O romance A Mulata (1896) foi, na perspectiva do Autor, um livro com “folhas cruéis” mas necessárias, escritas “em quinze dias de febre” para ser lidas por um rapaz de vinte anos.
CARLOS MALHEIRO DIAS foi um notável escritor e intelectual luso-brasileiro. Nascido no Porto, de mãe brasileira e pai português, teve, além de dupla nacionalidade, uma vida repartida pelas duas pátrias. Estreou-se no Brasil com o romance A Mulata, que gerou de imediato grande polémica, tornando-o conhecido no meio intelectual luso-brasileiro. Lendo o Prefácio, percebemos a reacção muito negativa nos meios intelectuais brasileiros, vivendo então na sombra de uma República recém-implantada, onde predominava o cientismo positivista, materialista. O protagonista masculino da obra, Edmundo, representava uma “perversa e mentecapta” geração, “sem uma grande temperança no coração”. Em 1896, a geração que andava perto dos vinte anos de idade era a da consolidação da República no Brasil.
Do Prefácio (excertos, com negritos acrescentados):
Pensai um pouco o que será da pátria entregue aos vossos braços de positivistas e de materiais, vendo a alma através uma definição de filosofia materialista, incapazes de um belo esforço, raça degenerada, desesperançada, carregando com um país virgem, que se entregou confiante como uma índia nua, embalada de amor e fantasia... O que será então do Brasil, abandonado a uma geração desequilibrada, com uma literatura perversa e mentecapta, sem artes, sem tradições, sem aspirações, sem uma grande ambição na vista, sem uma grande temperança no coração?
A fé, disse um grande médico da alma, é a coragem do espírito que se arroja para a frente, certo de encontrar a verdade. Essa fé, deixai falar o positivismo, não é a inimiga da razão, mas a sua luz, o seu archote...
...
Para ti, que eu sei bem amas uns olhos negros, verdes, garços, azuis, que importa? para ti que ainda não esqueceste as orações ensinadas por tua mãe e que aprendes agora a oração do amor, iniciando-te na religião do beijo e da caricia...
...
Repara bem, o momento supremo está batendo aos umbrais da tua pátria. A Inglaterra e a França julgaram-te mal, e tentaram já amordaçar-te. A república Argentina está em armas, os limites de teu território estão por marcar.... Há uma boca aberta em face ao Amazonas.... Prepara-te, que a fé seja sempre o teu estandarte quando se trate de redimir ou desafrontar ou defender a tua pátria.
...
De anos a esta parte, tu bem o tens visto, o positivismo e os sofismas dos céticos sustentaram do sul ao norte uma tempestade de guerras e de revoluções...
...
...possas tu um dia acabar com as razões que ditam, sugerem, inspiram, prescrevem, impõem livros d'estes...
...
Se entre vós não houvesse muitos «Edmundos», eu não teria por certo escrito estas folhas cruéis, mas até eu fui um deles, e lembrei-me de prevenir-te, se ainda é tempo, para que te desvies sem tardar de um caminho errado e abras os olhos a meio da tua cegueira, ó moço de vinte anos!
Carlos Malheiro Dias In Prefácio, A Mulata, 1896
CARLOS MALHEIRO DIAS foi um notável escritor e intelectual luso-brasileiro. Nascido no Porto, de mãe brasileira e pai português, teve, além de dupla nacionalidade, uma vida repartida pelas duas pátrias. Estreou-se no Brasil com o romance A Mulata, que gerou de imediato grande polémica, tornando-o conhecido no meio intelectual luso-brasileiro. Lendo o Prefácio, percebemos a reacção muito negativa nos meios intelectuais brasileiros, vivendo então na sombra de uma República recém-implantada, onde predominava o cientismo positivista, materialista. O protagonista masculino da obra, Edmundo, representava uma “perversa e mentecapta” geração, “sem uma grande temperança no coração”. Em 1896, a geração que andava perto dos vinte anos de idade era a da consolidação da República no Brasil.
Do Prefácio (excertos, com negritos acrescentados):
Pensai um pouco o que será da pátria entregue aos vossos braços de positivistas e de materiais, vendo a alma através uma definição de filosofia materialista, incapazes de um belo esforço, raça degenerada, desesperançada, carregando com um país virgem, que se entregou confiante como uma índia nua, embalada de amor e fantasia... O que será então do Brasil, abandonado a uma geração desequilibrada, com uma literatura perversa e mentecapta, sem artes, sem tradições, sem aspirações, sem uma grande ambição na vista, sem uma grande temperança no coração?
A fé, disse um grande médico da alma, é a coragem do espírito que se arroja para a frente, certo de encontrar a verdade. Essa fé, deixai falar o positivismo, não é a inimiga da razão, mas a sua luz, o seu archote...
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Para ti, que eu sei bem amas uns olhos negros, verdes, garços, azuis, que importa? para ti que ainda não esqueceste as orações ensinadas por tua mãe e que aprendes agora a oração do amor, iniciando-te na religião do beijo e da caricia...
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Repara bem, o momento supremo está batendo aos umbrais da tua pátria. A Inglaterra e a França julgaram-te mal, e tentaram já amordaçar-te. A república Argentina está em armas, os limites de teu território estão por marcar.... Há uma boca aberta em face ao Amazonas.... Prepara-te, que a fé seja sempre o teu estandarte quando se trate de redimir ou desafrontar ou defender a tua pátria.
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De anos a esta parte, tu bem o tens visto, o positivismo e os sofismas dos céticos sustentaram do sul ao norte uma tempestade de guerras e de revoluções...
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...possas tu um dia acabar com as razões que ditam, sugerem, inspiram, prescrevem, impõem livros d'estes...
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Se entre vós não houvesse muitos «Edmundos», eu não teria por certo escrito estas folhas cruéis, mas até eu fui um deles, e lembrei-me de prevenir-te, se ainda é tempo, para que te desvies sem tardar de um caminho errado e abras os olhos a meio da tua cegueira, ó moço de vinte anos!
Carlos Malheiro Dias In Prefácio, A Mulata, 1896
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Eram os mendigos rondando com olhos famintos e apanhando na lama as laranjas podres, as folhas de verdura imprestáveis, esses restos comidos pelas lagartas e pelos ratos, esses frangalhos atirados fora, esses destroços que os pobres vinham apanhar de madrugada, para fazer o caldo, para enganar a fome aos filhos, para ter forças de gemer o dia inteiro, pedindo esmola…
Ah! Mundo abominável!…
Escreveu Alexandre Pinheiro Torres, confessando-se muito longe da ideologia de Malheiro Dias, no prefácio da edição portuguesa, em 1975:
"Monárquico aferroado, cujos amigos mais íntimos ou admiradores mais constantes advinham do regimento dos integralistas, a cujas capelas aliás jamais oficialmente pertenceu, fiel apaniguado de EI-Rei D. Carlos, com quem intimamente privou, figura literária eminentíssima da primeira década deste século, porventura a mais retumbante, embora hoje sem projecção nas Histórias várias que em Portugal se fazem da Literatura, cabe-me a mim a tarefa de o lembrar, ainda que me sinta mais longe ainda da sua ideologia do que António Sérgio na polémica que com ele travou em 1925, sem dúvida uma das mais significativas deste século. Mas eu seguiria o exemplo do próprio Malheiro Dias quando, às vésperas de se exilar para o Brasil (havia sido proclamada a República), rapava da pena para prefaciar nada menos que o primeiro livro do republicano militante, revolucionário e «bombista» que foi Aquilino Ribeiro (Jardim das Tormentas, 1913)."
Alexandre Pinheiro Torres diz que um "dos graves erros" de Malheiro Dias - sim, aponta-lhe outros erros - foi o de, em A Mulata, através da protagonista Honorina, ter apresentado "a raça negra"... a "degenerar os brancos pela miscegenação". Carlos Malheiro Dias nunca pertenceu na verdade ao Integralismo Lusitano e estava, nesse como noutros aspectos, muito mais próximo de Aquilino Ribeiro do que dos Integralistas:
"Não temos, pois, que nos surpreender agora que as principais figuras do livro, Edmundo e Honorina, sejam definidas, como já foi sugerido, a partir da própria convicção naturalista de que o sangue (o factor biológico, a hereditariedade, o temperamento) é um facto hiperdominante de uma fatalidade biográfica a que o indivíduo não pode escapar. E aqui comete Malheiro Dias outro dos seus graves erros: o de que a raça negra, por ter sido exploradíssima pela raça branca, se vingou desta pelo boomerang de um comércio sexual a que o europeu vindo de um continente puritanizado pelas convenções, e ávido de encontrar um escape para sua libido reprimida — a forçou a submeter-se. Ou seja: a raça negra já se havia degenerado pelo sofrimento; agora, ela própria degenera os brancos pela miscigenação. Diz-nos textualmente: «vingou-se assim dos brancos, dando-lhes, quando livre, um sangue terrivelmente mau, em que escorria ódio, cobardia e perversidade», texto aliás confessadamente tirado do pré-nazi Monin, que faria uma boa parelha com o denegrado Rosenberg. Malheiro Dias fere em excesso essa nota. No capítulo III, quando Edmundo lê o Othelo, e considerando que este é africano, afirma, como comentário sobre o espantoso quadro do feroz mouro perante Desdémona «estrangulada» (sic): «O sangue de África trazia daquilo; pareciam raças cruzadas com tigres e leões», argumentação que lhe serve para apresentar, pelo pior lado, a protagonista do livro, Honorina, a «mulata». Na verdade, ao trazê-la diante dos olhos do leitor (e não no-la revela de uma vez, mas por fases, calculadamente, deixando apenas para o fim do livro alguns dos seus aspectos positivos e a explanação do ambiente em que foi criada de acordo com o qual tinha de ser fatalmente uma mulher «má»), ao exibi-la a nossos olhos muito mais como uma espécie degradada do que privilegiada da escala zoológica, dir-nos-á (início do capítulo IV) que ela possuía «o sangue mau da raça negra», alargando-se em imagens e símiles relativos a Honorina pelos quais a «mulher fatal» do romance é equiparada, sucessivamente, aos mais variados animais e plantas bravias ou selvagens. O processo é um pouco semelhante ao que muito depois Graciliano Ramos utilizaria em Vidas Sêcas: o da utilização de uma linguagem metafórica pela qual nos dá (e aqui esplendidamente) a progressiva «animalização» do homem quando obrigado a viver num Nordeste hostil, como é o caso de Fabiano e família, isolados, na sua desesperada itinerância, perante uma natureza adversa, em convívio único com um papagaio, uma cadela, e outra bicharada, a qual, por um processo paralelo, se vai «humanizando». Mas o que é funcional e grandiosamente trágico em Graciliano, escritor de enorme estirpe, é, em Malheiro Dias, quase meramente doutrinal, quando não é herdado directamente da imagética com que a «mulher fatal» foi muitas vezes apresentada na literatura francesa."
Alexandre Pinheiro Torres in Prefácio a Carlos Malheiro Dias - A Mulata, Edição comemorativa do centenário do nascimento do autor, 1º edição em Portugal, de 1975.
"Monárquico aferroado, cujos amigos mais íntimos ou admiradores mais constantes advinham do regimento dos integralistas, a cujas capelas aliás jamais oficialmente pertenceu, fiel apaniguado de EI-Rei D. Carlos, com quem intimamente privou, figura literária eminentíssima da primeira década deste século, porventura a mais retumbante, embora hoje sem projecção nas Histórias várias que em Portugal se fazem da Literatura, cabe-me a mim a tarefa de o lembrar, ainda que me sinta mais longe ainda da sua ideologia do que António Sérgio na polémica que com ele travou em 1925, sem dúvida uma das mais significativas deste século. Mas eu seguiria o exemplo do próprio Malheiro Dias quando, às vésperas de se exilar para o Brasil (havia sido proclamada a República), rapava da pena para prefaciar nada menos que o primeiro livro do republicano militante, revolucionário e «bombista» que foi Aquilino Ribeiro (Jardim das Tormentas, 1913)."
Alexandre Pinheiro Torres diz que um "dos graves erros" de Malheiro Dias - sim, aponta-lhe outros erros - foi o de, em A Mulata, através da protagonista Honorina, ter apresentado "a raça negra"... a "degenerar os brancos pela miscegenação". Carlos Malheiro Dias nunca pertenceu na verdade ao Integralismo Lusitano e estava, nesse como noutros aspectos, muito mais próximo de Aquilino Ribeiro do que dos Integralistas:
"Não temos, pois, que nos surpreender agora que as principais figuras do livro, Edmundo e Honorina, sejam definidas, como já foi sugerido, a partir da própria convicção naturalista de que o sangue (o factor biológico, a hereditariedade, o temperamento) é um facto hiperdominante de uma fatalidade biográfica a que o indivíduo não pode escapar. E aqui comete Malheiro Dias outro dos seus graves erros: o de que a raça negra, por ter sido exploradíssima pela raça branca, se vingou desta pelo boomerang de um comércio sexual a que o europeu vindo de um continente puritanizado pelas convenções, e ávido de encontrar um escape para sua libido reprimida — a forçou a submeter-se. Ou seja: a raça negra já se havia degenerado pelo sofrimento; agora, ela própria degenera os brancos pela miscigenação. Diz-nos textualmente: «vingou-se assim dos brancos, dando-lhes, quando livre, um sangue terrivelmente mau, em que escorria ódio, cobardia e perversidade», texto aliás confessadamente tirado do pré-nazi Monin, que faria uma boa parelha com o denegrado Rosenberg. Malheiro Dias fere em excesso essa nota. No capítulo III, quando Edmundo lê o Othelo, e considerando que este é africano, afirma, como comentário sobre o espantoso quadro do feroz mouro perante Desdémona «estrangulada» (sic): «O sangue de África trazia daquilo; pareciam raças cruzadas com tigres e leões», argumentação que lhe serve para apresentar, pelo pior lado, a protagonista do livro, Honorina, a «mulata». Na verdade, ao trazê-la diante dos olhos do leitor (e não no-la revela de uma vez, mas por fases, calculadamente, deixando apenas para o fim do livro alguns dos seus aspectos positivos e a explanação do ambiente em que foi criada de acordo com o qual tinha de ser fatalmente uma mulher «má»), ao exibi-la a nossos olhos muito mais como uma espécie degradada do que privilegiada da escala zoológica, dir-nos-á (início do capítulo IV) que ela possuía «o sangue mau da raça negra», alargando-se em imagens e símiles relativos a Honorina pelos quais a «mulher fatal» do romance é equiparada, sucessivamente, aos mais variados animais e plantas bravias ou selvagens. O processo é um pouco semelhante ao que muito depois Graciliano Ramos utilizaria em Vidas Sêcas: o da utilização de uma linguagem metafórica pela qual nos dá (e aqui esplendidamente) a progressiva «animalização» do homem quando obrigado a viver num Nordeste hostil, como é o caso de Fabiano e família, isolados, na sua desesperada itinerância, perante uma natureza adversa, em convívio único com um papagaio, uma cadela, e outra bicharada, a qual, por um processo paralelo, se vai «humanizando». Mas o que é funcional e grandiosamente trágico em Graciliano, escritor de enorme estirpe, é, em Malheiro Dias, quase meramente doutrinal, quando não é herdado directamente da imagética com que a «mulher fatal» foi muitas vezes apresentada na literatura francesa."
Alexandre Pinheiro Torres in Prefácio a Carlos Malheiro Dias - A Mulata, Edição comemorativa do centenário do nascimento do autor, 1º edição em Portugal, de 1975.