elite dos velhos a inclinar-se rendidamente à elite dos novos.
"Em face da batalha de sentimentos e de ideias no conflito português dos nossos dias entendo que à ala dos veteranos cabe o dever marcial de apresentar as suas armas a essa nova ala de namorados, que se não batem já pelo perecível prestígio da sua dama mas pela beleza imortal da sua convicção, e batem-se não em combate fortuito, de torneio de gala, mas em pugnas regulares e sucessivas em que quotidianamente arriscam os seus interesses, a sua liberdade e a sua vida"... "A incontestável superioridade d'essa plêiade estudiosa consiste em ter admiravelmente pressentido a necessidade culminante da reeducação integral do povo português".
Sintra - Academia da Força Aérea, 1997
(versão abreviada)
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