ROGÉRIO LUSTOSA VICTOR - "Considerações Finais" in O Integralismo nas águas do "Lete": história, memória e esquecimento, Goiâna, 2004
Plínio Salgado, 1895-1975 - Integralismo Brasileiro
(Texto Integral da Tese, em pdf)
Aqui se reproduzem as
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento integralista vivenciou uma complexa trajetória política: de ascendente organização com chances reais de chegar ao poder à mais completa derrota, que vetou a sua presença no processo político brasileiro. Depois de derrotado politicamente, esse sofreu uma segunda derrota: no espaço da memória. Dessa forma, as experiências vividas pelo integralismo compõem hoje o debate acerca do embate entre as memórias: memória histórica, entendida como a memória do vencedor, e a memória integralista, entendida como memória coletiva nos termos desenvolvidos por Halbwachs (1990).
São bastante sinuosos os percursos da memória histórica quanto ao movimento integralista. Desvendá-los é, inclusive, recuperar, discursos performativos emitidos especialmente em 1938 e no período 1945-1947, algo que aqui se fez com o fim de compreender como se definiu o lugar do integralismo, um lugar que, diga-se, beira o esquecimento.
Esta investigação trata, portanto, do processo de construção da memória histórica e, mediante ela, foi possível constatar que o golpe de 1938 é fato central para a produção de uma leitura sobre o integralismo. Aquele foi um golpe desferido contra a ditadura recém-instaurada e, portanto, capaz de definir os camisas-verdes como inimigos do Estado. O papel de narrá-lo coube, inclusive à imprensa, que submetida, associou aos integralistas a idéia de desordem, de traição e de covardia. Realmente, não foram poucos os discursos lançados na grande imprensa com o poder de fixar, na memória histórica, as idéias-imagens concernentes aos integralistas.
Àquela primeira derrota do movimento integralista na produção da memória somou-se uma outra mais decisiva ainda, quando, durante o pós-Segunda Guerra, o integralismo foi associado ao nazi-fascismo, ou, mais precisamente, à percepção de nazi-fascismo construída após o fim da guerra. Naquele momento, as representações acerca do integralismo e do golpe de 1938 voltaram a ocupar espaço na mídia brasileira. Tanto nos grandes jornais quanto na revista O Cruzeiro, revista de grande circulação na época. Acrescentou-se a pecha de nazista e/ou fascista ao discurso produzido no final dos anos 1930 sobre o integralismo. Dali por diante, o movimento integralista foi sendo interditado, ao mesmo tempo em que, estrategicamente, deslocavam-se as críticas da época de Getúlio Vargas (que foi efetivamente ditador) para o movimento integralista (o “fascismo brasileiro”). Os caminhos da memória, estabelecidos durante o Estado Novo, continuaram sendo trilhados, e Vargas é o agente histórico decisivo do período. Os integralistas, por sua vez, são considerados desimportantes e identificáveis à semelhança do mal do pós-guerra – o nazismo –, devendo, portanto, ser banidos do espaço político e, mesmo, da memória.
Mas é nos livros didáticos de história que melhor se percebem os vestígios do processo de construção de uma percepção de passado compartilhada – a que se chama memória histórica. Cada qual contribui, à sua maneira, para a construção/perpetuação da memória do vencedor. Nos textos de didáticos foi possível verificar a simplificação do passado, no qual o integralismo só é entrevisto como ator coadjuvante que ajuda na compreensão do fato representado como o mais decisivo do período: a implantação do Estado Novo.
Na realidade, nestes textos de “vulgarização da história”, é possível verificar não apenas como a equivalência simbólica integralismo igual a fascismo tem sido mantida e o veto ao integralismo, reiterado, mas também como Getúlio Vargas e o “seu” Estado Novo conseguiram se livrar de qualquer associação ao fascismo e como se abriu o caminho para a imposição da memória varguista. Aliás, na história contida nos livros didáticos de história, encontra-se um movimento integralista já previamente derrotado. As múltiplas possibilidades e expectativas existentes para os agentes integralistas no desenrolar do jogo político não podem ser neles percebidas, mesmo porque, quando seus autores os escreveram, não só já se conhecia o futuro no qual os integralistas foram derrotados como também já se havia imposto a memória histórica. Simplificava-se, assim, o passado, fazendo desaparecerem as nuanças e possibilidades que estavam presentes no passado num momento em que o futuro ainda se encontrava aberto, num momento em que ainda não havia o “futuro passado”. Fazer a análise de cada um deles, sob essa perspectiva, é, portanto, ter a chance de ver o quanto que a memória histórica e a história nos didáticos estão imbricadas.
Também a memória integralista deixou seus rastros. Durante um período razoavelmente longo (dos anos 1930, período áureo do movimento, à década atual), ela foi se definindo, com várias nuanças, numa complexa trajetória, que abrange desde o processo de seu enquadramento à memória histórica até a sua sobrevivência nos dias atuais. Apesar de tantos esforços, de qualquer forma, a memória integralista não motivou a rearticulação do movimento integralista, o que pôde ser demonstrado pela pouca representatividade do PRP. Nem mesmo durante a democratização iniciada em 1945, quando já se falava claramente sobre o integralismo com o objetivo de produzir uma nova interpretação do passado, foi possível desatar o nó que uniu fascismo e integralismo. Ainda que aqui não se tenha discutido tal identificação, mas seus usos e desdobramentos políticos, esta pesquisa permite concluir que, decorridos mais de sessenta anos, a comparação entre fascismo e integralismo resiste, tornando-se mesmo quase que natural.
Mesmo assim, a memória integralista regressou, ainda que tímida, ao debate político. Com o fim do Estado Novo e a retomada da ordem democrática em 1945-1946 criaram as condições para a emergência desta memória por meio de uma articulação política que permitiu a criação de um novo partido (PRP) vinculado às lideranças integralistas. Esse regresso foi mediado pelo partido, por intelectuais e por militantes que sentiram a necessidade de recompor suas próprias trajetórias políticas marcadas pelo integralismo. Sem dúvida, o enquadramento da memória integralista adveio dessa recomposição, mediante um processo marcado tanto pela violência simbólica exercida pela memória histórica quanto pelo esforço das lideranças e dos militantes integralistas para se adequarem ao mundo pós-1945.
Em síntese, pode-se dizer que o veto ao integralismo produziu a percepção do movimento do sigma como estigma e a transformação da mística dos camisas-verdes em motivo de chacota. Nesse contexto adverso, gestou-se, então, uma identidade negativa que não foi capaz de agregar a comunidade política integralista em torno da defesa do movimento, atitude esta sem qualquer eficácia política perante a estrutura repressiva do Estado Novo. A visibilidade do movimento foi atingida a ponto de decretar-se o banimento do integralismo tanto do cenário político quanto da memória. Dessa forma, definiu-se uma certa gestão do esquecimento da experiência integralista. E a essa gestão vinculava-se a impossibilidade de atualização do passado integralista, uma vez que qualquer alusão que se fizesse ao integralismo passou a ser acompanhada pela sua identificação com o fascismo. O veto ao passado impedia a reflexão no presente e, obviamente, comprometia qualquer possibilidade futura de rearticulação do movimento.
Surpreendentemente, no entanto, constata-se a presença do ideário integralista no final do século XX. Aparentemente, trata-se de um movimento saudosista sem qualquer chance de constituir-se em opção política. Todavia, se se levar em conta a reorganização de setores conservadores, evidenciada durante as eleições de 2002 – quando Enéas Carneiro foi eleito como o mais votado deputado brasileiro –, talvez seja possível atribuir maior importância ao ressurgimento de movimentos dessa natureza.
Com certeza, o projeto político integralista não foi banido nem derrotado completamente: afastado do mundo político, permaneceu, como fantasma, a assombrar os homens, esperando alguma chance de reencarnação.
FONTES
1932-10-07 - AIB - Manifesto da "Acção Integralista Brasileira" ("Manifesto de Outubro").
1938 - Carta de Plínio Salgado a Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 28 de Janeiro de 1938.
1934 - Estatutos da Ação Integralista Brasileira, aprovados no I Congresso Integralista (Vitória – ES, 1934). Arquivo Municipal de Rio Claro – SP.
1935 - Estatutos da Ação Integralista Brasileira, aprovados no II Congresso Integralista (Petrópolis – RJ, 1935).
1945 - Carta aberta à nação.
1998 - Depoimento de Eduardo Martinelli. In: CALIL, Gilberto, SILVA, Carla Luciana, BATISTA, Neusa. Porto Alegre: CD-AIB/PRP, 1998.
2002 - Circular Geral – FPU. Santos, 11 de Novembro de 2002.
Plínio Salgado, 1895-1975 - Integralismo Brasileiro
(Texto Integral da Tese, em pdf)
Aqui se reproduzem as
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento integralista vivenciou uma complexa trajetória política: de ascendente organização com chances reais de chegar ao poder à mais completa derrota, que vetou a sua presença no processo político brasileiro. Depois de derrotado politicamente, esse sofreu uma segunda derrota: no espaço da memória. Dessa forma, as experiências vividas pelo integralismo compõem hoje o debate acerca do embate entre as memórias: memória histórica, entendida como a memória do vencedor, e a memória integralista, entendida como memória coletiva nos termos desenvolvidos por Halbwachs (1990).
São bastante sinuosos os percursos da memória histórica quanto ao movimento integralista. Desvendá-los é, inclusive, recuperar, discursos performativos emitidos especialmente em 1938 e no período 1945-1947, algo que aqui se fez com o fim de compreender como se definiu o lugar do integralismo, um lugar que, diga-se, beira o esquecimento.
Esta investigação trata, portanto, do processo de construção da memória histórica e, mediante ela, foi possível constatar que o golpe de 1938 é fato central para a produção de uma leitura sobre o integralismo. Aquele foi um golpe desferido contra a ditadura recém-instaurada e, portanto, capaz de definir os camisas-verdes como inimigos do Estado. O papel de narrá-lo coube, inclusive à imprensa, que submetida, associou aos integralistas a idéia de desordem, de traição e de covardia. Realmente, não foram poucos os discursos lançados na grande imprensa com o poder de fixar, na memória histórica, as idéias-imagens concernentes aos integralistas.
Àquela primeira derrota do movimento integralista na produção da memória somou-se uma outra mais decisiva ainda, quando, durante o pós-Segunda Guerra, o integralismo foi associado ao nazi-fascismo, ou, mais precisamente, à percepção de nazi-fascismo construída após o fim da guerra. Naquele momento, as representações acerca do integralismo e do golpe de 1938 voltaram a ocupar espaço na mídia brasileira. Tanto nos grandes jornais quanto na revista O Cruzeiro, revista de grande circulação na época. Acrescentou-se a pecha de nazista e/ou fascista ao discurso produzido no final dos anos 1930 sobre o integralismo. Dali por diante, o movimento integralista foi sendo interditado, ao mesmo tempo em que, estrategicamente, deslocavam-se as críticas da época de Getúlio Vargas (que foi efetivamente ditador) para o movimento integralista (o “fascismo brasileiro”). Os caminhos da memória, estabelecidos durante o Estado Novo, continuaram sendo trilhados, e Vargas é o agente histórico decisivo do período. Os integralistas, por sua vez, são considerados desimportantes e identificáveis à semelhança do mal do pós-guerra – o nazismo –, devendo, portanto, ser banidos do espaço político e, mesmo, da memória.
Mas é nos livros didáticos de história que melhor se percebem os vestígios do processo de construção de uma percepção de passado compartilhada – a que se chama memória histórica. Cada qual contribui, à sua maneira, para a construção/perpetuação da memória do vencedor. Nos textos de didáticos foi possível verificar a simplificação do passado, no qual o integralismo só é entrevisto como ator coadjuvante que ajuda na compreensão do fato representado como o mais decisivo do período: a implantação do Estado Novo.
Na realidade, nestes textos de “vulgarização da história”, é possível verificar não apenas como a equivalência simbólica integralismo igual a fascismo tem sido mantida e o veto ao integralismo, reiterado, mas também como Getúlio Vargas e o “seu” Estado Novo conseguiram se livrar de qualquer associação ao fascismo e como se abriu o caminho para a imposição da memória varguista. Aliás, na história contida nos livros didáticos de história, encontra-se um movimento integralista já previamente derrotado. As múltiplas possibilidades e expectativas existentes para os agentes integralistas no desenrolar do jogo político não podem ser neles percebidas, mesmo porque, quando seus autores os escreveram, não só já se conhecia o futuro no qual os integralistas foram derrotados como também já se havia imposto a memória histórica. Simplificava-se, assim, o passado, fazendo desaparecerem as nuanças e possibilidades que estavam presentes no passado num momento em que o futuro ainda se encontrava aberto, num momento em que ainda não havia o “futuro passado”. Fazer a análise de cada um deles, sob essa perspectiva, é, portanto, ter a chance de ver o quanto que a memória histórica e a história nos didáticos estão imbricadas.
Também a memória integralista deixou seus rastros. Durante um período razoavelmente longo (dos anos 1930, período áureo do movimento, à década atual), ela foi se definindo, com várias nuanças, numa complexa trajetória, que abrange desde o processo de seu enquadramento à memória histórica até a sua sobrevivência nos dias atuais. Apesar de tantos esforços, de qualquer forma, a memória integralista não motivou a rearticulação do movimento integralista, o que pôde ser demonstrado pela pouca representatividade do PRP. Nem mesmo durante a democratização iniciada em 1945, quando já se falava claramente sobre o integralismo com o objetivo de produzir uma nova interpretação do passado, foi possível desatar o nó que uniu fascismo e integralismo. Ainda que aqui não se tenha discutido tal identificação, mas seus usos e desdobramentos políticos, esta pesquisa permite concluir que, decorridos mais de sessenta anos, a comparação entre fascismo e integralismo resiste, tornando-se mesmo quase que natural.
Mesmo assim, a memória integralista regressou, ainda que tímida, ao debate político. Com o fim do Estado Novo e a retomada da ordem democrática em 1945-1946 criaram as condições para a emergência desta memória por meio de uma articulação política que permitiu a criação de um novo partido (PRP) vinculado às lideranças integralistas. Esse regresso foi mediado pelo partido, por intelectuais e por militantes que sentiram a necessidade de recompor suas próprias trajetórias políticas marcadas pelo integralismo. Sem dúvida, o enquadramento da memória integralista adveio dessa recomposição, mediante um processo marcado tanto pela violência simbólica exercida pela memória histórica quanto pelo esforço das lideranças e dos militantes integralistas para se adequarem ao mundo pós-1945.
Em síntese, pode-se dizer que o veto ao integralismo produziu a percepção do movimento do sigma como estigma e a transformação da mística dos camisas-verdes em motivo de chacota. Nesse contexto adverso, gestou-se, então, uma identidade negativa que não foi capaz de agregar a comunidade política integralista em torno da defesa do movimento, atitude esta sem qualquer eficácia política perante a estrutura repressiva do Estado Novo. A visibilidade do movimento foi atingida a ponto de decretar-se o banimento do integralismo tanto do cenário político quanto da memória. Dessa forma, definiu-se uma certa gestão do esquecimento da experiência integralista. E a essa gestão vinculava-se a impossibilidade de atualização do passado integralista, uma vez que qualquer alusão que se fizesse ao integralismo passou a ser acompanhada pela sua identificação com o fascismo. O veto ao passado impedia a reflexão no presente e, obviamente, comprometia qualquer possibilidade futura de rearticulação do movimento.
Surpreendentemente, no entanto, constata-se a presença do ideário integralista no final do século XX. Aparentemente, trata-se de um movimento saudosista sem qualquer chance de constituir-se em opção política. Todavia, se se levar em conta a reorganização de setores conservadores, evidenciada durante as eleições de 2002 – quando Enéas Carneiro foi eleito como o mais votado deputado brasileiro –, talvez seja possível atribuir maior importância ao ressurgimento de movimentos dessa natureza.
Com certeza, o projeto político integralista não foi banido nem derrotado completamente: afastado do mundo político, permaneceu, como fantasma, a assombrar os homens, esperando alguma chance de reencarnação.
FONTES
1932-10-07 - AIB - Manifesto da "Acção Integralista Brasileira" ("Manifesto de Outubro").
1938 - Carta de Plínio Salgado a Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 28 de Janeiro de 1938.
1934 - Estatutos da Ação Integralista Brasileira, aprovados no I Congresso Integralista (Vitória – ES, 1934). Arquivo Municipal de Rio Claro – SP.
1935 - Estatutos da Ação Integralista Brasileira, aprovados no II Congresso Integralista (Petrópolis – RJ, 1935).
1945 - Carta aberta à nação.
1998 - Depoimento de Eduardo Martinelli. In: CALIL, Gilberto, SILVA, Carla Luciana, BATISTA, Neusa. Porto Alegre: CD-AIB/PRP, 1998.
2002 - Circular Geral – FPU. Santos, 11 de Novembro de 2002.