1__em_jeito_de_apresentação.pdf |
2_o_integralismo_lusitano_da_matriz__doutrinária_ao_modelo_pedagógico.pdf |
3_adriano_xavier_cordeiro_a_propriedade_vinculada_o_valor_da_familia_e_o_integralismo_lusitano.pdf |
1. Em jeito de apresentação
Esta obra surge na sequência de uma palestra/debate que teve lugar no Arquivo Municipal de Ponte de Lima, em 23 de abril de 2014, e que se insere num vasto conjunto de iniciativas de âmbito cultural, reflectindo a importância que o pelouro da cultura do Município de Ponte de Lima atribuí à valorização e divulgação da sua história local e das suas gentes, enquanto parte integrante do seu legado patrimonial e garante da memória colectiva, contribuindo desta forma para o conhecimento do passado, para melhor compreender o presente e o futuro.
As reflexões emanadas durante o evento, que agora se materializam sob a forma de livro, constituem um importante contributo para um conhecimento mais alargado e aprofundado sobre o Integralismo Lusitano, movimento doutrinário e político do início de século XX, com origem no meio académico da Universidade de Coimbra, e sobre um dos seus fundadores – Adriano Xavier Cordeiro, natural da freguesia de Arcozelo, concelho de Ponte de Lima.
Sobre os autores oferece-me referir que o Dr. José Aníbal Castro Marinho Soares Gomes, também limiano, tem dedicado grande parte do seu estudo à história local, sendo exemplo disso a vasta obra publicada – “A Vila de Ponte de Lima na Dinastia de Aviz”, “Marqueses de Ponte de Lima, Descendentes de Pedro Álvares Cabral”, “D. Teresa e a Vila de Ponte”, “Ponte de Lima na crise dos séculos XVI e XVII - alguns registos”, “Alguns Registos de Cartas de Brasão de Armas e Títulos Nobiliárquicos de Ponte de Lima e Seu Termo’’, “Para a História da Nobreza Titulada de Ponte de Lima’’, “Reinaldo Varela” –, e à investigação na área da Genealogia, sendo membro de prestigiadas associações de genealogia e heráldica.
É membro fundador do Instituto Limiano - Museu dos Terceiros (Ponte de Lima), da Real Associação de Viana do Castelo, sendo o actual Presidente da Direcção, e da Causa Real, da qual é membro da Direcção Nacional.
Quanto ao Prof. Doutor Armando Malheiro da Silva, digníssimo docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem-se destacado não apenas no âmbito da História Contemporânea mas também na área da Ciência de Informação, cujo desenvolvimento científico muito deve ao seu empenho, dedicação, conhecimento e à vasta produção científica que tem vindo a publicar, sendo hoje as suas obras, indubitavelmente, uma referência obrigatória para todos os profissionais da informação, a nível nacional e internacional.
Resta-me considerar que é um enorme orgulho e um privilégio poder fazer a abertura desta obra, esperando estar à altura de tão prestigiantes autores e de tão importante contributo para a Cultura Portuguesa que aqui nos trazem.
Cristiana Freitas
Coordenadora do Arquivo Municipal de Ponte de Lima
2. O Integralismo Lusitano: da matriz doutrinária ao modelo pedagógico
Por Armando Malheiro da Silva
Ao José Aníbal Castro Marinho Soares Gomes, antigo amigo há pouco reencontrado, responsável pelo reaparecimento parcial deste ensaio de outro século…
«Ao Princípio era o Verbo ... » E confessar o Verbo ao princípio de todas as coisas, é confessar o Espírito dirigindo o Mundo, é confessar a inteligência encaminhando a acção».
António Sardinha
1. O voo do Pelicano na Pátria decaída
De tudo o que se tem escrito sobre a crise de 1890-92, pode-se inferir que ela constituiu um importante ponto de chegada e de começo. De chegada, porque marcou o fim do percurso iniciado pela «civilização liberal», após o estímulo regenerador de 1851—percurso contraditório, incapaz de operar o renascimento integral do país, e, responsável pelo sombrio ocaso e, flagrante descrédito daquela (já visíveis a partir de 1868). E, de começo, porque abriu as portas a um explosivo período de ruptura politica, sócio-económica e cultural em que o republicanismo, num conluio nítido com a Maçonaria, apareceu como o depositário de todas as esperanças e o agente mágico das necessárias transformações — o ideário republicano foi tecido no ambiente complexo da Geração de 70, caracterizado pela humilhante supremacia dos sistemas vindos do estrangeiro, por comboio (Hegel, Comte, Proudhon, Marx...) e pela saudável tentativa de erguer bem alto um Pensamento genuinamente português.
Uma análise atenta e profunda desse período de ruptura, assaz convulso, permite-nos descobri-lo como reflexo duma intrincada crise de identidade vivida pelo país em vários níveis: em nível político, merece destaque a tendência autoritária — sintoma bem expressivo — que teve o apoio da Liga Liberal, presidida por Augusto Fushini, e de homens como Oliveira Martins, convictos de que era possível «vida nova» se o Rei, ofuscando os partidos, governasse a Nação (ensaio de «vida nova» feito in extremis, a ditadura de João Franco frustrou os últimos esforços de D. Carlos para salvar o agonizante constitucionalismo monárquico); em nível social, salienta-se a situação crítica da burguesia, que buscava um novo e sólido ponto de equilíbrio (e de encontro) encontro) face a diversas ameaças, nomeadamente a representada por um proletariado sedento de justiça social e imbuído de anarco-sindicalismo — entretanto o país ia-se entalando, mais e mais, entre a bancarrota e a miséria; em nível cultural a crise atingiu, também, o paroxismo, que foi reflectido, de modos vários, por um Teófilo Braga, um Sampaio Bruno, um Fernando Pessoa, um Leonardo Coimbra, um António Sérgio, um António Sardinha... O poeta dos heterónimos encarou-o com uma forte paixão messiânica que lhe abrasava o estro:
«(...) para Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de creação literária e social como poucos o mundo tem tido. (...) Tudo indica portanto, que o nosso será́, como aquele, maximamente creador. Paralelamente se conclue o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camões? A frase é humilde e acanhada. A analogia impõe mais. Diga-se «de um Shakespeare» e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não é citável o futuro» ().
Este presságio «sebastianista» de Pessoa confirma a ferida aberta na alma portuguesa, porque o sebastianismo, como bem observou Eduardo Lourenço, «representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência». Fraqueza nacional sintoma de crise profunda, que deve ser medida através de inquéritos sistemáticos. Para que se consiga impulsionar um exaustivo entendimento da realidade mítica do Ego lusitano, poderá́ um desses inquéritos incidir sobre a mensagem global e rica dos movimentos aparecidos nos alvores deste século («Renascença Portuguesa», «Orpheu», «Portugal Futurista», «Integralismo Lusitano», «Seara Nova»...) e dos «profetas» isolados como um Raul Leal ou Henoch, vulto injustamente esquecido.
Empunhando a espada, símbolo da força renovadora tão necessária, a República fez finalmente a sua estreia em Lisboa a 5 de Outubro de 1910, quase vinte anos depois do sangrento e frustrado 31 de Janeiro de 1891, surgido em plena erupção nacional e na burguesa cidade do Porto (berço do célebre Sinédrio e urbe invicta). Houve, de facto, um atraso arreliador para os republicanos, mas a chama continuava acesa e a conjuntura ainda era algo propicia para se cumprir o programa idealizado por Antero de Quental: «A República, é no estado, liberdade; nas consciências, moralidade; na indústria, produção; no trabalho, segurança; na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade; para todos, luz».
Ressurgir ou renascer tornaram-se de imediato palavras de ordem cruciais tanto para idealistas sinceros, como para demagogos encapotados. Uns e outros haviam sofrido o terrível feitiço da retórica inflamada e convincente, poética e acintosa, então reinante. Uns e outros fizeram-se arautos de belas promessas, enquanto que a «Formiga Branca» prosseguia voraz e demolidora, perante a intrepidez do Couceiro conspirador...
A revolução que entusiasmava o coração de uns, gerava noutros sentimentos contra-revolucionários. Surge na Bélgica um grupo de moços, Domingos de Gusmão Araújo, Luís de Almeida Braga e Rolão Preto, responsável pela revista «Alma Portuguesa» (1913), gérmen do Integralismo Lusitano. Esses moços situavam-se no campo monárquico, ferido por graves e antigas cisões.
O pacto de Dôver (30/1/1922) conseguiu formalizar um acordo, embora temporário, entre as duas tendências opostas: constitucionais e legitimistas. Estes encarnavam o Miguelismo, mito complexo (mescla de valores, crenças, traumas colectivos, caracteres idiossincrásicos, etc.) gravado na alma lusitana, e presente no espírito desses rapazes, leitores atentos de Charles Maurras e fervorosos defensores da Tradição. Ela «é a lembrança de momentos e acções sucessivas, realizadas em tempos diferentes, mas tendo entre si um veio eterno que as liga e lhes dá unidade. As fórmulas envelhecem com os homens; é preciso, pois, renová-las para que conservem mocidade e frescura».
Isto significa que, para eles, o devir histórico definia-se como evolução na continuidade, tornando-se, neste sentido, possível recuperar no presente modelos usados com êxito no passado—Idade Média e período da Restauração. Recuperação necessária, na sua perspectiva, porquanto as propostas republicana e Liberal procediam da degenerescência total da civilização europeia, nítida a partir de 1789: unir as hostes monárquicas em torno dum ideal ardente e dum combate sem tréguas contra a República, eis o linear propósito que os galvanizava, e que seduziu jovens desiludidos, destacando-se dentre eles António Sardinha, membro em 1913 do núcleo integralista do interior (a revista de difusão restrita «Integralismo Lusitano» foi o seu órgão oficial), a que, também, pertenceram João do Amaral (outro desiludido), Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e Alberto de Monsaraz — estes dois últimos foram os principais sustentáculos económicos do movimento.
Desiludido e sagaz, Sardinha viria a estabelecer um lógico e estreito paralelo entre o 5 de Outubro e a Revolução de 1820, e a superar o processo de gestação do «Pelicano», dotando-o dum sistema doutrinal coerente e radical; sistema que, como o criacionismo, emergia dentro do «triângulo ideológico» dominante na época: positivismo e seus derivados (merece especial destaque o maurrasianismo), evolucionismo de Spencer e materialismo de Haekel e suas ramificações (anarquismo, marxismo, etc.).
No ano de 1914, a «cruzada» integralista recebeu um decisivo impulso com o regresso dos exilados, que logo se juntaram aos membros do núcleo do interior, e com o lançamento da revista «Nação Portuguesa». Em pouco tempo já o Integralismo Lusitano dispunha duma ampla rede organizativa, cuja cúpula dinamizadora — a Junta Central— foi criada em 1916, ano em que se realizaram as conferências da Liga Naval Portuguesa sob o título genérico de «Questão Ibérica», as quais abriram caminho a um iberismo, diverso do defendido, em meados de oitocentos, por D. Sinabaldo de Más, Latino Coelho ou Félix Henriques Nogueira.
Entretanto, cresceu a penetração da doutrina integralista nas várias regiões do país, mediante um número cada vez maior de semanários regionais a ela afectos. E, em 1917, surgiu o diário «A Monarquia», espelho nítido da sua combatividade ardente, dos seus limites e anacronismos, do seu pendor elitista, da sua influência junto dos «elementos da antiga nobreza, latifundiários, camponeses ricos e os seus filhos nos meios estudantis» e do seu pragmatismo político, bem visível em 1918-19, quando Sidónio Pais, interpretando os sentimentos de dor e de revolta dum povo atirado para a terrível Guerra de 14-18, impôs uma experiência insólita: uma «República Nova» com um «Presidente-Rei»! Mas, a sua brusca morte, obstruindo a via do restauracionismo mediato e subtil, lançou os homens do «Pelicano», em conluio com os soldados de Paiva Couceiro, na aventura precipitada e frustrante da Monarquia do Norte e no combate desastroso de Monsanto.
Estes desaires produziram, como é óbvio, um imediato e profundo mal-estar nas forcas monárquicas. A ruptura com os «couceiristas» tornou-se, por isso, inevitável, seguindo-se-lhe o polémico ultimatum dirigido pelos integralistas a D. Manuel II como meio de obrigá-lo a comprometer-se com os seus ideais; mas, perante a categórica recusa do ex-monarca, a J. C. I. L. teve de virar-se para D. Miguel II. Ao cabo de difíceis negociações, ficou acordado que este abdicaria os seus direitos de pretendente ao trono a favor de seu filho D. Duarte Nuno, ainda menor. Não tardou, porém, que o compromisso fosse paradoxalmente posto em causa pelos miguelistas. Descontentes com a incapacidade conspiratória da Junta, voltaram-lhe as costas e julgaram mais seguro reconhecer D. Manuel como Rei legítimo. A agravar isto, deu-se a cisão, há́ muito latente, dos integralistas críticos quanto à conduta da própria J. C. I. L. (Alfredo Pimenta, Caetano Beirão, etc.), os quais constituíram a «Acção Realista Portuguesa», em 1923. Neste mesmo ano, integralistas e seareiros estiveram juntos, embora por pouco tempo, na revista «Homens Livres».
Encurralada, e vendo a sua actuação politica à beira do descrédito, a Junta Central só teve como alternativa auto suspender-se sine die. Isto equivaleu quase a um «suicídio», mas surpreendentemente o Integralismo Lusitano pôde resistir a esse golpe, obtendo um sensível acréscimo de vigor e de empolgante apoio. Intensificaram-se as infiltrações integralistas no exército; subiu a sua influência entre as associações patronais e agrícolas e a imprensa regional ao seu serviço multiplicou-se bastante. A questão dinástica continuaria, no entanto, a ser um «espinho» incómodo e fixo. Malograra-se o Pacto de Paris (17/4/1922) e falhariam, também, as diligências da «Acção Realista» para unir as várias facções, o que só foi possível com a morte de D. Manuel II. Essa questão contribuiu, pois, para esvaziar, de sentido prático, a luta do «Pelicano» contra a República agonizante.
Posto isto, penetremos, com o intuito de comparança, na «Nação Portuguesa». Ela permite-nos dividir o Integralismo Lusitano em duas grandes fases: a primeira vai até 1926, e a segunda ultrapassa a data da extinção oficial (1933), prolongando-se até 1938. O que há de significativo nesta fase, é a passagem do testemunho da velha geração integralista a uma geração nova, já algo distante do dilema Monarquia-República e da génese doutrinária. Dilema e génese, que constituíram, de facto, o fulcro da primeira fase ou, por outras palavras, o conteúdo básico da acção integralista.
A «Nação Portuguesa», que apareceu com o subtítulo de «Revista de Filosofia Política», começou por ser dirigida por Alberto de Monsaraz, sucedendo-lhe, em breve, António Sardinha, director até 1925, ano da sua prematura morte. Durante todo este período, ela teve como colaboradores os integralistas da primeira linha, alguns positivistas confessos e um ou outro vulto ilustre da época. A. Xavier Cordeiro, Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), João do Amaral, J. A. Pequito Rebelo, L. de Almeida Braga, Hipólito Raposo, Domingos de Gusmão Araújo, Alfredo Pimenta, Francisco de Sousa Gomes Veloso, D. Luís de Castro, etc. formaram o elenco respectivo.
Em termos de mensagem especifica, a revista revela-nos, de imediato, uma homogeneidade, que é menos visível em «A Águia», e uma firme intenção de superar o lirismo da «Alma Portuguesa» e a violência desordenada de «Os Cadernos» de «Mariotte». Submetendo-a a uma leitura atenta, pode-se constatar, que os principais artigos, publicados no ano 1, constituem os pilares do edifício doutrinário desenvolvido nos anos seguintes. Com efeito, logo no primeiro número existe um pequeno texto, que é uma espécie de síntese programática do pensamento politico do Integralismo Lusitano; intitula-se «O que nós queremos: Monarquia orgânica tradicionalista anti-parlamentar» e condensa admiravelmente os dois vectores-chave do referido pensamento: a tendência concentradora (nacionalismo) e a tendência descentralizadora (corporativismo e regionalismo).
Esse «mini-programa» foi de pronto, enriquecido nos números posteriores. No n.º 3, Alberto de Monsaraz, em «O Nosso Rei», explicita a doutrina do seu grupo, declarando-se abertamente contra o individualismo gerado pela «funesta Revolução Francesa» e contra o absolutismo dinástico da Renascença (a Pátria, afirma ele, só́ fruiu o «equilíbrio perfeito» na «Era de Quatrocento»); nesse mesmo número, Alfredo Pimenta disfere, em «Parlamentarismo», uma critica feroz na instituição parlamentar, dizendo que ela é incompatível com os povos de sangue latino. No n.º 4, Pimenta volta à liça, desta vez para analisar «O Problema Religioso», mostrando que os ataques, lançados pela Ciência contra a Religião, não possuíam quaisquer fundamentos, facto que ela própria havia já reconhecido — pôde, assim, rever certas posições, não mais concebendo, por exemplo, o Catolicismo como um perigo social. Também no n.º 4, Sardinha, em «O Poder pessoal e Poder absoluto», retoma a abordagem de Monsaraz, distinguindo entre absolutismo— degenerescência renascentista — e poder pessoal — o único que confere ao Estado as suas convenientes dimensões— e sublinhando que o Integralismo Lusitano não era uma cópia da «Action Française», porque já havia, com longas raízes, uma Contra-Revolução genuinamente Portuguesa, a que ficaram ligados nomes como o de João Pinto Ribeiro, o de José de Gama(11), o de José Agostinho de Macedo entre outros. No n.º 5, Hipólito Raposo refere-se à «Natureza da Representação», defendendo como única representação aceitável a integral, isto é, a que engloba todos os interesses, direitos e aspirações de quantos laboram em qualquer ramo de produção ou actividade, e, neste sentido, classifica de aberrante, seguindo uma leitura radical dos trabalhos de Gustave Le Bon, o «sufrágio da multidão eleitoraI». Por último, deve citar-se o artigo de L. de Almeida Braga, «Sindicalismo e República» (n.º 5), porque aí o Autor lança as bases da futura perspectiva laboral do Integralismo (o nacional-sindicalismo de Rolão Preto), opondo a teoria sindical de raiz corporativa ao socialismo, e insistindo na necessária harmonia entre proletariado e patronato, porque como dissera Levie «casamento de amor ou casamento de conveniência, n'um deles tem de se ligar o capital e o trabalho, porque em indústria não se pode ficar solteiro».
Mas, voltemos ao n.º 1. para referir dois estudos muito importantes. O primeiro, «Teófilo, Mestre da Contra-Revolução» de A. Sardinha, testemunha, por um lado a consagração do positivismo como base do discurso contra-revolucionário, e, por outro lado, o processo de anular a eventual dependência integralista face ao maurrasianismo, mediante a pesquisa histórico-crítica dos artífices do Nacionalismo Luso e de certas «persona non grata» (caso de Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Teófilo Braga...). O segundo, «Pela Dedução à Monarquia» de J. A. Pequito Rebelo, reflecte um curioso intuito de sistematização doutrinária, que o Autor desenvolveria ao longo de vários anos até obter um grosso manual (publicado em 1945) útil para as novas gerações. Também a Estética Integralista, peça básica da doutrina do «Pelicano», recebeu no ano 1, um decisivo impulso com dois interessantes artigos: em «Humanismo e Nacionalidade» (n.º 6), Hipólito Raposo disseca a herança legada pela Renascença, que ele identifica com desnacionalização, sustentando que o Humanismo contribui para a decadência ou mera substituição dos sagrados valores que dão vida e força a uma Nação (este azedo anti-humanismo assenta numa ideia fixa: o Povo globalmente considerado, isto é, a Nação, e não o homem/indivíduo, é que é a medida de todas as coisas); por seu turno, Domingos de Gusmão Araújo, em «Da Poesia das Cinzas à Poesia das Brasas», critica o Saudosismo, acusando a Saudade de nostalgia decadente, morta e adversa da Esperança, a qual goza duma
«dupla prioridade chronologica e metafisica. Esperança e Saudade formam conceitos distintos, porque é metafisicamente impossível, extrahir o conceito da Esperança do conceito da Saudade, e vice-versa. Saudade é um conceito fechado à Esperança: é a poesia das cinzas. (. ..) Nós queremos a poesia das brasas, o seu calor amorável e generoso. Cremos no imortal imponderável da raça, na brasa eterna da Pátria, que nos aqueceu e iluminou. (...) Verão que a fórmula «Renascença Portuguesa» não desmente o fundo saudosista. Renascença—Passagem do não-ser ao sêr, recreação, o mytho de Phenix. Saudade—Cinzas, necrópoles evaporando-se em vida».
À guisa de nota marginal, diremos que a «Nação Portuguesa» introduziu simplificações ortográficas, alegando que estas já haviam sido esboçadas por autores medievais e linguistas do século XVI.
Durante a direcção de A. Sardinha, a revista fornece-nos dados seguros, que permitem captar a completa e profunda mensagem integralista. Uma das principais tarefas do «António de Monforte» foi, recordemo-lo, converter um acervo multiforme de ideias em corpo doutrinário consistente e complexo. Complexo, porque o Integralismo surgiu como síntese algo paradoxal do nostálgico retorno à Idade Média e ao período da Restauração com um anti-helenismo vanguardista, da polémica convicção de que o caos do presente só pode ser eliminado pela reaplicação dos modelos do passado, com a consciência crítica de que liberalismo e civilização tecnológica são sinónimos de desumanização, e dum neo-escolasticismo rígido com um regionalismo criador. Sardinha também contribui, para que a Tradição fosse apresentada na revista como conceito dinâmico e existencial — trave mestra do contra-revolucionário — dentro duma peculiar perspectiva histórica, crítica e filosófica.
Na «Nação Portuguesa», deparamos uma proposta historiográfica caracterizada por uma mescla de providencialismo, de insistência na identificação da Pátria com a Monarquia, de pan-hispanismo e de subjectividade (a ideologia interfere na análise histórica). Deparamos, também, uma sistemática «crítica nacionalista», que se pode definir como o conjunto de apreciações negativas ou positivas de correntes, obras e autores, no domínio da literatura e da arte, à luz da defesa da integridade global da Nação — o Romantismo foi a sua maior vítima e a «literatura nacional» com os irmãos Gouveias, o Serafim de Freitas, o P.e Manuel Álvares, o P.e António Vieira, o Luís de Camões, o Sá de Miranda, etc. o seu melhor exemplo. Esta crítica enquadra-se, segundo Sardinha, entre o nacionalismo ou instinto profundo de vitalidade completado pelo tradicionalismo (produto da experiência secular da humanidade) e o universalismo ou presença viva na totalidade envolvente. E deparamos ainda, [com] um discurso filosófico que reflecte diversas influências. Para além da exercida pela «Action Française» (Maurras projectou nela uma curiosa mistura do positivismo, do tradicionalismo de De Bonald e do élan vital de Bergson) devemos citar a dos filósofos «ultramontanos, Joseph de Maistre e Louis de Bonald, pouco confiantes na Razão e defensores da «crença» como receptáculo das verdades essenciais, a do comtismo , a de certos princípios de Georges Sorel e a da Encíclica «Aeterni Patris» de Leão XIII (texto básico da «Neo-Escolástica»), secundada pelo Cardeal Mercier e por Jacques Maritain. Resumindo, podemos dizer que a leitura dos vários números da «Nação Portuguesa» até 1926 dá-nos os contornos exactos do pensamento integralista, e deixa-nos adivinhar, nas entrelinhas, uma força e um jogo de vectores algo contraditórios, que encerram uma imagem do «Pelicano» assaz complexa, e, por isso, impenetrável às análises simplistas de Carlos Ferrão e de Raul Proença, A. Sérgio e outros seareiros.
2. Princípios Desfraldados
O Integralismo Lusitano revela algumas características de seita, definida esta formal e activamente como «procedimento habituaI ou ardente (apaixonado) por parte de várias pessoas de uma atitude (v. g.: doutrinal, filosófica ou não...) originariamente dependente de alguém (chefe) que primeiro e/ou principalmente assumiu essa mesma atitude» . No entanto pode afirmar-se que ele, pelo menos durante a liderança doutrinária de António Sardinha, não resvalou no sectarismo, tomado em sentido pejorativo, sendo nítida a busca de certas posições de abertura, apesar dos verrinosos ataques contra a «ideologia republicana», que, em 1921-22, Ângelo de Morais — convém registar este caso — decidiu formular, em termos criacionistas, sistematizando-a numa Moral e numa Estética. A conduta não sectária dos Integralistas (a velha geração) é bem ilustrada pela revista «Homens Livres», que juntou do mesmo lado da barricada «Pelicano» e «Seara Nova»; revista de curta duração, mas que constituiu um facto importante, sobre o qual convém reflectir caso pretendamos restaurar a genuína imagem do Integralismo. Em «Almas Republicanas» (artigo inserto no segundo e último número da revista), A. Sardinha deixou gravada a disposição dialogante do seu grupo: «(...) Ora em combate franco ao individualismo na sua maior manifestação: — a Plutocracia, nos achamos aqui, neste reduto, dando as mãos fraternalmente, criaturas provindas dos mais diversos sectores do pensamento humano, desde o senhor Raul Proença (saúdo com respeito o meu adversário!), impugnador incansável das verdades semeadas pelo integralismo, até ao meu reaccionarismo, cada vez mais justificado, mais consciente e mais indefectível».
Raul Proença, o adversário saudado por Sardinha, na crítica implacável que sistematizou em «Acerca do Integralismo Lusitano», levanta para além da discutida e discutível imitação literal da doutrina da «Action Française», e da «maurraisiana filosofia do facto», a questão da recusa do progresso baseada em certas teorias científicas, nomeadamente «as doutrinas biológicas de René Quinton. «Evolução já não significa mudança, modificação, mas antes permanência, fixidez». Assim diz Sardinha. Como se dissesse: Caminhar já não significa mudar de posição, mas estar parado. (...) As doutrinas de Quinton, os senhores estão a ver, permitem afirmar que cada nação
«assenta num inviolável meio vital, o qual consiste no equilíbrio constante das condições especiais de que o agregado brotou, valendo a alteração delas pela queda insanável do organismo». A primeira condição, pois, de toda a política científica é respeitar as primitivas instituições de cada povo, as que constituíram, por assim dizer, o seu «ambiente originário». Como dizia Rivarol, res eodem modo conservantur quo generantun».
Contra esta teoria, Proença desenvolve a seguir um conjunto de argumentos tendentes a desarmar pela raiz a sua projecção sociológica. Mas, para além disto, interessa sublinhar o papel fundamentador que a Ciência desempenha na filosofia política do Integralismo. Na filosofia criacionista a Ciência não se limita a fundamentar princípios-chave, ela entra como base constituinte do edifício filosófico.
O binómio Tradição-Progresso, peça essencial do pensamento contra-revolucionário, mereceu a Pequito Rebelo uma particular atenção. Segundo ele, esse dois termos harmonizam-se. O segundo pode definir-se como sendo a aplicação desenvolvida do «conteúdo tradicional», e o primeiro alonga-se em progresso, graças ao «tradicionalismo positivo», corrente que abriu a Tradição à teoria evolucionista. Desta forma, Pequito Rebelo consegue obstruir a crítica formulada por R. Proença. Abre-se aqui um parêntesis, para referir que este seareiro se precipitou, de igual modo, quando concluiu ser o Integralismo Lusitano uma cópia da doutrina de Maurras, porque se é verdade que António Sardinha seguiu muito de perto o pensamento maurrasiano (copiou-o no essencial), também não é menos verdade afirmar que ele impulsionou o estudo da Contra-Revolução Portuguesa, estudo «genealógico» prosseguido modelarmente por Fernando Campos, em algumas obras básicas: «Os nossos Mestres. Breviário da Contra-Revolução», «Camilo contra-revolucionário», «D. Frei Fortunato de S. Boaventura, mestre da Contra-Revolução», «Genealogia do Pensamento Nacionalista», «Pensamento Contra-Revolucionário em Portugal (século XIX)» (obra de largo fôlego e valor), etc. Proença precipitou-se, também, insistindo na crítica à «filosofia do facto» atribuída a Maurras, e, consequentemente, aos seus «sequazes» lusitanos, porque uma leitura cuidada dos textos de Maurras, embora não dissipe algumas fundas marcas de positivismo, contradiz a «tese experiencialista», como o demonstrou o pensador neo-integralista A. José de Brito.
Fechado o parêntesis, citaremos de novo Pequito Rebelo, porque ele apresentou, na sua obra «Pela Dedução à Monarquia», duas lapidares definições de Integralismo Lusitano, uma doutrinária e outra sentimental. Doutrinariamente, o Integralismo é-nos apresentado como a campanha «da verdade política e do sentimento» animada pelo «interesse nacional», podendo concretizar-se mediante instituições adequadas (Municípios, Corporações, Províncias, etc.); sentimentalmente, o Integralismo é definido pelo sentimento da verdade, pela convicção: «Temos a bênção dos mortos, a enorme força sentimental da tradição. Combatemos por Deus, temos a força augusta da Religião. (...) Somos a reacção contra o sacrilégio, o latrocínio e o assassinato invadindo a pureza da nossa história: somos os vingadores do regicídio» .
A propósito do carácter reaccionário desta doutrina, Pequito Rebelo afirma que ele se funda numa tendência natural e lusitana. Reagir tem, para Pequito, a «beleza do agir multiplicada», porque exprime a manifestação da vida defendendo-se e lutando contra as tenazes que visam esmagá-la, reduzi-la a pó. O Integralismo assumindo-se como reaccionário, aposta na renovação, e nesta linha ele opta claramente por uma posição a um tempo idealista e realista, por uma defesa inequívoca da sensibilidade e da imaginação, as quais só são nocivas quando arrancadas do contexto em que devem e podem frutificar, tornando-se elementos decisivos de harmonia e de vitória. O Integralismo Lusitano apresenta-se, a seu modo, como uma síntese, dirigida na busca duma força (a Tradição) capaz de superar vectores extremos, irredutíveis. O Pelicano nasceu sobre o primado da política e não sobre o da filosofia, contudo não tardou que fosse sistematizado numa base de filosofia política, fundamentadora quer da «história integral», quer da «crítica nacionalista» — armas usadas no combate contra a historiografia e a ideologia revolucionárias. Essa base, que devemos designar por pensamento contra-revolucionário, não encerra, por exemplo, um sistema filosófico original, mas apenas um composto equilibrado, capaz de preencher o vácuo doutrinal da Contra-Revolução, flagrante até ao século XVIII, porque, como muito bem salienta Thomas MoInar,
«os contra-revolucionários nunca tiveram tempo nem ocasião de assentar os seus conceitos políticos nas teses filosóficas apropriadas. Quando despertaram do sono da segurança política, viram-se solicitados de demasiados lados ao mesmo tempo para realmente poderem assumir a tarefa de se defenderem e ripostarem. Muito naturalmente tiveram de limitar-se a reagir aos perigos mais ameaçadores, vendo-se obrigados a indefinidamente adiar a elaboração, no entanto essencial, da metafisica apropriada às suas ideias políticas».
No pensamento contra-revolucionário, erguido por Sardinha e seus companheiros, notamos de imediato uma forte influência da «Neo-Escolástica», à mistura com outras correntes, diluída num discurso concordante com as críticas certeiras dirigidas contra a omnipotência da Razão, à qual se contrapõe a Inteligência (em tudo divergente do «superficial e enfático racionalismo do séc. XIX»), porque esta
«dispondo do sentido das «relatividades», eleva-se dos factos às leis e exerce-se salutarmente, pela investigação e pela verificação das determinantes que regem os fenómenos, e do grau de relações que os une entre si. Nunca a Inteligência teve inimigo pior que o racionalismo! O seu desprestígio, — o enfraquecimento das suas faculdades lógicas, não se filiam em outras causas que não sejam derivadas das mil e umas ideologias com que a Razão-Pura nos abastardou e corrompeu a limpidez do pensamento».
Pensamento que, segundo Sardinha, se alia profundamente com a acção, sendo erróneo qualquer tentativa que vise separá-los . Portanto, será incorrecto admitir-se apenas a ordem da Inteligência, pois devemos atender, também, à ordem do coração (sensibilidade). Neste sentido, o dilema Ciência-Religião desfaz-se para dar lugar a uma densa interligação fundada numa mútua complementaridade, possível porque a Ciência começou, a partir do último quartel do séc. XIX, a ver reduzido o seu domínio perante a convincente revelação da intuição (graças ao psicólogo William James, ao filósofo Henri Bergson e ao matemático Henri Poincaré), concluindo Brunetiêre que a Ciência não é «de forma nenhuma uma solução para a vida», pois exclui do seu alcance alguns aspectos básicos, como, por exemplo, o mundo moral; a Religião actua precisamente neste mundo como «senhora das vastas expressões da consciência», ganhando, em certo sentido, terreno à Ciência por causa do intenso revisionismo a que esta estava a ser sujeita e podendo até, através da Fé, subjugá-la à Verdade revelada — sim, pela Fé́, diz veementemente Sardinha, e só por ela poderemos atingir o Inatingível, que a Ciência esgotada renunciará a desprezar arrogantemente.
Assente no conceito dinâmico de Tradição, o pensamento contra-revolucionário estrutura-se, por um lado, em torno de duas tendências dominantes --o tomismo e a filosofia positivista—, e, por outro, em torno dos valores essenciais da Contra-Revolução. Essas duas tendências contribuíram, entre outras coisas, para a consolidação deste principio básico: quando a acção é subvertida pelo pensamento é lícito e indispensável opor-lhe resistência teórico-prática sob a forma da reacção. Reagindo, se resiste e se pode tentar corrigir os descaminhos da acção esquentada por ideias de cunho racionalista, totalmente divorciadas da realidade. Quanto aos valores da Contra-Revolução, os Integralistas, adversários da valoração dos enciclopedistas, seguem Gama e Castro, autor de «o Novo Príncipe», considerado por Luís Manuel Reis Torgal não como um filósofo político, mas sim como um político prático que leu, a par da sua própria experiência e observação, Edmund Burke (autor da célebre obra contra-revolucionária «Reflections on the Revolution in France»), e, talvez, Joseph de Maistre, pois adoptou um esquema metodológico e uma sistemática semelhantes aos empregues por estes teóricos. Na via aberta por Gama e Castro, Sardinha e outros membros do «Pelicano» perspectivaram os valores contra-revolucionários- a Ordem, a(s) Liberdade(s), a Desigualdade e a Realeza - enquanto imbuídos duma «lógica natural e divina» inexistente nos valores absolutizados pela Razão. Assim, a Ordem — melhor, a «Ordem Nova» de que fala Sardinha em «Ao Princípio era o Verbo» — valor essencial que assegura a evolução pacífica e fecunda da sociedade, encontra-se, desde os começos, presente na Natureza (na organização dos seus fenómenos, dos seus seres, etc.), e por isso é oposto à Desordem (anarquia), que é anti-natural. A Liberdade (ou liberdades) é, também, fulcral, correspondendo a uma intrínseca necessidade do indivíduo; no entanto é relativizada pelo viver-em-relação, que cria carências e limitações no Homem, de modo que é impensável, segundo os Integralistas, tomar a Liberdade como fim absoluto. À igualdade, conceito abstracto, opõe-se a Desigualdade, valor concreto fundado na natureza heterogénea da constituição humana. Por último, a Realeza é o valor orgânico capaz de garantir, na harmonia e eficácia, a dinâmica do Estado regido por duas tendências diversas: uma concentradora e outra descentralizadora.
Base doutrinária e radical, o pensamento contra-revolucionário modela todas as análises e fundamenta, como já atrás referimos, as duas principais teorias complementares: a histórica (viciada, segundo alguns autores, por um acentuado «historicismo») e a nacionalista. Esta engloba aspectos curiosíssimos, como, por exemplo, o sebastianismo e a Estética integralista.
Classificado como a «filosofia da nossa Raça», o sebastianismo possui, na opinião de A. Sardinha, uma parte positiva, mediante a qual pode converter-se em «interpretação psicológica da nossa história» e em crença lúcida no «grande amanhã de Portugal». Ser sebastianista não se reduz, pois, a uma atitude passiva de retomo ou de inútil expectativa, antes consiste em assumir a genuína portugalidade sempre aberta ao futuro. Este construtivo sebastianismo esconde flagrantes conotações com a «tese saudosista» e com a «messiânica», a partir dum denominador comum: o nacionalismo.
A Estética integralista apresenta duas facetas: tomismo e regionalismo. A propósito daquele, convém sublinhar a influência, que Jacques Maritain, autor de «Art et Scolastique», exerceu sobre Sardinha, que foi — sem esquecer, é claro, H. Raposo, espírito sensível à Beleza estética — quem, dentre os Integralistas, melhor se ocupou da problemática artística. Seguindo Maritain, Sardinha acredita que só pela contemplação (entendida como fecunda deleitação espiritual) se pode atingir a verdadeira Arte — aquela que é nutrida pela essência do Catolicismo—, bem distinta da enganadora «religião da beleza», culto estético fabricado pelo Classicismo grego-romano e reproduzido pela Renascença dum modo artificial:
«Porque tipificada, na sua ascendência e nas suas derivantes, a religião da Beleza, começando como um pecado das pupilas, em relação às artes propriamente plásticas, acaba como a demissão da personalidade na selva escuríssima do Não-Ser. Produto fatalíssimo do individualismo, inaugurado com as utopias anti-humanas dos humanistas, corôa, por uma total decapitação das grandes aspirações da existência (sexualizadas agora até ao extremo de se pedir à comoção artística um aumento ou um sucedâneo das baixas comoções do instinto), a demência quinhentista do uomo único (. ..) O divórcio entre a sensibilidade e a fé, denunciado por Paul Claudel como uma das taras piores que recebemos da Renascença, conduziu-nos, por supostos caminhos de veludos e rosas, ao vácuo imenso dos «paraísos-artificiais», que, sendo o templo em que mais dignamente se celebra a «Religião da beleza», são muitas vezes a ante-câmara, ou do suicídio, ou da loucura» .
A «paranóia romântica», dirá Sardinha, sugestionada pela «teoria invertida de Jean-Jacques Rousseau» contribuiu para acentuar a tonalidade trágica dessa «religião». Portanto, contra ela ergueu-se a exacta noção de Arte, a autêntica «vocação do artista». O verdadeiro artista, bem diverso de Nero, apercebe-se, dentro do correcto sentido da sua missão, de que é um ser limitado, e nunca um «ser excepcional», de que é apenas um «operário que opera»:
«Eis porque, longe de se reputar, pelo dom que o habita, um emancipado dos preceitos ordinários da existência, antes a eles se deve submeter com a mais heróica e fecunda conformação. Do artista que compõe ao artista que executa, — do arquitecto ao pedreiro, do escritor ao salariado das nossas oficinas, prostituídas pela invasão da Máquina, que, em lugar de reabilitar o operário, o escravisou e rebaixou ainda mais, não se julgue que a diferença é intransponível! Todos eles «criam», e assim, porque dominam a matéria e a afeiçoam aos ditames da sua razão, todos continuam a obra de Deus, que é uma criação incessante» .
Quanto ao regionalismo, deverá dizer-se que este foi um dos principais baluartes do Integralismo Lusitano. A sua «filosofia» foi lapidarmente expressa por Bordeaux, quando escreveu: ele é «a aptidão dos lugares para conformar as almas». Neste sentido, convém associá-lo sempre ao nacionalismo, para que se obtenha a criatividade e a carga emocional, indispensáveis a uma Arte genuína e popular. Arte produzida sem a interferência de modelos estrangeiros. Um artista minhoto, por exemplo, ao criar a sua obra deve apenas desenvolver, dentro duma certa fIexibilidade estética, a Arte secular da sua região, porque nela reside todo um conjunto de valores, de qualidades e de forças, fortemente individualizado e enriquecedor, que terá de evoluir sem ser invertido ou desvirtuado. As tapeçarias, os bordados, as gravuras, os cestos, as filigranas, o folclore, os autos populares, etc., encerram e projectam uma alma colectiva que sabe criar na continuidade, que vive o presente aberta ao futuro, mas sem romper com o passado, que expressa, enfim, pela variedade a funda unidade que a essencializa. Mediante o regionalismo, os Integralistas aproximam-se duma concepção existencial da Arte.
A «história integral» e a «crítica nacionalista» convergem naturalmente para o plano político, e, em menor grau, para o pedagógico. O primeiro é, de facto, dominante no discurso integralista, mas não o abafa, como pretendem sugerir alguns autores — velhos seareiros e modernos analistas. Os homens do «Pelicano» aperceberam-se da necessidade, referida atrás por Thomas MoInar, de assentarem as suas ideias numa «metafísica» válida e adequada, que representa um importante esforço de sistematização doutrinal.
2.1 A Filosofia da Nação
O Integralismo Lusitano emergiu dentro de um «triângulo ideológico», comum a correntes filosóficas associados com o republicanismo, como foi o caso do Criacionismo de Leonardo Coimbra : o positivismo, o evolucionismo e a recusa da «envolvente fogueira materialista». Apesar de preso ao legado contra-revolucionário de Comte, assimilou o tomismo, desdenhando de Bergson, numa primeira fase, e lendo-o atentamente numa segunda.
Na primeira, insere-se o curioso ensaio de António Sardinha, «O «Filósofo» Leonardo», onde este é considerado «Reminiscência bastarda do «bergsonismo»» e «consciência do desregramento democrático em que vivemos dum extremo ao outro das duas trincheiras que dividem Portugal de alto a baixo, irreconciliavelmente» . Referindo-se a Bergson, Sardinha escreveu, sem desviar os olhos de L. Coimbra, o seguinte:
« “Filosofia da mobilidade” chamou Benda aos belos exercícios de argúcia literária de Henri Bergson. Remotamente influenciado pelas leituras de «L'évolution créatrice» do interessante filósofo francês (convém não esquecer a costela hebraica de Bergson!), o senhor Leonardo Coimbra, pela sua facilidade do verbo com letra minúscula, num país eivado da mais baixa superstição retórica, ganhou depressa as culminâncias da praça pública por essa espécie de novo «alexandrinismo», que na sua obscuridade e falta de senso lógico encontra o principal motivo do seu rápido triunfo. A Bergson ainda se deve, com o incomparável recorte dum temperamento nada vulgar, uma análise feliz e sensata do racionalismo naturalista do século passado. Mas ao senhor Leonardo Coimbra? Evidentemente que a pergunta fica sem resposta».
E Sardinha prossegue, no único texto por nós conhecido em que se lhe refere expressamente, reduzindo Leonardo Coimbra a imagens disformes — «verbalista medíocre», «caso de pura patologia» e «intérprete da aguda crise espiritual»— e mostrando ignorar a posição crítica de Leonardo face a Bergson.
Na segunda fase, sobressai João AmeaI, que, numa análise mais objectiva e substancial do que a do seu Mestre, começa por apontar ao bergsonismo algumas fraquezas imperdoáveis:
«1.° — a negação da verdade certa e estável; 2.° — a negação dos princípios básicos de identidade e contradição; 3. °— a negação da causalidade; 4. °—um monismo, que suprime a multiplicidade real dos indivíduos e das coisas; 5.°—o desconhecimento do primado da Razão sobre o instinto; etc., e de nada servem as simpáticas tentativas dos seus discípulos, especialmente de Jacques Chevalier, para o colocarem ao serviço do Catolicismo. Basta escrever-se, expondo Bergson, que a verdade é uma coisa que nunca se acaba de encontrar para se ter vincado, sem querer, o divórcio irremediável da sua filosofia e da Igreja. Tanto assim que a Igreja condenou, em 1914, l'Evolution créatrice... »
AmeaI escreveu isto em 1929. E em 1932, num artigo intitulado «Bergson e o Sindicalismo Revolucionário», AmeaI acaba por reabilitar politicamente Bergson aos olhos dos Integralistas. Apesar de reconhecer que muitos dos postulados do autor da «Évolution Créatrice» servem «maravilliosamente a lógica delirante do sindicalismo revolucionário» de Eduard Berth, G. Sorel e outros, tece rasgados elogios, em longa nota, à obra «Les deus sources de Ia morale et de la religion», dizendo::
«(...) O notável pensador oferece-nos, agora, uma crítica muito mais completa e violenta da utopia democrática. (...) Impossível dizer melhor. A democracia individualista é a negação da ordem natural—é anti-natural por essência. Bem haja Henri Bergson por ter vindo reforçar, com a sua autoridade, esta sentença da sociologia verdadeira! (...) Dentro da filosofia de Bergson, restam ainda muitas confusões, muitas perigosas sementes de ilusão e de revolta. No entanto, cremos que a publicação de «Les deux sources de la morale et de religion» veio reduzir as afinidades que existiam entre o bergsonismo e a Revolução Social».
Concluiremos este ponto, salientando que o Integralismo Lusitano entrincheirou-se num comtismo «escolasticizado», onde as verdades reveladas substituem a busca dialética do Irracional. Num sentido contra-revolucionário, o «Pelicano» acolheu-se sob o manto da Escolástica:
«No neo-tomismo, ou seja, na filosofia tradicional da Igreja, está a solução. (...) Enriquecido hoje pelas valiosas contribuições das sciências psicológicas e das sciências naturais, O néo-tomismo encontrou em Louvain, e graças ao influxo do Cardeal Mercier, um poderoso centro de irradiação. (...) Expurgada dos excessos naturalistas, a Escolástica não é senão, como perennis philosophia, a teoria clássica do conhecimento. Usando simultaneamente da análise e da síntese, desenvolve a primeira quanto lhe é possível, enquanto agrupa imediatamente dentro da outra todos os elementos isolados. O seu idealismo objectivo, partindo do domínio pleno do espírito para a plena posse da realidade. Ao contrário do idealismo subjectivo dos contemporâneos, que, descendendo em linha directa do kantismo, não só arruína a autoridade da razão, como nos lança numa floresta densa de erros, onde é necessário filiar a origem de toda a anarquia moderna» .
O dilema Ciência-Religião suscitou, também, a atenção do «Pelicano». Para os Integralistas, o dilema resolve-se dum modo bem mais simples e não coincidente com o anterior. Segundo eles, a Ciência não pode ter a pretensão de abarcar toda a realidade, porque há aspectos profundos e elementares que lhe escapam por completo, como é o caso do mundo moral, onde a Religião actua como «senhora das vastas expressões da consciência» — assim a definiu Sardinha. Entre elas é possível uma fecunda complementaridade, dentro dum respeito mútuo e duma motivação comum para o diálogo, único meio válido de se conhecerem melhor.
A Tradição, ponto polémico que constituiu a trave mestra do pensamento integralista, merece, igualmente aqui, particular destaque. Para o «Pelicano» a Tradição constitui a admirável síntese do tempo, da morte na vida, do indivíduo na Nação (realidade orgânica e essencial), e, neste sentido, a base dum pensamento oposto ao radicalismo revolucionário, destrutivo e individualista. Segue Bonald e Maistre, defensores da Tradição católica, e inspira-se na sociocracia de Comte, onde se encontra o intuito profundo de fundir Ordem com Progresso. No entanto, ambos convergem num ponto: o carácter dinâmico da Tradição, expressamente defendido por Pequito Rebelo.
Por último, e, no que respeita à Moral, os Integralistas viram-na como herança duma secular conduta dos homens desenvolvida à luz de valores sagrados e perenes.
2.2. A Educação Tradicional
A posição pedagógica dos Integralistas.
Estes não desceram até ao pormenor das reformas sectoriais e dos programas específicos, ficando-se pelo debate dos princípios básicos dum adequado sistema educativo, que reflectisse os grandes objectivos da sua campanha doutrinária. Esse debate não fez perder muito tempo, sendo, por isso, possível resumi-lo facilmente.
As reformas de Pombal e a teoria de J. J. Rousseau sobre a bondade natural dos homens, inquinada pela sociedade, tiveram no «Pelicano» um acérrimo opositor. Sardinha — sempre ele! — condenou as medidas educativas do Marquês (em especial a expulsão dos Jesuítas), classificando-as como produto inevitável da «influência nefasta dos Enciclopedistas» e reflexo nítido da concepção pombalina do «Estado-Pessoa». Quanto a Jean-Jacques, o «S. João das hostes do Pelicano» — imagem empregue por João Medina — foi ainda mais frontal, responsabilizando-o pela degenerescência moral e filosófica em que a civilização europeia caíra. Fora ele quem instilara nesta o individualismo nefasto do «Contrato-sociaI», não lhe cabendo, porém, mais do que — como salienta L. de Almeida Braga em «Sob o Pendão ReaI» (1942) — aperfeiçoar e rematar os malefícios espalhados por Descartes. O Contrato Social completou o Discurso do Método». E Almeida Braga não poupou Descartes — o «Robinson do pensamento» segundo Barbey d'Aurevilly— apodando o seu «Cogito, ergo sum» (vertido por L. Coimbra em «Penso, logo existe o pensamento») de «fórmula satânica».
A crítica ao Classicismo esteve, também, sempre presente no espírito e no discurso dos Integralistas. Em «Ao Ritmo da Ampulheta», Sardinha exprimiu-a bem, acrescentando-lhe um sentido construtivo:
«Mas se a Renascença, e com ela o ideal greco-romano, precisa de ser contada como um factor da marcha natural da nossa história, nem por isso nós condenamos a educação clássica nos domínios da pedagogia. No definhamento do gosto literário e na quebra assustadora das faculdades lógicas, — características universais da barbaria contemporânea, eu não sei mesmo de outro recurso que se haja de opor com eficácia à animalização crescente das novas gerações, em quem esmorece o enlevo das boas leituras e onde alastra, como uma nódoa deprimente, a mais vergonhosa das inabilidades no exercício da própria língua. Em Portugal hoje não se sabe redigir! Médicos terminam os seus cursos, terminam os seus cursos engenheiros. E sempre que careçam de praticar a expressão escrita, tanto em relatórios profissionais, como em trabalhos de maior fôlego, é doloroso reconhecer que claudicam indecorosamente na ignorância das mais sóbrias e mais elementares regras do estilo. A ressurreição das humanidades no ensino secundário impõe-se, como mais necessária que o semi-cientificismo a que se sujeita o cérebro dos rapazes, roubando-os nesse período tão decisivo da vida à aprendizagem fundamental do pensar claro e do sentir claro» .
E inflectindo para a polémica, lembrou que
«no decurso dos debates suscitados pelos dois livros em referência, se provou, primeiro, que a Sorbonne se tornara um dos baluartes do germanismo moderno, enquanto a Alemanha se cura, pela aplicação larga das humanidades dos vícios estruturais da sua inteligência. Provando-se em seguida que educação clássica e educação democrática são termos absolutamente antagónicos e irreconciliáveis».
Poderão, talvez, estas palavras parecer estranhas e até mesmo surpreendentes, no entanto elas revelam apenas uma nítida coerência, um firme respeito pela «tradição religiosa» — pois não foram os Jesuítas grandes cultores do ensino das «humanidades»? Nem tudo, portanto, era mau no Classicismo! Mas, o bom não podia durar muito, encarregando-se Pombal da sua morte:
«Com a expulsão dos Jesuítas no tempo de Pombal começou verdadeiramente a crise moral e intelectual da nacionalidade. Os Padres do Oratório, paladinos dos métodos cartesianos, sustavam ainda a decaída inevitável, que se consumou ruidosamente em 34, depois de extintas as Ordens Religiosas. A Primeira geração romântica, dotada duma personalidade que não é lícito recusar-Ilhe, é, por isso, filha da pedagogia tradicional. Afrouxa-se o ensino das Humanidades e com a retórica invasora do constitucionalismo, o que consegue atenuar a quebra das nossas faculdades lógicas são os estudos experimentais das sciências de observação, que, por seu turno, não tardariam a agravar a enfermidade, criando, principalmente nos médicos, a superstição materialista, de que Bombarda foi o exemplo rematado. Voltou, é certo, o ensino congreganista. Voltaram em relativa liberdade os Jesuítas. Mas esses mesmos transigindo com o preconceito do século, relegaram as Humanidades para um plano inferior, dispensando a sua actividade às investigações naturalistas de que a Broteria registou a documentação honrosissima» .
Sardinha condena, pois, a subalternização das «humanidades» e disfere golpes violentos no «carácter e cultura» da sociedade ultra-romântica, apoiando-se em Eça de Queirós e demais «insurrectos das Conferências do Casino».
Sem se pronunciarem sobre os moldes em que as «humanidades» deveriam voltar a ser ensinadas, sem proporem uma «didáctica» capaz de anular as críticas justas dirigidas contra a inflexibilidade, a dureza (recurso sistemático ao castigo...) e o puritanismo excessivo da educação tradicional, Sardinha e seus companheiros insistiram, quanto puderam, no carácter moralizante do ensino. Formar almas, moldar temperamentos, fornecer à Nação uma elite virtuosa, temente a Deus e disciplinada, eis, em síntese, os objectivos da genérica pedagogia integralista.
Atente-se, pois, nos seguintes pontos:
1º — A pedagogia integralista revela uma forte tendência moralizante;
2º — A integralista, pretende, ao serviço da Escolástica, restaurar as ricas qualidades da língua e a limpidez da razão, opondo-se, também, ao «cientificismo» de feição empirista;
3.º— Os Integralistas foram aprofundando a sua religiosidade, inserindo-a sempre no âmbito da Igreja Católica, Apostólica e Romana, «Mestra do Homem» e
4.°- A pedagogia integralista visou atacar, mediante uma educação correcta, a preocupante crise de identidade que então se vivia.
Posto isto, passamos ao último item.
2.3. A Contra-Revolução
A doutrina integralista era inimiga da Democracia, da Liberdade e da Igualdade, enquanto abstracções perniciosas que separam os indivíduos do contexto social e secular, que profundamente os caracteriza. Portanto,
«é a esse que nós necessitamos de regressar, se, mais que tudo, a duração e a grandeza da Pátria nos preocupam. A Idade-Média, carecendo de reparar a sociedade, sacrificou por vezes a unidade à liberdade. Mais opressivos e menos profundos, os tempos modernos sacrificaram a liberdade à unidade. É imperioso obter o devido consórcio de duas tendências tão antagónicas. «A Autoridade e competência ao alto, Liberdade e fiscalização à base, — declarava Maurice Muret, na Gazette de Lusanne, resumindo as suas observações sobre a Guerra. O homem que souber corrigir neste sentido as democracias contemporâneas, — a Bélgica incIuida — terá bem merecido da Europa e do Mundo». Não será um homem, — asseveramo-lo. Será antes um sistema, um principio. Será a Monarquia, porque só ela concilia a unidade com a liberdade, a concentração com a descentralização».
Monarquia, que os integralistas adornaram com os atributos de «(orgânica», «tradicionalista» e «anti-parlamentar», empregues em 1914, na caracterização do «programa», publicado no n.º 1 da «Nação Portuguesa». «Programa» dividido em duas partes. Na primeira, designada por «tendencia centralisadora» (nacionalismo), afirma-se o poder pessoal do Rei (Chefe do Estado) nas suas três funções específicas, que são a governativa e suprema (exercida por ministros «livremente escolhidos, especialisados tecnicamente», que eram perante ele responsáveis, e por conselheiros técnicos «também especialisados»), a «coordenadora, fiscalizadora, e supletoria das autarchias, regionaes, profissionaes e espirituaes» e, por último, as funções executivas (dentre elas sobressai a «defesa diplomática », importante ofício régio). Na segunda, designada por «tendencia descentralisadora », definem-se os aspectos económicos Corporação, Graus corporativos superiores e Nação Económica), «familiar administrativo» (Família , Paróquia, Município, Província e Nação Administrativa), judicial (Julgado municipal, Tribunal provincial, Supremo Tribunal de Justiça e Conselho Superior de Magistratura) e espiritual (Arte, Ciência, Religião e Nação Espiritual)..
O binómio autoridade-liberdade, sugerido atrás por Maurice Muret, mereceu, também, de Leonardo Coimbra uma curiosa análise. Em «Liberdade e Autoridade», artigo publicado na «Águia» (1925), ele confrontou a tese da «Autoridade de facto», inserida no realismo sociológico dos Integralistas, com a da «Autoridade— acôrdo de liberdades», feita pelo «esforço das liberdades» e por «actos anteriores de inteligência», concluindo assim:
«(...) Trazendo o para a visão sociológica, teremos as perspectivas dos empíricos, as perspectivas em relevo dos teóricos de Autoridade-Facto e o relêvo quadrimensional da Autoridade-Justiça, acôrdo das liberdades ou inteligências. E à guisa de aplicação, saibam ser democratas e não temam a fixidez autoritarista do momento, que ela resulta duma visão que é incompleta e errónea, até na simplicidade elementaríssíma dos fenómenos mecânicos» .
No que concerne à concepção do Integralismo Lusitano sobre o Trabalho, vem a propósito referir que há uma diferença qualitativa entre o contributo dado pelos Integralistas da primeira fase (1914-1926), e o dos da segunda (1926-1938). Àqueles (destacamos, sobretudo, António Sardinha, Luís de Almeida Braga e J. Pequito Rebelo) foram os responsáveis pelo modelo corporativo inserto na noção soreliana de «Monarquia Operária», noção radicada no princípio de que é possível superar o conflito, entre o proletariado e o patronato, através duma unificação orgânica dos interesses de ambos:
«(..) Estabelecida a incapacidade orgânica dos sistemas democráticos para resolver a questão social pela sua condição simultaneamente plutocrática e parlamentarista, ao proletariado só resta a Revolução ou o Rei. George Valois, ao colocar o dilema, examina-lhe os termos detidamente. Daí a hipótese da Monarchie-ouvriere, que nos meios operários mais esclarecidos vai alargando o seu prestigio e a sua influencia. Discipulo de Sorel, Edouard Berth aplaude-a e aceita-a como o único processo eficaz de restringir o Estado ao mínimo da sua acção, sem levantar os horrores duma crise universal, em que certamente a civilização e a sociedade se subverteriam».
Herdeiros desse modelo, num contexto marcado em breve pelo aparecimento do «Estado Novo», os Integralistas da «nova geração» cindiram-se em dois grupos: de um lado, ficaram os que, como Manuel Múrias (director da «Nação Portuguesa» de 1926 em diante), João Ameal, etc., decidiram afastar-se das influências do «sindicalismo revolucionário» de Berth e Sorel, confiando no êxito da assimilação salazarista do corporativismo; e do outro, encontramos os «camisas azuis» de Rolão Preto (44), que, fascinados com os exemplos vindos da Itália e da Alemanha, se propunham levar a Revolução Nacional de 26 muito mais longe e dentro do estilo aguerrido dos velhos Integralistas.
*
Este ensaio, que assim se conclui, para além das múltiplas questões levantadas, encerra uma hipótese para pesquisas posteriores: o antagonismo que opõe, no caso português, a Revolução à Contra-Revolução resulta da busca e/ou (re)criação dum modelo radical e utópico do Homem luso, nas suas principais dimensões — político-social, psicológica e mítica.
3. Adriano Xavier Cordeiro
Por José Aníbal Marinho Gomes
Ao Armando Malheiro da Silva, amigo de longa data há pouco reencontrado, batalhador do bom combate, em prol do Portugal Restaurado.
«…Com uma saudade tanto mais viva quanto mais recuados vão sendo esses tempos de calma doçura, recordo as longuíssimas tardes de verão passadas no espaçoso eirado da casa, tendo em baixo a frescura da horta e do pomar, onde a agua cantava, pianíssimo, a canção creadôra das regas, e ao longe o recorte sombrio da serra, onde pastôres contemplativos interrompiam, pela hora extática das Ave-Marias, o canto elegíaco das flautas, para abrirem sobre o peito, recolhidamente, o sinal redentôr da Cruz». - Adriano Xavier Cordeiro, in “Palavras sobre a Arte do Povo’’
Vamos hoje aqui falar sobre a grande figura limiana que foi Adriano Xavier Cordeiro, personalidade de imenso talento e sensibilidade, que aos 39 anos de idade deixou prematuramente o mundo dos vivos, tendo a sua morte causado grande consternação e dor no meio político, sobretudo junto dos seus pares do Integralismo Lusitano.
O homem
Adriano Xavier Cordeiro nasceu a 9 de Janeiro de 1880, no Largo da Alegria (Além-da-Ponte), freguesia de Arcozelo, concelho de Ponte de Lima, filho do Dr. António Xavier de Sousa Cordeiro, Delegado do Procurador Régio na comarca de Ponte de Lima, e de D. Claudina Elisa Garcia Cordeiro.
Devido à profissão do pai, que era magistrado, estudou nos liceus de Lisboa, Faro, Santarém e após conclusão do ensino liceal, matriculou-se, com 17 anos, na Universidade de Coimbra, onde concluiu o curso de Direito em 1903.
Em 1914, pela mão de Hipólito Raposo, junta-se ao grupo dos fundadores do Integralismo Lusitano do qual faziam também parte, para além daquele grande amigo de Adriano Xavier Cordeiro, António Sardinha, Alberto Monsaraz, Luís de Almeida Braga, Simeão Pinto de Mesquita, João Mendes da Costa Amaral, Pequito Rebelo e Francisco Rolão Preto.
Foi Luís de Almeida Braga quem primeiramente usou a expressão "Integralismo Lusitano" na revista Alma Portuguesa, editada na Bélgica em 1913, por um grupo de exilados monárquicos, designando um projecto de regeneração de Portugal.
Este movimento de ideias defendia um conjunto de princípios políticos e sociais destinados a restituir a Nação Portuguesa aos seus quadros tradicionais, tendo em vista as condições da época (1).
Para António Sardinha(2) «O Integralismo Lusitano, sendo um movimento nacionalista, não é apenas um movimento político. É também, e principalmente, um movimento de renovação intelectual, com o fito de levantamento da Pátria».
Segundo Francisco Sousa Tavares (3) «Mais do que um corpo de doutrina, mais do que um breviário de constituição política, mais do que um programa, mais até do que um simples ideário monárquico, o Integralismo Lusitano é uma autêntica forma de viver e de pensar, uma norma moral, uma lição definitiva de síntese sobre o pensamento e a acção, uma alta escola de pensar contra o preconceito, o lugar comum da época e do meio, uma clara vitória do pensamento contra a ideia-feita, do difícil contra o não pensar, contra a norma escolar e a cultura oficial ou oficializada. Sem o Integralismo não será possível compreender a história das ideias e dos factos no Portugal do nosso tempo».
Os integralistas advogavam o tradicionalismo mas não o conservadorismo e eram contra o parlamentarismo, favorecendo, em vez disso, a descentralização de poder, o municipalismo, o nacional-sindicalismo, a Igreja católica e a monarquia tradicional ou orgânica: defendiam que a sociedade devia partir da reconstituição da Família — agrupamento fundamental e primário — passando da Família ao Município e à Corporação — que é o Sindicato — formando as Províncias, saindo deste conjunto, a Nação, que era servida nos seus fins supremos pelo papel coordenador e integrador do Estado e, como vértice desta hierarquia política e social, estava o Rei(4).
De acordo com o Manifesto assinado em Lisboa, a 10 de Junho de 2002, actualmente o Integralismo Lusitano é: «1. Uma concepção geral do mundo e da vida (uma filosofia) coincidente com que se pode chamar Humanismo Cristão (visão do Homem na sua totalidade, como pessoa e comunidade de pessoas livres, chamado a uma perfeição que, embora relativa, é imortal, mediante o processo hierárquico que o faz subir da esfera económica à política e desta à religiosa). 2. Uma visão geral da Política como realidade e idealidade do Homem na sua multiplicidade (homem social; homem comunitário; homem no mundo, responsável pela criação), enquanto propriamente humano, ou seja, considerado na sua essência mesma, teoricamente desligado quer da esfera económica, quer da religiosa; embora capaz de subordinar a Economia e de se abrir à Religião. Nessa visão do Homem, sobressai o ser histórico, como Tradição. 3. Uma visão geral do Povo Português como nação concretamente vinculada a um território mas capaz de se cumprir em qualquer parte da Terra, segundo uma intenção universalista vivida como serviço à humanidade em geral. 4. A defesa de uma constituição natural e histórica da Nação Portuguesa, fundamentada na dignidade da pessoa humana e na subordinação do indivíduo à comunidade, num sistema de instituições organicamente encabeçadas pela Instituição Real»(5).
Com a entrada de Xavier Cordeiro o grupo integralista ficou constituído por oito pessoas cujos nomes figuram no primeiro número da “Nação Portuguesa — Revista de filosofia Política, órgão do Integralismo Lusitano”, que saiu a público em Coimbra, no dia 8 de Abril de 1914 e onde constava o seu programa sob o título “O Que Nós Queremos”. Neste manifesto escrevia-se:
As indicações que seguem não pretendem ser um programa, triste vocábulo já agora desacreditado pela falência dos velhos e dos novos partidos. Nelas vão apenas incluídos determinados pontos de doutrina e anunciadas algumas realizações práticas. Por uns e outros elementos, a nossa tendência se revela e francamente se define a nossa atitude (…) Quando à nossa causa tiver concorrido o esforço de todas as competências que neste país estão connosco, será então oportuno tornar conhecido o plano completo e sistemático de acção e estudo que constituirá toda a razão de ser de uma orientação política nacional que já agora podemos denominar Integralismo Lusitano.
A) Tendência Concentradora (Nacionalismo) Poder pessoal do Rei: Chefe de Estado.
1 - Função governativa suprema: por ministros livremente escolhidos, especializados tecnicamente, responsáveis perante o Rei; por conselhos técnicos também especializados (parte dos membros de nomeação régia, parte representando os vários corpos, com função consultiva).
2 - Função coordenadora, fiscalizadora e supletória das autarquias locais, regionais, profissionais e espirituais; nomeação dos governadores das Províncias e outros fiscais régios da descentralização.
3 - Funções executivas, fazendo parte da função governativa suprema, que no entanto cumpre sublinhar como sendo a forma de acção mais característica e importante do ofício régio: defesa diplomática; defesa militar; gestão financeira geral; chefia do poder judicial; função moderadora.
B) Tendência Descentralizadora:
1 - Aspecto Económico: Empresa: regime e garantia da propriedade, vinculação (homestead), cadastro, subenfiteuse, sesmarias, propriedade colectiva, legislação social da empresa, etc. Corporação: sindicatos operários, patronais e mistos, sua personalidade jurídica, fiscalização da empresa, fomento dos interesses comuns, arbitragem, etc. Graus corporativos superiores: sistematização profissional, colégios técnicos, câmaras de trabalho, etc. Nação Económica: Política económica do governo central (Rei, ministros, conselhos técnicos), função supletória de fomento (proteccionismo, tratados de comércio) - função de fiscalização e coordenação dos vários graus da hierarquia económica.
2 - Aspecto familiar administrativo: Família: Unidade (pátrio poder); Continuidade (indissolubilidade conjugal; vinculação, luta contra o absentismo; vinculação propriamente dita: morgadio, homestead). Paróquia: representação de um conjunto de famílias pelos seus chefes. Município: representação de um conjunto mais amplo de famílias pelos seus chefes e de quaisquer outros organismos sociais de importância. Província: câmara por delegação municipal, sindical, escolar e com a assistência do governador da província, função governativa especializada na aristocracia (com carácter rural e regional). Nação Administrativa: Órgão - a Assembleia Nacional, assistida do conselho técnico geral (permanente ou de convocação temporária). Representação - delegações provinciais, municipais, escolares, corporativas; delegação eclesiástica, militar, judicial, etc. Função - consulta sobre a aplicabilidade, na prática, das leis que os ministros e os respectivos conselhos técnicos elaboraram (aprovação de impostos, orçamento, etc.).
3 - Aspecto judicial: Essencialmente organizado sobre estas bases: Julgado municipal (tribunal singular). Tribunal provincial (colectivo). Supremo Tribunal de Justiça (colectivo). Conselho Superior da Magistratura.
4 - Aspecto espiritual: Arte: Desenvolvimento artístico, subsídios pelo município, província e governo central, restituição às províncias das obras de arte que lhes pertencem. Indústrias artísticas locais. Museus regionais e defesa do património artístico da província. Museus nacionais e defesa do património artístico da nação.
Ciência: Desenvolvimento da instrução e prestação de subsídios e auxílio material pelo município, província e governo central, a par da autonomia de alguns órgãos de instrução. Instrução primária no município. Instrução secundária na província. Universidade autónoma (Coimbra). Escolas e Universidades livres. Escolas industriais, regionais. Religião: Liberdade e privilégios da religião tradicional Católica, Apostólica, Romana. Protecção a esta religião e prestação de auxílio material em regime concordatário. Liberdade de congregação. Liberdade de ensino. ─ Nação espiritual: a alta representação destas três formas do aspecto espiritual nos conselhos de El-Rei e na Assembleia Nacional.
O Integralismo Lusitano aparece para rebater a campanha de federação ibérica, defendendo o direito de Portugal a ser uma nação independente do país vizinho.
Alguns republicanos portugueses defendiam uma União Ibérica, estando profundamente ligado a esta ideia iberista Sebastião de Magalhães Lima, Grão-Mestre da Maçonaria, que preconiza para Portugal o regime republicano, após o que se seguiria uma Federação entre a Espanha e Portugal depois de também proclamada a república no país vizinho. Magalhães Lima refere que o partido republicano não podia ser senão federalista, uma vez que tinha sido esta a tradição legada pelos chefes republicanos (6).
Também José Félix Henriques Nogueira, fundador das doutrinas republicanas em Portugal, defendia a ideia de uma federação política com a Espanha. Igualmente António de Oliveira Marreca, Sousa Brandão, Latino Coelho, Gomes da Silva, Eduardo de Abreu, Borges Grainha, José Domingos dos Santos — Chefe de um dos Governos da 1.ª república —, Augusto César, M. Samardã, e tantos outros pugnavam pela união Ibérica. O próprio Teófilo Braga chegou mesmo a desenvolver um plano concreto para o estabelecimento de uma Federação Ibérica, na qual Espanha devia converter-se em república, dividir-se em territórios autónomos e incluir Portugal na dita federação, preconizando a capital para Lisboa. Importa ainda referir o primeiro Presidente da República eleito, Manuel de Arriaga, também ele, um defensor dos Estados Unidos da Ibéria. E até os jornais de tendência republicana defendiam calorosamente esta ideia, designadamente “O Dia”, “O Transmontano”, “O Nove de Julho”, “O Futuro”, “O Povo do Norte”, e tantos outros…
Em 24 de Janeiro de 1893 realizou-se no Teatro Ayala em Badajoz um Congresso iberista, com representantes dos Partidos Republicanos de Portugal e da Espanha, no qual se glorifica e defende o Federalismo para a Península Ibérica. Teve como representantes portugueses três deputados - Eduardo Abreu, Jacinto Nunes, M Teixeira de Queiróz — e o Conselheiro Municipal, Teixeira Bastos. Contou também com representantes dos seguintes jornais republicanos: Cecílio de Sousa, director da “Folha do Povo”; Gomes da Silva, director de “O Dia”; Feio Terenas, director de “A Batalha”; Alves Correia, director de “A Vanguarda”, Magalhães Lima, director de “O Século”; Cunha e Costa, director de “A Voz Pública”, do Porto; Martins Lima, director de “A Ideia Nova”, de Barcelos; Azevedo Ramos, director de “A Lucta”, da Madeira, etc.
Por curiosidade diga-se que a bandeira Ibérica entretanto escolhida era verde-rubra e, coincidência ou não, foram as cores adoptadas para a bandeira nacional, após a implantação da república.
Refere Mário Saraiva(7) «Se o federalismo, no ponto de vista espanhol, era o nacionalismo e engrandecimento de Espanha, para os portugueses era a traição à Pátria, porque significava a perda da independência nacional».
Para responder à “Questão Ibérica”, promover a campanha nacionalista e divulgar os ideais que defendiam e o que deveria ser a futura monarquia portuguesa, o grupo integralista programou uma série de conferências a realizar na Liga Naval em Lisboa, que se iniciaram em Abril de 1915, mas que não se concluíram em virtude do golpe de estado de Afonso Costa, tendo aquela instituição sido assaltada no dia seguinte, a 15 de Maio, através de uma acção violenta de grupos armados, que gritavam “Viva a República” e “Viva a Liberdade”, vandalizando móveis e o seu espólio, para além do roubo de valores.
O programa das conferências dividia-se em oito temas, ficando a cargo de Xavier Cordeiro “Direito e Instituições”(8) e posteriormente, sob o título de “A Questão Ibérica”, reuniram-se num volume os textos de todos os intervenientes.
Em Novembro de 1917, o jornal “A Monarquia”, que apareceu em 12 de Fevereiro de 1917, anunciava uma nova série de conferências, a terem também lugar na Liga Naval, sob o tema Províncias de Portugal, onde se incluíam matérias como A Terra, Etnografia, Economia, História e Estética, ficando a cargo de Xavier Cordeiro a Província da Estremadura(9).
Para além de ter sido professor, director da Escola Nacional e advogado, Xavier Cordeiro foi nomeado, em 1907, e após ter obtido a melhor classificação no respectivo concurso público, oficial da Direcção Geral da Instrução Pública. Apesar de ter sido um dos mais brilhantes e competentes funcionários públicos, pelo facto de ser monárquico, foi diversas vezes preterido e, quando morreu, ocupava o mesmo lugar e tinha a mesma categoria em que tinha sido admitido, doze anos antes.
Durante a 1.ª República Xavier Cordeiro foi ainda Senador pelo Algarve (1918) e integrou as Comissões de Verificação de Poderes, Assuntos Culturais e Legislação Operária. Era um «elegante orador, uma figura distinta que se impunha pela sua correcção despretensiosa e fina» e «teria sido um dos melhores prosadores do seu tempo, se a necessidade de ganhar o pão dos seus o não tivesse absorvido quasi inteiramente para os seus deveres profissionais»(10). Numa sessão de homenagem ao Brasil e ao Senador Dr. Rui Barbosa, Xavier Cordeiro manifestou-se solidário com as moções apresentadas afirmando:
«(…) a política de aproximação entre Portugal e o Brasil não é nova: vem de longa data.
O Brasil foi sempre para Portugal, no tempo dos últimos reis da última dinastia, considerado como um prolongamento da terra portuguesa. Não é já hoje necessário apresentar argumentos demonstrativos deste facto, porque está feita essa demonstração científica. D. João VI, indo para o Brasil por ocasião da invasão francesa, não fugiu; D. João VI, vendo que era inevitável a entrada das tropas francesas em Lisboa, quis habitar em território português para que assim não lhe fosse arrebatada a coroa. Foi para uma província longínqua de Portugal, para aquela onde poderia continuar no exercício do seu reinado.
Devo lembrar ainda a política de colonização de D. João III, tão caluniada, como devo recordar outros factores que ainda há das nossas relações com o Brasil. É fazer justiça recordar as missões no Brasil dos missionários da Companhia de Jesus (Apoiados), e é necessário dizer que nos últimos tempos el-rei D. Carlos tinha projectado a sua ida ao Brasil. (Apoiados). E V. Exas. devem lembrar-se do entusiasmo produzido por essa proposta, sendo inútil relembrar os resultados que produziria essa viagem, pela política de aproximação e pelos resultados políticos e económicos que dela brotariam. Não quis o destino que essa aproximação se realizasse. No entanto, essa vontade do rei-mártir ficou bem lembrada. Em nome do princípio que represento nesta Câmara, associo-me de alma e coração à proposta do Sr. Zeferino Falcão e ainda à do Sr. Queiroz Veloso e à do Sr. Júlio Dantas. Quis apenas emitir o meu voto e não esclarecer a Câmara, que esclarecida está ela.»(11)
Entre 1905 e 1917 Xavier Cordeiro dirigiu o “Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro” e colaborou no jornal “A Monarquia” (1917-1919) e na revista “Nação Portuguesa” (1914-1918).
Sobre Xavier Cordeiro dizia Hipólito Raposo(12): «Pela convivência diária que tinha comigo, Adriano Xavier Cordeiro, facilmente ganhou conhecimento e interesse decisivo pela nossa doutrina. Ele era um contra-revolucionário de instinto e educação e encontrou nos nossos enunciados a fórmula que o seu espírito procurava. Apenas a possuiu, colocou-se ao nosso lado, desde a primeira hora até à sua morte, em 1919».
Também Jacinto Ferreira(13), refere que Xavier Cordeiro «… não obstante não ser do grupo inicial dos fundadores, foi elevado a presidente do Integralismo. Era um contra-revolucionário de instinto e de educação e encontrou no enunciado do Integralismo Lusitano a fórmula que o seu culto espírito insistentemente procurava. Jurista distinto, de apurada inteligência, filho de um juiz respeitado, era, por tudo isso, uma promessa de alto valor intelectual para o serviço da incipiente organização. Pela sua vasta cultura, pela nobreza de alma, a sua opinião era procurada e respeitada. Ocupou o cargo de Presidente da Junta Central do Integralismo Lusitano até 1919, ano em que, prematuramente, faleceu. (…) Deixou dois estudos valiosos, um sobre O Problema da Vinculação e outro sobre O Casal de Família e, por encargo do Dr. Alberto Osório de Castro, que era Ministro da Justiça do governo de Sidónio Pais, elaborou um projecto de “homestead” que depois veio a adoptar como estudo de iniciativa própria, quando os acontecimentos sobrevenientes, ligados à morte do Presidente, lhe tiraram a oportunidade».
António Sardinha(14) disse que Xavier Cordeiro era uma «dessas grandes almas que no momento cerrado da dúvida sabem crer, e crer intemeratamente. Foi o teórico lucidíssimo dessa maravilha de equilíbrio e de sobriedade que n’O Problema da Vinculação nos ofereceu».
Adriano Xavier Cordeiro faleceu prematuramente, na freguesia da Vitória, cidade do Porto, a 11 de Setembro de 1919, para onde tinha ido em busca de recuperação para o grave problema de saúde que o afligia.
No jornal “A Monarquia” de 12 e 13 de Setembro de 1919 escreveu o Dr. Hipólito Raposo dois artigos sobre a personalidade do Dr. Xavier Cordeiro. No último dos artigos redigiu o seguinte:
«Rezemos sobre o túmulo do nosso amigo e companheiro, mas trabalhemos, sob a bênção de Deus, para que a seara da esperança que amorosamente cultivamos, floresça na montanha maternal e na planície jocunda, em promessas de riqueza, de paz e de virtude que sejam no futuro a justificação, a glória e a recompensa do nosso querido morto!»
Para se avaliar adequadamente a craveira intelectual e os serviços prestados por Xavier Cordeiro a Portugal, será necessário reeditar todos os seus trabalhos, incluindo os artigos dispersos por jornais e revistas.
A obra
A obra de Adriano Xavier Cordeiro é, sobretudo, no campo do direito.
Este «eminente jurista para quem o direito não é um conjunto de fórmulas racionais e abstractas mas a força viva das relações entre os indivíduos, que acompanha a evolução da sociedade e a equilibra, sem nunca a deter ou aprisionar»(15) publicou os seguintes trabalhos:
a) em 1914
— “As Velhas Liberdades e a Nova Liberdade”(16) – no qual faz a apologia do poder real que era limitado pelos costumes, pela tradição, pelas liberdades contidas nos foros e regalias (que os Reis, no momento em que subiam ao trono, juravam respeitar), contra o sistema político em que o parlamento, considerando-se como a representação da vontade nacional e com plena soberania, se julga com autoridade legítima para em tudo intervir.
— ‘’Obrigações contratuais do Estado’’ - a respeito dos deveres do Estado para com a sociedade e os indivíduos.
b) em Outubro de 1915
— “A Desnacionalização do nosso Direito” (17) - contra a influência do direito estrangeiro, em especial do Code de Napoleon de 1804, acolhido pela revolução liberal no direito nacional;
c) em 1916
— “O Direito e as Instituições”(18) - sobre as várias instituições sociais em que os indivíduos interagem e as normas jurídicas que as moldam;
d) em 1917
— ‘’Palavras sobre a Arte do Povo’’(19), que foi uma conferência proferida na abertura da Exposição de Arte Regional, realizada no Palácio Franco dos Santos, no dia 17 de Março de 1917 e onde Xavier Cordeiro defende o regresso à terra escrevendo:
«…Como fervoroso nacionalista que sou verifico, com desvanecido prazer que começa emfim em Portugal a compreender-se o alto significado da arte regional criada pela emoção ingénua do nosso povo.
A arte popular não basta, é certo, para que um país possua uma Arte sua. Mas certo é também, que sem que exista e se compreenda a arte popular não pode país algum afirmar que tenha uma Arte nacional.
É necessário que arte popular coexista com a arte culta ou de élite.
Entre as duas dá-se uma relação semelhante à que existe entre a semente e a flor que dela nasce (…).
A Arte terá sempre uma alta missão moral e social a cumprir, qual é a de prender os povos à Terra em que nasceram, abrindo-lhes o coração e os olhos para o que de belo existe no torrão a que devem estar arreigados como uma arvore que não morre, porque tem as raízes nas sepulturas e a ramagem sempre a florir, no renôvo constante de novas vidas que vão surgir como incessantes primaveras…» (20)
— ‘’O Problema da Vinculação’’(21), que o autor leu no dia 7 de Fevereiro de 1917, na “Associação dos Advogados de Lisboa’’ e foi alvo de interessante discussão, sendo uma obra com um interesse particular para genealogistas e historiadores uma vez que trata da questão da vinculação da terra à família. N’ “O Problema da Vinculação” refere Xavier Cordeiro:
«As Nações só valem pela firmeza moral que as leva à consciência da dignidade colectiva e de uma finalidade comum. Fortalecer e moralizar a Família, é fortalecer e moralizar a Nação. Só as famílias fortes e duradoiras fazem fortes as nações. A Terra de Portugal é o sagrado património de avoenga da Família Portuguesa: - conservemo-lo inalienável, intangível e eterno, se quisermos que eterna seja também a nossa Pátria».
Este trabalho de Xavier Cordeiro, no qual estuda a génese e o desenvolvimento dos vínculos, confrontando as várias teses que os filiam, ora nos chamados bens de avoenga (dos avós) – defendida, por exemplo, por Oliveira Martins –, ora no direito feudal – segundo a opinião de Gama Barros,(22) destaca-se pelo rigor histórico e pela circunstância de o autor não se submeter ao direito saído da revolução liberal. Xavier Cordeiro, reconhecendo que as instituições não se decretam, nem se substituem mas adaptam-se e reformam-se empreende, em nome dum realismo social contra um subjectivismo jurídico, a reabilitação dos vínculos que a legislação liberalista aboliu e desacreditou, levando ao abandono da terra.
Não vamos aqui abordar a instituição vincular em termos jurídicos; no entanto importa referir, ainda que sumariamente o conceito de vínculo - por vínculo entende-se a doação, ou deixa de bens feita a certas pessoas, e aos seus descendentes, com a condição de serem usufruídos, debaixo de certos encargos e cláusulas, impostas pelo instituidor (23).
e) em 1918
— relatório ao Decreto nº 4 536 sobre Responsabilidade Civil nos sinistros causados pelos meios de Transporte Terrestres (24), onde Xavier Cordeiro registou:
«A opinião pública, justamente alarmada com a crescente frequência dos desastres pessoais causados pelos meios de transporte em circulação, de há muito reclama certas medidas que, facilitando a efectivação da responsabilidade civil resultante de tais desastres, simultaneamente concorram para que estes diminuam em número e gravidade.
Não faltam na nossa legislação preceitos de direito substantivo em que se consigne a obrigação de reparar civilmente aquela espécie de danos ou prejuízos; do que principalmente se carece é de disposições processuais que garantam a sua rápida e eficaz efectivação.
Nestas circunstâncias, o presente decreto não altera essencialmente o sistema do Código Civil, mantendo a teoria clássica da responsabilidade baseada no conceito de culpa, por ser a mais conforme com a nossa tradição jurídica; apenas inverte o encargo da prova, que fica pertencendo não à vítima, mas sim aos responsáveis pelo acidente, o que se de facto representa uma inovação neste capítulo especial da responsabilidade civil, não pode considerar-se matéria nova no nosso Código, onde se acham estabelecidas disposições idênticas para outros casos, tais como os previstos nos artigos 2377.°, 2379.°, 2374.º e 2395.°.
Pelo que diz respeito ao processo, procura satisfazer-se a aspiração geral, pelo estabelecimento de disposições que permitam, sem prejuízo das legítimas garantias da defesa, tornar-se efectiva, com rapidez e simplicidade, a responsabilidade civil de que o presente decreto se ocupa. Aproveita-se para tal fim, com ligeiras modificações, um processo já existente e sobre cuja interpretação se acha firmada a jurisprudência dos tribunais, o que é, sem dúvida, preferível à criação de novas formas de direito adjectivo e consequentes controvérsias interpretativas (25).
E assim, ao passo que se assegura às vítimas dos acidentes pessoais causados pelos meios de transporte a maneira fácil de obterem a justa reparação do prejuízo sofrido, por certo se alcançará também a consequente vantagem de reduzir em quantidade e gravidade os desastres devidos a imprevidência ou imperícia dos condutores de veículos».
f) em 1919
— ’’Casal de Família’’, projecto de decreto apresentado ao Senado em sessão de 8 de Janeiro(26) e que procurava obviar à fragmentação da propriedade rústica, estabelecendo que a base constitutiva de um património familiar era a perduração de bens fundiários, inalienáveis e indivisíveis.
A respeito deste assunto foi publicada em 1918, a seguinte portaria: «Sendo do maior interesse e utilidade a adaptação à nossa legislação patrimonial da família da instituição norte-americana do Homestead, o património impenhorável, o casal de família ou de lar, instituição verdadeiramente democrática e urgente para a fixação da família portuguesa à terra dos seus antepassados, e atendendo aos altos merecimentos e estudos do advogado bacharel Adriano Xavier Cordeiro: Manda o Governo da República Portuguesa encarregar aquele advogado de organizar um projecto de Homestead nacional que será apresentada a uma comissão formada pelo mesmo advogado e pelos bacharéis Augusto Carlos Cardoso Pinto Osório, juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça aposentado, que servirá de Presidente desta comissão, Eduardo Alfredo Braga de Oliveira, Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Alberto Cardoso de Meneses, Juiz do Supremo Tribunal Administrativo, Fernando Martins de Carvalho, advogado, Dr. Fernando Emídio da Silva, professor da Universidade de Lisboa, João Pinto Rodrigues dos Santos, advogado, Amâncio Alpoim, advogado, Afonso Ribeiro Barbosa, professor do liceu, o notário de Lisboa António Tavares de Carvalho, servindo êste de secretário …».
Esta Comissão, porém, não concluiu os seus trabalhos. E Xavier Cordeiro, tendo introduzido ligeiras modificações ao primitivo projecto, entendeu dever apresentá-lo a apreciação do Senado, como projecto de lei de sua iniciativa.
O Casal de Família, como figura jurídica, não tinha antecedentes no nosso Direito. E Xavier Cordeiro, alertando para o facto de «a propriedade tornada em objecto exclusivo de apropriação individual, desprendendo-se dos vínculos que a mantinham ligada à família como seu esteio, e numa ânsia crescente de alodialidade(27), divide-se, subdivide-se, transita de mão em mão, à mercê dos golpes da lei, da imprevidência dos donos ou dos apetites da usura»(28), explica que
«a maior e melhor parte da terra portuguesa vivia no regímen da indivisibilidade: a enfiteuse, a subenfiteuse, o vínculo, o domínio e posse das corporações de mão morta(29)impediam o seu fracionamento. Vêm, porém, as leis de 1860 e 1863 e extinguem os morgados; paralelamente as de desamortização atiram para a praça os domínios directos das corporações religiosas, facilitando, assim, a alodialidade e consequente divisibilidade das terras; o Código Civil limita a enfiteuse, proíbe a subenfiteuse e estabelece a partilha igual do património; e por fim as leis fiscais colectam as tornas entre herdeiros por efeito de partilha.
As consequências destas medidas legislativas não se fizeram esperar.
Nas regiões em que a pequena e média propriedade predominam e onde a natureza agrológica do solo permite as culturas intensivas em mais reduzidos tratos de terreno, as partilhas entre herdeiros começam a fazer-se à custa do parcelamento e fragmentação das glebas patrimoniais em pequenos lotes, que vão progressivamente minguando, à medida que se vão sucedendo as gerações. (…) Esta pavorosa fragmentação da propriedade vai-se agravando, dia a dia (…) e as populações rurais, ante esta propriedade quase inútil, vão-se deixando seduzir pela miragem da emigração (…)
No Sul do País, sobretudo na província do Alentejo, onde a natureza do solo não permite a pequena lavoura hortícola em que parasitam as populações do Norte, mas apenas as grandes culturas extensivas, diversas e até opostas são as consequências do regímen sucessório estabelecido na lei civil (…) Se nos campos úmidos e viçosos do Minho êsse parcelamento diminui consideravelmente o valor da propriedade, por completo o inutilizaria na sequiosa planície alentejana. E, assim, não podendo fazer-se à custa do parcelamento da terra as partilhas iguais entre herdeiros, vêem-se estes, muitas vezes, forçados a vender, para, entre si, repartiram o preço. Destas vendas forçadas aproveitam, em regra, os grandes proprietários dos latifúndios próximos que assim vão aumentando os seus domínios. E as famílias dos pequenos lavradores, desarreigadas da gleba, desinteressadas da terra que lhes não pertence, procuram na cidade ou na emigração, refúgio para o seu mal.
Nestas condições de instabilidade económica, não há família que possa perdurar (…)».(30)
e, como forma de combater a) a fragmentação da terra, por um lado e a concentração latifundiária, por outro; b) a despovoação do Portugal agrícola porque « enquanto exportamos para terras estrangeiras as nossas melhores e mais produtivas energias, e a cidade se congestiona e perturba pela afluência constante de elementos muitas vezes inadaptáveis às industrias citadinas os nossos campos vão sendo abandonados…»; c) o absentismo dado que «os proprietários de mais abastadas condição desinteressam-se, em grande número, da terra, preferindo entrega-la a feitores e a rendeiros e vir consumir os rendimentos nos prazeres convidativos da cidade », preferindo ao grangeio da terra « as especulações febris da bôlsa, e perante as tentações da fácil riqueza mobiliária, a terra estiola-se, abandonada pelos seus próprios donos »; d) « uma desconforme centralização administrativa » da qual « resulta que, êste país, que pelas tendências étnicas dos seus naturais, pelo clima, pela natureza do solo e por uma remota tradição histórica, devia ser essencialmente agrícola, tem ainda absolutamente inculta uma grande parte do seu território continental »; e) a situação de instabilidade na medida em que « a onde de deserdados que constantemente rola dos campos para a cidade, constitui, para a vida social, um gravame e uma permanente ameaça de perturbação», sendo que a cada tumulto « mais funda se cava a barreira que divide o trabalho do capital e da propriedade », não havendo « nada que mais eficazmente reduza o adversário do que fazê-lo participar dos direitos, das vantagens ou dos privilégios contra que se insurge », propõe « a adaptação do regímen patrimonial antigo » num projecto que, embora orientado por « princípios análogos aos que inspiram as legislações estrangeiras » (31) se norteia «apenas pelo estudo das nossas condições sociais, pela história do nosso direito próprio e ainda pelos trabalhos já elaborados em Portugal». (32)
Mas alerta para o seguinte: «Não basta, manifestamente, criar o casal de família, para que de seguida se resolva a crise económica e moral de que vem enfermando a Pátria Portuguesa. Muitas outras medidas de fomento e de saneamento moral se impõem inadiàvelmente. Entre elas, lembrarei uma que a própria instituição a que êste projecto diz respeito torna especialmente necessária, como seu complemento. Refiro-me à protecção que o Estado deve continuar a dar às instituições de crédito agrícola, que permitam ao lavrador libertar-se da usura desenfreada que alastra pelas províncias, para obter em condições razoáveis o dinheiro de que carecer para agricultar as suas terras».
O projecto de decreto apresentado por Xavier Cordeiro permitia a qualquer chefe de família instituir “um casal de família” (art.º 1º), o qual pode compreender “ou somente a casa em que o respectivo titular e sua família habitarem, ou essa casa e ainda, separada ou cumulativamente, as dependências necessárias para o exercício de qualquer ofício mecânico exercido e explorado directamente por qualquer dos membros da família, em benefício desta; uma ou mais glebas, anexas ou vizinhas, agricultadas sob a administração familiar directa (art.º 2º), sendo considerados “chefes de família, os cidadãos portugueses de um ou de outro sexo, no pleno exercício dos seus direitos civis, que sejam casados, ou que, embora o não sejam, tenham a seu cargo a sustentação de um ou mais descentes, irmãos ou descendentes destes” (art.º 4º). O casal de família era “inalienável voluntária ou coercivamente, não sendo, por isso, também susceptível de penhora ou arresto”, sendo esta isenção extensiva “aos frutos e produtos dos prédios rústicos abrangidos no casal de família”; “às máquinas, gados, ferramentas e instrumentos destinados à cultura das terras”; “aos utensílios e ferramentas indispensáveis ao exercício de ofício mecânico, em que qualquer dos membros da família se ocupe” (art.º 20º). A insusceptibilidade de penhora ou arresto do casal de família cessava “quanto a dívidas provenientes de contribuições relativas aos imóveis compreendidos no casal de família, correspondentes aos últimos dois anos; quanto às dívidas de capitais mutuados para cultivo de terras, por quaisquer instituições de crédito agrícola, devidamente autorizadas; quanto às dívidas de foros relativos a quaisquer prazos abrangidos no casal” (art.º 21º). A instituição do casal deveria “ser requerida ao juiz de direito da comarca em cuja área os bens forem situados” (art.º 27º), mediante petição em que se mencionava “o seu nome, estado, idade, profissão e residência; o nome, estado, idade e profissão das pessoas de família que viverem em sua casa e companhia, e em favor dos quais é instituído o casal, salvo no caso de ser em benefício de cônjuge, filhos ou outros descendentes” em que bastava a declaração, “sem necessidade de os individualizar”; com a “especificação minuciosa dos bens que constituirão o casal de família” e a indicação do “valor descriminado atribuído a esses bens” (art.º 28º). Após análise do pedido e dos documentos, o juiz ordenava que a instituição do casal de família fosse “anunciada por editais afixados durante trinta dias, um na porta do tribunal e outro na da igreja matriz da freguesia” (art.os 31º e 32º). E aquele que se quisesse opor à instituição do casal de família deveria “deduzir a sua oposição em requerimento, indicando resumidamente, a natureza do seu direito e oferecendo a prova documental ou testemunhal que tiver” (art.º 34º).
Um ano depois da morte de Xavier Cordeiro, publicavam-se, em 16 de Outubro de 1920, pelo Ministério da Agricultura, os decretos n.ºs 7.033 e 7.034, que criavam e regulamentavam o Casal de Família, e nos quais se aproveitava a melhor parte do seu trabalho, embora sem a justiça de uma referência ao primitivo projecto. Pelo Decreto n.º 18.551, de 3 de Julho de 1930 (Ministro da Justiça Lopes da Fonseca) foram revogados aqueles diplomas, restabelecendo-se, com pequenas alterações, a doutrina do projecto de Xavier Cordeiro a quem são rendidos os louvores que merece pelo seu estudo.
O Casal de Família, enquanto instituto jurídico, embora tivesse um cariz eminentemente de direito privado, acabou por obter consagração de norma do direito público uma vez que no art.º 13.º n.º 1.° da Constituição de 1933 se estabelece que “ Em ordem à defesa da família, pertence ao Estado e autarquias locais: favorecer a constituição de lares independentes e em condições de salubridade, e a instituição do casal de família”.
Contudo, apesar de ter tido vários anos de vida legal, a figura do Casal de Família não foi compreendida nem acolhidas as suas vantagens e permaneceu letra morta.
Notas:
- Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1921, dirigido por O. Xavier Cordeiro, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa 1920, pág. 9.
- Ferreira, A. Jacinto. Integralismo Lusitano, uma doutrina política de ideias novas. Edições Cultura Monárquica, Lisboa 1991, pág. 14.
- Tavares, Francisco de Sousa. “Uma tese sobre o «Integralismo Lusitano»” in Combate Desigual -Ensaios de Sociologia Portuguesa, Porto, 1960, pág.45-57.
- Ferreira, A. Jacinto. Op. cit. pág. 17.
- Manifesto assinado por Henrique Barrilaro Ruas, Teresa Maria Martins de Carvalho, Fernando da Costa Quintais, António Maria Oliveira Pinheiro Torres, Maria do Carmo de Almeida Braga, José Manuel Alves Quintas, Frei Francisco Martins de Carvalho, O. P., in http://www.angelfire.com/pq/unica/il_doc_integralismo_lusitano_hoje.htm >> ver>>
- Lima, Sebastião de Magalhães. La Fédération Ibérique, Imprimerie Gautherin, Paris 1892, pág. 175.
- Saraiva, Mário «A verdade e a Mentira, Algumas Notas em resposta a “O Integralismo e a República”», Biblioteca do Pensamento Político, Caderno 1, Lisboa 1971, pág. 26.
- Ferreira, A. Jacinto. Op. cit. pág. 54.
- Ferreira, A. Jacinto. Op. cit. pág. 55.
- Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Op. cit. pág. 13.
- Xavier Cordeiro, Diário das Sessões do Senado, 29 de Julho de 1918.
- Ascensão, Leão Ramos. Integralismo Lusitano, Porto, 1943, pág. 31.
- Ferreira, A. Jacinto. Op. cit. pág. 40, 41.
- Ferreira, A. Jacinto. Op. cit. pág. 41.
- Sardinha, António. Ao Ritmo da Ampulheta. Biblioteca do Pensamento Político, Lisboa 1978, 2.ª edição, pág. 38.
- in Revista “Nação Portuguesa”, 1 (3), 1914, pp. 86-91.
- in Revista “Nação Portuguesa”, 1 (9), Outubro de 1915, pp. 286-292.
- in A Questão Ibérica, Lisboa, Tip. do Annuario Comercial.
- Lisboa, Tip. do Annuario Comercial.
- Cordeiro, Xavier. Palavras Sobre a Arte do Povo, Lisboa, Tip. do Annuario Comercial, 1917, págs. 13 e 15.
- Cordeiro, Xavier. Lisboa, Tip. do Annuario Comercial.
- No reinado de D. Afonso II, em 1211 foi publicada a chamada Lei de avoenga a qual estabelece que se alguém quiser alienar os seus bens de avoenga (dos avôs), que estes sejam, preferencialmente, vendidos aos irmãos ou aos parentes mais chegados, de forma a proteger e manter o património familiar.
- A vinculação, como instituto regulador da transmissão da propriedade, esteve aberta tanto à nobreza como à burguesia, mesmo anteriormente à lei pombalina de 3 de Agosto de 1770, ao contrário do que por vezes se afirma.
- Publicado no Diário do Governo de 3 de Julho de 1918, 1.ª Série n.º 147, pág. 1061-62 e republicado no mesmo Diário no dia 11 de Julho de 1918.
- O sublinhado é nosso.
- Hipólito Raposo escreveu, na nota prévia à 2ª edição de “O problema da Vinculação e o Casal de Família”, pág. VII que aquela conferência e este projecto renovaram «a aspiração de reagir salutarmente contra a excessiva mobilização da Terra, em cujas transmissões o Estado foi absorvendo, pelo disfarçado confisco dos impostos, as parcas reservas da economia doméstica e lançando nos tentáculos da usura os pequenos proprietários rurais».
- Bens alodiais são os bens livres, aqueles sobre os quais não recaem direitos ou deveres senhoriais.
- Relatório do Projecto de Lei “Casal de Família” apresentado por Xavier Cordeiro ao Senado, em sessão de 8/1/1919.
- Enfiteuse – contrato pelo qual o proprietário de um prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe certa pensão; subenfiteuse – acto ou contrato pelo qual o enfiteuta, com autorização prévia do senhorio directo, passa a outrem o domínio útil do prédio enfitêutico; corporações de mão morta – caracterizavam-se por terem uma vida institucional, que indo para além da vida humana, se sucediam, de geração em geração, insusceptíveis de transferência a qualquer título. O grosso destas corporações foram as congregações religiosas, embora com o decorrer dos séculos surgisse uma ou outra corporação laica deste género, como a Universidade de Coimbra, A Casa do Infantado ou a Casa das Rainhas.
- Relatório do Projecto de Lei “Casal de Família”.
- Refere Xavier Cordeiro, in Relatório do Projecto de Lei “Casal de Família” «Nos Estados Unidos da América a instituição do Homestead, iniciada no Texas, foi-se sucessivamente estendendo a todos os Estados da União. A França cria o Bien de Famille Insaississable, a Suíça, o Asile de Famille, seguindo-se o exemplo do Brasil que, no seu recente Código Civil institui o Bem de Família, permite as substituições fidei-comissárias até ao 2º grau de parentesco (…) e consente o estabelecimento, em cláusula testamentária, de condições de inalienabilidade, temporária ou vitalícia, da legítima. Na Alemanha encontram-se estabelecidas (…) instituições similares. Semelhantemente se procede na Áustria, na Inglaterra, na Dinamarca e na Bélgica, tendo sido apresentados projectos com idêntico fim, na Itália, România, Suécia e Sérvia.
- Xavier Cordeiro alude a Oliveira Martins que propôs o casal contínuo e aos projectos de lei de Elvino de Brito e do Dr. Moreira Júnior que deram forma ao Casal de Família.
Bibliografia
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