Caridade de Pátria
Luís de Almeida Braga
Se bem entendo o propósito dos organizadores de este fascículo da POLÍTICA, pretendem eles ajuntar materiais para o estudo da personalidade excepcional de António Sardinha. Sendo assim, creio que o melhor modo de contribuir para o conhecimento íntimo do poderoso animador do nacionalismo português é ainda acordando a sua voz que o podemos achar.
Antes que o tempo espalhe e leve as folhas das suas cartas, impõe-se o trabalho de as coligir. Não faltarão a ele – penso - os devotados amigos que chamaram a si o encargo nobilíssimo de ordenar e publicar os escritos de quem tão apaixonadamente revelou a consciência intelectual da juventude do seu tempo. O epistolário de António Sardinha deve ser o fecho da obra em que a sua vida se consumiu. Aí se verá, talvez mais pura, a chama da fé que o trazia abrasado. Todos os sentimentos se confundiam, no seu coração, num só amor. As alegrias mais ternas, os afectos mais meigos, serviam-lhe sempre para justificar e exaltar a sua paixão nacionalista. Nas cartas que me escreveu - e guardo preciosamente porque nelas ficou a conversar comigo - essa forma de ser alcança perspectivas únicas.
António Sardinha não sabia separar a sua vida da vida da Nação. E se tão cedo se extinguiu, não é errado dizer que lhe rasgaram a carne as feridas da Pátria!
Esse sonho exaltado libra as asas e palpita nas cartas que vou abrir.
Em Maio de 1911 ainda Sardinha sacrificava aos ídolos da Revolução. Já por esse tempo se formavam na Galiza os núcleos que haviam de dar a primeira batalha à nova República. Ao fim de cada tarde anunciava-se a revolta libertadora para a manhã seguinte.
As férias da Páscoa tinham terminado, e como a prometida revolução se não desse, Sardinha escrevia-me de Monforte, num gracejo que não escondia o contentamento...
«... Resigno-me, pois, a voltar a Coimbra com a República Portuguesa, quando me estava anunciado só voltar com o reino de Portugal! Esperei, esperei, e se me descuido acontecia-me como aos sebastianistas! Eh, Luís! Em má hora te meteste a privações! Em má hora armaste em Bandarra! E caíste em ir para o exílio, contando voltares triunfante, com D. Paiva à frente, comandando a gloriosa milícia! Surriada, Luís, surriada!»
Meio ano depois (23 de Janeiro de 1912) já era outro o tom das suas palavras:
«Meu querido Luís: Tu tens sido o maior dos ingratos! Nem uma palavra te mereci ainda, nunca uma lembrança tua chegou até mim a assegurar-me que tu eras o mesmo de sempre, - o companheiro amorável, a criatura doce, que tanto valias à gente nas horas tristes duma vida vazíssima! O teu silencio eu fujo de interpretá-lo como uma falta de confiança; mas, pensando bem, desde que sei que tu só a mim me exceptuas, dos antigos camaradas, que a todos dizes de ti, que a todos contas a tua saudade, eu, francamente, não posso deixar de ver na atitude cerrada em que para mim te manténs um sinal de dúvida, quando não de excomunhão! Tens sido um ingrato, Luís! E se porventura pelo teu espírito te passa a ideia feia de que eu te reneguei, oh, meu amigo, prefiro antes que me cuides um suspeito do que um mísero judas! Não! A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim, - de todos os que se elevam nas asas dum sonho alto, insaciável. Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança. Como te repudiar?»
À vista de tantos estragos, a ilusão antiga entrava a esboroar-se. Adivinha-se, na melancolia desta carta, o conflito em que a alma de Sardinha se debate. Il est sans doute difficile de changer, au cours de sa vie, les doctrines qu'on a découvertes dans l’ atmosphère intellectuelle de sa jeunesse, notou algures Henri Massis. A atmosfera intelectual, em que o espírito de António Sardinha desabrochara, era agora batida por ventos contrários, e sob a tempestade, que se desencadeou, tudo se desmoronava em Portugal.
António Sardinha viu-se só, entre escombros. E na soledade ardente que o envolveu, as vozes da courela natal chegavam até ele, murmuravam-lhe ao ouvido inquieto o segredo da criação, e deixavam-no ficar suspenso, a rever o que tinha sido...
A vida negava o que ele aprendera. Palavras, definições, sistemas, como eram diferentes do uso que lhes dera! Submeteu então a duro exame tudo o que seduzira a sua imaginação juvenil. E conformando a sensibilidade ao ritmo das coisas eternas que o cercavam, um novo homem acordava em si.
Tocado do entusiasmo lírico, que outra vez o feria, escreveu-me:
«Queridíssimo Luís: Escrevo-te em vinte e quatro de Abril, em véspera do Senhor São Marcos, um dos quatro que disseram da vida de Jesus e padrinho dos bois e dos boieiros de toda a Cristandade. Amanhã, perto daqui, numa engalanada ermidinha, à hora da missa, por entre os fiéis, um novilho de dois anos entrará pela nave acima até ao altar-mor. «Entra, Marcos!» - Ihe gritarão os mordomos da festa, que com varinhas o irão tangendo, que o animal se poluiria se as mãos humanas o tocassem. «Entra, Marcos!» E junto aos degraus do tabernáculo, com as hastes enastradas de fitas e de ervas de cheiro, a rés, em vez de tombar sob o cutelo sagrado, em nome da verdade receberá a bênção da Igreja e nos cornos se lhe cantará o Evangelho do dia. «Entra, Marcos!» E o engelhado Topsius que habitava dentro de mim acaba de descobrir que essa festa, que o Cristianismo conservou e santificou, tem raízes milenárias, descende da festa do Touro que uma civilização pre-árica bronzífera, espalhou por toda a Europa. Mr. Homais rir-se-ia da ingénua solenidade e aproveitar-lhe-ia a origem para atacar a pobreza criadora do Cristianismo e a mentira das Religiões. Eu, como homem que estuda, solidifico com o facto a minha crença vendo nele um sinal claro dessa curva ascensional do homem primitivo para a Perfeição, que é Deus. «Entra, Marcos!» E hoje as ladainhas saem pelos campos - saíam - a rogar ao Céu pelo renovo primaveril, pela messe que se aformoseia, pelos frutos que despontam. Como Portugal estará lindo! - exclamava na tua carta a tua nostalgia. - Como Portugal está lindo e como ele te manda saudades, meu amigo! Floresce o rosmaninho, a planta que soalha as igrejas em Quinta-feira de Endoença e que, assistindo à cena do Calvário, perpetuou na sua austeríssima flor o sangue inocente do Cordeiro. Como Portugal está lindo! E quando eu olho o tapete das searas que ante os meus olhos se desenrolam por dez léguas infinitas, eu penso naquele romance de Melchior de Vogüe, - Les morts qui parlent. A verdadeira França, ai! não é a que se estorce e debate no Palácio Bourbon, - não é a que governa e se divide em programas políticos irrealizáveis e perturbadores, mas a que trabalha e canta sempre, - aquela que encolhe os ombros na ignorância do homo-publicus que aleiloa, aquela cuja seiva eterna dá filhos à Pátria e dinheiros à bolsa sôfrega do Estado. Lembras-te ?»
«Ah, meu amigo, como nesta hora má é bom sonhar, trazer por entre as coisas simples a alma excruciada. Abatidos os pendões que nos separaram e empurraram para um agonizar sem glória, - em nós, os que amamos e sentimos se recolhe e toma expressão e consciência a dignidade nacional. Conservemo-la, traduza-se em páginas que a vinculem, - eis o que cumpre fazer, querido amigo! Por isso a alma se levantou com as asas mais foitas na manhã abençoada em que a tua carta me contou de ti e dos teus projectos.»
E acrescentava algumas linhas abaixo:
«... Penso em conquistar prosa e vou aumentando a minha bagagem de Topsius. É que sinto em mim qualidades de historiador e é aí que melhor serviço poderei dispensar à nossa pobre terra.»
Não se enganou. Os erros de história emendados por António Sardinha são, talvez, a parte mais nova e mais útil dos livros que nos deixou.
Terminava essa carta por este modo:
«... Há mais de um ano que não nos vemos. Ias tu para as férias de Páscoa e eu fui à estação. Levavas o Rimbaud que tanto tempo namoraras. Lembro-me ou não?»
Também eu me lembro. O livro de Artur Rimbaud, a que Sardinha se refere, estivera por longo tempo no mostrador da livraria do França Amado, junto da ENQUÊTE SUR LA MONARCHIE de Charles Maurras. Passávamos horas a conversar ali. E recordo até que brincando com o republicanismo de Sardinha eu lhe mostrava o exemplo do companheiro dilecto de Jean Moréas, do discípulo amado de Anatole France, que levantava na mão firme a lança de Minerva contra o dragão da Democracia.
Eu andava por longe. Terminadas as correrias pelas veigas de Chaves, fui com vagar subindo até à meiga Flandres. Aí me chegou, datada de 30 de Dezembro de 1912, a seguinte carta, tão repassada de puro sentimento que não se lê de olhos enxutos:
«Meu querido expatriado: Já sabes naturalmente por outros aquilo que só por mim devias saber. Mas eu andei meses sem novas tuas e só aí por Setembro tornaram a aparecer postais, contando-me com a tua saudade a vibração amiga duma alma que tanto se identificou com a minha na arrancada dos mesmos sonhos, nos entusiasmos da mesma mocidade. Marcavam-me esses postais o roteiro da tua vida errante, não te podia eu alcançar com a notícia alvoroçada que o meu coração te guardava. Chegaram enfim letras anunciando-me o enraizamento. O quotidianismo da vida com os seus mil e um tropeços impediram-me então do cumprimento do gostoso dever. Abraço-te, pedindo-te desculpas, e deixa que eu sinta a tua alegria na alegria com que te digo que me casei. Casei-me no dia 28 de Agosto. Nosso Senhor teve um sorriso de pai para com o casalinho e um bispo nos deitou a sua bênção. Casei. E unindo-me a quem será ao longo da minha existência um motivo constante de inspiração e confiança, eu alevantei um hino de certeza no futuro, ganhei a imortalidade, acendendo o fogo dum lar. Dos amigos - dos raros - só o bom Hipólito me acompanhou. Aos outros, presentes na comoção com que os evocara, um vento mau os dispersara, levara-os para longe ao acaso a cegueira criminosa do nosso tempo. E ao entrar no ninho, que entretecera, eu alembrei-me de Vocês, ao Deus-dará sob céus estrangeiros, ouvindo aquelas falas que a gente não entende e que já o bom Froilão do Alfageme amaldiçoava por porem doença na alma e no corpo do desgraçado que as escutasse, empurrado para fora da vila natal. Eu alembrei-me de Vocês e apertei-os todos nos meus votos, envolvi-os na minha felicidade, ó companheiros amoráveis duma boa hora que não torna! Casei-me, Luís, - é verdade! Mas com que tristeza, ao entrar no meu lar, eu reparei que levava as mãos vazias, que os meus vinte e cinco anos não tinham como os vossos a grandeza duma abnegação, a auréola dum sacrifício. E admirei-vos, admirei-te! Vós sois no niilismo moral que nos abafa o fermento sagrado que há-de levedar uma Pátria. De cá vos saúdo, como te saudei no momento supremo em que deixava de ser um ponto, uma pausa, para me tornar o anel duma cadeia infinita. Corri depois o nosso Portugal e lá estive em Chaves rezando com minha mulher sobre a campa rasa dos Mártires. Bendito sangue, que foi uma sementeira de milagre! Recordas-te, Luís, de um dia me, dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal. Rapazes, saibam lá que em Portugal a crença monárquica prospera, saibam que se repudiamos a miséria partidária dos bandos antigos, muito mais repudiamos a oligarquia criminosa que nos escorcha!
A Monarquia que venha reinstalar a paz neste pobre país, que se reorganizem os fundamentos sociais por um acto de inteligência e força, senão pulverizar-nos-emos numa vergonhosa derrocada!
Conta-me, conta-me de ti, Amigo, diz-me se a minha esperança não me ilude...»
Não, a esperança não o iludiu. As gerações que vieram depois da nossa, connosco barraram o caminho à mentira democrática, e a inteligência portuguesa, livre de estranhas excrescências, afirma-se e confessa-se publicamente. António Sardinha entregou-se ao apostolado novo com fervor nunca visto. E ele, que sentia como ninguém os encantos da Tradição e dela tirava os mais belos motivos literários para os seus versos e os mais nobres estímulos para a sua acção política, anunciava-me assim o seu primeiro estudo nacionalista:
«Meu querido Luís: Escrevo-te em véspera de S. João, do S. João da água-santa, com a erva-serpentina cantando à meia-noite a trova suspirosa, e as lindas moiras encantadas estendendo ao caminheiro da borda das fontes os lavrados cântaros de prata. Escrevo-te em véspera de S. João, de alma toda embebida no mistério do solestício, desabrochando em rosas de fogo sob os pés chagados do grande filho de Isabel. Oiço como que crescer as raízes em estremecimentos sagrados. E a tradição da Raça passa-me, inteira, completa, diante das pupilas semicerradas para a penumbra doce! São as «alvoradas», é o sono de S. João, é o jogo das canas mai-lo o alferes da bandeira, pessoa de boa cristandade, com o gonfalão desdobrado por entre as raparigas, - é a «Senhora Câmara», de capa e varas nobres, reverenciando o Baptista glorioso. Ah, meu Amigo, como não hás-de tu ser lembrado pelo meu coração, - pobre despaisado, que mais do que nunca te sentes enraizado, na religiosidade calma deste momento, como nas espirais da evocação não aparecerá o teu vulto miudinho, com alguma coisa da tristeza divina de Anto, com muito de D. Gil Valadares, - tu que conheceste os perigos da guerra e aprendes agora o vário saber em vila alheia, falando falas alheias?! Eu lembro-te, meu Amigo, e deixa que de longe te deseje a paz e te ofereça os bolos de S. João aquele que a paz conhece e que em S. João acredita com a fidelidade dum católico que se esforça por sê-lo! O bem esteja contigo mais a graça de Deus Nosso Senhor! Vi rimas tuas, Irmão, na ALMA PORTUGUESA, que vem trazer uma nota viva de Esperança à minha Esperança sempre viva. Na hora em que escrevia da minha fé sobre os moços portugueses, nessa hora a boa mensageira me entra pela casa adentro numa aleluia consoladora. Não me enganara eu, - não! e ainda bem que o integralismo lusitanista adquire para a consciência da nossa geração o alto sentido criador que com ele mora e nele lateja em frémitos fortes de vida! Eu trabalho, - não num poema, meu Amigo, mas num farto livro viril, - A VERDADE PORTUGUESA, que é a sistematização do que se pode, em realidade, considerar como próprio e original, como progressivo e espontâneo, na nossa maneira de ser colectiva. É o misticismo da Raça que eu ali procuro corporizar, são os prejuízos inimigos da nossa história que ali se denunciam e desbaratam, é a revisão das possibilidades organizadoras do génio nacional, o minucioso exame de consciência da nossa época que já leva de vencida cosmopolitismos e teorizações sociais para se reconciliar de novo com essas duas grandes verdades que são o Catolicismo e a Monarquia. Tu verás depois e contigo verão os bons camaradas que tão distantes e com espírito tão alevantado se agrupam em torno do guião lusitanista, como lábaro dum amanhã melhor. A pálida tendência estética do TRONCO REVERDECIDO desdobra-se naquelas páginas quentes em amplos motivos de disciplina e ressurgimento. E o que me anima mais é que um ambiente se dispõe, favorável, único. O neo-romantismo que se desprende das almas em ebulição, sedentas de equilíbrio e certeza, tende a polarizar-se por todo o lado no sentido duma justa integração localista, a crise histórica que o nosso país atravessa reveste de exigências imperiosas o que noutras condições bem poderia ser apenas para a mocidade culta uma pacífica atitude psicológica. Hoje a Acção reclama-nos e, como outrora em tempos de misticismo militante, não é o convento que Deus nos aponta, querido Amigo, é a Obra social, - a redenção das massas descristianizadas, a metodização católica da necessidade sindicalista, a devolução à indissolubilidade familiar, - todo o vasto campo do resgate sacrossanto dos outros. Por isso, tu deves voltar, voltar um dia, que bem perto andará, com a linda bandeira exilada e com os pioneiros do mesmo sonho, servires a glória do Senhor, trabalhando pelo teu semelhante, ensinando-o a amar e a esperar...»
A ALMA PORTUGUESA, a que Sardinha alude nesta formosa carta, era uma revista de estudantes, onde alguns rapazes, exilados na Bélgica depois de terem experimentado as armas contra os soldados da República, ousadamente se propunham modificar a mentalidade fóssil da gente do seu país. Aí se abriu pela primeira vez o pendão do INTEGRALISMO LUSITANO e se proclamou a doutrina reparadora da Pátria em ruína. O neo-romantismo era o assunto finamente versado pelo melhor companheiro que lá tive: Domingos de Gusmão Araújo.
O livro que Sardinha preparava com o título A Verdade Portuguesa foi publicado depois com outro arranjo e a designação O VALOR DA RAÇA, e constituiu a dissertação para concurso à rubra Faculdade de Letras de Lisboa.
Em carta de 14 de Novembro de 1913, Sardinha precisa:
«Meu querido Luís: Perdoa-me! E por Santo António, que é meu padrinho, te prometo que não voltarei a cair em tão feio pecado, - em culpa mortal de silêncio. Arrisco-me a que duvides do afecto com que te quero e da presença vivíssima com que a tua lembrança me assiste sempre. Sou teu amigo, - tu és um dos meus Irmãos estremecidos. Desde os pavores na aula de mestre Serrasqueiro aos entusiasmos límpidos com que enfileirámos, - tu mais ousadamente do que eu, - na ala resgatadora, com pequenos desvios a nossa jornada de moços corre unida e confiada, ombro com ombro, coração com coração. Hoje que nos achamos detentores duma «verdade portuguesa», e que Deus nos unge para sermos na nossa terra, com outros que venham, um núcleo disciplinado e reparador, mais do que nunca um grande abraço nos liga, mais do que nunca os mais invencíveis laços nos soldam numa bela comunhão de destinos e aspirações. Podia eu lá esquecer-te, pois, meu bom, meu saudoso Amigo?!
(...)
«Escuso de te tornar a dizer que a ALMA PORTUGUESA encantou-me e comoveu-me. O título é que não gosto dele. É a ALMA PORTUGUESA do António Zé - é a ALMA PORTUGUESA, de quantos meninos se lembram por esses liceus de deitarem à rua um jornaleco. Mas a impressão desvanece-se ante o artigo de entrada. Há ali uma firmeza de intenções, uma unidade de desígnios que denuncia da vossa parte uma admirável coesão, - uma juventude forte e homogenizada, procurando um emprego elevado para as suas horas, sequiosas de sentido e de fruto. Eu deponho a minha fé inteira no belo movimento que começa a animar a gente da nossa idade. Os rapazes têm em toda a parte a situação e esse milagre de assombro, que é bem Deus falando pelas almas claras e generosas, esse milagre de assombro, que rasga já claridades nos destinos incertos da França e acende iluminismos estranhos na geração que lá cresce para a vida, e para a luta, também entre nós, - no nosso Portugal, traído e leiloado, começa a fecundar as vontades, a coordenar os impulsos que o charco enoja e ainda fortifica mais. Há hoje um grupo constituído, que há-de ser o portador da grande labareda. Ao instinto conservador da maioria dos moços portugueses é preciso dar-se-lhe uma filosofia, um corpo de doutrina que os oriente e encha de dignidade no agressivo da sua ofensiva. Vive-se ainda por cá dos Imortais Princípios e a Monarquia Constitucional, que caiu por assimilar as ideologias da Revolução e com elas derrancar o país, é imperioso acabá-la de matar, não deve, não pode voltar. Voltará e tem de voltar transfigurada na Monarquia orgânica, tradicional, mantendo o equilíbrio das classes, neutralizando as diversidades regionais numa vasta intenção descentralizadora, envolvendo-se de prestígio pelo respeito do espírito provincial, pela consagração das actividades particularistas. Assim deixará de ser uma concepção rígida, inerte, abafando em apriorismos mentirosos as diversidades etiológicas e glomorfológicas, para, apoiada nos Concelhos e nas Corporações, se identificar em tudo com o génio nacional, - com o poderoso intuitivismo gerador da nossa alma colectiva. E convence-te, meu Amigo, que enquanto a oposição monárquica viver da ária desbotada da Liberdade e da Carta, que, enquanto ela se não possuir duma profunda compreensão da nossa realidade nacional, nada conseguirá, nada fará. Porque se estes derrubaram os outros para se regalarem, aos ingénuos e descrentes parece que os outros o que querem é atirar com estes abaixo para se devolverem à festança antiga. Ora, a principiar pelo Rei, é necessário ensinar aos monárquicos o que é a Monarquia. Nós já temos um precedente nesse sentido. É a ignorada, é a desacreditada literatura miguelista. Reabilite-se e com a vulgarização do doutrinarismo da ACTION FRANÇAISE, completamente desconhecida entre nós, organize-se uma teoria contra-revolucionária que ensine a esta gente que a Democracia é uma forma social inferior, implica a negação de todo o conceito selectivo, que só a Realeza pode solucionar as insofismáveis e instantes questões da hora presente. Ao mesmo tempo, num minucioso exame de consciência, expurguemos da nossa história quantos juízos feitos, quantos subjectivismos deformadores lhe mutilam e interceptam o verdadeiro sentido ...»
Respondendo a esta carta, em que o pensamento contra-revolucionário de Sardinha aparece já perfeitamente construído, levantei as referências nela feitas à ACTION FRANÇAISE e, acentuando o fundo original do tradicionalismo português, prevenia Sardinha contra as influências da escola de Maurras. Logo Sardinha me tranquiliza (6-XII-1913):
«Aceito (beijo-te as mãos) com esse título que aventuras a tua ajuda valiosa e valorosa. Toda a chicotada é pouca e aqui o que se sofre é uma hipertrofia pasmosa de medo. Nada mais. Cinquenta anos de paz-podre puseram-nos nas veias cinza em lugar de sangue. É a isso que nós queremos acudir, insuflando à mocidade que arde em ímpetos de resgate um princípio fecundo de acção. A monarquia liberalista morreu. O que é preciso ressuscitar é a monarquia orgânica, tradicional. Nesse sentido, com um programa completo, redigido por mim e pelo Hipólito, aparecerá o núcleo de uma futura instauração nacional. O Integralismo Lusitano (como tu com tanta visão definiste) é o aspecto estético e filosófico do problema. O reconhecimento de todas as fontes criadoras de energia colectiva o fim a que nos inclinamos... As prevenções da tua carta sobre a Action française já existiam em mim. Nós pedimos-lhe um método, uma sistematização, não um corpo integral de doutrinas. E embora o agnosticismo esteja condenado, as doutrinas de Charles Maurras no seu lado político-social não se acham em expurgação. Ainda há pouco o P. Descoqs, jesuíta, publicou acerca delas um livro que te aconselho.
Eu agora tenho muito que fazer. Vou concorrer à Faculdade de Letras de Lisboa, para em público e raso defender as nossas teorias históricas. Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade. O enraizamento, que se afirma nas tradições concelhias descende duma humanidade primitiva que os arqueólogos acusam no sul da Europa, caracterizada entre as demais pelo seu apego ao torrão. Bem cedo enterrará os mortos, fixando-se, antes mesmo de praticar a agricultura. E daí, em comunidades primitivas, através das citânias do teu Minho (lá estive em Briteiros, aonde recolhi uma das emoções maiores da minha vida) até às beetrias do princípio da Monarquia, vivia ascendendo para uma definitiva criação na forma completa do município. Por outro lado, num terreno, exposto a incursões de povos guerreiros que escravizaram a raça autóctone, a Esperança nasceu como reacção fatal do vencido que, arreigado ao solo, se construiu miragens de desforra futura. Desde o altar que os celtas ergueram à «virgem que havia de parir», desde as profecias duma sibila Cantábrica anunciando aos seus oprimidos um salvador, o mito sebastianista vinha crescendo, através de várias aspirações recalcadas no nosso fundo ético, até ao remate extremo na hora do desastre final. Compreendes, que esta exposição é muito atabalhoada. Com os documentos que possuo, tu depois apreciarás a minha conclusão, que se resume na aliança estreita do messianismo à forma comunalista do concelho. Resulta daí que a Esperança, - e não a Saudade, - é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.
Também o folheto do Pascoais me indignou. Escrevi umas coisas que depois não publiquei por entender que não valia a pena. Os Águias estão desacreditados, já ninguém os leva a sério...»
Para os que têm acusado O INTEGRALISMO LUSITANO de ser apenas um rebento mais da ACTION FRANÇAISE, estas cartas, escritas quando coordenávamos os elementos doutrinários que iriam servir de base à nossa campanha nacionalista, não podem deixar de merecer um minuto, ao menos, de reflexão. Nelas ficou estampada a verdade com que, desde a primeira hora, repelimos a pecha de bastardia que para o nosso pensamento buscavam os que o queriam diminuir e manchar.
Animou-nos sempre o desejo de enraizar o nosso espírito em chão português. Outra amostra deste propósito se encontra na carta de 17 de Março de 1914:
«Meu queridíssimo Amigo: Vão dois meses corridos sobre a tua última carta e eu só agora ta agradeço! Não voltei a incorrer em pecado feio de preguiça, não! Foi pela maré de trabalho em que me vi envolto que eu tive de adiar com muito pesar meu o delicioso cumprimento dos meus deveres de amizade. E como te guardei sempre no pensamento, como no ardor da canseira eu te invocava a miúdo - o que dirá o Luís? - quando um resultado encorajante me aquecia o iluminismo de indagador; não sinto acanhamento ao aparecer junto de ti, porque no meu silencio fecundo, tu, bom camarada e melhor amigo, assististe sempre ao meu lado na troca entusiástica dos altos motivos de beleza e acção que nos dirigem a vida, na comunhão plenária dos mesmos sonhos, do mesmo espírito de cruzada reparadora. E hoje que regresso do escuro das idades, viajando como andei pelos domínios ásperos da antropologia, com a certeza vingadora que por lá adquiri de que não somos uma raça bastarda e que as qualidades éticas dum povo renascem e saem mais temperadas dos amolecimentos e sonambulismos colectivos, ao erguer como nunca o meu acto de fé nos destinos da nacionalidade, é a ti e sempre a ti, meu Amigo, que eu envio a aleluia mística em que todo eu me transbordo. A «Verdade Portuguesa» cada vez se consolida mais e cada vez mais na alma dos moços se define a sede de revivescência que nos trabalha as atormentadas vigílias. Não se perderá, meu Amigo, a semente que enlevadamente andamos apurando para a deitar à gleba dormente que no seu pousio inglório anseia por produzir!
Aos teus ouvidos, nessa Bélgica distante, devem ter chegado os sinais da matinada linda que se anuncia por toda a terra portuguesa. Sabes já que vai sair a revista em que te falei e que será o órgão no nosso movimento. O primeiro número em composição deve trazer um artigo meu, de escândalo – Teófilo, mestre da Contra-Revolução. É o juízo sintético da visão histórica da obra de Teófilo, rematando-se numa insofismável conclusão monárquica. Lá se faz o processo do constitucionalismo a quem podemos agradecer os piores males da Raça, - a República, inclusivamente – e oxalá que consiga ferir a atenção das pessoas cultas e bem intencionadas... A nossa tarefa é ampla, infinita, mas como a nossa mocidade se sente radiosa por se encontrar senhora dum fim, - na posse duma unidade que a engrandece e a devota apaixonadamente ao serviço da Pátria e o do Futuro!»
(...)
(Reproduzido a partir de Luís de Almeida Braga, Sob o Pendão Real, 1942; 1ª edição, na íntegra, em Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930 (politica_n010.pdf)
Se bem entendo o propósito dos organizadores de este fascículo da POLÍTICA, pretendem eles ajuntar materiais para o estudo da personalidade excepcional de António Sardinha. Sendo assim, creio que o melhor modo de contribuir para o conhecimento íntimo do poderoso animador do nacionalismo português é ainda acordando a sua voz que o podemos achar.
Antes que o tempo espalhe e leve as folhas das suas cartas, impõe-se o trabalho de as coligir. Não faltarão a ele – penso - os devotados amigos que chamaram a si o encargo nobilíssimo de ordenar e publicar os escritos de quem tão apaixonadamente revelou a consciência intelectual da juventude do seu tempo. O epistolário de António Sardinha deve ser o fecho da obra em que a sua vida se consumiu. Aí se verá, talvez mais pura, a chama da fé que o trazia abrasado. Todos os sentimentos se confundiam, no seu coração, num só amor. As alegrias mais ternas, os afectos mais meigos, serviam-lhe sempre para justificar e exaltar a sua paixão nacionalista. Nas cartas que me escreveu - e guardo preciosamente porque nelas ficou a conversar comigo - essa forma de ser alcança perspectivas únicas.
António Sardinha não sabia separar a sua vida da vida da Nação. E se tão cedo se extinguiu, não é errado dizer que lhe rasgaram a carne as feridas da Pátria!
Esse sonho exaltado libra as asas e palpita nas cartas que vou abrir.
Em Maio de 1911 ainda Sardinha sacrificava aos ídolos da Revolução. Já por esse tempo se formavam na Galiza os núcleos que haviam de dar a primeira batalha à nova República. Ao fim de cada tarde anunciava-se a revolta libertadora para a manhã seguinte.
As férias da Páscoa tinham terminado, e como a prometida revolução se não desse, Sardinha escrevia-me de Monforte, num gracejo que não escondia o contentamento...
«... Resigno-me, pois, a voltar a Coimbra com a República Portuguesa, quando me estava anunciado só voltar com o reino de Portugal! Esperei, esperei, e se me descuido acontecia-me como aos sebastianistas! Eh, Luís! Em má hora te meteste a privações! Em má hora armaste em Bandarra! E caíste em ir para o exílio, contando voltares triunfante, com D. Paiva à frente, comandando a gloriosa milícia! Surriada, Luís, surriada!»
Meio ano depois (23 de Janeiro de 1912) já era outro o tom das suas palavras:
«Meu querido Luís: Tu tens sido o maior dos ingratos! Nem uma palavra te mereci ainda, nunca uma lembrança tua chegou até mim a assegurar-me que tu eras o mesmo de sempre, - o companheiro amorável, a criatura doce, que tanto valias à gente nas horas tristes duma vida vazíssima! O teu silencio eu fujo de interpretá-lo como uma falta de confiança; mas, pensando bem, desde que sei que tu só a mim me exceptuas, dos antigos camaradas, que a todos dizes de ti, que a todos contas a tua saudade, eu, francamente, não posso deixar de ver na atitude cerrada em que para mim te manténs um sinal de dúvida, quando não de excomunhão! Tens sido um ingrato, Luís! E se porventura pelo teu espírito te passa a ideia feia de que eu te reneguei, oh, meu amigo, prefiro antes que me cuides um suspeito do que um mísero judas! Não! A minha alma depurou-se de certas excrescências indignas de mim, - de todos os que se elevam nas asas dum sonho alto, insaciável. Eu hoje, na solidão da minha estepe, vivo a sós comigo, com a brasa inquieta que me devora. Ela me queima as impurezas em que me abafava, não há já ódio nem paixão vil, estreita, que me possa inflamar. Afastei os olhos da vergonha que me cerca e acastelei-me na sagrada religião da Esperança. Como te repudiar?»
À vista de tantos estragos, a ilusão antiga entrava a esboroar-se. Adivinha-se, na melancolia desta carta, o conflito em que a alma de Sardinha se debate. Il est sans doute difficile de changer, au cours de sa vie, les doctrines qu'on a découvertes dans l’ atmosphère intellectuelle de sa jeunesse, notou algures Henri Massis. A atmosfera intelectual, em que o espírito de António Sardinha desabrochara, era agora batida por ventos contrários, e sob a tempestade, que se desencadeou, tudo se desmoronava em Portugal.
António Sardinha viu-se só, entre escombros. E na soledade ardente que o envolveu, as vozes da courela natal chegavam até ele, murmuravam-lhe ao ouvido inquieto o segredo da criação, e deixavam-no ficar suspenso, a rever o que tinha sido...
A vida negava o que ele aprendera. Palavras, definições, sistemas, como eram diferentes do uso que lhes dera! Submeteu então a duro exame tudo o que seduzira a sua imaginação juvenil. E conformando a sensibilidade ao ritmo das coisas eternas que o cercavam, um novo homem acordava em si.
Tocado do entusiasmo lírico, que outra vez o feria, escreveu-me:
«Queridíssimo Luís: Escrevo-te em vinte e quatro de Abril, em véspera do Senhor São Marcos, um dos quatro que disseram da vida de Jesus e padrinho dos bois e dos boieiros de toda a Cristandade. Amanhã, perto daqui, numa engalanada ermidinha, à hora da missa, por entre os fiéis, um novilho de dois anos entrará pela nave acima até ao altar-mor. «Entra, Marcos!» - Ihe gritarão os mordomos da festa, que com varinhas o irão tangendo, que o animal se poluiria se as mãos humanas o tocassem. «Entra, Marcos!» E junto aos degraus do tabernáculo, com as hastes enastradas de fitas e de ervas de cheiro, a rés, em vez de tombar sob o cutelo sagrado, em nome da verdade receberá a bênção da Igreja e nos cornos se lhe cantará o Evangelho do dia. «Entra, Marcos!» E o engelhado Topsius que habitava dentro de mim acaba de descobrir que essa festa, que o Cristianismo conservou e santificou, tem raízes milenárias, descende da festa do Touro que uma civilização pre-árica bronzífera, espalhou por toda a Europa. Mr. Homais rir-se-ia da ingénua solenidade e aproveitar-lhe-ia a origem para atacar a pobreza criadora do Cristianismo e a mentira das Religiões. Eu, como homem que estuda, solidifico com o facto a minha crença vendo nele um sinal claro dessa curva ascensional do homem primitivo para a Perfeição, que é Deus. «Entra, Marcos!» E hoje as ladainhas saem pelos campos - saíam - a rogar ao Céu pelo renovo primaveril, pela messe que se aformoseia, pelos frutos que despontam. Como Portugal estará lindo! - exclamava na tua carta a tua nostalgia. - Como Portugal está lindo e como ele te manda saudades, meu amigo! Floresce o rosmaninho, a planta que soalha as igrejas em Quinta-feira de Endoença e que, assistindo à cena do Calvário, perpetuou na sua austeríssima flor o sangue inocente do Cordeiro. Como Portugal está lindo! E quando eu olho o tapete das searas que ante os meus olhos se desenrolam por dez léguas infinitas, eu penso naquele romance de Melchior de Vogüe, - Les morts qui parlent. A verdadeira França, ai! não é a que se estorce e debate no Palácio Bourbon, - não é a que governa e se divide em programas políticos irrealizáveis e perturbadores, mas a que trabalha e canta sempre, - aquela que encolhe os ombros na ignorância do homo-publicus que aleiloa, aquela cuja seiva eterna dá filhos à Pátria e dinheiros à bolsa sôfrega do Estado. Lembras-te ?»
«Ah, meu amigo, como nesta hora má é bom sonhar, trazer por entre as coisas simples a alma excruciada. Abatidos os pendões que nos separaram e empurraram para um agonizar sem glória, - em nós, os que amamos e sentimos se recolhe e toma expressão e consciência a dignidade nacional. Conservemo-la, traduza-se em páginas que a vinculem, - eis o que cumpre fazer, querido amigo! Por isso a alma se levantou com as asas mais foitas na manhã abençoada em que a tua carta me contou de ti e dos teus projectos.»
E acrescentava algumas linhas abaixo:
«... Penso em conquistar prosa e vou aumentando a minha bagagem de Topsius. É que sinto em mim qualidades de historiador e é aí que melhor serviço poderei dispensar à nossa pobre terra.»
Não se enganou. Os erros de história emendados por António Sardinha são, talvez, a parte mais nova e mais útil dos livros que nos deixou.
Terminava essa carta por este modo:
«... Há mais de um ano que não nos vemos. Ias tu para as férias de Páscoa e eu fui à estação. Levavas o Rimbaud que tanto tempo namoraras. Lembro-me ou não?»
Também eu me lembro. O livro de Artur Rimbaud, a que Sardinha se refere, estivera por longo tempo no mostrador da livraria do França Amado, junto da ENQUÊTE SUR LA MONARCHIE de Charles Maurras. Passávamos horas a conversar ali. E recordo até que brincando com o republicanismo de Sardinha eu lhe mostrava o exemplo do companheiro dilecto de Jean Moréas, do discípulo amado de Anatole France, que levantava na mão firme a lança de Minerva contra o dragão da Democracia.
Eu andava por longe. Terminadas as correrias pelas veigas de Chaves, fui com vagar subindo até à meiga Flandres. Aí me chegou, datada de 30 de Dezembro de 1912, a seguinte carta, tão repassada de puro sentimento que não se lê de olhos enxutos:
«Meu querido expatriado: Já sabes naturalmente por outros aquilo que só por mim devias saber. Mas eu andei meses sem novas tuas e só aí por Setembro tornaram a aparecer postais, contando-me com a tua saudade a vibração amiga duma alma que tanto se identificou com a minha na arrancada dos mesmos sonhos, nos entusiasmos da mesma mocidade. Marcavam-me esses postais o roteiro da tua vida errante, não te podia eu alcançar com a notícia alvoroçada que o meu coração te guardava. Chegaram enfim letras anunciando-me o enraizamento. O quotidianismo da vida com os seus mil e um tropeços impediram-me então do cumprimento do gostoso dever. Abraço-te, pedindo-te desculpas, e deixa que eu sinta a tua alegria na alegria com que te digo que me casei. Casei-me no dia 28 de Agosto. Nosso Senhor teve um sorriso de pai para com o casalinho e um bispo nos deitou a sua bênção. Casei. E unindo-me a quem será ao longo da minha existência um motivo constante de inspiração e confiança, eu alevantei um hino de certeza no futuro, ganhei a imortalidade, acendendo o fogo dum lar. Dos amigos - dos raros - só o bom Hipólito me acompanhou. Aos outros, presentes na comoção com que os evocara, um vento mau os dispersara, levara-os para longe ao acaso a cegueira criminosa do nosso tempo. E ao entrar no ninho, que entretecera, eu alembrei-me de Vocês, ao Deus-dará sob céus estrangeiros, ouvindo aquelas falas que a gente não entende e que já o bom Froilão do Alfageme amaldiçoava por porem doença na alma e no corpo do desgraçado que as escutasse, empurrado para fora da vila natal. Eu alembrei-me de Vocês e apertei-os todos nos meus votos, envolvi-os na minha felicidade, ó companheiros amoráveis duma boa hora que não torna! Casei-me, Luís, - é verdade! Mas com que tristeza, ao entrar no meu lar, eu reparei que levava as mãos vazias, que os meus vinte e cinco anos não tinham como os vossos a grandeza duma abnegação, a auréola dum sacrifício. E admirei-vos, admirei-te! Vós sois no niilismo moral que nos abafa o fermento sagrado que há-de levedar uma Pátria. De cá vos saúdo, como te saudei no momento supremo em que deixava de ser um ponto, uma pausa, para me tornar o anel duma cadeia infinita. Corri depois o nosso Portugal e lá estive em Chaves rezando com minha mulher sobre a campa rasa dos Mártires. Bendito sangue, que foi uma sementeira de milagre! Recordas-te, Luís, de um dia me, dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (passei a Valpaços, - a terra dela), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, - as únicas limitações, que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal. Rapazes, saibam lá que em Portugal a crença monárquica prospera, saibam que se repudiamos a miséria partidária dos bandos antigos, muito mais repudiamos a oligarquia criminosa que nos escorcha!
A Monarquia que venha reinstalar a paz neste pobre país, que se reorganizem os fundamentos sociais por um acto de inteligência e força, senão pulverizar-nos-emos numa vergonhosa derrocada!
Conta-me, conta-me de ti, Amigo, diz-me se a minha esperança não me ilude...»
Não, a esperança não o iludiu. As gerações que vieram depois da nossa, connosco barraram o caminho à mentira democrática, e a inteligência portuguesa, livre de estranhas excrescências, afirma-se e confessa-se publicamente. António Sardinha entregou-se ao apostolado novo com fervor nunca visto. E ele, que sentia como ninguém os encantos da Tradição e dela tirava os mais belos motivos literários para os seus versos e os mais nobres estímulos para a sua acção política, anunciava-me assim o seu primeiro estudo nacionalista:
«Meu querido Luís: Escrevo-te em véspera de S. João, do S. João da água-santa, com a erva-serpentina cantando à meia-noite a trova suspirosa, e as lindas moiras encantadas estendendo ao caminheiro da borda das fontes os lavrados cântaros de prata. Escrevo-te em véspera de S. João, de alma toda embebida no mistério do solestício, desabrochando em rosas de fogo sob os pés chagados do grande filho de Isabel. Oiço como que crescer as raízes em estremecimentos sagrados. E a tradição da Raça passa-me, inteira, completa, diante das pupilas semicerradas para a penumbra doce! São as «alvoradas», é o sono de S. João, é o jogo das canas mai-lo o alferes da bandeira, pessoa de boa cristandade, com o gonfalão desdobrado por entre as raparigas, - é a «Senhora Câmara», de capa e varas nobres, reverenciando o Baptista glorioso. Ah, meu Amigo, como não hás-de tu ser lembrado pelo meu coração, - pobre despaisado, que mais do que nunca te sentes enraizado, na religiosidade calma deste momento, como nas espirais da evocação não aparecerá o teu vulto miudinho, com alguma coisa da tristeza divina de Anto, com muito de D. Gil Valadares, - tu que conheceste os perigos da guerra e aprendes agora o vário saber em vila alheia, falando falas alheias?! Eu lembro-te, meu Amigo, e deixa que de longe te deseje a paz e te ofereça os bolos de S. João aquele que a paz conhece e que em S. João acredita com a fidelidade dum católico que se esforça por sê-lo! O bem esteja contigo mais a graça de Deus Nosso Senhor! Vi rimas tuas, Irmão, na ALMA PORTUGUESA, que vem trazer uma nota viva de Esperança à minha Esperança sempre viva. Na hora em que escrevia da minha fé sobre os moços portugueses, nessa hora a boa mensageira me entra pela casa adentro numa aleluia consoladora. Não me enganara eu, - não! e ainda bem que o integralismo lusitanista adquire para a consciência da nossa geração o alto sentido criador que com ele mora e nele lateja em frémitos fortes de vida! Eu trabalho, - não num poema, meu Amigo, mas num farto livro viril, - A VERDADE PORTUGUESA, que é a sistematização do que se pode, em realidade, considerar como próprio e original, como progressivo e espontâneo, na nossa maneira de ser colectiva. É o misticismo da Raça que eu ali procuro corporizar, são os prejuízos inimigos da nossa história que ali se denunciam e desbaratam, é a revisão das possibilidades organizadoras do génio nacional, o minucioso exame de consciência da nossa época que já leva de vencida cosmopolitismos e teorizações sociais para se reconciliar de novo com essas duas grandes verdades que são o Catolicismo e a Monarquia. Tu verás depois e contigo verão os bons camaradas que tão distantes e com espírito tão alevantado se agrupam em torno do guião lusitanista, como lábaro dum amanhã melhor. A pálida tendência estética do TRONCO REVERDECIDO desdobra-se naquelas páginas quentes em amplos motivos de disciplina e ressurgimento. E o que me anima mais é que um ambiente se dispõe, favorável, único. O neo-romantismo que se desprende das almas em ebulição, sedentas de equilíbrio e certeza, tende a polarizar-se por todo o lado no sentido duma justa integração localista, a crise histórica que o nosso país atravessa reveste de exigências imperiosas o que noutras condições bem poderia ser apenas para a mocidade culta uma pacífica atitude psicológica. Hoje a Acção reclama-nos e, como outrora em tempos de misticismo militante, não é o convento que Deus nos aponta, querido Amigo, é a Obra social, - a redenção das massas descristianizadas, a metodização católica da necessidade sindicalista, a devolução à indissolubilidade familiar, - todo o vasto campo do resgate sacrossanto dos outros. Por isso, tu deves voltar, voltar um dia, que bem perto andará, com a linda bandeira exilada e com os pioneiros do mesmo sonho, servires a glória do Senhor, trabalhando pelo teu semelhante, ensinando-o a amar e a esperar...»
A ALMA PORTUGUESA, a que Sardinha alude nesta formosa carta, era uma revista de estudantes, onde alguns rapazes, exilados na Bélgica depois de terem experimentado as armas contra os soldados da República, ousadamente se propunham modificar a mentalidade fóssil da gente do seu país. Aí se abriu pela primeira vez o pendão do INTEGRALISMO LUSITANO e se proclamou a doutrina reparadora da Pátria em ruína. O neo-romantismo era o assunto finamente versado pelo melhor companheiro que lá tive: Domingos de Gusmão Araújo.
O livro que Sardinha preparava com o título A Verdade Portuguesa foi publicado depois com outro arranjo e a designação O VALOR DA RAÇA, e constituiu a dissertação para concurso à rubra Faculdade de Letras de Lisboa.
Em carta de 14 de Novembro de 1913, Sardinha precisa:
«Meu querido Luís: Perdoa-me! E por Santo António, que é meu padrinho, te prometo que não voltarei a cair em tão feio pecado, - em culpa mortal de silêncio. Arrisco-me a que duvides do afecto com que te quero e da presença vivíssima com que a tua lembrança me assiste sempre. Sou teu amigo, - tu és um dos meus Irmãos estremecidos. Desde os pavores na aula de mestre Serrasqueiro aos entusiasmos límpidos com que enfileirámos, - tu mais ousadamente do que eu, - na ala resgatadora, com pequenos desvios a nossa jornada de moços corre unida e confiada, ombro com ombro, coração com coração. Hoje que nos achamos detentores duma «verdade portuguesa», e que Deus nos unge para sermos na nossa terra, com outros que venham, um núcleo disciplinado e reparador, mais do que nunca um grande abraço nos liga, mais do que nunca os mais invencíveis laços nos soldam numa bela comunhão de destinos e aspirações. Podia eu lá esquecer-te, pois, meu bom, meu saudoso Amigo?!
(...)
«Escuso de te tornar a dizer que a ALMA PORTUGUESA encantou-me e comoveu-me. O título é que não gosto dele. É a ALMA PORTUGUESA do António Zé - é a ALMA PORTUGUESA, de quantos meninos se lembram por esses liceus de deitarem à rua um jornaleco. Mas a impressão desvanece-se ante o artigo de entrada. Há ali uma firmeza de intenções, uma unidade de desígnios que denuncia da vossa parte uma admirável coesão, - uma juventude forte e homogenizada, procurando um emprego elevado para as suas horas, sequiosas de sentido e de fruto. Eu deponho a minha fé inteira no belo movimento que começa a animar a gente da nossa idade. Os rapazes têm em toda a parte a situação e esse milagre de assombro, que é bem Deus falando pelas almas claras e generosas, esse milagre de assombro, que rasga já claridades nos destinos incertos da França e acende iluminismos estranhos na geração que lá cresce para a vida, e para a luta, também entre nós, - no nosso Portugal, traído e leiloado, começa a fecundar as vontades, a coordenar os impulsos que o charco enoja e ainda fortifica mais. Há hoje um grupo constituído, que há-de ser o portador da grande labareda. Ao instinto conservador da maioria dos moços portugueses é preciso dar-se-lhe uma filosofia, um corpo de doutrina que os oriente e encha de dignidade no agressivo da sua ofensiva. Vive-se ainda por cá dos Imortais Princípios e a Monarquia Constitucional, que caiu por assimilar as ideologias da Revolução e com elas derrancar o país, é imperioso acabá-la de matar, não deve, não pode voltar. Voltará e tem de voltar transfigurada na Monarquia orgânica, tradicional, mantendo o equilíbrio das classes, neutralizando as diversidades regionais numa vasta intenção descentralizadora, envolvendo-se de prestígio pelo respeito do espírito provincial, pela consagração das actividades particularistas. Assim deixará de ser uma concepção rígida, inerte, abafando em apriorismos mentirosos as diversidades etiológicas e glomorfológicas, para, apoiada nos Concelhos e nas Corporações, se identificar em tudo com o génio nacional, - com o poderoso intuitivismo gerador da nossa alma colectiva. E convence-te, meu Amigo, que enquanto a oposição monárquica viver da ária desbotada da Liberdade e da Carta, que, enquanto ela se não possuir duma profunda compreensão da nossa realidade nacional, nada conseguirá, nada fará. Porque se estes derrubaram os outros para se regalarem, aos ingénuos e descrentes parece que os outros o que querem é atirar com estes abaixo para se devolverem à festança antiga. Ora, a principiar pelo Rei, é necessário ensinar aos monárquicos o que é a Monarquia. Nós já temos um precedente nesse sentido. É a ignorada, é a desacreditada literatura miguelista. Reabilite-se e com a vulgarização do doutrinarismo da ACTION FRANÇAISE, completamente desconhecida entre nós, organize-se uma teoria contra-revolucionária que ensine a esta gente que a Democracia é uma forma social inferior, implica a negação de todo o conceito selectivo, que só a Realeza pode solucionar as insofismáveis e instantes questões da hora presente. Ao mesmo tempo, num minucioso exame de consciência, expurguemos da nossa história quantos juízos feitos, quantos subjectivismos deformadores lhe mutilam e interceptam o verdadeiro sentido ...»
Respondendo a esta carta, em que o pensamento contra-revolucionário de Sardinha aparece já perfeitamente construído, levantei as referências nela feitas à ACTION FRANÇAISE e, acentuando o fundo original do tradicionalismo português, prevenia Sardinha contra as influências da escola de Maurras. Logo Sardinha me tranquiliza (6-XII-1913):
«Aceito (beijo-te as mãos) com esse título que aventuras a tua ajuda valiosa e valorosa. Toda a chicotada é pouca e aqui o que se sofre é uma hipertrofia pasmosa de medo. Nada mais. Cinquenta anos de paz-podre puseram-nos nas veias cinza em lugar de sangue. É a isso que nós queremos acudir, insuflando à mocidade que arde em ímpetos de resgate um princípio fecundo de acção. A monarquia liberalista morreu. O que é preciso ressuscitar é a monarquia orgânica, tradicional. Nesse sentido, com um programa completo, redigido por mim e pelo Hipólito, aparecerá o núcleo de uma futura instauração nacional. O Integralismo Lusitano (como tu com tanta visão definiste) é o aspecto estético e filosófico do problema. O reconhecimento de todas as fontes criadoras de energia colectiva o fim a que nos inclinamos... As prevenções da tua carta sobre a Action française já existiam em mim. Nós pedimos-lhe um método, uma sistematização, não um corpo integral de doutrinas. E embora o agnosticismo esteja condenado, as doutrinas de Charles Maurras no seu lado político-social não se acham em expurgação. Ainda há pouco o P. Descoqs, jesuíta, publicou acerca delas um livro que te aconselho.
Eu agora tenho muito que fazer. Vou concorrer à Faculdade de Letras de Lisboa, para em público e raso defender as nossas teorias históricas. Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade. O enraizamento, que se afirma nas tradições concelhias descende duma humanidade primitiva que os arqueólogos acusam no sul da Europa, caracterizada entre as demais pelo seu apego ao torrão. Bem cedo enterrará os mortos, fixando-se, antes mesmo de praticar a agricultura. E daí, em comunidades primitivas, através das citânias do teu Minho (lá estive em Briteiros, aonde recolhi uma das emoções maiores da minha vida) até às beetrias do princípio da Monarquia, vivia ascendendo para uma definitiva criação na forma completa do município. Por outro lado, num terreno, exposto a incursões de povos guerreiros que escravizaram a raça autóctone, a Esperança nasceu como reacção fatal do vencido que, arreigado ao solo, se construiu miragens de desforra futura. Desde o altar que os celtas ergueram à «virgem que havia de parir», desde as profecias duma sibila Cantábrica anunciando aos seus oprimidos um salvador, o mito sebastianista vinha crescendo, através de várias aspirações recalcadas no nosso fundo ético, até ao remate extremo na hora do desastre final. Compreendes, que esta exposição é muito atabalhoada. Com os documentos que possuo, tu depois apreciarás a minha conclusão, que se resume na aliança estreita do messianismo à forma comunalista do concelho. Resulta daí que a Esperança, - e não a Saudade, - é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.
Também o folheto do Pascoais me indignou. Escrevi umas coisas que depois não publiquei por entender que não valia a pena. Os Águias estão desacreditados, já ninguém os leva a sério...»
Para os que têm acusado O INTEGRALISMO LUSITANO de ser apenas um rebento mais da ACTION FRANÇAISE, estas cartas, escritas quando coordenávamos os elementos doutrinários que iriam servir de base à nossa campanha nacionalista, não podem deixar de merecer um minuto, ao menos, de reflexão. Nelas ficou estampada a verdade com que, desde a primeira hora, repelimos a pecha de bastardia que para o nosso pensamento buscavam os que o queriam diminuir e manchar.
Animou-nos sempre o desejo de enraizar o nosso espírito em chão português. Outra amostra deste propósito se encontra na carta de 17 de Março de 1914:
«Meu queridíssimo Amigo: Vão dois meses corridos sobre a tua última carta e eu só agora ta agradeço! Não voltei a incorrer em pecado feio de preguiça, não! Foi pela maré de trabalho em que me vi envolto que eu tive de adiar com muito pesar meu o delicioso cumprimento dos meus deveres de amizade. E como te guardei sempre no pensamento, como no ardor da canseira eu te invocava a miúdo - o que dirá o Luís? - quando um resultado encorajante me aquecia o iluminismo de indagador; não sinto acanhamento ao aparecer junto de ti, porque no meu silencio fecundo, tu, bom camarada e melhor amigo, assististe sempre ao meu lado na troca entusiástica dos altos motivos de beleza e acção que nos dirigem a vida, na comunhão plenária dos mesmos sonhos, do mesmo espírito de cruzada reparadora. E hoje que regresso do escuro das idades, viajando como andei pelos domínios ásperos da antropologia, com a certeza vingadora que por lá adquiri de que não somos uma raça bastarda e que as qualidades éticas dum povo renascem e saem mais temperadas dos amolecimentos e sonambulismos colectivos, ao erguer como nunca o meu acto de fé nos destinos da nacionalidade, é a ti e sempre a ti, meu Amigo, que eu envio a aleluia mística em que todo eu me transbordo. A «Verdade Portuguesa» cada vez se consolida mais e cada vez mais na alma dos moços se define a sede de revivescência que nos trabalha as atormentadas vigílias. Não se perderá, meu Amigo, a semente que enlevadamente andamos apurando para a deitar à gleba dormente que no seu pousio inglório anseia por produzir!
Aos teus ouvidos, nessa Bélgica distante, devem ter chegado os sinais da matinada linda que se anuncia por toda a terra portuguesa. Sabes já que vai sair a revista em que te falei e que será o órgão no nosso movimento. O primeiro número em composição deve trazer um artigo meu, de escândalo – Teófilo, mestre da Contra-Revolução. É o juízo sintético da visão histórica da obra de Teófilo, rematando-se numa insofismável conclusão monárquica. Lá se faz o processo do constitucionalismo a quem podemos agradecer os piores males da Raça, - a República, inclusivamente – e oxalá que consiga ferir a atenção das pessoas cultas e bem intencionadas... A nossa tarefa é ampla, infinita, mas como a nossa mocidade se sente radiosa por se encontrar senhora dum fim, - na posse duma unidade que a engrandece e a devota apaixonadamente ao serviço da Pátria e o do Futuro!»
(...)
(Reproduzido a partir de Luís de Almeida Braga, Sob o Pendão Real, 1942; 1ª edição, na íntegra, em Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930 (politica_n010.pdf)