Raça = Grei, sinónimo de povo, sociedade, nação; Grei é um conceito jurídico que define um todo uno, idêntico na composição e no destino.
"O Valor da Raça" = "O Valor da Grei"
"Pola Lei e pola Grei" - Divisa de D. João I
"O Valor da Raça" = "O Valor da Grei"
"Pola Lei e pola Grei" - Divisa de D. João I
Segundo António Sardinha,
1. Como é que se FORMOU a Nação Portuguesa?
Através de uma aliança entre o Rei e os Municípios: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês."
2. Quando é que está FORMADA a Nação Portuguesa?
No século XIV, ao iniciar-se a Dinastia de Avis: "nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular".
* * *
Em 1894, o republicano Teófilo Braga, com quem o jovem António Sardinha trocou correspondência nos tempos de estudante em Coimbra, e de quem era admirador, apresentou uma tese "racial" ou "étnica" das origens de Portugal, na qual explicava a indissolúvel diferença entre os portugueses e os restantes povos da península ibérica (A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, Porto, 1894)
Na perspectiva de Teófilo Braga, o espírito de autonomia da Nacionalidade portuguesa assentava em condições naturais, que também designava por "factores estáticos": o Território e a Raça. Nessa obra, Teófilo concluiu que teria existido uma Nação moçárabe anterior ao estabelecimento do Estado português, mas que a mais remota origem dos portucalenses da Reconquista se encontrava nos lusitanos chefiados por Viriato. No ocidente da península ibérica, teria assim existido um "tipo nacional", o "Luso", que se distinguia dos restantes habitantes peninsulares pela sua vincada tendência para a associação local ou municipal - o "Lusismo".
Em 1912-13, António Sardinha converteu-se ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "mestre da contra-revolução". No ano seguinte, ao publicar O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que um jovem como António Sardinha iria usar ou adaptar ao seu novo ideário monárquico uma tese "territorial" e "racial" como a do lusismo de Teófilo?
Vê-lo-emos de seguida. Com hesitações, dúvidas, e insatisfações após a publicação do livro, sobretudo no que à pré-história dizia respeito, mas com firmes e claras conclusões quanto ao processo histórico da formação da nação portuguesa.
Antes de publicar O Valor da Raça, Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro: O Sentido Nacional duma Existência (1913). Esse cadáver só viria a ser desenterrado por Eurico Gama em 1969. O Valor da Raça não chegou a ser inutilizado ou proscrito por Sardinha. Na entrada da década de 1930, porém, Luís Chaves veio testemunhar: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que O Valor da Raça "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Pelas anotações de Luís Chaves, percebemos que a sua insatisfação estaria nos capítulos “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." (Idem, Ibidem).
O Valor da Raça sobreviveu às incertezas e hesitações de Sardinha, não sendo inutilizado ou proscrito. Mais tarde, referindo-se a Teófilo Braga, Sardinha escreverá em "O velho Teófilo": "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha."
António Sardinha, salientando o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo Braga, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, ao referir-se a Silius Italicus em O Valor da Raça:
"O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!"
Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte que citara. A adesão ao ideário monárquico não tinha levado António Sardinha a deixar de confiar ou apreciar a obra de Teófilo. Havia discordância política, mas mantendo respeito e até admiração por "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução". Sardinha estava em trânsito intelectual, moral, e espiritual, reflectindo ainda muitas das suas preocupações e valores da véspera. Dar-nos-á porém conta da sua abertura à sociologia tomista e que o levará a colocar a tónica no estudo das Instituições e do Espírito que as vivifica.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, no qual se ocultou a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte, um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, não perdoando a Sardinha a sua demarcação da "farmacopeia gaulesa" veio, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha, atribuir-lhe germanofília intelectual e política. Para Mariotte, em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico" na linha de Fichte. Mariotte ignorava o papel que Sardinha atribuía à instituição real nas origens da Nação portuguesa, mas também as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular." (António Sardinha, O Valor da Raça, 1915, p. I).
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza António Sardinha:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta de António Sardinha para Luís de Almeida Braga).
Onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça"; entendia António Sardinha o "localismo e o município". Em O Valor da Raça, Sardinha recuará até à pré-história identificando um “íntimo segredo da história portuguesa”: “o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”. Nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos Sardinha logo adiante, é o Concelho, o Município. É no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe portanto dos primitivos habitantes do território peninsular, que Sardinha vem a concluir a sua tese acerca do nascimento da nação portuguesa: durante a Reconquista cristã “as Beetrias mostram-se como o tecido estrutural da nacionalidade nascente”.
António Sardinha resumiu na Introdução os aspectos essenciais da sua tese e propósito. Eis algumas passagens significativas, a que seguirá o seu texto integral (negritos acrescentados):
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
(...)
É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
Texto completo de António Sardinha ("ficheiro.pdf"): O Valor da Raça, 1915.
1. Como é que se FORMOU a Nação Portuguesa?
Através de uma aliança entre o Rei e os Municípios: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês."
2. Quando é que está FORMADA a Nação Portuguesa?
No século XIV, ao iniciar-se a Dinastia de Avis: "nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular".
* * *
Em 1894, o republicano Teófilo Braga, com quem o jovem António Sardinha trocou correspondência nos tempos de estudante em Coimbra, e de quem era admirador, apresentou uma tese "racial" ou "étnica" das origens de Portugal, na qual explicava a indissolúvel diferença entre os portugueses e os restantes povos da península ibérica (A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, Porto, 1894)
Na perspectiva de Teófilo Braga, o espírito de autonomia da Nacionalidade portuguesa assentava em condições naturais, que também designava por "factores estáticos": o Território e a Raça. Nessa obra, Teófilo concluiu que teria existido uma Nação moçárabe anterior ao estabelecimento do Estado português, mas que a mais remota origem dos portucalenses da Reconquista se encontrava nos lusitanos chefiados por Viriato. No ocidente da península ibérica, teria assim existido um "tipo nacional", o "Luso", que se distinguia dos restantes habitantes peninsulares pela sua vincada tendência para a associação local ou municipal - o "Lusismo".
Em 1912-13, António Sardinha converteu-se ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "mestre da contra-revolução". No ano seguinte, ao publicar O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que um jovem como António Sardinha iria usar ou adaptar ao seu novo ideário monárquico uma tese "territorial" e "racial" como a do lusismo de Teófilo?
Vê-lo-emos de seguida. Com hesitações, dúvidas, e insatisfações após a publicação do livro, sobretudo no que à pré-história dizia respeito, mas com firmes e claras conclusões quanto ao processo histórico da formação da nação portuguesa.
Antes de publicar O Valor da Raça, Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro: O Sentido Nacional duma Existência (1913). Esse cadáver só viria a ser desenterrado por Eurico Gama em 1969. O Valor da Raça não chegou a ser inutilizado ou proscrito por Sardinha. Na entrada da década de 1930, porém, Luís Chaves veio testemunhar: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que O Valor da Raça "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Pelas anotações de Luís Chaves, percebemos que a sua insatisfação estaria nos capítulos “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." (Idem, Ibidem).
O Valor da Raça sobreviveu às incertezas e hesitações de Sardinha, não sendo inutilizado ou proscrito. Mais tarde, referindo-se a Teófilo Braga, Sardinha escreverá em "O velho Teófilo": "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha."
António Sardinha, salientando o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo Braga, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, ao referir-se a Silius Italicus em O Valor da Raça:
"O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!"
Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte que citara. A adesão ao ideário monárquico não tinha levado António Sardinha a deixar de confiar ou apreciar a obra de Teófilo. Havia discordância política, mas mantendo respeito e até admiração por "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução". Sardinha estava em trânsito intelectual, moral, e espiritual, reflectindo ainda muitas das suas preocupações e valores da véspera. Dar-nos-á porém conta da sua abertura à sociologia tomista e que o levará a colocar a tónica no estudo das Instituições e do Espírito que as vivifica.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, no qual se ocultou a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte, um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, não perdoando a Sardinha a sua demarcação da "farmacopeia gaulesa" veio, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha, atribuir-lhe germanofília intelectual e política. Para Mariotte, em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico" na linha de Fichte. Mariotte ignorava o papel que Sardinha atribuía à instituição real nas origens da Nação portuguesa, mas também as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular." (António Sardinha, O Valor da Raça, 1915, p. I).
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza António Sardinha:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta de António Sardinha para Luís de Almeida Braga).
Onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça"; entendia António Sardinha o "localismo e o município". Em O Valor da Raça, Sardinha recuará até à pré-história identificando um “íntimo segredo da história portuguesa”: “o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”. Nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos Sardinha logo adiante, é o Concelho, o Município. É no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe portanto dos primitivos habitantes do território peninsular, que Sardinha vem a concluir a sua tese acerca do nascimento da nação portuguesa: durante a Reconquista cristã “as Beetrias mostram-se como o tecido estrutural da nacionalidade nascente”.
António Sardinha resumiu na Introdução os aspectos essenciais da sua tese e propósito. Eis algumas passagens significativas, a que seguirá o seu texto integral (negritos acrescentados):
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
(...)
É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
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1915 - António Sardinha- O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (livro) | |
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ANTÓNIO SARDINHA (ANTÓNIO DE MONFORTE)
0 Valor da Raça
INTRODUÇÃO A UMA CAMPANHA NACIONAL
1915
ALMEIDA, MIRANDA & SOUSA, Editores
133 — R. dos Poiais de S. Bento —135
LISBOA
A Ana Júlia
minha Mulher
A VERDADE PORTUGUESA
PROGRAMA DUMA GERAÇÃO
«J'écris à la lueur de deux vérités eternelles: la religion, la monarchie, deux necessités que les événements contemporains proclament, et vers lesquelles tout écrivain de bon sens doit essayer de notre pays.»
BALZAC. Prefacio de «La Comédie Humaine»
A idéa de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica dum todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito político de Grey que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular.
A coincidência dos nossos elementos nativos com as direções concentradoras da Corôa obtivera-se enfim, depois da prova magnífica que fora a jacquerie dos Concelhos, erguendo voz pelo Mestre contra o pendão de Dona Beatriz. Não há que duvidar já agora de que o íntimo segredo da história portuguesa consiste num inabalável motivo de ordem étnica. É o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferencias sedentárias, quem fundamenta as raízes da Pátria e no desenrolar dos acidentes desorganizadores surge sempre, à boca do perigo, a pronunciar a palavra de salvação. A integridade desse valor antropológico retém consigo, na guarda da sua pureza, todo o esforço que preside aos dramas formidáveis da nossa independência.
Efectivamente, as mancomunidades agrícolas que, comportando as aptidões localistas do nosso homem primogénito, vieram a concluir na forma social do Município, conservaram pela fixidez à terra, limpos de toda a mistura abastardante, os recursos infinitos da nossa árvore ancestral. Passaram as invasões tumultuando como uma enchente que emparelhe montes e vales. Mas o gosto decidido pelo arraigamento, prendendo ao sólo com vínculos centenários os indivíduos e as agremiações, com o conceder-lhes uma resistência que nada vencia, transmitia-lhes a mais poderosa das impermeabilidades. Eclipses demorados interromperam a plenitude autóctone, - irrecusavelmente. Dormitando, porém, o que pareceria uma derrota mortal, um fim sem remedio, não era no fundo senão a economia da duração, trabalhando com afinco pelo restauro das energias perdidas. Do sedentarismo característico do Luso partiria assim, como duma virtude de maravilha, o início de quantas afirmações de vontade e heroísmo lhe conferiram a existência livre de povo. São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês. As hostes comunais intervêm sempre lá onde o guião sobranceiro da autonomia corra o perigo de tombar nas mãos do vizinho cobiçoso. Em Ourique mostram-se-nos assentando os alicerces à Nação. São as vilas de 1384, pondo o Mestre por nosso regedor e alçando mais tarde o Regente à defesa comprometida do Reino. E já se não fala da Feliz-Aclamação com as ordenanças bisonhas dos Municípios escrevendo a epopeia ignorada duma guerra de vinte e oito anos, - nem nas juntas concelhias do século passado, alevantando Portugal em peso contra a presença dos Franceses. O motivo de ordem étnica em que reside o segredo intimo da nossa história comprova-se abundantemente. É que nos moldes particularistas da Raça remanescia, como um substractum inalienável, à força hereditária do Luso, guerrilhando por uma reposição desafogada e fecunda, como outrora nas gargantas do Hermínio, ao som da buzina de Viriato. Se não admitirmos uma lenta preparação atávica que desde muito de atrás nos andasse elaborando como uma realidade social que se basta a si própria, não se compreende pela doutrina simplista do Acaso que, varrido o islamita até às orlas do mar do Algarve e expulso o barão novigótico para o planalto castelhano, se levantasse de súbito da gleba libertada uma pátria cheia de vigor, vibrando toda de cima abaixo no sentimento duma mesma finalidade. É que vínhamos de longe, - dos alvores dessa gente primitiva que nas bacias do Tejo e do Sado se revelou bem cedo, enterrando os mortos e já com cabana armada, quando nem pronúncios havia ainda da prática da agricultura. Das simpatias sedentárias do habitante-típico de Muge se extrai, em verdade, o germe do qual a Pátria Portuguesa se veio a formar. O culto dos Mortos, originando uma colectividade apoiada no traço do sangue, depressa ascendeu o nosso homem antigo ao quadro rudimentar de aldeia, garantido por um patrocínio religioso que se traduzia certamente no modelo patriarcal. Chega de seguida a profissão agrícola. O enraizamento espontâneo do aborígene intensifica-se. E já fortalecido pela comunidade do parentesco, acaba de se organizar pela comunidade do solo. São conhecidas as bases agrárias das nossas citânias. As citânias marcam o estádio imediato ao vicus arcaico em que o embrião de Muge, crescendo sempre, pretende atingir uma expansão maior das suas possibilidades naturais.
A esta fase de isolamento ainda, sucedem-se as federações temporárias de cividades com determinante na ocupação romana. Aparecem assim as arimanias, ou germanias, de índole estrictamente guerreira, e, como a etimologia ensina, recebendo do estatuto de vizinhança a sua razão principal. Uma vez instalado o pesado aparelho administrativo do Lácio, a interpenetração episódica das citânias ganha permanência pacífica. Os moradores insulados dos nossos vilares proto-históricos sobem então a um grau de sociabilidade mais completa. Atraídos agora à ribeira, os conventi publici vicinorum do dominador imprimem-lhes um apertado espírito de convivência, — entra a criar para eles outras proporções o sentido comum da colectividade. Entrementes, as tendências características da Raça radicavam-se num vasto sistema institucional. Cortam- nos o torrão, primeiro, as tropeladas do dolicocéfalo loiro, raptor orbis, - no dia seguinte, as aluviões compactas dos fillios de Agar. Não esmorece, todavia, o génio pertinaz do Luso. E quando com a Reconquista as camadas indígenas da Península obtêm um farto minuto de respiração, as behetrias mostram-se como o tecido estrutural da Nacionalidade nascente. A Pátria Portuguesa resulta depois do entendimento instintivo desses pequenos núcleos populacionais que, trazidos a uma compreensão mais larga da existência por unânimes necessidades de defesa, lograram equilibrar em acordo perpétuo as ligas ou pactos militares da ante-véspera, quando o rumor das legiões inimigas crescia do vale para os castros atalaiados lá ao alto.
Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu enrobustecimento. O Altar e o Trono são as duas formidáveis disciplinas que o hão-de aguentar intacto nos trabalhos custosos para uma maioridade que ninguém lhe reconhecia e que ainda agora, perdidas ambas num turbilhão de insensatez criminosa, não passa de uma condescendência precária perante a dura lei imperialista duma época que já não embarca nas baixas fantasias da superstição democrática.
A constituição das Pátrias é, com efeito, em toda a banda o sinal poderoso de quanto vale dinâmica e staticamente o factor-Autoridade. Quem medita os nossos antecedentes de povo e desvenda bem os laboriosos prelúdios de que brotamos, impressiona-se decerto com as mil e uma tentativas do Luso para se estabilizar numa expressão colectiva mais franca e mais sólida que o cantonalismo primevo. Já vimos que, quando o romano irrompe, se experimentam as germanias, como uma aliança de cividades que transpõem o estreito aro comunal e apelam para as relações de vizinhança, afim de oferecerem ao invasor uma barreira mais duradoira e melhor erguida. No entanto, dependentes de chefes eleitos e como tais transitórios, as germanias ficam-se em ensaios preliminares que uma peleja desfaz ou que uma dissidência prejudica. Só a hereditariedade serviria ao agrupamento, de maneira a elevá-lo ao consenso tácito da Pátria.
Desde que um agregado encontra uma linhagem que incarne no seu interesse privado, como interesse do conjunto, os interesses das partes componentes, só nessa altura pode considerar-se protegido contra as surpresas do futuro, sem receio que o enfraqueçam, ou os desvios da fortuna, ou as reticências da hesitação. Existe um fim, —não falta a certeza dos meios com que procura-lo. É só correr-se em harmonia com as inclinações fundamentais e coordená-las em vista ao alvo desejado. A prosperidade e a saude do novo ser social despontam sem tardança, com as promessas brilhantes da glória e o exercício superior dos dotes da vontade. É a ocasião em que se manifesta uma regra espiritual, simultaneamente coercitiva e arrebatadora, que, conformando a mentalidade própria das circunstancias, lhe concede aquela vocação mística que torna os povos senhores dos seus destinos, e como que donos do terreno que pisam.
Eis porque a Cruz e a Espada são os admiráveis sustentáculos da nossa independência, alcançada a poder de tantissimo sangue. Nós morreríamos nos torcicolos da longada, se o concurso dessas duas forças tradicionais nos não ajudasse a estabelecer o nosso lugarsinho ao sol, - se entregues apenas á espontaneidade do génio da Raça, nos não resguardassem de emboscadas e de inadvertências, dum lado, a ambição pessoal dos nossos Príncipes, do outro, os ditamos vindos de trás-os-montes,— da claridade augustíssima de Roma.
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria. Mas a liberdade só se efectiva quando ponderada pela Autoridade. Sem um valor de acentuado conteúdo concentrador, jamais se viabilizaria a perequação dos nossos diversos egoísmos institucionais, de cujo entrelaçamento os tecidos nervosos da Nacionalidade se haviam fiado. É um exemplo que convence o abandono da Itália aos excessos da tendência comunalista. A unidade só tarde se conseguiu, porque as querelas comerciais e políticas das diferentes cidades preponderantes não quiseram submeter-se à fiscalização duma dinastia que as neutralizasse debaixo do seu governo.
Aonde é que se descobrem demonstrações de vigor que sobrepujem as que a Lusitânia afirmou durante o duelo tremendo com as tropas do Lácio? Contudo, digam-me, apesar dos analistas latinos qualificarem de magnis gravibusque bellis a resistência assombrosa das nossas citânias, se se ultrapassou a fase recuada de exclusivismo em que as populações se isolavam umas das outras, - se por ventura um outro sentido maior de existência colectiva se anunciara ás massas armadas, descidas dos outeiros fortificados para o combate em fileiras sob o comando de cabecilhas, que as mais das vezes não eram dos maioraes da gens? Não lhes assistia a função homogeneizadora de uma enérgica magistratura hereditária. Não nos causa por isso estranheza que a Guerra dos Ladrões, que tamanhos embaraços provocou a Roma consular, descaísse quasi no total aniquilamento desta féra ninhada de batalhadores.
Eu bem sei que no declinar da idade antiga os elementos de que proviémos como povo não possuíam ainda a consistência suficiente para merecerem a emancipação. Confinados no mais fechado particularismo, foram exactamente as pugnas sobrehumanas a que Roma os confrangeu que despertaram neles como que a percepção de horizontes novos, revelando-lhes o caracter sagrado duma causa que, sendo duns, se amostrava de todos, no fim de contas. Tinham que ser vencidos para que não regressassem ao período anterior de desconfiança, com brigas constantes de limites e psicologia ínfima de tribu. Sujeitos a uma cerrada uniformidade demográfica pelo apertado sistema tributário do Império, pelas exigências miúdas do censo, o Império obrigava a uma comunicação quotidiana as relações, cada vez mais estreitas, dos que se haviam visto coagidos a trocar a corôa amuralhada dos montes pelo assento tranquilo e produtivo das veigas. Quando essa rede cortical se rompeu e o genio oculto do Luso voltou a aflorar, a unificação consumara-se. Agora só importava entrar-se na demanda difícil da alforia. As simpatias sedentárias da Raça, vasadas já na forma social do Município, traçavam os alicerces inabaláveis da Pátria.
Alçando-se á suprema judicatura por via dum mandato explícito das nossas mancomunidades agrarias, a Realeza aparece a incarnar o agente político, sem o qual o equilibrio da colectividade se volveria impossível. D’outra maneira, a fragmentação teria de ser um acontecimento de todos os dias. Libertos da presença dum fulcro imóvel que assegurasse a duração e a continuidade, os apetites centrífugos das diversas iniciativas comunais poriam dentro de breve a saúde do grupo num estado revolto de decomposição. Eis porque a ditadura instalada ao alto protege sempre em justos termos a coexistência desafogada das outras partes do organismo. Por antogónicos que pareçam, entende-se já que o Rei e os Concelhos são factores que se corresponde e acabam de completar. Senão, — se desfiarmos os olhos ao arrípio dos séculos, que vemos nós desde que as liberdades se encontraram com a Autoridade ? O engrandecimento do poder real acompanhar-se inalteravelmente do exercício pleno da franquias municipais.
Os municípios exprimiam as tendências ingénitas da Raça. Não caímos em erro se os classificarmos entre nós como formações absolutamente naturais. Por um processus associativo, frequentíssimo no mundo biológico, uma células pegaram a juntar-se ás outras. E por força das circunstâncias do Meio e da Ètnia, Portugal se constituiu como soma normal de tantas parcelas pequenas, em tudo idênticas e concordes. Até o nome lhe adveio dum castro a cavaleiro do Douro, para que em nada padecesse dúvida a sua genealogia de terra livre.
Derivado duma federação de reduzidos núcleos independentes, em que as behetrias de Reconquista se compunham com os ópidos da ocupação romana, é uma cividade modesta que o batiza, consagrando-lhe como madrinha a entranhada estrutura particularista. A sombra da azinheira votiva do Luso, estipula-se ao depois a aliança das gentes anónimas, que se custodiavam de vexames e algaradas pela reciprocidade do estatuto da vizinhança, com a pessoa solene do Príncipe, que, de arnês reluzente e ginete escarvando, velaria pelos fracos e oprimidos, guardando do inimigo os Altares e os Lares, os Berços e os Sepulcros. Os forais acusam a base contratual da Monarquia Portuguesa, que não é uma monarquia firmada na ideia germânica da posse, mas uma magistratura respeitável, em que o Rei não é um soberano que se reverencie de recuas sobre uma paisagem de forcas vergando como latadas, mas simplesmente um cabeça em que todos, grosso e miúdo, se reconhecem à uma.
Se o conceito de posse, — de desfruto territorial, decidisse da feição peculiar da nossa Realeza, o predomínio seria mas era conferido aos próceres que, pares do monarca, haviam de primar em amos despóticos, sorvendo sofregamente o suor das populações soldadas à gleba. Engendrava-se um governo de casta, de índole feudal e militante, em que um ferrenho juízo aristocrático da sociedade cavaria diferenças fundas de campo para campo. Supunha-se deste modo uma situação primeira de guerra em que os naturais tivessem subsistido à derrota, mas como ilotas miseráveis que se possuem préstimo é só o de bestas de carga.
Bem pelo contrário, o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui del-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário»,— chamariam os lavradores em cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas descernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
Não se ignora a verificadíssima lei sociológica que depõe na subida dum césar a melhoria sensível das classes espezinhadas. Os regimes electivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direcções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula. Já assim não acontece com as composições ditatoriais ou hereditárias. Evitam por qualidade de nascença a intromissão abusiva das castas e são as operárias zelosas da verdadeira capacidade civil do povo. Com a queda da república romana, é o patriciado que tomba entre os clamores irados da plebe. O Príncipe, que o Substitue, acompanha-se dum respiro largo nas camadas obscuras da população, contida no mais duro desprezo pelas regalias demasiadas com que a nobilitas se isentava. O pretenso sistema democrático da Grécia clássica resolve-se, no cabo, num morgadio de felizes que se apoiava na escravatura, com o retórico declamando no agoras, à custa do seu semelhante, todo torcido para a courela alheia, no calvário sem nome de a amanhar e fazer produzir. O título de cidadão restringia-se tanto quanto possível. E só quando os Tiranos se estreiam com um novo ciclo é que essa cinta de ferro se vence, atraindo ao seio da Cidade muitos esforços secularmente repudiados. Sempre as batalhas da economia antiga terminaram pela vitória do ditador, cujo advento restituía ao agregado aquela justa harmonia já tão desejada pelo apólogo de Menenio Agripa. Repetem-se no decurso das idades as normas inflexíveis com que a história se governa. E ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua actividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristoteles, S. Tomás vai impôr ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade colectiva» ilumina a claríssima concepção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribue pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. 0 Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
É a ideia confraternizadora da «Respublica Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.
Renascem hoje em dia os mesmos fundamentos reparadores da Realeza. Mais uma vez se confirma a inalterabilidade das leis históricas. Com os exemplos eloquentíssimos que o sindicalismo francês nos oferece e com o espectáculo que pega a destrinçar-se desse borrão confuso que é o bravio industrialismo Yankee, já não sobejam duvidas de que a salubrificação da economia produtora só se alcança por intermédio dum forte vínculo hereditário que não se socorra dos benefícios duma classe, como nas democracias políticas em que os partidos põem e dispõem com feitores discricionários, mas que careça da colaboração diligente de todas as classes, a fim de durar e ser capaz de algum proveito. A finança moderna com o seu cortejo de consequências desastrosas reedita as incertezas e as torturas de outrora, quando o feudalismo campava em açambarcador do género humano. Tão torvas que as condições passadas se nos apresentem debaixo de um tal aspecto, ao menos sustente-se em abono da verdade que o antigo adscrito seguia sempre, de transmissão em transmissão, a geira de terra a que andava ligado. Não tinha voto, nem o cumprimentavam em maré de eleições, como detentor duma molécula de soberania. Mas, perpetuamente fixo ao solo em que nascera, o pobre servo da gleba, transitando de proprietário em proprietário, era—concordemos—, no relativismo da sua negra situação, bem mais venturoso do que o obreiro contemporâneo, porque não lhe faltava nem o teto nem a subsistência.
Em combate desigual com a Maquina que o vence em toda a linha, eis o que não acontece com o operário do nosso tempo que, vítima da tumefacção capitalista, ou se sujeita como um invertebrado inerte aos caprichos sem regra da Oferta-e-Procura, ou então marcha direito para a utopia revolucionaria, com a inteligência elementaríssima mordida de milleniuns subversivos. Explorado pela gula nunca farta do oiro cosmopolita, quando não entretido pelos humanitarismos salivosos da miragem internacionalista, ele é eternamente, na oficina ou na barricada, a matéria bruta que se coloca como degrau de ascensão, ou para as delícias da confiança bancaria, ou para os triunfos sórdidos dos agitadores profissionaes. Falharam e continuam falhando as prestidigitações habilidosas dos arautos da Democracia. E o produtor, dando pelo ludíbrio, já entra a perceber que só nos quadros corporativos é que ha-de achar a armadura vindoira dos seus interesses atropelados.
Derrota-se enfim o individualismo económico, filho dos Direitos do Homem e fonte perene de deperecimento e espoliação. Corrigidas as aparências anárquicas que aqui e além o acidentam ainda, o sindicalismo, sendo por todo o lado o regresso a uma sábia metodização do Trabalho, levanta-se de ora avante em face do futuro como uma norma enérgica de Disciplina e Competência. Consagra a diferenciação profissional e atribue autonomia aos vários agrupamentos técnicos. Por isso já não se esquiva a proclamar a necessidade dum permanente traço de coesão que ao centro assegure a equipolencia pacífica das diversas organizações sindicais. Cai-se deste modo na rehabilitaçao estrondosa da Monarquia. São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da acção imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um acto de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e colectivo.
Tão extraordinário que se revele este passeio pelos arraiais da sociologia, eu não o dispensava para varrer de pronto certos preconceitos dogmáticos com que se contradizem entre nós as virtudes evidentissimas do princípio hereditário. Não só lhe recusam os respeitos que lhe devemos como agente primacial da formação da Nacionalidade, mas vai-se até ao ponto de se invocar o
municipalismo característico da Raça como a condenação sem apelo dos regimes monárquicos em geral. Eu não desejo desencadear, embora debaixo de um mero prisma científico, as susceptibilidades excessivas da psicologia dominante. O que não posso, todavia, consentir é que corra em julgado a sentença sectária que atira um risco de desprezo por cima da obra grandiosa dos nossos Reis, — enquanto foram reis. Será talvez um assomo de coragem mental reconhecer a divindade dos deuses, quando os deuses caíram na desgraça. Será! Mas parece-me que não fica mal à minha mocidade ser desassombrada e sincera.
É bom advertir, contudo, que, reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjectivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun' Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia duzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstancias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Púnica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante duma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessorial duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referencia à aliança das behetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a actual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivos mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse orgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
De anacronismo desacreditado pelas fantasias desimpedidas do Progresso-Indefinido, eis que assume o viço invencível das cousas imortais. A nevrose atrabiliária da Revolução provocou angustiosos problemas que, longe de os solucionar, cada vez os agrava mais no prosseguimento da sua curva fatal. Como ontem, durante a carregada elaboração mediévica, a Monarquia oferece-nos a riqueza ilimitada dos seus recursos naturais. Ela é uma criação realista da sociedade, marca a saúde dos povos e mantém-nos em boa higiene política. Um preconceito escusado! — eu sei que é a resposta de Mr. Bouteiller, vertido para vernáculo em quantos perus enrufados gaguejam para aí a cartilha decadente dos Direitos-do-Homem. Mas seja então um preconceito! Não nos esqueçamos, porém, que já Taine categorizava o preconceito como uma espécie de razão cujas razões se ignoram.
O negativismo étnico e a superstição da Liberdade são nesta pobre terra, desassistida da mais rudimentar cultura, os polos falsissimos entre os quais se desdobra e toma posturas a inteligência indígena. A visão da nossa historia entorta-se em prevenções rancorosas e em miragens inimigas que desvirtuam os grandes rumos da alma colectiva. «As nações perdem-se mais pelo erro do que pelo vicio»—escrevia Le Play à boca dos desastres de 1870. Nós sofremos um tratamento errado que, a persistir, nos arremessará sem remédio para uma vala ignóbil em que até os epitáfios hão-de ser um sarcasmo. Surpreendidos pelas abstrações brilhantes do Humanismo, a febre egotética da Renascença empurrou-nos para a tragédia da Índia, cheios de megalomanias esplendorosas. Quizemo-nos regenerar mais tarde,— é verdade. Mas os areais de Alcácer, que não puderam tornar-se a porta aberta para uma existência direita, ensinaram-nos ao menos a temperar na expiação as cordas líricas do nosso génio adormecido. Seguiram-se colapsos, houve intermitências de vigor. E vai que talvez viéssemos a alevantar cabeça se o romantismo gaulês nos não salteasse em toda a fúria da sua desorganização do Sentimento.
Tutelados por incríveis quimeras exóticas, hoje desconhecemo-nos. Somos tal como o sonâmbulo que anda, mas automaticamente. No vazio absoluto em que um dia dêmos connosco, ao cabo de nos desbaratarmos atrás de mentiras doiradas e de cantigas pérfidas de sereia, entrou-nos até à medula dos ossos o vencidismo dos inúteis, que era o primeiro passo para a anulação cobarde dos suicidas. A série de desastres em que a pouco e pouco se nos foi definhando a virilidade, oh, nós não a denunciamos como o fruto maldito das importações estrangeiristas que intimamente nos dessoravam e dessoram o sangue! Antes a levamos à conta da nossa incapacidade do povo, fadado, — dizíamos —, mais para se conduzir em rebanho, que para empunhar nas mãos desajeitadas o báculo erecto de pastor. Já sem a esperança do Encoberto, a caravela lusitana ia-se ao fundo. Nas solidões do Mar — Tormentório só as almas-de-mestre lhe haviam de responsar a agonia, esquecido nos hortejos de Enxabregas o bom S. Fr. Pedro Gonçalves de momentos melhores e de mais fortuna.
Tenta-se na crise presente uma seria valorisação nacional. Apenas pela volta ao fio interrompido da Tradição se atalhará o despenho acelerado para o abismo. Tradição importa, não um ponto imóvel no Passado, não um enclausuramento em formas obsoletas e cristalisadas, mas sim a obediência consciente àquele determinismo de Raça e Meio que, gerado por inflexíveis condições históricas e físicas, não se aliena de nós sem se alienar conjuntamente a raiz da nossa própria personalidade.
Uma nacionalidade é um facto biológico, ao qual os caracteres hereditários, fixados pela recorrência atávica das gerações para o tipo único que as conforma, reveste de linhas que são tão suas, como é minha a disposição particular e incomunicável que a mim me imprimem os meus antecedentes familiares. Pensar em destruir esses caracteres, começando por ser uma revolta estulta contra as inalteráveis leis da ancestralidade, termina irreparavelmente na inutilização de quanto somos e de quanto queremos. O indivíduo só se explica como elo de uma cadeia que nunca se desata. A historia, considerada em globo, é a assembleia geral dos Defuntos e dos Nascituros. Nós não representamos adentro dela senão uma minoria insignificante, quase imperceptível. É na idealização do homem abstracto, tão abstracto como a Razão-Pura, que o erro metafísico do 93 se fortalece e ateima. Declara-nos libertos dos múltiplos vínculos de ordem moral e material que nos subordinam ao preceito provado dos Avós. E, de desfrenação em desfrenação, tesourados os laços colectivos da Comuna e da Oficina, chega-se ao ponto agudo de romper com a Família e com a Pátria. O libertário, colocado adentro do sofisma, é assim bem mais coerente com ele, de que os democratas encartados da Soberania Popular.
Eu não compreendo o patriotismo da Revolução. Pátria vem de terra patrum, implica o reconhecimento dos valores afectivos e institucionaes do Passado. Nã sendo um crente, Fustel de Coulanges mandava, contudo, no seu testamento que o enterrassem segundo os ritos da Igreja Católica. «Je désire un Service conforme à l'usage des Français, c’est- à-dire un service à l'église. Je ne suis, à la vérité, ni pratiquant, ni croyant; mais je dois me souvenir que je suis né dans la religion catholique et que ceux qui m’ont précédé dans la vie étaient aussi catholiques. Le patriotisme exige que si Von ne pense pas comme les ancêtres, on respecte au moins ce qu’Us ont pense» (Paul Quiraud, Fustel de Coulanges, Paris. Hachette, 1895, p. 266). Eis como se nos descobre a contornadíssima figura do autor de La cité antiqúe nas suas disposições finaes.
Também um dos nomes mais cotados do materialismo francês, o neurologista Jules Soury, declarando-se ateu irremível, confessava-se ao mesmo tempo católico e tradicionalista. Durante a existência, em nós nada há que não se transforme ou que não se renove. Sómente os neurones se conservam inalteráveis, do nascimento até ao óbito. Pois nos neurones reside, como depósito das sensações estratificadas na ascendência, o motivo basilar da ideia de Pátria, que não é, consequentemente, uma ideia de convenção que se robusteça nos conceitos jurídicos da sociedade, mas antes uma realidade tão viva, tão palpitante em nós, como a nossa própria realidade. Sustentando esta razão fisiológica do patriotismo, Jules Soury batia-se pelas regalias civis da Igreja Católica em França, como guardiã secular da cultura autóctone. No aceso do processo Dreyfus lá o vimos a desmascarar o trama semita e pondo toda a sua indignação contra as cabalas sem honra que reabilitaram o Traidor.
Tem fundamentos parecidos o patriotismo revolucionário de ontem e de hoje? Oriundo do Homem impossível da célebre declaração de 89, considera as nacionalidades como um simples arranjo de interesses garantidos pela lei. São como que um estádio de transição, em que a divergência de fronteiras e o instinto de raça se hão-de apagar num quadro mais amplo e mais generoso, como é o da Nação-Humanidade. Não é outra a doutrina ortodoxa dos Imortais-Princípios. Há bem pouco ainda um político português, de ridículo e cordial recorte, assim o asseverava no ministério do Interior a pretos que o tinham procurado para protestar não sei contra quê e porquê. E regeu a criatura uma cadeira de antropologia na universidade de Coimbra!
Entende-se, pois, porque os libertários são, sem favor, mais sinceros e mais coerentes do que os governamentais paridos pelo solitarismo idílico de Jean-Jacques. Eles é que observam com pureza a verdadeira essência da liberdade teórica, advinda com as contemplações naturalistas do Ermo. Descendem em linha recta do nefasto espirito-de-análise, desse barbarismo sem nome nem dignidade que foi a vitória dos ideais protestantes sobre o claro entendimento do Ocidente. Vítimas dum conflito inapaziguavel, julgam lutar, lutar, até às últimas, pela sua emancipação de bestas de carga. No apuro de contas, é contra si que lutam, é contra si que enclavinham as mãos torcionadas, porque na demência que os seduz e avassala, é contra a regra natural de sempre que nós os vemos alevantar, de raivas na boca e os olhos em sangue, bramindo como endemoninhados. Auguste Comte é que soltou um veredictum inexorável. «Insurreição do indivíduo contra a espécie»—exclamava o vidente da Rue Monsieur-Le Prince quando era preciso marcar com um ferro em braza a balbúrdia sinistra da Revolução.
A causa aguda do nosso eclipse mortal deriva, sem dúvida, das máximas negativas com que a Enciclopédia super excitou uma época de imaginação e melancolia. Vagarosamente nos ressarcíramos das feridas abertas pelo delírio ecuménico da Conquista. A Feliz-Aclamação, depois do aprendizado magnífico com que nos exercitaram sessenta anos de cativeiro, soubera-nos restituir os prodigiosos recursos do Luso. Mas aproximava-se a era das interrogações intelectualistas com Descartes por corifeu. «O Discurso-do-Methodo» chegaria a toda a parte, transportando para as categorias psicológicas dos países ocidentais o ácido corrosivo do «livre-exame». O estadismo enfático do século XVIII apossava-se das direções supremas da governança. Á pluralidade riquíssima dos costumes e das instituições sobrepõe-se uma inteiriçada construção geométrica, em que a espontaneidade social se amarfanha e morre sufocada. O vento tumultuario do Contracto provoca a erupção da catástrofe. Descobre-se o Luar, amam-se as ruínas fingidas. E em seguida a um espasmo ideológico em que vai abaixo a Pátria Portuguesa no desaforado empenho com que lhe refaçam o arcaboiço e lhe derrubam os suportes, as fluctuações e as névoas tomam conta de nós. É um lento sossobrar de naufrágio nas aguas podres de um pântano, com uma expressão alvar de indiferença esteriotipando-se em cinismo.
Oh! mas nem tudo se perdeu nas jornadas de 1830 com Mouzinho da Silveira aluindo as paredes mestras da Nacionalidade á força de reformismos e mais reformismos. O «Coração-sensível» traíu-nos nos seus entusiasmos de melodrama. A Carta eu a tenho como uma pregoeira de impudor, leiloando a casa dos vivos, enquanto não punha em praça o palmo e meio de chão onde os mortos jaziam. No embuste constitucionalista continha-se, de corpo e alma, a paranóia de tragi-comédia que hoje nos leva desarvorados como uma nave sem rumo. O que nos aguarda ao termo da doida correria? Ausculte-se o sentir de Portugal num apelo decidido às energias que porventura escapassem intactas! Lancemos um grito de fé que congregue para a grande batalha todas as criaturas de Boa-Vontade! Não têm numero os preconceitos que nos estorvam um gesto, que nos depõem em aposentação, convencidos de que o requiem final não demora aí. Mas se uma claridade súbita nos desembaraçar a estrada e nos conferir o esvaído dom duma finalidade que nos aglutine na demanda do mesmo destino, esta apagada e vil tristeza ha-de ser como a bruma fácil de setembro esfarrapando-se pelas alturas, ao contacto de aragem.
Nem tudo se perdeu nas jornadas fatais de 1830, - dizia eu. É que, se o carnaval permanente dos políticos prostituia o decoro colectivo, reduzindo os mais nobres estímulos cívicos a formulários despidos de senso, uma legião de trabalhadores fervorosos não deixara, no entretanto, de arrecadar da lareira obstruída da Raça as desperdiçadas riquezas do nosso tesoiro tradicional. A ignorância do Povo, - bendita essa ignorância! -, resistindo à esponja uniformizadora dos improvisos administrativos, mantivera consigo, nos recessos mais interditos do seu sub-consciente, o sinal divino do génio lusitanista. Vendida pelos bazares torpes da Regeneração, em que Pacheco campava de braço dado com Acácio, a Pátria era como uma escrava anónima, neta de Santos e de Reis, cuja árvore de costado se houvesse perdido no desabar do prestígio antigo. Então, no afastamento fecundo das províncias que o urbanismo principiava a despaísar, é que os folcloristas e os arqueólogos, pelas seroadas intérminas do bom saber, acudiram, de ânimo contente e dedicação enlevada, ao património em almoeda. Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heroes afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grey, teremos que reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de Antonio Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não crêem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquisas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pergunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcellos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, rectificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efectuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sel-o.
Denunciem-se os pessimismos e os ludíbrios que nos colocaram à margem do coma derradeiro. Pelo espírito histórico rejuvenescido, restituamos à Nacionalidade adormentada o seu inviolável «meio-vital». Com Stein e Mommsen se formou a Alemanha moderna. O historiador antecedeu o político. Que nos importam os negrumes deste minuto pesado, com o estrangeiro do interior mandando entre nós? Quando Fichte proclamava nos seus discursos à nação alemã a superioridade universal do génio germânico, havia em Berlim um governador francês.
A hipótese do HOMO EUROPAEUS
A população portuguêsa é no seu fundo antropológico reputada como a mais homogenea de toda a Europa. O tipo autóctone pertence ao grupo dito de Beaumes-Chaudes e encontra entre nós o exemplo mais completo no homem chamado de Mugem. (Fonseca Cardoso —Anthropologia portuguesa, in Notas sobre Portugal. Vol. I, Lisboa, 1908, pp. 70-72; Ricardo Severo,— Origens da nacionalidade portuguesa. Lisboa, 1912., pp. 29-32).
O homem chamado de Mugem é o dolicoide meão, moreno e mesorrínico, que predomina ainda com maior ou menor pureza nas regiões insuladas da montanha. Identifica-se genericamente com o padrão mediterrâneo ou arábico (Homo-mediterraneus ou homo-arabicus) e filia-se nesse recuado mundo étnico que, desenrolando-se sobretudo á volta das zonas marítimas, se veio a revelar como possuidor duma alta capacidade de cultura através da brilhante civilisação egeana. São os pelasgos da tradição imemorial, óptimos fundadores de cidades, com um assinalado genio pacífico e construtor. Congregados numa vasta irmandade que tomava quasi as costas atlanticas e rompia pelo Estreito adentro, cedo conheceram a navegação e o comércio, conquanto as suas preferencias fossem sedentárias e agrícolas. É ao Levante, em Creta principalmente, que atingem o apogeu da influencia, chegando a determinar as grandes direções religiosas e artísticas do Oriente dominador.
Uma revolução se consuma assim nos âmbitos serenos da sciencia. A miragem asiática desfalece de hora para hora; e o centro irradiador dos primeiros passos da humanidade é para os nossos lados que se desloca,—para a misteriosa Ophiusa dos périplos fenícios. Perante os resultados concludentes da investigação arqueológica, a marcha do Sol, com efeito, não governa mais o rumo dos êxodos antigos. Não foi do Nascente maravilhoso que as Idéas e as Formas, ainda na infancia, partiram com vagares processionaes com rumo ás desvairadas ribas para onde Europa fugiu, cavalgando o touro sagrado. É antes sobre o Atlântico que nós temos de procurar um dos mais ricos lararios da Terra em expectação. Vão-se abaixo as impertinências monogénicas e atrás delas abala todo o aparato teórico com que mais de meio século de presunções e apriorismos se entreteve a improvisar origens. Está bem apeado de altar-mór dos Povos o magestoso Pamir com os seus rios sagrados banhando-lhe as faldas em adoração. O Ex Oriente lux! da velha invocação teúrgica já o não saúda como o berço místico das gerações ajoelhadas. Filhos dos deuses, gente eleita para o supremo oficio de iniciadores, os Arias já se não teem por descidos dos planaltos augustos,—nem o Caucaso, venerado como ninho paterno da familia branca, se estilisa mais para a nossa contemplação com as linhas enigmáticas de logar privilegiado. O alvião osfrangalhou o mito. A filologia não se condoeu e desfe-lo duma vez.
Sabe-se hoje que as sucessivas civilisações europêas foram até á época da Téne (Le mirage oriental in Chroniques d'Orient. Deuxiéme série. Paris, 1896, pp. 535-536.) de pura extração indígena. Uma forte cultura neolítica se desenvolveria em leque, segundo Salomon Reinach, com eixo de apoio na Europa central ou nórdica (Obr. e vol. cit. , p. 565.) Desse ponto, problemático por enquanto, se despediriam para a periferia os admiráveis embriões que vieram depois a adquirir suficiência própria, mal raiou o conhecimento dos metais. Imaginou se por largos tempos que a religiosidade, a agricultura e a industria não passavam de importações comunicadas da Asia por formidáveis massas humanas, marchando lentamente para a ocupação do Orbe. Porém, o vaso classificado de Furfooz, (Salomon Keinach, obr. e vol. cit., p. 518.) de atestada precedencia quaternaria, invalida a peregrina hipótese sem mais embargo nem apelação.
As sepulturas do Solutré, por outro lado, mostram nos o culto dos mortos exercido já com in¬ tensidade na transição mesolítica do Ocidente. Não resiste á mesma contra prova a opinião, longamente professada, de que os animaes domésticos seriam introduzidos aqui por bandos exóticos. É que o cavalo e o boi não representam uma especie zoológica localizada em qualquer rincão favorecido da Asia. Achavam se espalhados no estado selvagem por todo o nosso continente. E a sua domesticidade, como a do cão, do porco e dos outros animaes congéneres, abona-se á farta pelos restos recolhidos em bastantes estações pre-historicas, garantidas pelos mais rigorosos caracteres de autoctonia. (Obra e vol. cit., p. 516 e 521.)
Mas onde o desbarate é ruidoso é no campo da linguística, Demite-se o sanscrito da dignidade de lingua-mãe, apurando-se que o lituano é bem mais anterior nas embaraçadas genealogias idiomáticas. (Obr. e vol. ct., p. 511.) Comparadas as diversas linguas europêas com essa respeitável sobrevivência, vê-se que lhe guardaram com aproximação a morfologia e a fonética, sem que demostrem parentesco mais velho com a lingua suposta dos Arias. A critica encarniça-se deveras em denunciar o equívoco. A queda do sanscrito segue-se a dos Vedas e a do Avesta como literatura inicial da humanidade. As mitografias engenhosas de Max Muller esborôam- se irremediavelmente. E nós ficámos sabendo por trabalhos notabilíssimos que o Ramayana não ascende talvez a 1000 anos antes de Christo. (Obr. e vol. cit., pp. 512 e 513.)
Criaram-se ilusões sobre a remota antiguidade da escrita indiana. Pois actualmente apenas se considera como uma derivação dos alfabetos grego e arménio, de data posterior a Alexandre Magno. É também a data do Avesta, depositário dos tesoiros teogónicos do Turan. Coincide a sua aparição com a renascença persa operada sob os Sassanidas três séculos depois de Christo, sendo o livro sagrado da religião contemporânea dos Acménides. Penetram-no elementos moraes e filosóficos, devidos a um contacto evidente com o judaísmo e com o belo espírito neo-platónico. A redação é em zend, idioma morto, de exclusivo emprego sacerdotal. (Salomon Reinach, obr. e vol. cit., pp. 512 e 513.)
Igual proveniência asiática se quis atribuir á metalurgia. Fixou-se em Malaca e em Banca a séde de importantes jazigos mineraes que alimentariam a Europa durante os alvores do metal. Mais uma ficção que se pulverisa, batida pela realidade crescente! A Península, opulenta de cobre, prelimina o esplendor do período bronzífero. É ás Cassitérides que as naves rudimentares do Atlantes vão buscar o estanho necessário ao fabrico do bronze. Propulsores de uma ampla faina mercantil que em nada se agradece ás parcas transmissões semitas, os Albiões pesquisam e traficam ali uma espantosa abundancia de minério. O movimento de exportação efectua-se para o sudoeste de Espanha,— para Tarcessus, com roteiros assentes, bordejando as costas, e para o âmago da Europa pelas estradas fluviaes do Rhodano, Danúbio e Rheno. A civilisação de bronze sobe por isso entre nós a um ciclo bem mais afastado que o da chegada das van- (Vid. toda a obra de Martins Sarmento, principalmente: Ora Marítima, Os Argonautas e A arte mycénica no noroeste de Hispania in vol I da Portugalia. Aos trabalhos de Martins Sarmento me encosto quando não documente as afirmações que haja de fazer). guardas fenícias ao Mar de Norte ou Mar Cronio no século XII (a. C).
O mobiliário recolhido nas cidades lacustres da Suissa permite-nos recuar mais longe. Um povo que utilizava o bronze e dispunha de umá marinha apreciável já se estabelecera na Sicilia anteriormente á guerra de Troia, — na Sicilia dos Ciclopes e dos Listrigões da criação homérica. A civilisação do bronze reveste-se, pelo exposto, de inteira autonomia no Ocidente. Instrumentos exhumados no Egito e na Caldéa denunciaram pela análise química uma proporção inalterável de nove partes de cobre para uma parte de estanho. É a liga que se observa com regularidade nos objectos desenterrados em toda a latitude oéste-europêa. (Salomon Reinach, obr. e vol. cit., p. 533, e H. Le Hon, L'homme fossile, citado a p. 22, nota, do livro Estúdios sobre la época céltica en Gallicia, por D. Leandro de Saralegui y Medina, Ferrol, 3.ª edição, 1894.) Não se pense, por conseguinte, na aclimatação da metalurgia. Cobre havia-o no Egito, mas o navegador tirio atravessa precisamente o Estreito para obter o estanho que não se encontrava nas paragens levantinas.
Intima-se a cruz gamada ou suastica para se documentar a dimanação oriental dos artefactos metálicos da nossa cultura arcaica. No fim de contas, os mais antigos exemplares do tetracelo não atingem para lá do século XIX (a. C). Descobriram-se em Hissarlik, não sendo o suastica mais idoso na Índia que a occupação macedónica,—ao que parece. Nos cortes realizados em estações da Assyria não se lhe apanharam rastos. Só num baixo-relevo de Ibriz se ostenta como insignia nas vestes dum personagem que é a olhos visto completamente estranho á civilisação babilónica. (Salomon Reinach, obr. cit., p. 529)
Ao mesmo tempo, a passagem da industria da pedra para o uso dos metais é afiançada nas explorações arqueológicas do Ocidente como um acontecimento normal que não oferece reticências nem saltos bruscos. Numerosos são os dolmenes em que as duas idades, uma no declino, a outra apenas amanhecendo, coexistem em igual abundancia de despojos. Enquanto se admitiu que ao neolítico sucedera imediatamento o período do bronze, a miragem orientalista poude prevalecer em senhora absoluta. Pressentida, porém, pelo nosso Estácio da Veiga, a época do cobro afirma-se hoje como um termo indubitável de transição. A’ Península, povoada desde o fundo da pre-historia por um enxame numeroso e diligente, coube uma actividade de destaque nesses prelúdios longinquos da civilisação. É que o homem da idade da pedra, dolicocéfalo e autóctone, foi portador de uma cultura brilhante. As ilhas do Atlântico já então se viam habitadas.
A navegação aqui é infinitamente mais velha que as decantadas empresas nauticas dos mercadores de Sidon e Tiro. Cita-se Furti como a primeira feitoria fenícia nas Espanhas. Ora, quando os flibusteiros de Canaan atravessam as Colunas, os seus périplos instruem-se com os esclarecimentos dos maritimos indígenas, familiarisados de sempre com a via aquática que levava direito ás Cassitérides.
Mais arrojadas que as outras raças do Levante mediterranico, as gentes manhosas da Fenícia arriscaram-se até ás plagas de mistério em que a mitologia instalára o Orco terrível. Empurrava- as já o genio cosmopolita do vendilhão que mais tarde iria pelo Universo fóra propagando as seduções do Bezerro de-Oiro. Mas ao transpor os limites máximos do mundo conhecido, em vez de se defrontarem com os monstros marinhos da Fábula, atalaiando de noite e dia o rio Oceano, por cujas ribas desoladas os Manes se arrastariam aos ais, é com uma civilisação assombrosa que se encontram cara a cara na sua ganancia solerte de andadores de bons negocios.
De cá haviam de levar o alfabeto, que no Ocidente se evidencia em inscrições que sobem provavelmente aos últimos adeuses do neolítico. (Estado da Veiga, Antiguidades monumentaes do Algarve, tom. IV., cap VII; e Ricardo Severo, Origens da nacionalidade portuguesa, pag. 26 e 27.)
De cá transportaram cultos e ritualismos, costumes e práticas sociaes. Um apertado isolamento nos envolvia. Cuidadosamente o conservaram os nossos descobridores de acaso. Falhos de capacidade inventiva, como todo o semita, valia-lhes a inexcedivel força de assimilação que caracterisa as imaginações sensíveis.
Mergulhados no silencio e na sombra, nós continuámos a trabalhar para eles. E são eles que, apossando-se das conquistas naturaes do nosso engenho, figuram perante os textos clássicos como os criadores de quantos dons de industria e de socia¬ bilidade a profunda alma atlantica ensinou ás com¬ pactas massas humanas do período do bronze. Eis como se concebeu o demorado preconceito fenício que tanto vicia a bela mentalidade de Herculano e obliqua em perspectivas erróneas as conclusões do insigne Martins Sarmento, sem duvida um dos grandes anunciadores da moderna corrente ocidentalista.
Pregunta se agora:—desfalcada dos atributos sobranceiros de dogma a excessiva preoccupação monogénica de tantos e quantos doutrinários, a que é que se reduz o arianismo teórico, — houve ou não houve, com efeito, um grupo étnico, mais dotado que os outros, detentor de faculdades mais agudas de percepção, ao qual estivesse reservado, como um presente celeste, a chave das primeiras marchas civilisadoras do homem ?
Um problema de intrincada disputa se relaciona com tão legítima interrogação. Não são alheias a ele as mil e uma querelas que se desenrolam em torno da concepção evolucionista da Vida. Eu não quero chamar para as fronteiras acanhadas do presente inventário o debate dum semelhante assunto. Nem os elementos de que disponho me ajudam de modo a equaciona-lo com a requerida idoneidade scientífica. Não exorbito, contudo, se asseverar que a impossibilidade física do avô terciário é hoje recebida quasi unanimente como uma certeza entre as certezas. O achado de Dubois em Trinil não salvou do descrédito a fantasia omanesca do Precursor. Baldaram-se as fadigas apostólicas de Haeckel tão depressa se lhe surprehendeu a falsificação das suas famosas fotografias embriogénicas. O pobre doutor de lena, do alto do seu pontificado monista, viu-se compelido a declarações que lhe comprometteram para todo o sempre a reputação de scientista honesto. «Depois de uma aventura tão esmagadora, decerto que me considero inexoravelmente desprestigiado, — confessava ele em 29 de dezembro de 1908 no Volkzeitung, de Berlim. Mas eu consolava-me se ao meu lado se assentassem no banco dos reus centenas e centenas de cúmplices que, biologos afamados, cheios da confiança geral, usam e abusam dos mesmos processos.» (Charles Hevraud: — La France de demain. Celle qu' on nous offre. Celle qu'il nous faut. Librairie Aeadémique Perrin & C.ie. Paris, 1911. pp. 352-361.)
O transformismo sofreu com a exautoração do patriarca um golpe mortal. Não admitindo para a origem da existência senão um tipo rudimentar de vida, provido, no entanto, de poderosas energias elaboradoras, abandonou-se á hipótese quimérica dum progresso indefinido, por virtude do qual os mineraes passariam a vegetaes, os vegetaes a animaes, rompendo estes pela monera acima e concluindo no homem ao fim de vinte e quatro estádios, assinalados sem maior cerimonia pelo professor alemão. Caía-se na geração espontânea, — o que se pretendia era negar a evidencia dum supremo acto criador. Tinham corrido mundo as descobertas sensacionaes de Pasteur. Dominados, entrementes, pela obsessão materialista, tres sábios categorisados, Pouchet, Joly e Musset, sustentaram que a experiencia os conduzira a resultados contrários aos do seu ilustre compatriota. Durante um momento Mr. Homais respirou com alívio. Sol de pouca dura foi a alegria farisaica do boticário de Rouen! Um testemunho insuspeito surgia dentro em pouco da parte de Tyndall, cujas tendências anti- espiritualistas se não desconheciam. Adepto das teorias novas em principio, Tyndall acabou por confirmar as leis biológicas que Pasteur formulara, chegando á verificação delas por processos diferentes. «Não ha na sciencia experimental nada de mais positivo»,—asseverava ele mais tarde em acto de contrição. (Charles Heyrand:--Obr. cit.)
Depoimentos de peso deram em se ajuntar uns aos outros. A paleontologia pela boca de Banco, director do Instituto Geológico de Berlim, veio dizer que não se conheciam antepassados ao homem, pois nunca seria possível atribuir a ascendência de todos os organismos vivos a um tronco único. Por outra banda Charles Richet sustentava em público e raso que èntre o primeiro dos macacos e o último dos homens se abria um fosso que ninguém transpunha. E Huxley, que se alcunhara de Bull dog, do transformismo, renegou-o depois numa conversão estrondosíssima.
Com Huxley é que aconteceu a deliciosa aventura do Bathybius. Era o Bathybius uma espécie de muco amorfo, agarrado ás profundidades do mar, que pela sua natureza primordial e viscosa podia muito bem ser um produto espontâneo do protoplasma. Huxley fez alarde com a descoberta e dedicou-a a Haeckel, seu amigo, «qui en avait grand besoin,» —ilucida a ironia mansa de alguém. Pois, transitados onze annos, —o Bathybius alarmara o pensamento scientífico por volta de 1868,—o proprio Huxley assistia em 1879 a um congresso de sábios, reunido em Sheffield. No discurso de abertura, o presidente alude entusiasticamente ao Bathybius. Huxley, mal o ouve, pede logo a palavra. E é Huxley, pai do Bathybius, introdutor na biologia duma monera tão alcovitada,—é Huxley, diante de assembléa suspensa de pasmo, que conta com frouxos de riso a historia divertidíssima da sua descoberta. Ai de nós, o Bathybyus não ia alem dum pobre precipitado gelatinoso do sulfato de cal com alguma matéria organica á mistura! (Cardinal Manning,--Les raisons de ma croyance. Notas do tradutor E. Peltiei, pags. 48 a 51. Bloud & C.ie. Huitième èdition, 1913).
Submetido ao exame do microscopio, revelou-se como uma mucosidade expelida por certos zoófitos quando os ro^am os engenhos de pesca. Assim o observou Milne — Edwards nos seus estudos ocea- nográficos. No que viera a parara gloria do monis- mo! Já se lhe procurara até um ascendente. Das entranhas do Mar-Artico se arrancara nada mais, nada menos, do que o Proto-Bathybiug !
Georges Sorel tinha razão quando classificou as curiosas hipóteses evolucionistas de Haeckel & C.a como contos mitológicos iguaes aqueles que faziam as delícias dos antigos serões aristocráticos. «As consequências do alvoroço provocado por este contos modernos, são de importância, porque os seus leitores convencem-se de que podem resolver-se todas as dificuldades que a vida diaria nos oferece, da mesma maneira porque se resolvem todas as que existem na cosmologia. Provém d’aí a confiança insensata na deliberação das pessoas instruídas e que é uma das bases ideológicas da superstição do Estado contemporâneo.» (Les illusions du progrés, pags. 50. Paris. Mareei Rivié- re. Deuxième édition.)
Eis como o ludibrio racionalista se socorre dos abusos derivados da doutrina de Darwin. A ela pediu a utopia revolucionaria a justificação dos mais dementados gregarismos, tentando explicar o conceito milenarista da Cidade—Futura pelo sentido biológico da Evolução.—segundo o principio do aperfeiçoamento ideal para que os seres tendem indefinidamente, através de alterações consecutivas e incessantes. A instabilidade arvorara-se em segura regra scientífica e sociológica. Não houve invenção subversiva que não se autorisasse com a nomenclatura pomposa do transformismo. Gerou-se a crendice baixa do Progresso que os caixeiros-viajantes ostentam pelos botequins em Teoria da Nacionalidade - pp. 105 ss
Tal como para Antero de Quental, a Expansão foi causa de decadência.
"Um dos prejuízos inimigos da alma portuguêsa é, sem dúvida, o negativismo de raça professado pelos nossos escritores. Teem nos, — Teófilo áparte, — como um desmembramento fortuito do planalto castelhano.
(...)
"Oliveira Martins ficou pesando sobre nós com a sua nefasta teoria do Acaso. Uma doutrina suicida, em conflito com a verdade, nos dirige nos âmbitos da sciencia oficial.
(...)
"Tutela-nos o estrangeiro do interior. São as mais descabeladas quimeras exóticas que deturpam a visão da realidade pátria com ideologias saídas de outra conformação psicológica, com outros determinismos de ambiente e hereditariedade a rege-las. Primeiro foi com o individualismo dissolvente da Renascença a bebedeira doirada da índia. 0 modelo greco- romano viciou-nos o entendimento. Do aparato filológico dos humanistas ao gesto oratorio de D. João de Castro, empenhando as barbas em copia servil a um varão de Plutarco, é sempre uma noção artificial da existência que nos apaixona e transvia. Toda a época se acha contida em mestre André de Rezende falsificando inscrições latinas e indo com grande estrondo descobri-las ao depois." (pp. 107-108)
(...)
"Com a tragédia da Índia e com o grande desvairo do Renascimento obliteram-se as direções ancestraes. Esvai-se-nos no estridor da quermesse o mais rudimentar sentido de continuidade e de coerencia. Detenha-se este reparo singelíssimo: — enquanto Quatrocentos brilha, o sinal inconfundível do genio da Patria conferem lh’o as Côrtes- Geraes, indubitavelmente. Quem vibra, quem palpita, nessas vigorosas assembléas ? A alma dos Concelhos, — o pequeno dolicoide, que é no desafogo das suas energias criadoras o infatigável obreiro da saude e do viço de Portugal." (p. 112)
"O oiro cobre-nos como numa chuva de feira. Todavia, ha fome, por que os campos abandonam-se no exaspero da miragem asíatica. Não se conseguem braços que arroteiem a courela natal em desprezo. As lareiras dispersam-se, emmudecem os teares. Portugal é como uma caravela enorme que desprende a âncora e se atira para as guelas abertas do Tormentorio com uma sereia rindo-lhe á prôa não sei que promessas loucas de perdição. Tomam as pestes conta de nós e levam o resto. As naves voltam da índia, — as que voltam! —, carregadinhas de metaes preciosos. Mas, com tanto dinheiro retinindo numa resonancia de maravilha, o trigo importa-se e o pão custa-nos como o mais raro dos manjares. (p. 113)
"misticismo étnico, misticismo histórico"
"Só as certezas conseguirão indireitar-nos para uma existência cheia de dignidade e de significação. A certeza da Raça interessa-nos mais que nenhuma outra. Ninguém se mete a andar sem ter confiança em si. Se não acreditamos em nós como povo, não serão as oratórias engasgadas dos tribunos a cifra mágica que nos ha-de emprestar o sopro de milagre que fez levantar o paralítico. Fôram mais funestas de que se julga as consequências do scepticismo de Oliveira Martins. A cubiça unilateralista do vizinho cita-lhe passagens inteiras para se autorisar. Em nossa casa os vencidos e os inúteis, para escusarem a sua impotência, glosam-n'a com grandes ares, aconselhando nos o suicidio. Ah, as criaturas sorvadas, de aparência brunida, mas com farelo lá dentro, tal como os frutos que Chateaubriand apanhou nas ribeiras do Mar do Sal! No entanto, a flama arde direita e intacta no coração da mocidade. O dia de amanhã estará conosco,—conosco que sentimos nas veias a reviviscencia admiravel do Luso que desfalece, mas que nunca se rende. Misticismo ? Sim, misticismo — misticismo étnico, misticismo histórico, como o que convulsionou os Balkans, como aquele que do germano incompleto e dispersivo extraiu a obra incomensurável de Bismarck! (p. 174)
INTEGRALISMO LUSITANO (pp. 137 ss)
Eu sei que os arautos da falida ideologia democrática, da qual o nosso Constitucionalismo não era mais que o primeiro ensaio, — eu sei que me obtemperarão com a eterna estrofe do Progresso — Indefinido. Mas, pelo amor de Deus, - se a exclamação se me consente! - , o senso científico da Evolução encontra-se hoje modificado pelas observações experimentais de René Quinton. Em vez de se interpretar como a suscitação incessante dos seres para um aperfeiçoamento que se mede pela distancia que vai da monera ao homem, a Evolução, perdido o seu conteúdo arbitrário e fantasioso, passa de ora avante a designar tão somente uma aturada manobra de permanência. Não mais o devenir interminável de que tanto se utilizaram os padroeiros da utopia libertaria, mas sim o respeito integral pelas condições, primitivas da génese. A Vida é. E como é, procura perdurar, conservando com afinco a sua constância original. Tão cedo esse equilíbrio se modifique, assim se provoca um desarranjo cujas consequências são de total aniquilamento. Evoluciona-se, é facto, mas em limites traçados, com órbita restrita e fins expressos. Coloque-se um embrião. Evolucionar é desenvolver à plenitude todas as possibilidades que dentro dele se contém. Não se alienam nem a precedências que o conformaram, nem as condições de espaço e de tempo que o determinam. Res eodem modo conservantur quo generantur. «As coisas conservam-se pelos mesmos motivos porque foram geradas», - já era a divisa profunda de Rivarol.
Considere se o relativismo como a norma que governa a pluralidade inapreciável dos sêres. Nunca se pretenda obter uma unidade quimérica, que teria como ponto de partida um ovo único, prolongando- se sempre em linha recta e instalando sempre no futuro o exercício das funções superiores da Vida que são imediatas e invariavelmente as mesmas. Eis os corolários que se desprendem da emenda apresentada por René Quinton aos monismos imaginosos do pobre doutor Hoeckel. A superstição racionalista enchia a boca com as escalas embriogénicas desfiadas pelo insigne mistificador de lena. E trasladando-as com um enfurecido exclusivismo para o campo dos fenómenos sociais, deitou-se a justificar assanhadamente quantas paranoias se têm concebido em glosa à Bondade-Natural do onanista idílico do Emílio.
O Progresso, que se inventara em religião omnipotente, descai nas proporções ridículas dum fetiche desengonçado. O Progresso não é outra coisa senão o triunfo da Inteligência que, exígua e rectilínea, apenas apreende o descontinuo na sua faina excessiva de análise. São os sólidos que melhor percebe. Por isso é na Mecânica que se revela com sucesso, porque é aí que se sente mais á vontade a sua qualidade específica. Quando se deseje transplantar para o que pertence à esfera do sub consciente e do complexo, aborta desde logo numa derrocada estrondosa. A base da razão, confinando-se apenas no que o cérebro apanha e concatena, é forçosamente deformadora e unilateralista, levando a essa impotência céptica do querer que hoje se intitula renanismo. Efectivamente, o sofista amavel de L' Abbesse de Jouarre declarava com frequência que se Napoleão fora tão crítico como ele não daria nunca o golpe do Brumário.
O prestígio trascendente da lei é nas sociedades contemporâneas o resultado duma tal hipertrofia de pensamento. Em vez de ser colectividade que inspira o direito, é o direito que a antecede e governa despoticamente. Inventa-se assim o apriorismo rígido de tantos insignes reformadores. «La stabilité sociale a disparue depuis que l'homme c'est proclamé législateur, escreve o publicista Coquille. Les anciens avaient remarqué que le grand nombre de lois est un signe de décadence. Plurimaeleges, pessima respublica. Les lois remplacent les moeurs; elles substituent an frein intérieur de la conscience une répression extérieur. Leur multiplicité est donc un signe de décadence.» (Georges Deherme, Le pouvoir sociale des femmes, Paris, Librairie Perrin, 1914., p. 2)
Com o disfarce do Estado as conveniências privadas dos bandos é que prevalecem por detrás do chavão da legalidade, visto que o agregado deixa de ser um organismo, dirigido por normas inalteráveis, para se tornar um autómato, de direção arbitrária. O sofisma constitucional importa deste modo a sobreposição duma política simplista de princípios a uma política positiva de factos. «La constitution d’un peuple est toujours coutumière, - oiçamos ainda Coquille - , et plus elle est coutumière, plus elle est naturelle. Quando les lois, au lien de s’attacher aux choses de police et de sécurité publique, prétendent régler la religion, la famille et la propriété, elles les ébranlent. Ces trois choses fleurissent surtout en l’absence des lois parce qu’elles vivent d’elles-mêmes et se défendent toutes seules. La nature, qui agit par le temps, les fortifie et les enracine. La coutume est une plante que croit lentement, disait lord Chatam.» (Georges Deherme, obr. cit., p. 50.) Já se entende porque é que D. Miguel valeu entre nós como a expressão do génio da Raça em guarda contra os abusos sem nome da ideologia gaulesa.
Houve durante a Convenção um matemático, não sei se Condorcet, que asseverava que uma lei, em sendo boa, é tão boa em toda a parte como em toda parte são certos os dados dum axioma de geometria. Na linguagem científica da época era o enunciado de tirania espantosa do Homem alegórico da Revolução. Desprezavam-se os particularismos de existência e de destino em que os grupos sociais se definem, para se lhes aplicar à força, senão a bem, a secura hirta duma regra uniforme e absoluta. «Não me obrigueis a empregar as armas para vos libertar!* —já lá dizia no Porto a proclamação célebre do Dador.
No cabo, não é a suposta excelência das ideias que torna os povos felizes. É antes o respeito dos hábitos em que a alma colectiva estratificou as suas seguranças ancestrais. Ensina-o hoje a demopsicologia pela pena incisiva de Gustave Le Bon. Já Taine e Fustel de Coulanges o tinham previsto. É que não se substitui ao passado de uma pátria o passado de outra pátria, tal como nos indivíduos se não pode volver em nada a soma das respectivas aquisições atávicas. O parlamentarismo doutrinário que, com a vista no figurino inglês, se revelou ao conflito romântico como único meio de se reconciliarem os decálogos do Noventa-e-Tres com as direcções do Antigo-Regime, se porventura desempenhara para com a Inglaterra um papel importante de coordenação social, é que nascera além da Mancha como uma criação própria do génio britânico. Transferido indistintamente para fronteiras alheias, seria, sem dúvida, um agente demorado de perturbação. Foram os resultados que colhemos dos entusiasmos diplomáticos de Palmela pela política um tanto escusa do gabinete Canning. Desorganizou-se o meio-vital da Nacionalidade, sujeita a uma maré cheia de inovações. E o pior é que se atribuíram à insuficiência colectiva, e não à qualidade do erro que se nos impunha, os desastres intermináveis da recentíssima ordem de coisas.
Eis o espírito de toda a nossa falida experiência liberalista. Não só se inutilizou o renascimento viçoso de 28, como se caiu depressa em opiniões suicidas, — no deixa-lá-andar tão característico das situações parlamentares. Portugal desaparecia como uma realidade autónoma, preparada do fundo das idades pela acção convergente do Meio e da Etnia. Passava a justificar-se apenas pela forma de governo que o distinguia no concerto vasto das Nações. Inaugura-se assim a nefasta teoria do Acaso, que em Oliveira Martins recebe a verdadeira consagração, apesar de Oliveira Martins ter palpitado no Portugal Contemporâneo a índole negativa do sistema que nos administrava como se administra uma roça de pretos. O País, atrás da ficção cartista, era apenas um pretexto de circunstancia, legitimando pela burla ignóbil do sufrágio a cupidez desaforada das clientelas.
«Governar é aguentar-se no poder», - ditára o cinismo estanhado de Guizot aos burguês da monarquia à bon marche, segundo o sarcasmo doloroso de Balzac. Não praticámos nós conselho diverso. Cada partido queria o Rei para seu uso, na frase definitiva de Wenceslau de Lima. Ilaqueado pelas imposições dos bandos, o Rei via se bem um «mestre-de cerimonias», como a si mesmo se chamara Casimire Périer ao demitir-se. No descrédito sucessivo de todas as mezinhices alvitradas, pediu-se aos homens a responsabilidade que só pertencia às ideias. Daí o resvalar-se no indiferentismo dogmático em formas políticas, quando não se abraçava a ínfima crendice que inculca os regimes electivos como superiores aos regimens hereditários. Enfiávamos por uma senda inclinada que daria connosco aonde agora estamos, — a um passo do abismo irreparável. E ao inventariarmos as perdas sem conto dos dias gordos da Liberdade, nós reconhecemos que a única palavra construtiva que se escuta ao longo da quermesse doidivanas em que Pacheco, de braço dado com Acacio, seguia agarrado à sobrecasaca de Fontes, não é da Carta que ela se solta, não é o Terreiro do Paço que a pronuncia, todo debruçado para a obra mais rendosa de burocratizar o País, de cima a baixo. Ergue-a Alexandre Herculano, clamando no deserto pelo municipalismo patrimonial da Grey. Com ambas as mãos no peito, Garrett já gemera um contrito «mea culpa» pelos calores reformistas da sua aventura de emigrado. Mas é mais forte o brado profético do ermita de Val-de-Lobos que se foi plantar oliveiras na esterilidade sáfara em que o meio o sufocava.
Solicitado por duas tendências contraditórias, a renuncia de Herculano é um exemplo para se guardar connosco demoradamente. Nos livros que nos legou, lê-se o ímpeto demolidor de M.me Staél e de Benjamin Constant, transportando para as categorias mentais da Nacionalidade o criticismo, pernicioso da inteligência protestante. Verte-se esse aspecto inferior do seu aturado esforço em polémicas avinagradas e em análises que crestam como um ácido. Tracemos uma nota explicativa à margem do Eurico e da História da Inquisição. Compreender-se-á melhor a divergência que irreconcilia o autor de paginas tão mesquinhas com a pena inolvidável que ressurge o viver afonsino dos Concelhos e se bate com galhardia ao longo dos Opúsculos «a prol do commum e aproveytança da Terra»,—nos dizeres da velha Ordenação. A falta duma síntese que lhe apaziguasse as brigas da consciência com a razão documenta-se à maravilha nos panfletos de "A Voz do Propheta". Suscitado duma banda pelos subjectivismos artificiais da moda literária, advinda das ribas de França na bagagem do exílio, cedendo por outro lado aos ditames da sua profunda visão de historiador, Alexandre Herculano divide-se, desencontra-se, não se estabiliza, já defendendo o frade de Santa Cruz e as monjas de Lorvão, já alinhando indignações em brasa contra o alastramento do espírito ultramontano. Aonde o pensador reformado se suicida, Alexandre Herculano retira-se, pela qualidade positiva do seu ser, que é o amor «ocidentalista à courela, o qual o não deixa soçobrar no desabamento da ilusão porque arriscara a vida e padecera as agruras do desterro. Era, cedo, muito cedo ainda, para vencer em si o prejuízo liberalista e julgar-se a ele mesmo com um regresso puro e simples às instituições tradicionais da Raça.
A apologia do nosso particularismo municipal fica, no entanto, como um testamento notável que o acredita para nós como um mestre a venerar-se. Lamenta-se como uma vítima da mentira sem honra que nos ganhara, envolta em grandes prometimentos de redenção. Tomaram-no como um visionário os profissionais do Mando, espécie de verborreicos encartados para quem a sonoridade das aparências bastava e de sobejo. O pedautocratismo arrematava-nos na feira pública da Regeneração para nos derrancar os restos da antiga energia. No pânico de naufragio em que tudo se afundava, são de Herculano as únicas agarras que se oferecem á desconjuntadissima caravela lusitana. O estudo do município, nas origens d'elle, nas suas modificações, na sua significação como elemento político, proclama aos vindoiros, deve ter para a geração actual subido valor historico, e muito mais o terá algum dia, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido mas indispensável elemento de toda a boa organisação social».
Criaram-se equívocos à roda de um sonho tão belo. E se o milenarismo dementado da República se gerou entre nós, foi porque intrusamente se apossou dos conselhos finais de Alexandre Herculano. Em nome da Raça e por via do seu característico municipalismo, os desastres consecutivos da Monarquia-Constitucional deram lugar à vitoria dos ideais democráticos. Com Henriques Nogueira se documenta o falso esforço tradicionalista que procurava aclimatar aos nossos limites a solução cosmopolita dos Imortais Princípios. Tempos felizes de apostolado, em que a psicologia das multidões se não conhecia, nem o estrangeiro do interior tomara conta de nós!
Entrementes, Oliveira Martins revelara-se. E nós não nos alargaremos sobre o nihilismo de contagio que lhe escapa de quanto escreve e evoca com o poder diabólico dum médium. Também ele quis achar por fim amarras que o sustivessem e nos sustivessem. Viu a doença, mas errou-lhe o tratamento. Apela para a monarquia de «poder pessoal» que é a Realeza pura de Quatrocentos devolvida ao que constitui o conteúdo próprio da função monárquica. Porém, em lugar de se socorrer do instinto foraleiro do Portugal autóctone, consagrando as miúdas iniciativas locais e técnicas, abandona-se, atacado de germanofilismo, à demencia fantasiosa do Imperio-Ibérico. Só pela reabilitação do elemento lusista nos salvaríamos, se nos viessem a horas os ímpetos salvadores! Aí de nós, Oliveira Martins não acreditava na Raça! Na sua descrença levou consigo uma oportunidade da fortuna para levantarmos cabeça, e com aprumo, desta feita. Meu Deus, se na literatura, se na governação, se no alto mundo, a fina flor do nosso País se arregimentara nos Vencidos da Vida, se o diletantismo reinava em árbitro supremo, como é que nós venceríamos a ladeira, se não tínhamos uma elite que nos suscitasse para o ressurgimento, se a geração em destaque se repartia entre as hipérboles trovejadas por Hugo na musa torpe de Junqueiro, e a ultima pochade naturalista, recomendada por Mariano Pina, alto-comissario das nossas letras em Paris ?!
Existia Teófilo, sim, trabalhando como um beneditino, fechado no seu casulo de iluminado, ardendo todo na missão sacerdotal de atrair a um batismo novo a esperança esquecida do Luso. Percebera-se da importância capital da factor-Raça. E com vislumbres de vidente o que Teofilo mais fervorosamente procurava era a nossa independência étnica, contra o Acaso teórico de Oliveira Martins, o qual contemplava em nós um produto apenas das ambições dos nossos Príncipes. Teófilo subia mais longe, profundando o negrume das Origens, para resuscitar na Lusitania dos Antigos, segundo o Strabão da referencia do estilo, a vasta actividade dum povo embrionário que ascendera devagar as jornadas custosas para a autonomia. Deixava de ser a Lusitania uma alusão pedantesca dos humanistas de Quinhentos, conforme pretendera Alexandre Herculano. Volvia-se numa realidade tão viva, tão plena, como a carne da nossa carne, como o sangue do nosso sangue.
Esta é a significação da obra de Teófilo, que fica, todavia, digo eu algures—, como uma enorme pirâmide sem vértice. Falta-lhe a síntese, o justo remate, de que Teófilo se incapacitara por causa do preconceito republicano que lhe obliquava a retina. Conhecem-se as divergências irreconciliaveis de Teófilo com Oliveira Martins. Contudo, sem que se pense que eu cultivo o paradoxo, Oliveira Martins e Teófilo completam-se. Pedimos ao critico das Modernas ideias na literatura portugueza o sentido afirmativo em que toma a Raça, e, indo solicitar ao místico da Vida de Nun' Alvares o dia de juízo a que convocou todo o período desorganizador da ideologia cartista, teremos a visão da Nacionalidade contornada sem reticências, como que a preludiar os propósitos sadios que animam hoje a geração que avança, d’olhos pregados na Portugalia.
Enquanto Teófilo se encerrava no remanso do gabinete e vinha por lampejos divinatórios ao encontro do Lusismo, desenrolara-se cá fora a cruzada amorável dos folcloristas e dos arqueólogos. Eu acabo de mencionar a Portugalia. Citarei a Revista Lusitana, sem esquecer a Tradição e o Archeologo Portugues. Como Rocha Peixoto, Ricardo Severo, António Tomás Pires, Santos Rocha e tantos outros cavaleiros de resgate, radicava-se o movimento iniciado por Estácio da Veiga ao sul e Martins Sarmento ao norte. No momento em que o urbanismo enrolava o País no abraço sufocante dos seus mil e um tentáculos, são essas criaturas de boa vontade que surgem, de enxada em punho, a arrecadar os despojos dispersos da nossa herança tradicional. Na sinagoga de S. Bento o pedantocrata traía-nos ignobilmente. Com o êxodo dos campos arrefeciam as lareiras da província. Perdera-se na nossa sociedade o sentimento unânime de um fim. Nas sessões de gala o chauvinismo oficial é que falava às vezes das chacinas com que andaramos ensanguentando o Malabar, como se a terra da Pátria não possuísse outro título de gloria fóra dos anais da conquista asiática, recortados em piratarias e vergonhas sem perdão. Ressuscitava-se também a pá de Aljubarrota mais a sanha exasperada do alferes da bandeira na desfeita de Toro. Quando chegava o Primeiro de Dezembro, além do Te-Deum na Sé com sermão repisado sobre as páginas sabida de Rebelo da Silva, — O dia primeiro de dezembro amanhecera puro e alegre»—, saía inevitavelmente, como guloseima para a patriotice, aquele dramalhão imenso em que D. Filipa de Vilhena arma os filhos pouco mais que infantes e os remete com bravura para a degola. Não tinha outro grau a consciência colectiva. Obliterara-se a grandeza do espírito concelhio, que os repetidos códigos administrativos empurravam para o estrebucho derradeiro. Favor nos fazia a Espanha em nos consentir ministério em Lisboa, comum simulacro de exército, bravateando os bigodes para as meninas cismadoras das cidadesinhas do interior.
Nós próprios atávamos a grilheta com as mãos vencidas. Esvaído o instinto de solidariedade em que os povos se apoiam, não havia ideia cívica nem comunhão afectiva por cujo meio se retemperasse o reservatório de energias que se chama a alma duma raça. São os Mortos que lhe alimentam a química incessante. Subtraídos pela adaptação desabusada duma quimera estrangeira à riqueza sem conto do nosso determinismo orgânico, aceitava-se que nos esfarelássemos aos poucos, como um punhado de átomos que se extraviaram de toda a força centrípeta.
Aqui está o ambiente em que os obreiros três vezes abençoados da nossa redenção moirejavam de noite e dia, sem um desalento nem um cansaço. A etnografia confirmava as inculcas da pre-historia. Juntavam-se os informes antropológicos à seara recolhida no adagiário e no cancioneiro. Os materiais acumulados subiam cada vez mais. A construção competia à camada que sucedesse a esses homens de boa vontade nos destinos obscurecidos da gleba. Jaziam alisadas as pedras, rasgados os cavoucos. Não se precisava senão de avivar os antigos alicerces, - de seguir o traçado do solar destruído da Grei. Haviam-no posto a descoberto folcloristas e arqueólogos. E com pujança vingadora o Luso surgia das lucubrações eruditas como um valor inassimilável e vivaz. Louvores a Deus que já vozes de eleição nos diziam povo desde o princípio! Não nos desgarrara o acaso da incorporação natural no planalto castelhano. Fora o Luso, - fora o pequeno dolicoide, de sempre inconfundível com o ibero, a ponto de Silius Italicus na Púnica lhe assinalar já a eterna divortia!
(António Sardinha denunciaria mais tarde haver aqui um de interpretação que ele tomara de Teófilo Braga).
A reabilitação da Raça obrigava à reabilitação das instituições em que o génio dela secularmente se exprimira. Curioso é mencionar agora um fenómeno interessante da psicologia do tempo. Os homens da Portugalia e da Revista Lusitana declaravam-se em maioria republicanos. Ia em semelhante atitude o protesto do seu nacionalismo contra os atropelos quotidianos em que o sofisma constitucional ludibriava as direções mais queridas do País. Regidos pelo tropeço intelectualista do Progresso-Indefinido, aclamavam a República como uma forma de governo superior e como a mais conforme à aptidão comunitária do nosso arreigado sentimento concelhio. Apaixonara-os o caso esporádico da Suíça, na qual, em lugar duma sobrevivência arcaica justificada pelo regime cantonalista que a montanha impõe, se apostavam em reverenciar, de coração entusiasmado, um tipo perfeito de governo, - o mais perfeito dos modelos sociais. Não podendo, por ser cedo ainda, sobreporem-se à época que lhes imprimira feição mental, explica-se bem que não se libertassem das prevenções revolucionarias, de modo a ganharem aquela plenitude de vistas que lhes ensinaria a encarar a Monarquia não só como um sistema político mais racional e mais lógico, mas ainda como o único agente possível do federalismo municipal que tanto lhes sabia merecer. É deles que deriva o equívoco nacionalista que em torno da República se teceu, preparando-lhe as caminhadas dificultosas. Não se carece de mais nada para se medir o vácuo em que Portugal se insensibilizava, transviado de toda a doutrina guiadora.
Quando os elementos positivos assim se dispersavam atrás de névoas sem valia, já se imagina como as camadas restantes, ou se degradavam no obscurecimento, ou seguiam direitas á desnacionalização, desajudadas duma regra que as mantivesse na posse inspiradora dum destino. Sofriam-se as consequências da péssima aventura liberal. Na ficção desmascarada da Carta o que existia em essencia não passava do disfarce de quantos teorismos Benjamin Constant e Jeremias Bentham tinham inventado para vulgarizarem mundo além os mandamentos da cartilha parlamentarista. A inteligência protestante, repito, assenhoreava-se de nós. Não se substitue ao determinismo duma raça a formação hereditária de outro povo. Essa imprudência experimentá-mo la nós, abrindo os braços á metafísica estouvada do Contracto. O «livre-exame» caía-nos em cima, - dentro de pouco oscilavam as certezas tradicionais de Nacionalidade. De onde a sensação de catástrofe em que Portugal se oprimia, porque, em desprezo pelo temperamento inviolável da Grey e sem respeito pelas aquisições da cultura autóctone, se escravizava a Pátria com a tutela duma utopia sem eira nem beira, vagabunda de todas as estradas, pior que o bafo da peste que anda de noite e caminha às cegas. Administrados como uma fazenda arrendada de que se extrai o proveito, sem se cuidar da conservação, não admira que rodássemos para a vala comum numa morte miserável, a que não se consagraria nem o luxo modesto dum epitáfio.
Pois o mal que nos roía, a hoste sincera da Portugalia, em que Rocha Peixoto assumira posições de arauto, o considerava, não como uma endemia própria de tal liberdade dos Imortais-Princípios, mas como o resultado dos raros resíduos autoritários que o Trono porventura entre nós representava. Entende-se já porque Ricardo Severo no opúsculo, As origens da nacionalidade portugueza, se enche de pasmo por Oliveira Martins reclamar uma monarquia de «poder-pessoal», para acudir á crise em que a Pátria parecia perder-se. É que o embuste democrático fizera escurecer o significado às coisas. Ignorava-se a função específica da Realeza, mostrando-se em toda a parte como um ponderador de classes, ao passo que as situações de sufrágio correspondem inalteravelmente ao predomínio cerrado duma casta. Porque é que as suseranias feudais se insurrecionavam a cada instante, procurando abater o prestígio monárquico, e as Comunas acudiam de pronto para o manterem com vigor
Em Roma a república é aristocrática, detendo- se o mando na esfera exclusiva do patriciado, que é quem monopoliza os cargos e usufrui o ager. O Príncipe assoma, trazido aos ombros da plebe. O cesarismo é, como primeiro passo para a chefia hereditária, de natureza meramente popular. O mesmo acontece na actualidade com as chamadas democracias políticas. Ontem seriam os barões mediévicos, utilizando sofregamente a gleba mais o suor do adscrito miserável. São hoje os barões da Finança com o plutocratismo comendo as pequenas iniciativas privadas e abandonando o artífice à dureza da Oferta-e-Procura, como um animal que se explora sem escrúpulos.
A Realeza se instituiu em tempos pela liga das vilas livres para que, soberana a todos os interesses e confundido o interesse do seu interesse com o interesse geral do grupo, se aplanassem as desproporções sociais pela redução ao âmbito próprio da actividade de cada um dos vários egoísmos colectivos, de que o agregado se compunha. Debilitadas pelo defeito de nascença que as coloca à mercê de quem dispuser de mais votos, podem as democracias hodiernas limitar os excessos do individualismo económico, constrangendo a um justo entendimento o Capital e a Produção?
Não, evidentemente.
São elucidativos os escândalos norte-americanos com os trustes dirigindo o parlamento por intermédio da camarilha secreta dos bosses, a ponto de o presidente Woodrow Wilson não achar resolução a um problema tão angustioso, senão apelando para o poder-pessoal pelo exercício forte da prerrogativa de veto que a Constituição reconhece ao chefe do Estado. Para se meditar é o caso sabido da França. O alcoolismo devasta as populações, fornecendo à delinquência e aos manicómios um número assustador de clientes. Solicitam se medidas repressivas, reclama-se a intervenção enérgica dos poderes públicos. Pois para não se desgostarem certas potências eleitorais, tudo continua na mesma, para maior gloria da Terceira-República, bem na agonia, coitada!
Já em 1891 o governo de Washington se conservava silencioso perante a verdadeira guerra privada que se desenvolvera entre os grevistas das fundições de Homestead e os detectives Pinkerton, às ordens do senhor Carnegie, patrão todo poderoso. O proletariado apercebe-se enfim do ilusionismo que o ludibria. A tendencia autoritária dos sindicalistas franceses é bastante conhecida através da hipótese da Monarchie-Ouvrière, servida com tanto brilho por Georges Valois. É um dos mais incisivos doutrinários da economia radical, Edouard Berth, que no livro recentíssimo, Les méfaits des intellectuels, aceita francamente a solução monárquica, como único meio de expulsar das órbitas do Trabalho a gestão importuna e opressiva do Estado democrático. Foi a Revolução que gerou a moderna questão operária por abolir as corporações de artes e ofícios, em que o artífice se resguardava dos caprichos ferozes da Concorrência. O liberalismo tornou-o simplesmente um «cidadão.» Por via da mentira declamatória do voto, derrancou-lhe as antigas molduras de defesa, insuflando-lhe o gosto desorganizador da paixão partidária. As consequencias viram-se no desaforo crescente do feudalismo industrial. Não podem os regimes, apoiados na urna, realizar a apetecida equação social. Enfraquecidos pela sua fisiologia inferior, estão sempre nas mãos das grandes oligarquias financeiras e políticas, como já se disse. Na definição célebre de outro doutrinário sindicalista, Georges Sorel, são governos de classe contra as classes.
Não acontece já assim aos sistemas fixos, com a hereditariedade por fulcro resistente. O Rei não necessita dos votos de ninguém. O egoísmo dele coincide naturalmente com a utilidade colectiva.
Por isso é que é soberano, visto representar em si a soberania dos diversos interesses em que o grupo se soma. A interpenetração pacífica e ordeira das classes atinge-se deste modo com normalidade, sem prevalências de castas, nem exclusivismos de classe. Mas será possível obter-se semelhante identificação nos governos parlamentares, — ou mistos, ou democráticos? Decerto que não. O parlamentarismo, alem de criar a instabilidade nas direções superiores do Estado, traduz sempre o predomínio das conveniências dum bando sobre as conveniências sagradas do todo.
Ora eram as conclusões vigorosas da revisão pragmatista, a que se sujeitou de entrada o século corrente, que as boas vontades da Portugalia e da Revista Lusitana, ignoravam. Não as esclareciam, nem os ensinos fortes dum Le Bon, estabelecendo a demopsicologia como uma ciência certa, nem a verificação triunfante dos enunciados e reflexões do grande Le Play. Filhos do doirado diletantismo da era que findava na mais abominável das impotências edificadoras, se não gritaram um acto de fé que enchesse céus e terra, foram no entanto os anúncios duma outra idade, em que a posse dum destino comum havia de restituir à dispersão das iniciativas o segredo obliterado da consciência da Pátria.
Na hora espessa da incerteza, é lá, - á matéria prima com tanto amor arrecadada, que nós, os rapazes desta geração, nos dirigimos, soltando um clamor unânime de esperança. Somos educados pelos mestres do pensamento culto no repúdio terminante das ideologias gregaristas. Toma-nos o respeito enlevado da Disciplina. E, encostados ao reconhecimento dos limites invencíveis que nos determinam, nós repelimos a Liberdade de maiúscula solene, para reabilitarmos as velhas liberdades de algum dia, em que a Região se bastava organicamente e a Profissão zelava com honra o seu proveito e a sua autonomia. Oh, as intituladas ideias-avançadas, com o serem um luxo ensebado de caixeiro-viajante, são, meu Deus, o pior e o mais nefasto dos arcaísmos! Denunciemo-las como um regresso à barbaria, mais ainda, - como a volta à noite ínfima das origens. Temos por nós o positivismo da época que, sem prevenções sectárias nem atitudes antecipadas de escola, orienta hoje as luzes da inteligência como uma regra segura de ação. Reacionários ? Riamos a risada franca dos heróis, levantando do erro das massas a significação elevada da palavra. Reacionários, - sim, e com desassombro!
Reacionários, interpretando o reacionismo biológico dum agregado que sofre a violação insensata das condições primordiais da sua existência. Esclarecem-nos contra os ataques pomposos da superstição racionalista, duma parte, a crítica imortal de Bergson ao mecanicismo filosófico da Vida, da outra parte, os postulados definidos por René Quinton à face da mais minuciosa observação experimental. É o facto que nos inspira, unicamente o facto. Conduz-nos não a suposta excelência dos Princípios. É o inventario das realidades ambientes o motivo que intimamente nos delibera. Somos tradicionalistas. Mas ser tradicionalista não é encerrar-nos na contemplação saudosa do Passado. É antes reconhecer a contínua sucessão dinâmica em que a historia se coordena entre si, efectuando a solidariedade dos Mortos com os Vivos, segundo a visão admirável dos melhores conceitos de Augusto Comte.
«Evolução» exprime «permanência». É a permanência que nós procuramos obter pela plenitude dada aos recursos contidos dentro do nosso determinismo. «Le devenir, avec son expression concréte dans le phénomène de 1’évolution, declara Jules de Gaultier, n'apparâit plus que comme un moyen pour un éternel presente.» ( La dépendance de la Morale et l'indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, p. 270) Entenda-se a diferença que vai do misoneismo que retarda e obscurece à nossa compreensão prática da sociedade. Não é a placidez da agua morta dum pântano que nós ambicionamos como mira final. As leis psicológicas do desenvolvimento dos povos assentam a variabilidade na estabilidade como senão primário de todo ò bem. E’ á variabilidade na estabilidade que nós tendemos.
Como o indivíduo adulto no pleno desabrocho dos seus préstimos não cresce para alem dos termos já traçados no embrião de que proveio, o mesmo ocorre com as nações, com as raças, com os povos. Zaratustra tirava a sua virtude da resignação heroica com que se submetia ás restrições indomináveis da Existência. Aquele que se falseia e improvisa na demanda de quiméricos humanitarismos tomba na fraqueza ou na morte. O super-homem é o que melhor se sujeita para melhor se possuir. As forças da natureza não se comandam senão obedecendo-lhes. Eis o segredo do olimpismo soberano dum Goethe. E’ a harmonia da precária trajectória pessoal com a marcha invariável das almas e das coisas. A própria manobra da Vida conservando-se nos leva consigo, nos facilita a jornada. Erguer- nos em contradição conosco é um conflito eterno que nada amacia. Porque é que os governos revolucio¬ nários se fartam de encher as cadeias, de povoar os presídios, sem nunca derrotarem a hostilidade incoercível em que terminam por ser suplantados?
E’ que a resistência passiva que os abafa como uma máquina pneumática operando o vazio, não parte do querer circunscrito a um grupo mais ou menos numeroso de indivíduos, - não é um plano de combate, delineado e assente em grémios oposicionistas. O espírito conservador não se nutre do descontentamento dos vivos. E’ o exército invencível dos Mortos que o perpetua e sustenta numa revivescência que nenhum despotismo da terra sufocará. São governos contra a natureza os governos revolucionários. Esbarram a cada hora no escolho em que hão-de naufragar mais hoje mais amanhã, porque se apostam em julgar num materialismo grosseiro que são os corpos, e não as almas, - a alma-mater duma Pátria, - que combatem contra eles o combate surdo que não conhece nem tréguas nem compaixão. Ah, o Príncipe Perfeito, esgrimindo com os espectros nos forros do seu palacio, é bem o símbolo dessa loucura sem nome!
Portadores que somos do futuro de Portugal, assim nós olhamos os complexos problemas que rodeiam a salvação comum duma série angustiosa de interrogações. Primeiro que o mais, é preciso que a Nacionalidade se sinta dona dos seus destinos com uma filosofia que a explique e a robusteça.
Exposto, o Integralismo Lusitano aparece como a escola da vindoira consciência colectiva. As instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue se lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência. Tão depressa se apaguem dos nossos olhos as duas verdades que estabelecemos, nem brio haverá para morrermos ao menos dignamente, cobrindo o rosto com a ponta da toga. Senhores duma síntese tranquilisadora a que concorreram com os subsídios dum honesto eruditismo, como é o dos nossos arqueólogos e folcloristas, as luzes mais insuspeitas da cultura hodierna, nós achamo-nos no nosso tempo, reconciliados com o que é natural e humano em sangue português. O mal descende do esquecimento a que nos votámos, desprezivelmente. Já Simão Machado dizia na Comediu Alfêa que, mandando um ricaço pintar os costumes de quantas nações havia, o artista encarregado da obra
«Pôs ao Portuguez despido nas mãos uma peça de pano».
Explicava de seguida o escritor num remate conceituoso:
«Em fim, que por natureza
E constelação do clima,
Esta nação portuguesa,
O nada estrangeiro estima,
O muito dos seus despreza.»
E’ um traço anedótico que se presta a profunda meditação. Não vale com um motivo de scepticismo para os que o professam em abundancia sobre a sorte e os merecimentos do País. Tome se antes como um indicio da larga desnacionalização provocada pela insânia das camadas dirigentes, em divorcio absoluto com a espontaneidade autóctone desde a hora nefasta da Renascença. Mas já não ha direito para se consentir o equívoco! Bem alto elevámos o nosso brado pela civilização. Humanistas démo-los doutíssimos ao intercâmbio intelectual de Quinhentos. Não nos ficáramos atrás dos outros povos europeus nos alvores do primeiro Renascimento. Santo Antonio e Pedro Juliano, mais tarde João XXI, são luminares do pensamento mediévico. Sempre a nossa contribuição mundial excedeu a pequenez do nosso cantinho. Caímos em desgraça. Foi a cedencia vergonhosa diante da invasão cosmopolita.
No entanto, não somos uma patria morta, arrastando pelo poder da inércia a subsistência precaríssima dos seres subalternos. O que dormimos é o sono secular do Encoberto. Mas quando ha lampejos de vida na nossa modorra, a Raça descobre-se magnífica, como que inspirada por um fim imortal. Falem as campanhas da Aclamação, fale a guerra santa contra os Francêses, - que fale o Portugal concelhio de 1828! A nossa homogeneidade étnica nos dá a virtude indebelavel da resistência. E’ o pequeno dolicoide, sobrevivo da Atlântida, criador da arte egeana, que nos reservatórios incansáveis da energia patria elabora sem cessar o grande espírito de que o Luso se mostra condutor á hora espessa da crise. Voltemos á continuidade tradicional interrompida. E de pronto, com a reconstituição do seu meio proprio, a alma suprema da comunidade ha-de ser conosco!
Não é um exagero literário a importância que eu confiro ao factor antropológico. Nem se suponha que uma raça homogenea significa para mim o rigor duma raça pura. Eu considero aqui a raça no sentido histórico, embora com uma renovação constante desse tipo formado pelas circunstancias do espaço e do tempo, que é o Lusitano, ou seja o dolicocéfalo meão. Com as imiscuencias posteriores os caracteres somáticos podiam sofrer, e sofreram alteração, efectivamente. Mas o que representava o conteúdo psíquico do nosso homem aborígene prevaleceu acima de tudo, imprimindo-nos a unidade moral e afectiva, sem a qual a Pátria nunca a veríamos possível.
Corra-se em escorço a jornada da Nacionalidade. Mais uma vez, num esquema breve, se demonstrará a natureza do nosso determinismo. E’ em Muge que o mais remontado avô dos portuguêsès se manifesta com evidencia, afiançando-nos um sedentarismo instintivo que já se praticava com aferro, ainda a agricultura se não sabia bem aonde vinha. Eu não aludo á hipótese tentadora que nos contorna o habitante arcaico dos vales do Tejo e Sado, surgindo do solo, como produto nato, mal teriam cessado as comoções geognósticas que estabilizaram aquela parte do nosso território. Assim quasi que nasceria o torrão amorável de Portugal de envolta com a criatura que o havia de povoar e de lhe ganhar um nome. É’ bela, sem dúvida, a teoria, toda cheia das melhores sugestões para o ocidentalismo apenas na infância. Não a utilizamos, contudo. Aceitem-se tão sómente as pesquisas do malogrado Paula e Oliveira quando nos informa da aptidão sedentária do íncola mesolítico de Mugem.
«No alvor do conhecimento e por essa sociabilidade pacífica que o sedentarismo facilmente engendrava — consinta-se que eu me transcreva (Teófilo, Mestre da Contra-Revolução, parte II. Estudo em publicação na revista de filosofia política, Nação Portuguesa), — depressão avô recuado enterrou os seus mortos. Enterrando-os, mais um vínculo o prendia e o fixava. E’ que a inhumação antecede entre nós os ritos incineratorios, de proveniência estranha, e toma-se como um dos sinais específicos das arredadas gentes que para estas partes se insulavam. Sobre o depósito mortuário assentaria a lareira dos vivos: — o fogo, que veio a consagrar-se como sinónimo de família, e se acendia em cima do «loguo», em que os antepassados repousavam. O encadeamento das gerações pela subordinação dos sobreviventes ao culto ancestral manifesta-se de entrada. A necrolatria, erigindo os dolmenes e tornando-se a regra espiritual duma colectividade em inicio, ao tempo em que promovia a coesão autoritária, dava simultaneamente o sentimento duma mesma promanação. Pelo oculto poder do sangue a unidade gentilícia se entrançava. O direito de cidade e o equilíbrio da comunidade vieram de seguida, por via do contacto quotidiano em que o elementar instinto de vizinhança se fôra acordando.«Aferrada ao chão que lhe engulia os filhos de¬ pois de os haver gerado, a raça de Mugem, — as¬ sim etiquetada hoje nos recintos scientíficos — , com o desenrolar das solicitações vitaes, não se entre¬ gou á pastorícia. própria tão sómente dos grupos turbulentos e erráticos. O atavismo, que a acolche- tava ao solo fecundo donde brotara, a aquecia na religiosidade branda das coisas naturaes, — bem cedo lhe conferiu a pendencia para o ruralismo pro¬ dutivo e amoravel da gleba. Como derivante, as comunidades agrarias se entreteceram, originando o nódulo populacional que o romano nomeará vi- cas e que era um modo de ser inherente ao H.-Atlan- ticus, como se comprova, por exemplo, pela djemâa berbere, de aproximada organização igualitaria,
mas centralizada sob uma forte chefia religiosa. A nossa aldeia paleo-historica, deduzida da longínqua faculdade sedentária que os córtes da bacia do Tejo e Sado nos participaram, apoiando se na colectivi- zação da terra para os efeitos da cultura, possuia idêntico hifen hierárquico em virtude da norma teo- crática que a necrolatria necessariamente lhe im¬ punha.
aO regulamento interno do grupo pode abonar- se, em referência á azáfama e á colheita, com a notação conservada nos viajantes clássicos ácerca dos vaccei que habitavam a concha do Douro. Todos os anos se partilhava o solo arável, sendo
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INTRODUÇÃO A UMA CAMPANHA NACIONAL
1915
ALMEIDA, MIRANDA & SOUSA, Editores
133 — R. dos Poiais de S. Bento —135
LISBOA
A Ana Júlia
minha Mulher
A VERDADE PORTUGUESA
PROGRAMA DUMA GERAÇÃO
«J'écris à la lueur de deux vérités eternelles: la religion, la monarchie, deux necessités que les événements contemporains proclament, et vers lesquelles tout écrivain de bon sens doit essayer de notre pays.»
BALZAC. Prefacio de «La Comédie Humaine»
A idéa de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica dum todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito político de Grey que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular.
A coincidência dos nossos elementos nativos com as direções concentradoras da Corôa obtivera-se enfim, depois da prova magnífica que fora a jacquerie dos Concelhos, erguendo voz pelo Mestre contra o pendão de Dona Beatriz. Não há que duvidar já agora de que o íntimo segredo da história portuguesa consiste num inabalável motivo de ordem étnica. É o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferencias sedentárias, quem fundamenta as raízes da Pátria e no desenrolar dos acidentes desorganizadores surge sempre, à boca do perigo, a pronunciar a palavra de salvação. A integridade desse valor antropológico retém consigo, na guarda da sua pureza, todo o esforço que preside aos dramas formidáveis da nossa independência.
Efectivamente, as mancomunidades agrícolas que, comportando as aptidões localistas do nosso homem primogénito, vieram a concluir na forma social do Município, conservaram pela fixidez à terra, limpos de toda a mistura abastardante, os recursos infinitos da nossa árvore ancestral. Passaram as invasões tumultuando como uma enchente que emparelhe montes e vales. Mas o gosto decidido pelo arraigamento, prendendo ao sólo com vínculos centenários os indivíduos e as agremiações, com o conceder-lhes uma resistência que nada vencia, transmitia-lhes a mais poderosa das impermeabilidades. Eclipses demorados interromperam a plenitude autóctone, - irrecusavelmente. Dormitando, porém, o que pareceria uma derrota mortal, um fim sem remedio, não era no fundo senão a economia da duração, trabalhando com afinco pelo restauro das energias perdidas. Do sedentarismo característico do Luso partiria assim, como duma virtude de maravilha, o início de quantas afirmações de vontade e heroísmo lhe conferiram a existência livre de povo. São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês. As hostes comunais intervêm sempre lá onde o guião sobranceiro da autonomia corra o perigo de tombar nas mãos do vizinho cobiçoso. Em Ourique mostram-se-nos assentando os alicerces à Nação. São as vilas de 1384, pondo o Mestre por nosso regedor e alçando mais tarde o Regente à defesa comprometida do Reino. E já se não fala da Feliz-Aclamação com as ordenanças bisonhas dos Municípios escrevendo a epopeia ignorada duma guerra de vinte e oito anos, - nem nas juntas concelhias do século passado, alevantando Portugal em peso contra a presença dos Franceses. O motivo de ordem étnica em que reside o segredo intimo da nossa história comprova-se abundantemente. É que nos moldes particularistas da Raça remanescia, como um substractum inalienável, à força hereditária do Luso, guerrilhando por uma reposição desafogada e fecunda, como outrora nas gargantas do Hermínio, ao som da buzina de Viriato. Se não admitirmos uma lenta preparação atávica que desde muito de atrás nos andasse elaborando como uma realidade social que se basta a si própria, não se compreende pela doutrina simplista do Acaso que, varrido o islamita até às orlas do mar do Algarve e expulso o barão novigótico para o planalto castelhano, se levantasse de súbito da gleba libertada uma pátria cheia de vigor, vibrando toda de cima abaixo no sentimento duma mesma finalidade. É que vínhamos de longe, - dos alvores dessa gente primitiva que nas bacias do Tejo e do Sado se revelou bem cedo, enterrando os mortos e já com cabana armada, quando nem pronúncios havia ainda da prática da agricultura. Das simpatias sedentárias do habitante-típico de Muge se extrai, em verdade, o germe do qual a Pátria Portuguesa se veio a formar. O culto dos Mortos, originando uma colectividade apoiada no traço do sangue, depressa ascendeu o nosso homem antigo ao quadro rudimentar de aldeia, garantido por um patrocínio religioso que se traduzia certamente no modelo patriarcal. Chega de seguida a profissão agrícola. O enraizamento espontâneo do aborígene intensifica-se. E já fortalecido pela comunidade do parentesco, acaba de se organizar pela comunidade do solo. São conhecidas as bases agrárias das nossas citânias. As citânias marcam o estádio imediato ao vicus arcaico em que o embrião de Muge, crescendo sempre, pretende atingir uma expansão maior das suas possibilidades naturais.
A esta fase de isolamento ainda, sucedem-se as federações temporárias de cividades com determinante na ocupação romana. Aparecem assim as arimanias, ou germanias, de índole estrictamente guerreira, e, como a etimologia ensina, recebendo do estatuto de vizinhança a sua razão principal. Uma vez instalado o pesado aparelho administrativo do Lácio, a interpenetração episódica das citânias ganha permanência pacífica. Os moradores insulados dos nossos vilares proto-históricos sobem então a um grau de sociabilidade mais completa. Atraídos agora à ribeira, os conventi publici vicinorum do dominador imprimem-lhes um apertado espírito de convivência, — entra a criar para eles outras proporções o sentido comum da colectividade. Entrementes, as tendências características da Raça radicavam-se num vasto sistema institucional. Cortam- nos o torrão, primeiro, as tropeladas do dolicocéfalo loiro, raptor orbis, - no dia seguinte, as aluviões compactas dos fillios de Agar. Não esmorece, todavia, o génio pertinaz do Luso. E quando com a Reconquista as camadas indígenas da Península obtêm um farto minuto de respiração, as behetrias mostram-se como o tecido estrutural da Nacionalidade nascente. A Pátria Portuguesa resulta depois do entendimento instintivo desses pequenos núcleos populacionais que, trazidos a uma compreensão mais larga da existência por unânimes necessidades de defesa, lograram equilibrar em acordo perpétuo as ligas ou pactos militares da ante-véspera, quando o rumor das legiões inimigas crescia do vale para os castros atalaiados lá ao alto.
Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu enrobustecimento. O Altar e o Trono são as duas formidáveis disciplinas que o hão-de aguentar intacto nos trabalhos custosos para uma maioridade que ninguém lhe reconhecia e que ainda agora, perdidas ambas num turbilhão de insensatez criminosa, não passa de uma condescendência precária perante a dura lei imperialista duma época que já não embarca nas baixas fantasias da superstição democrática.
A constituição das Pátrias é, com efeito, em toda a banda o sinal poderoso de quanto vale dinâmica e staticamente o factor-Autoridade. Quem medita os nossos antecedentes de povo e desvenda bem os laboriosos prelúdios de que brotamos, impressiona-se decerto com as mil e uma tentativas do Luso para se estabilizar numa expressão colectiva mais franca e mais sólida que o cantonalismo primevo. Já vimos que, quando o romano irrompe, se experimentam as germanias, como uma aliança de cividades que transpõem o estreito aro comunal e apelam para as relações de vizinhança, afim de oferecerem ao invasor uma barreira mais duradoira e melhor erguida. No entanto, dependentes de chefes eleitos e como tais transitórios, as germanias ficam-se em ensaios preliminares que uma peleja desfaz ou que uma dissidência prejudica. Só a hereditariedade serviria ao agrupamento, de maneira a elevá-lo ao consenso tácito da Pátria.
Desde que um agregado encontra uma linhagem que incarne no seu interesse privado, como interesse do conjunto, os interesses das partes componentes, só nessa altura pode considerar-se protegido contra as surpresas do futuro, sem receio que o enfraqueçam, ou os desvios da fortuna, ou as reticências da hesitação. Existe um fim, —não falta a certeza dos meios com que procura-lo. É só correr-se em harmonia com as inclinações fundamentais e coordená-las em vista ao alvo desejado. A prosperidade e a saude do novo ser social despontam sem tardança, com as promessas brilhantes da glória e o exercício superior dos dotes da vontade. É a ocasião em que se manifesta uma regra espiritual, simultaneamente coercitiva e arrebatadora, que, conformando a mentalidade própria das circunstancias, lhe concede aquela vocação mística que torna os povos senhores dos seus destinos, e como que donos do terreno que pisam.
Eis porque a Cruz e a Espada são os admiráveis sustentáculos da nossa independência, alcançada a poder de tantissimo sangue. Nós morreríamos nos torcicolos da longada, se o concurso dessas duas forças tradicionais nos não ajudasse a estabelecer o nosso lugarsinho ao sol, - se entregues apenas á espontaneidade do génio da Raça, nos não resguardassem de emboscadas e de inadvertências, dum lado, a ambição pessoal dos nossos Príncipes, do outro, os ditamos vindos de trás-os-montes,— da claridade augustíssima de Roma.
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria. Mas a liberdade só se efectiva quando ponderada pela Autoridade. Sem um valor de acentuado conteúdo concentrador, jamais se viabilizaria a perequação dos nossos diversos egoísmos institucionais, de cujo entrelaçamento os tecidos nervosos da Nacionalidade se haviam fiado. É um exemplo que convence o abandono da Itália aos excessos da tendência comunalista. A unidade só tarde se conseguiu, porque as querelas comerciais e políticas das diferentes cidades preponderantes não quiseram submeter-se à fiscalização duma dinastia que as neutralizasse debaixo do seu governo.
Aonde é que se descobrem demonstrações de vigor que sobrepujem as que a Lusitânia afirmou durante o duelo tremendo com as tropas do Lácio? Contudo, digam-me, apesar dos analistas latinos qualificarem de magnis gravibusque bellis a resistência assombrosa das nossas citânias, se se ultrapassou a fase recuada de exclusivismo em que as populações se isolavam umas das outras, - se por ventura um outro sentido maior de existência colectiva se anunciara ás massas armadas, descidas dos outeiros fortificados para o combate em fileiras sob o comando de cabecilhas, que as mais das vezes não eram dos maioraes da gens? Não lhes assistia a função homogeneizadora de uma enérgica magistratura hereditária. Não nos causa por isso estranheza que a Guerra dos Ladrões, que tamanhos embaraços provocou a Roma consular, descaísse quasi no total aniquilamento desta féra ninhada de batalhadores.
Eu bem sei que no declinar da idade antiga os elementos de que proviémos como povo não possuíam ainda a consistência suficiente para merecerem a emancipação. Confinados no mais fechado particularismo, foram exactamente as pugnas sobrehumanas a que Roma os confrangeu que despertaram neles como que a percepção de horizontes novos, revelando-lhes o caracter sagrado duma causa que, sendo duns, se amostrava de todos, no fim de contas. Tinham que ser vencidos para que não regressassem ao período anterior de desconfiança, com brigas constantes de limites e psicologia ínfima de tribu. Sujeitos a uma cerrada uniformidade demográfica pelo apertado sistema tributário do Império, pelas exigências miúdas do censo, o Império obrigava a uma comunicação quotidiana as relações, cada vez mais estreitas, dos que se haviam visto coagidos a trocar a corôa amuralhada dos montes pelo assento tranquilo e produtivo das veigas. Quando essa rede cortical se rompeu e o genio oculto do Luso voltou a aflorar, a unificação consumara-se. Agora só importava entrar-se na demanda difícil da alforia. As simpatias sedentárias da Raça, vasadas já na forma social do Município, traçavam os alicerces inabaláveis da Pátria.
Alçando-se á suprema judicatura por via dum mandato explícito das nossas mancomunidades agrarias, a Realeza aparece a incarnar o agente político, sem o qual o equilibrio da colectividade se volveria impossível. D’outra maneira, a fragmentação teria de ser um acontecimento de todos os dias. Libertos da presença dum fulcro imóvel que assegurasse a duração e a continuidade, os apetites centrífugos das diversas iniciativas comunais poriam dentro de breve a saúde do grupo num estado revolto de decomposição. Eis porque a ditadura instalada ao alto protege sempre em justos termos a coexistência desafogada das outras partes do organismo. Por antogónicos que pareçam, entende-se já que o Rei e os Concelhos são factores que se corresponde e acabam de completar. Senão, — se desfiarmos os olhos ao arrípio dos séculos, que vemos nós desde que as liberdades se encontraram com a Autoridade ? O engrandecimento do poder real acompanhar-se inalteravelmente do exercício pleno da franquias municipais.
Os municípios exprimiam as tendências ingénitas da Raça. Não caímos em erro se os classificarmos entre nós como formações absolutamente naturais. Por um processus associativo, frequentíssimo no mundo biológico, uma células pegaram a juntar-se ás outras. E por força das circunstâncias do Meio e da Ètnia, Portugal se constituiu como soma normal de tantas parcelas pequenas, em tudo idênticas e concordes. Até o nome lhe adveio dum castro a cavaleiro do Douro, para que em nada padecesse dúvida a sua genealogia de terra livre.
Derivado duma federação de reduzidos núcleos independentes, em que as behetrias de Reconquista se compunham com os ópidos da ocupação romana, é uma cividade modesta que o batiza, consagrando-lhe como madrinha a entranhada estrutura particularista. A sombra da azinheira votiva do Luso, estipula-se ao depois a aliança das gentes anónimas, que se custodiavam de vexames e algaradas pela reciprocidade do estatuto da vizinhança, com a pessoa solene do Príncipe, que, de arnês reluzente e ginete escarvando, velaria pelos fracos e oprimidos, guardando do inimigo os Altares e os Lares, os Berços e os Sepulcros. Os forais acusam a base contratual da Monarquia Portuguesa, que não é uma monarquia firmada na ideia germânica da posse, mas uma magistratura respeitável, em que o Rei não é um soberano que se reverencie de recuas sobre uma paisagem de forcas vergando como latadas, mas simplesmente um cabeça em que todos, grosso e miúdo, se reconhecem à uma.
Se o conceito de posse, — de desfruto territorial, decidisse da feição peculiar da nossa Realeza, o predomínio seria mas era conferido aos próceres que, pares do monarca, haviam de primar em amos despóticos, sorvendo sofregamente o suor das populações soldadas à gleba. Engendrava-se um governo de casta, de índole feudal e militante, em que um ferrenho juízo aristocrático da sociedade cavaria diferenças fundas de campo para campo. Supunha-se deste modo uma situação primeira de guerra em que os naturais tivessem subsistido à derrota, mas como ilotas miseráveis que se possuem préstimo é só o de bestas de carga.
Bem pelo contrário, o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui del-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário»,— chamariam os lavradores em cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas descernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
Não se ignora a verificadíssima lei sociológica que depõe na subida dum césar a melhoria sensível das classes espezinhadas. Os regimes electivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direcções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula. Já assim não acontece com as composições ditatoriais ou hereditárias. Evitam por qualidade de nascença a intromissão abusiva das castas e são as operárias zelosas da verdadeira capacidade civil do povo. Com a queda da república romana, é o patriciado que tomba entre os clamores irados da plebe. O Príncipe, que o Substitue, acompanha-se dum respiro largo nas camadas obscuras da população, contida no mais duro desprezo pelas regalias demasiadas com que a nobilitas se isentava. O pretenso sistema democrático da Grécia clássica resolve-se, no cabo, num morgadio de felizes que se apoiava na escravatura, com o retórico declamando no agoras, à custa do seu semelhante, todo torcido para a courela alheia, no calvário sem nome de a amanhar e fazer produzir. O título de cidadão restringia-se tanto quanto possível. E só quando os Tiranos se estreiam com um novo ciclo é que essa cinta de ferro se vence, atraindo ao seio da Cidade muitos esforços secularmente repudiados. Sempre as batalhas da economia antiga terminaram pela vitória do ditador, cujo advento restituía ao agregado aquela justa harmonia já tão desejada pelo apólogo de Menenio Agripa. Repetem-se no decurso das idades as normas inflexíveis com que a história se governa. E ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua actividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristoteles, S. Tomás vai impôr ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade colectiva» ilumina a claríssima concepção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribue pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. 0 Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
É a ideia confraternizadora da «Respublica Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.
Renascem hoje em dia os mesmos fundamentos reparadores da Realeza. Mais uma vez se confirma a inalterabilidade das leis históricas. Com os exemplos eloquentíssimos que o sindicalismo francês nos oferece e com o espectáculo que pega a destrinçar-se desse borrão confuso que é o bravio industrialismo Yankee, já não sobejam duvidas de que a salubrificação da economia produtora só se alcança por intermédio dum forte vínculo hereditário que não se socorra dos benefícios duma classe, como nas democracias políticas em que os partidos põem e dispõem com feitores discricionários, mas que careça da colaboração diligente de todas as classes, a fim de durar e ser capaz de algum proveito. A finança moderna com o seu cortejo de consequências desastrosas reedita as incertezas e as torturas de outrora, quando o feudalismo campava em açambarcador do género humano. Tão torvas que as condições passadas se nos apresentem debaixo de um tal aspecto, ao menos sustente-se em abono da verdade que o antigo adscrito seguia sempre, de transmissão em transmissão, a geira de terra a que andava ligado. Não tinha voto, nem o cumprimentavam em maré de eleições, como detentor duma molécula de soberania. Mas, perpetuamente fixo ao solo em que nascera, o pobre servo da gleba, transitando de proprietário em proprietário, era—concordemos—, no relativismo da sua negra situação, bem mais venturoso do que o obreiro contemporâneo, porque não lhe faltava nem o teto nem a subsistência.
Em combate desigual com a Maquina que o vence em toda a linha, eis o que não acontece com o operário do nosso tempo que, vítima da tumefacção capitalista, ou se sujeita como um invertebrado inerte aos caprichos sem regra da Oferta-e-Procura, ou então marcha direito para a utopia revolucionaria, com a inteligência elementaríssima mordida de milleniuns subversivos. Explorado pela gula nunca farta do oiro cosmopolita, quando não entretido pelos humanitarismos salivosos da miragem internacionalista, ele é eternamente, na oficina ou na barricada, a matéria bruta que se coloca como degrau de ascensão, ou para as delícias da confiança bancaria, ou para os triunfos sórdidos dos agitadores profissionaes. Falharam e continuam falhando as prestidigitações habilidosas dos arautos da Democracia. E o produtor, dando pelo ludíbrio, já entra a perceber que só nos quadros corporativos é que ha-de achar a armadura vindoira dos seus interesses atropelados.
Derrota-se enfim o individualismo económico, filho dos Direitos do Homem e fonte perene de deperecimento e espoliação. Corrigidas as aparências anárquicas que aqui e além o acidentam ainda, o sindicalismo, sendo por todo o lado o regresso a uma sábia metodização do Trabalho, levanta-se de ora avante em face do futuro como uma norma enérgica de Disciplina e Competência. Consagra a diferenciação profissional e atribue autonomia aos vários agrupamentos técnicos. Por isso já não se esquiva a proclamar a necessidade dum permanente traço de coesão que ao centro assegure a equipolencia pacífica das diversas organizações sindicais. Cai-se deste modo na rehabilitaçao estrondosa da Monarquia. São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da acção imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um acto de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e colectivo.
Tão extraordinário que se revele este passeio pelos arraiais da sociologia, eu não o dispensava para varrer de pronto certos preconceitos dogmáticos com que se contradizem entre nós as virtudes evidentissimas do princípio hereditário. Não só lhe recusam os respeitos que lhe devemos como agente primacial da formação da Nacionalidade, mas vai-se até ao ponto de se invocar o
municipalismo característico da Raça como a condenação sem apelo dos regimes monárquicos em geral. Eu não desejo desencadear, embora debaixo de um mero prisma científico, as susceptibilidades excessivas da psicologia dominante. O que não posso, todavia, consentir é que corra em julgado a sentença sectária que atira um risco de desprezo por cima da obra grandiosa dos nossos Reis, — enquanto foram reis. Será talvez um assomo de coragem mental reconhecer a divindade dos deuses, quando os deuses caíram na desgraça. Será! Mas parece-me que não fica mal à minha mocidade ser desassombrada e sincera.
É bom advertir, contudo, que, reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjectivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun' Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia duzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstancias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Púnica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante duma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessorial duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referencia à aliança das behetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a actual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivos mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse orgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
De anacronismo desacreditado pelas fantasias desimpedidas do Progresso-Indefinido, eis que assume o viço invencível das cousas imortais. A nevrose atrabiliária da Revolução provocou angustiosos problemas que, longe de os solucionar, cada vez os agrava mais no prosseguimento da sua curva fatal. Como ontem, durante a carregada elaboração mediévica, a Monarquia oferece-nos a riqueza ilimitada dos seus recursos naturais. Ela é uma criação realista da sociedade, marca a saúde dos povos e mantém-nos em boa higiene política. Um preconceito escusado! — eu sei que é a resposta de Mr. Bouteiller, vertido para vernáculo em quantos perus enrufados gaguejam para aí a cartilha decadente dos Direitos-do-Homem. Mas seja então um preconceito! Não nos esqueçamos, porém, que já Taine categorizava o preconceito como uma espécie de razão cujas razões se ignoram.
O negativismo étnico e a superstição da Liberdade são nesta pobre terra, desassistida da mais rudimentar cultura, os polos falsissimos entre os quais se desdobra e toma posturas a inteligência indígena. A visão da nossa historia entorta-se em prevenções rancorosas e em miragens inimigas que desvirtuam os grandes rumos da alma colectiva. «As nações perdem-se mais pelo erro do que pelo vicio»—escrevia Le Play à boca dos desastres de 1870. Nós sofremos um tratamento errado que, a persistir, nos arremessará sem remédio para uma vala ignóbil em que até os epitáfios hão-de ser um sarcasmo. Surpreendidos pelas abstrações brilhantes do Humanismo, a febre egotética da Renascença empurrou-nos para a tragédia da Índia, cheios de megalomanias esplendorosas. Quizemo-nos regenerar mais tarde,— é verdade. Mas os areais de Alcácer, que não puderam tornar-se a porta aberta para uma existência direita, ensinaram-nos ao menos a temperar na expiação as cordas líricas do nosso génio adormecido. Seguiram-se colapsos, houve intermitências de vigor. E vai que talvez viéssemos a alevantar cabeça se o romantismo gaulês nos não salteasse em toda a fúria da sua desorganização do Sentimento.
Tutelados por incríveis quimeras exóticas, hoje desconhecemo-nos. Somos tal como o sonâmbulo que anda, mas automaticamente. No vazio absoluto em que um dia dêmos connosco, ao cabo de nos desbaratarmos atrás de mentiras doiradas e de cantigas pérfidas de sereia, entrou-nos até à medula dos ossos o vencidismo dos inúteis, que era o primeiro passo para a anulação cobarde dos suicidas. A série de desastres em que a pouco e pouco se nos foi definhando a virilidade, oh, nós não a denunciamos como o fruto maldito das importações estrangeiristas que intimamente nos dessoravam e dessoram o sangue! Antes a levamos à conta da nossa incapacidade do povo, fadado, — dizíamos —, mais para se conduzir em rebanho, que para empunhar nas mãos desajeitadas o báculo erecto de pastor. Já sem a esperança do Encoberto, a caravela lusitana ia-se ao fundo. Nas solidões do Mar — Tormentório só as almas-de-mestre lhe haviam de responsar a agonia, esquecido nos hortejos de Enxabregas o bom S. Fr. Pedro Gonçalves de momentos melhores e de mais fortuna.
Tenta-se na crise presente uma seria valorisação nacional. Apenas pela volta ao fio interrompido da Tradição se atalhará o despenho acelerado para o abismo. Tradição importa, não um ponto imóvel no Passado, não um enclausuramento em formas obsoletas e cristalisadas, mas sim a obediência consciente àquele determinismo de Raça e Meio que, gerado por inflexíveis condições históricas e físicas, não se aliena de nós sem se alienar conjuntamente a raiz da nossa própria personalidade.
Uma nacionalidade é um facto biológico, ao qual os caracteres hereditários, fixados pela recorrência atávica das gerações para o tipo único que as conforma, reveste de linhas que são tão suas, como é minha a disposição particular e incomunicável que a mim me imprimem os meus antecedentes familiares. Pensar em destruir esses caracteres, começando por ser uma revolta estulta contra as inalteráveis leis da ancestralidade, termina irreparavelmente na inutilização de quanto somos e de quanto queremos. O indivíduo só se explica como elo de uma cadeia que nunca se desata. A historia, considerada em globo, é a assembleia geral dos Defuntos e dos Nascituros. Nós não representamos adentro dela senão uma minoria insignificante, quase imperceptível. É na idealização do homem abstracto, tão abstracto como a Razão-Pura, que o erro metafísico do 93 se fortalece e ateima. Declara-nos libertos dos múltiplos vínculos de ordem moral e material que nos subordinam ao preceito provado dos Avós. E, de desfrenação em desfrenação, tesourados os laços colectivos da Comuna e da Oficina, chega-se ao ponto agudo de romper com a Família e com a Pátria. O libertário, colocado adentro do sofisma, é assim bem mais coerente com ele, de que os democratas encartados da Soberania Popular.
Eu não compreendo o patriotismo da Revolução. Pátria vem de terra patrum, implica o reconhecimento dos valores afectivos e institucionaes do Passado. Nã sendo um crente, Fustel de Coulanges mandava, contudo, no seu testamento que o enterrassem segundo os ritos da Igreja Católica. «Je désire un Service conforme à l'usage des Français, c’est- à-dire un service à l'église. Je ne suis, à la vérité, ni pratiquant, ni croyant; mais je dois me souvenir que je suis né dans la religion catholique et que ceux qui m’ont précédé dans la vie étaient aussi catholiques. Le patriotisme exige que si Von ne pense pas comme les ancêtres, on respecte au moins ce qu’Us ont pense» (Paul Quiraud, Fustel de Coulanges, Paris. Hachette, 1895, p. 266). Eis como se nos descobre a contornadíssima figura do autor de La cité antiqúe nas suas disposições finaes.
Também um dos nomes mais cotados do materialismo francês, o neurologista Jules Soury, declarando-se ateu irremível, confessava-se ao mesmo tempo católico e tradicionalista. Durante a existência, em nós nada há que não se transforme ou que não se renove. Sómente os neurones se conservam inalteráveis, do nascimento até ao óbito. Pois nos neurones reside, como depósito das sensações estratificadas na ascendência, o motivo basilar da ideia de Pátria, que não é, consequentemente, uma ideia de convenção que se robusteça nos conceitos jurídicos da sociedade, mas antes uma realidade tão viva, tão palpitante em nós, como a nossa própria realidade. Sustentando esta razão fisiológica do patriotismo, Jules Soury batia-se pelas regalias civis da Igreja Católica em França, como guardiã secular da cultura autóctone. No aceso do processo Dreyfus lá o vimos a desmascarar o trama semita e pondo toda a sua indignação contra as cabalas sem honra que reabilitaram o Traidor.
Tem fundamentos parecidos o patriotismo revolucionário de ontem e de hoje? Oriundo do Homem impossível da célebre declaração de 89, considera as nacionalidades como um simples arranjo de interesses garantidos pela lei. São como que um estádio de transição, em que a divergência de fronteiras e o instinto de raça se hão-de apagar num quadro mais amplo e mais generoso, como é o da Nação-Humanidade. Não é outra a doutrina ortodoxa dos Imortais-Princípios. Há bem pouco ainda um político português, de ridículo e cordial recorte, assim o asseverava no ministério do Interior a pretos que o tinham procurado para protestar não sei contra quê e porquê. E regeu a criatura uma cadeira de antropologia na universidade de Coimbra!
Entende-se, pois, porque os libertários são, sem favor, mais sinceros e mais coerentes do que os governamentais paridos pelo solitarismo idílico de Jean-Jacques. Eles é que observam com pureza a verdadeira essência da liberdade teórica, advinda com as contemplações naturalistas do Ermo. Descendem em linha recta do nefasto espirito-de-análise, desse barbarismo sem nome nem dignidade que foi a vitória dos ideais protestantes sobre o claro entendimento do Ocidente. Vítimas dum conflito inapaziguavel, julgam lutar, lutar, até às últimas, pela sua emancipação de bestas de carga. No apuro de contas, é contra si que lutam, é contra si que enclavinham as mãos torcionadas, porque na demência que os seduz e avassala, é contra a regra natural de sempre que nós os vemos alevantar, de raivas na boca e os olhos em sangue, bramindo como endemoninhados. Auguste Comte é que soltou um veredictum inexorável. «Insurreição do indivíduo contra a espécie»—exclamava o vidente da Rue Monsieur-Le Prince quando era preciso marcar com um ferro em braza a balbúrdia sinistra da Revolução.
A causa aguda do nosso eclipse mortal deriva, sem dúvida, das máximas negativas com que a Enciclopédia super excitou uma época de imaginação e melancolia. Vagarosamente nos ressarcíramos das feridas abertas pelo delírio ecuménico da Conquista. A Feliz-Aclamação, depois do aprendizado magnífico com que nos exercitaram sessenta anos de cativeiro, soubera-nos restituir os prodigiosos recursos do Luso. Mas aproximava-se a era das interrogações intelectualistas com Descartes por corifeu. «O Discurso-do-Methodo» chegaria a toda a parte, transportando para as categorias psicológicas dos países ocidentais o ácido corrosivo do «livre-exame». O estadismo enfático do século XVIII apossava-se das direções supremas da governança. Á pluralidade riquíssima dos costumes e das instituições sobrepõe-se uma inteiriçada construção geométrica, em que a espontaneidade social se amarfanha e morre sufocada. O vento tumultuario do Contracto provoca a erupção da catástrofe. Descobre-se o Luar, amam-se as ruínas fingidas. E em seguida a um espasmo ideológico em que vai abaixo a Pátria Portuguesa no desaforado empenho com que lhe refaçam o arcaboiço e lhe derrubam os suportes, as fluctuações e as névoas tomam conta de nós. É um lento sossobrar de naufrágio nas aguas podres de um pântano, com uma expressão alvar de indiferença esteriotipando-se em cinismo.
Oh! mas nem tudo se perdeu nas jornadas de 1830 com Mouzinho da Silveira aluindo as paredes mestras da Nacionalidade á força de reformismos e mais reformismos. O «Coração-sensível» traíu-nos nos seus entusiasmos de melodrama. A Carta eu a tenho como uma pregoeira de impudor, leiloando a casa dos vivos, enquanto não punha em praça o palmo e meio de chão onde os mortos jaziam. No embuste constitucionalista continha-se, de corpo e alma, a paranóia de tragi-comédia que hoje nos leva desarvorados como uma nave sem rumo. O que nos aguarda ao termo da doida correria? Ausculte-se o sentir de Portugal num apelo decidido às energias que porventura escapassem intactas! Lancemos um grito de fé que congregue para a grande batalha todas as criaturas de Boa-Vontade! Não têm numero os preconceitos que nos estorvam um gesto, que nos depõem em aposentação, convencidos de que o requiem final não demora aí. Mas se uma claridade súbita nos desembaraçar a estrada e nos conferir o esvaído dom duma finalidade que nos aglutine na demanda do mesmo destino, esta apagada e vil tristeza ha-de ser como a bruma fácil de setembro esfarrapando-se pelas alturas, ao contacto de aragem.
Nem tudo se perdeu nas jornadas fatais de 1830, - dizia eu. É que, se o carnaval permanente dos políticos prostituia o decoro colectivo, reduzindo os mais nobres estímulos cívicos a formulários despidos de senso, uma legião de trabalhadores fervorosos não deixara, no entretanto, de arrecadar da lareira obstruída da Raça as desperdiçadas riquezas do nosso tesoiro tradicional. A ignorância do Povo, - bendita essa ignorância! -, resistindo à esponja uniformizadora dos improvisos administrativos, mantivera consigo, nos recessos mais interditos do seu sub-consciente, o sinal divino do génio lusitanista. Vendida pelos bazares torpes da Regeneração, em que Pacheco campava de braço dado com Acácio, a Pátria era como uma escrava anónima, neta de Santos e de Reis, cuja árvore de costado se houvesse perdido no desabar do prestígio antigo. Então, no afastamento fecundo das províncias que o urbanismo principiava a despaísar, é que os folcloristas e os arqueólogos, pelas seroadas intérminas do bom saber, acudiram, de ânimo contente e dedicação enlevada, ao património em almoeda. Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heroes afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grey, teremos que reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de Antonio Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não crêem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquisas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pergunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcellos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, rectificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efectuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sel-o.
Denunciem-se os pessimismos e os ludíbrios que nos colocaram à margem do coma derradeiro. Pelo espírito histórico rejuvenescido, restituamos à Nacionalidade adormentada o seu inviolável «meio-vital». Com Stein e Mommsen se formou a Alemanha moderna. O historiador antecedeu o político. Que nos importam os negrumes deste minuto pesado, com o estrangeiro do interior mandando entre nós? Quando Fichte proclamava nos seus discursos à nação alemã a superioridade universal do génio germânico, havia em Berlim um governador francês.
A hipótese do HOMO EUROPAEUS
A população portuguêsa é no seu fundo antropológico reputada como a mais homogenea de toda a Europa. O tipo autóctone pertence ao grupo dito de Beaumes-Chaudes e encontra entre nós o exemplo mais completo no homem chamado de Mugem. (Fonseca Cardoso —Anthropologia portuguesa, in Notas sobre Portugal. Vol. I, Lisboa, 1908, pp. 70-72; Ricardo Severo,— Origens da nacionalidade portuguesa. Lisboa, 1912., pp. 29-32).
O homem chamado de Mugem é o dolicoide meão, moreno e mesorrínico, que predomina ainda com maior ou menor pureza nas regiões insuladas da montanha. Identifica-se genericamente com o padrão mediterrâneo ou arábico (Homo-mediterraneus ou homo-arabicus) e filia-se nesse recuado mundo étnico que, desenrolando-se sobretudo á volta das zonas marítimas, se veio a revelar como possuidor duma alta capacidade de cultura através da brilhante civilisação egeana. São os pelasgos da tradição imemorial, óptimos fundadores de cidades, com um assinalado genio pacífico e construtor. Congregados numa vasta irmandade que tomava quasi as costas atlanticas e rompia pelo Estreito adentro, cedo conheceram a navegação e o comércio, conquanto as suas preferencias fossem sedentárias e agrícolas. É ao Levante, em Creta principalmente, que atingem o apogeu da influencia, chegando a determinar as grandes direções religiosas e artísticas do Oriente dominador.
Uma revolução se consuma assim nos âmbitos serenos da sciencia. A miragem asiática desfalece de hora para hora; e o centro irradiador dos primeiros passos da humanidade é para os nossos lados que se desloca,—para a misteriosa Ophiusa dos périplos fenícios. Perante os resultados concludentes da investigação arqueológica, a marcha do Sol, com efeito, não governa mais o rumo dos êxodos antigos. Não foi do Nascente maravilhoso que as Idéas e as Formas, ainda na infancia, partiram com vagares processionaes com rumo ás desvairadas ribas para onde Europa fugiu, cavalgando o touro sagrado. É antes sobre o Atlântico que nós temos de procurar um dos mais ricos lararios da Terra em expectação. Vão-se abaixo as impertinências monogénicas e atrás delas abala todo o aparato teórico com que mais de meio século de presunções e apriorismos se entreteve a improvisar origens. Está bem apeado de altar-mór dos Povos o magestoso Pamir com os seus rios sagrados banhando-lhe as faldas em adoração. O Ex Oriente lux! da velha invocação teúrgica já o não saúda como o berço místico das gerações ajoelhadas. Filhos dos deuses, gente eleita para o supremo oficio de iniciadores, os Arias já se não teem por descidos dos planaltos augustos,—nem o Caucaso, venerado como ninho paterno da familia branca, se estilisa mais para a nossa contemplação com as linhas enigmáticas de logar privilegiado. O alvião osfrangalhou o mito. A filologia não se condoeu e desfe-lo duma vez.
Sabe-se hoje que as sucessivas civilisações europêas foram até á época da Téne (Le mirage oriental in Chroniques d'Orient. Deuxiéme série. Paris, 1896, pp. 535-536.) de pura extração indígena. Uma forte cultura neolítica se desenvolveria em leque, segundo Salomon Reinach, com eixo de apoio na Europa central ou nórdica (Obr. e vol. cit. , p. 565.) Desse ponto, problemático por enquanto, se despediriam para a periferia os admiráveis embriões que vieram depois a adquirir suficiência própria, mal raiou o conhecimento dos metais. Imaginou se por largos tempos que a religiosidade, a agricultura e a industria não passavam de importações comunicadas da Asia por formidáveis massas humanas, marchando lentamente para a ocupação do Orbe. Porém, o vaso classificado de Furfooz, (Salomon Keinach, obr. e vol. cit., p. 518.) de atestada precedencia quaternaria, invalida a peregrina hipótese sem mais embargo nem apelação.
As sepulturas do Solutré, por outro lado, mostram nos o culto dos mortos exercido já com in¬ tensidade na transição mesolítica do Ocidente. Não resiste á mesma contra prova a opinião, longamente professada, de que os animaes domésticos seriam introduzidos aqui por bandos exóticos. É que o cavalo e o boi não representam uma especie zoológica localizada em qualquer rincão favorecido da Asia. Achavam se espalhados no estado selvagem por todo o nosso continente. E a sua domesticidade, como a do cão, do porco e dos outros animaes congéneres, abona-se á farta pelos restos recolhidos em bastantes estações pre-historicas, garantidas pelos mais rigorosos caracteres de autoctonia. (Obra e vol. cit., p. 516 e 521.)
Mas onde o desbarate é ruidoso é no campo da linguística, Demite-se o sanscrito da dignidade de lingua-mãe, apurando-se que o lituano é bem mais anterior nas embaraçadas genealogias idiomáticas. (Obr. e vol. ct., p. 511.) Comparadas as diversas linguas europêas com essa respeitável sobrevivência, vê-se que lhe guardaram com aproximação a morfologia e a fonética, sem que demostrem parentesco mais velho com a lingua suposta dos Arias. A critica encarniça-se deveras em denunciar o equívoco. A queda do sanscrito segue-se a dos Vedas e a do Avesta como literatura inicial da humanidade. As mitografias engenhosas de Max Muller esborôam- se irremediavelmente. E nós ficámos sabendo por trabalhos notabilíssimos que o Ramayana não ascende talvez a 1000 anos antes de Christo. (Obr. e vol. cit., pp. 512 e 513.)
Criaram-se ilusões sobre a remota antiguidade da escrita indiana. Pois actualmente apenas se considera como uma derivação dos alfabetos grego e arménio, de data posterior a Alexandre Magno. É também a data do Avesta, depositário dos tesoiros teogónicos do Turan. Coincide a sua aparição com a renascença persa operada sob os Sassanidas três séculos depois de Christo, sendo o livro sagrado da religião contemporânea dos Acménides. Penetram-no elementos moraes e filosóficos, devidos a um contacto evidente com o judaísmo e com o belo espírito neo-platónico. A redação é em zend, idioma morto, de exclusivo emprego sacerdotal. (Salomon Reinach, obr. e vol. cit., pp. 512 e 513.)
Igual proveniência asiática se quis atribuir á metalurgia. Fixou-se em Malaca e em Banca a séde de importantes jazigos mineraes que alimentariam a Europa durante os alvores do metal. Mais uma ficção que se pulverisa, batida pela realidade crescente! A Península, opulenta de cobre, prelimina o esplendor do período bronzífero. É ás Cassitérides que as naves rudimentares do Atlantes vão buscar o estanho necessário ao fabrico do bronze. Propulsores de uma ampla faina mercantil que em nada se agradece ás parcas transmissões semitas, os Albiões pesquisam e traficam ali uma espantosa abundancia de minério. O movimento de exportação efectua-se para o sudoeste de Espanha,— para Tarcessus, com roteiros assentes, bordejando as costas, e para o âmago da Europa pelas estradas fluviaes do Rhodano, Danúbio e Rheno. A civilisação de bronze sobe por isso entre nós a um ciclo bem mais afastado que o da chegada das van- (Vid. toda a obra de Martins Sarmento, principalmente: Ora Marítima, Os Argonautas e A arte mycénica no noroeste de Hispania in vol I da Portugalia. Aos trabalhos de Martins Sarmento me encosto quando não documente as afirmações que haja de fazer). guardas fenícias ao Mar de Norte ou Mar Cronio no século XII (a. C).
O mobiliário recolhido nas cidades lacustres da Suissa permite-nos recuar mais longe. Um povo que utilizava o bronze e dispunha de umá marinha apreciável já se estabelecera na Sicilia anteriormente á guerra de Troia, — na Sicilia dos Ciclopes e dos Listrigões da criação homérica. A civilisação do bronze reveste-se, pelo exposto, de inteira autonomia no Ocidente. Instrumentos exhumados no Egito e na Caldéa denunciaram pela análise química uma proporção inalterável de nove partes de cobre para uma parte de estanho. É a liga que se observa com regularidade nos objectos desenterrados em toda a latitude oéste-europêa. (Salomon Reinach, obr. e vol. cit., p. 533, e H. Le Hon, L'homme fossile, citado a p. 22, nota, do livro Estúdios sobre la época céltica en Gallicia, por D. Leandro de Saralegui y Medina, Ferrol, 3.ª edição, 1894.) Não se pense, por conseguinte, na aclimatação da metalurgia. Cobre havia-o no Egito, mas o navegador tirio atravessa precisamente o Estreito para obter o estanho que não se encontrava nas paragens levantinas.
Intima-se a cruz gamada ou suastica para se documentar a dimanação oriental dos artefactos metálicos da nossa cultura arcaica. No fim de contas, os mais antigos exemplares do tetracelo não atingem para lá do século XIX (a. C). Descobriram-se em Hissarlik, não sendo o suastica mais idoso na Índia que a occupação macedónica,—ao que parece. Nos cortes realizados em estações da Assyria não se lhe apanharam rastos. Só num baixo-relevo de Ibriz se ostenta como insignia nas vestes dum personagem que é a olhos visto completamente estranho á civilisação babilónica. (Salomon Reinach, obr. cit., p. 529)
Ao mesmo tempo, a passagem da industria da pedra para o uso dos metais é afiançada nas explorações arqueológicas do Ocidente como um acontecimento normal que não oferece reticências nem saltos bruscos. Numerosos são os dolmenes em que as duas idades, uma no declino, a outra apenas amanhecendo, coexistem em igual abundancia de despojos. Enquanto se admitiu que ao neolítico sucedera imediatamento o período do bronze, a miragem orientalista poude prevalecer em senhora absoluta. Pressentida, porém, pelo nosso Estácio da Veiga, a época do cobro afirma-se hoje como um termo indubitável de transição. A’ Península, povoada desde o fundo da pre-historia por um enxame numeroso e diligente, coube uma actividade de destaque nesses prelúdios longinquos da civilisação. É que o homem da idade da pedra, dolicocéfalo e autóctone, foi portador de uma cultura brilhante. As ilhas do Atlântico já então se viam habitadas.
A navegação aqui é infinitamente mais velha que as decantadas empresas nauticas dos mercadores de Sidon e Tiro. Cita-se Furti como a primeira feitoria fenícia nas Espanhas. Ora, quando os flibusteiros de Canaan atravessam as Colunas, os seus périplos instruem-se com os esclarecimentos dos maritimos indígenas, familiarisados de sempre com a via aquática que levava direito ás Cassitérides.
Mais arrojadas que as outras raças do Levante mediterranico, as gentes manhosas da Fenícia arriscaram-se até ás plagas de mistério em que a mitologia instalára o Orco terrível. Empurrava- as já o genio cosmopolita do vendilhão que mais tarde iria pelo Universo fóra propagando as seduções do Bezerro de-Oiro. Mas ao transpor os limites máximos do mundo conhecido, em vez de se defrontarem com os monstros marinhos da Fábula, atalaiando de noite e dia o rio Oceano, por cujas ribas desoladas os Manes se arrastariam aos ais, é com uma civilisação assombrosa que se encontram cara a cara na sua ganancia solerte de andadores de bons negocios.
De cá haviam de levar o alfabeto, que no Ocidente se evidencia em inscrições que sobem provavelmente aos últimos adeuses do neolítico. (Estado da Veiga, Antiguidades monumentaes do Algarve, tom. IV., cap VII; e Ricardo Severo, Origens da nacionalidade portuguesa, pag. 26 e 27.)
De cá transportaram cultos e ritualismos, costumes e práticas sociaes. Um apertado isolamento nos envolvia. Cuidadosamente o conservaram os nossos descobridores de acaso. Falhos de capacidade inventiva, como todo o semita, valia-lhes a inexcedivel força de assimilação que caracterisa as imaginações sensíveis.
Mergulhados no silencio e na sombra, nós continuámos a trabalhar para eles. E são eles que, apossando-se das conquistas naturaes do nosso engenho, figuram perante os textos clássicos como os criadores de quantos dons de industria e de socia¬ bilidade a profunda alma atlantica ensinou ás com¬ pactas massas humanas do período do bronze. Eis como se concebeu o demorado preconceito fenício que tanto vicia a bela mentalidade de Herculano e obliqua em perspectivas erróneas as conclusões do insigne Martins Sarmento, sem duvida um dos grandes anunciadores da moderna corrente ocidentalista.
Pregunta se agora:—desfalcada dos atributos sobranceiros de dogma a excessiva preoccupação monogénica de tantos e quantos doutrinários, a que é que se reduz o arianismo teórico, — houve ou não houve, com efeito, um grupo étnico, mais dotado que os outros, detentor de faculdades mais agudas de percepção, ao qual estivesse reservado, como um presente celeste, a chave das primeiras marchas civilisadoras do homem ?
Um problema de intrincada disputa se relaciona com tão legítima interrogação. Não são alheias a ele as mil e uma querelas que se desenrolam em torno da concepção evolucionista da Vida. Eu não quero chamar para as fronteiras acanhadas do presente inventário o debate dum semelhante assunto. Nem os elementos de que disponho me ajudam de modo a equaciona-lo com a requerida idoneidade scientífica. Não exorbito, contudo, se asseverar que a impossibilidade física do avô terciário é hoje recebida quasi unanimente como uma certeza entre as certezas. O achado de Dubois em Trinil não salvou do descrédito a fantasia omanesca do Precursor. Baldaram-se as fadigas apostólicas de Haeckel tão depressa se lhe surprehendeu a falsificação das suas famosas fotografias embriogénicas. O pobre doutor de lena, do alto do seu pontificado monista, viu-se compelido a declarações que lhe comprometteram para todo o sempre a reputação de scientista honesto. «Depois de uma aventura tão esmagadora, decerto que me considero inexoravelmente desprestigiado, — confessava ele em 29 de dezembro de 1908 no Volkzeitung, de Berlim. Mas eu consolava-me se ao meu lado se assentassem no banco dos reus centenas e centenas de cúmplices que, biologos afamados, cheios da confiança geral, usam e abusam dos mesmos processos.» (Charles Hevraud: — La France de demain. Celle qu' on nous offre. Celle qu'il nous faut. Librairie Aeadémique Perrin & C.ie. Paris, 1911. pp. 352-361.)
O transformismo sofreu com a exautoração do patriarca um golpe mortal. Não admitindo para a origem da existência senão um tipo rudimentar de vida, provido, no entanto, de poderosas energias elaboradoras, abandonou-se á hipótese quimérica dum progresso indefinido, por virtude do qual os mineraes passariam a vegetaes, os vegetaes a animaes, rompendo estes pela monera acima e concluindo no homem ao fim de vinte e quatro estádios, assinalados sem maior cerimonia pelo professor alemão. Caía-se na geração espontânea, — o que se pretendia era negar a evidencia dum supremo acto criador. Tinham corrido mundo as descobertas sensacionaes de Pasteur. Dominados, entrementes, pela obsessão materialista, tres sábios categorisados, Pouchet, Joly e Musset, sustentaram que a experiencia os conduzira a resultados contrários aos do seu ilustre compatriota. Durante um momento Mr. Homais respirou com alívio. Sol de pouca dura foi a alegria farisaica do boticário de Rouen! Um testemunho insuspeito surgia dentro em pouco da parte de Tyndall, cujas tendências anti- espiritualistas se não desconheciam. Adepto das teorias novas em principio, Tyndall acabou por confirmar as leis biológicas que Pasteur formulara, chegando á verificação delas por processos diferentes. «Não ha na sciencia experimental nada de mais positivo»,—asseverava ele mais tarde em acto de contrição. (Charles Heyrand:--Obr. cit.)
Depoimentos de peso deram em se ajuntar uns aos outros. A paleontologia pela boca de Banco, director do Instituto Geológico de Berlim, veio dizer que não se conheciam antepassados ao homem, pois nunca seria possível atribuir a ascendência de todos os organismos vivos a um tronco único. Por outra banda Charles Richet sustentava em público e raso que èntre o primeiro dos macacos e o último dos homens se abria um fosso que ninguém transpunha. E Huxley, que se alcunhara de Bull dog, do transformismo, renegou-o depois numa conversão estrondosíssima.
Com Huxley é que aconteceu a deliciosa aventura do Bathybius. Era o Bathybius uma espécie de muco amorfo, agarrado ás profundidades do mar, que pela sua natureza primordial e viscosa podia muito bem ser um produto espontâneo do protoplasma. Huxley fez alarde com a descoberta e dedicou-a a Haeckel, seu amigo, «qui en avait grand besoin,» —ilucida a ironia mansa de alguém. Pois, transitados onze annos, —o Bathybius alarmara o pensamento scientífico por volta de 1868,—o proprio Huxley assistia em 1879 a um congresso de sábios, reunido em Sheffield. No discurso de abertura, o presidente alude entusiasticamente ao Bathybius. Huxley, mal o ouve, pede logo a palavra. E é Huxley, pai do Bathybius, introdutor na biologia duma monera tão alcovitada,—é Huxley, diante de assembléa suspensa de pasmo, que conta com frouxos de riso a historia divertidíssima da sua descoberta. Ai de nós, o Bathybyus não ia alem dum pobre precipitado gelatinoso do sulfato de cal com alguma matéria organica á mistura! (Cardinal Manning,--Les raisons de ma croyance. Notas do tradutor E. Peltiei, pags. 48 a 51. Bloud & C.ie. Huitième èdition, 1913).
Submetido ao exame do microscopio, revelou-se como uma mucosidade expelida por certos zoófitos quando os ro^am os engenhos de pesca. Assim o observou Milne — Edwards nos seus estudos ocea- nográficos. No que viera a parara gloria do monis- mo! Já se lhe procurara até um ascendente. Das entranhas do Mar-Artico se arrancara nada mais, nada menos, do que o Proto-Bathybiug !
Georges Sorel tinha razão quando classificou as curiosas hipóteses evolucionistas de Haeckel & C.a como contos mitológicos iguaes aqueles que faziam as delícias dos antigos serões aristocráticos. «As consequências do alvoroço provocado por este contos modernos, são de importância, porque os seus leitores convencem-se de que podem resolver-se todas as dificuldades que a vida diaria nos oferece, da mesma maneira porque se resolvem todas as que existem na cosmologia. Provém d’aí a confiança insensata na deliberação das pessoas instruídas e que é uma das bases ideológicas da superstição do Estado contemporâneo.» (Les illusions du progrés, pags. 50. Paris. Mareei Rivié- re. Deuxième édition.)
Eis como o ludibrio racionalista se socorre dos abusos derivados da doutrina de Darwin. A ela pediu a utopia revolucionaria a justificação dos mais dementados gregarismos, tentando explicar o conceito milenarista da Cidade—Futura pelo sentido biológico da Evolução.—segundo o principio do aperfeiçoamento ideal para que os seres tendem indefinidamente, através de alterações consecutivas e incessantes. A instabilidade arvorara-se em segura regra scientífica e sociológica. Não houve invenção subversiva que não se autorisasse com a nomenclatura pomposa do transformismo. Gerou-se a crendice baixa do Progresso que os caixeiros-viajantes ostentam pelos botequins em Teoria da Nacionalidade - pp. 105 ss
Tal como para Antero de Quental, a Expansão foi causa de decadência.
"Um dos prejuízos inimigos da alma portuguêsa é, sem dúvida, o negativismo de raça professado pelos nossos escritores. Teem nos, — Teófilo áparte, — como um desmembramento fortuito do planalto castelhano.
(...)
"Oliveira Martins ficou pesando sobre nós com a sua nefasta teoria do Acaso. Uma doutrina suicida, em conflito com a verdade, nos dirige nos âmbitos da sciencia oficial.
(...)
"Tutela-nos o estrangeiro do interior. São as mais descabeladas quimeras exóticas que deturpam a visão da realidade pátria com ideologias saídas de outra conformação psicológica, com outros determinismos de ambiente e hereditariedade a rege-las. Primeiro foi com o individualismo dissolvente da Renascença a bebedeira doirada da índia. 0 modelo greco- romano viciou-nos o entendimento. Do aparato filológico dos humanistas ao gesto oratorio de D. João de Castro, empenhando as barbas em copia servil a um varão de Plutarco, é sempre uma noção artificial da existência que nos apaixona e transvia. Toda a época se acha contida em mestre André de Rezende falsificando inscrições latinas e indo com grande estrondo descobri-las ao depois." (pp. 107-108)
(...)
"Com a tragédia da Índia e com o grande desvairo do Renascimento obliteram-se as direções ancestraes. Esvai-se-nos no estridor da quermesse o mais rudimentar sentido de continuidade e de coerencia. Detenha-se este reparo singelíssimo: — enquanto Quatrocentos brilha, o sinal inconfundível do genio da Patria conferem lh’o as Côrtes- Geraes, indubitavelmente. Quem vibra, quem palpita, nessas vigorosas assembléas ? A alma dos Concelhos, — o pequeno dolicoide, que é no desafogo das suas energias criadoras o infatigável obreiro da saude e do viço de Portugal." (p. 112)
"O oiro cobre-nos como numa chuva de feira. Todavia, ha fome, por que os campos abandonam-se no exaspero da miragem asíatica. Não se conseguem braços que arroteiem a courela natal em desprezo. As lareiras dispersam-se, emmudecem os teares. Portugal é como uma caravela enorme que desprende a âncora e se atira para as guelas abertas do Tormentorio com uma sereia rindo-lhe á prôa não sei que promessas loucas de perdição. Tomam as pestes conta de nós e levam o resto. As naves voltam da índia, — as que voltam! —, carregadinhas de metaes preciosos. Mas, com tanto dinheiro retinindo numa resonancia de maravilha, o trigo importa-se e o pão custa-nos como o mais raro dos manjares. (p. 113)
"misticismo étnico, misticismo histórico"
"Só as certezas conseguirão indireitar-nos para uma existência cheia de dignidade e de significação. A certeza da Raça interessa-nos mais que nenhuma outra. Ninguém se mete a andar sem ter confiança em si. Se não acreditamos em nós como povo, não serão as oratórias engasgadas dos tribunos a cifra mágica que nos ha-de emprestar o sopro de milagre que fez levantar o paralítico. Fôram mais funestas de que se julga as consequências do scepticismo de Oliveira Martins. A cubiça unilateralista do vizinho cita-lhe passagens inteiras para se autorisar. Em nossa casa os vencidos e os inúteis, para escusarem a sua impotência, glosam-n'a com grandes ares, aconselhando nos o suicidio. Ah, as criaturas sorvadas, de aparência brunida, mas com farelo lá dentro, tal como os frutos que Chateaubriand apanhou nas ribeiras do Mar do Sal! No entanto, a flama arde direita e intacta no coração da mocidade. O dia de amanhã estará conosco,—conosco que sentimos nas veias a reviviscencia admiravel do Luso que desfalece, mas que nunca se rende. Misticismo ? Sim, misticismo — misticismo étnico, misticismo histórico, como o que convulsionou os Balkans, como aquele que do germano incompleto e dispersivo extraiu a obra incomensurável de Bismarck! (p. 174)
INTEGRALISMO LUSITANO (pp. 137 ss)
Eu sei que os arautos da falida ideologia democrática, da qual o nosso Constitucionalismo não era mais que o primeiro ensaio, — eu sei que me obtemperarão com a eterna estrofe do Progresso — Indefinido. Mas, pelo amor de Deus, - se a exclamação se me consente! - , o senso científico da Evolução encontra-se hoje modificado pelas observações experimentais de René Quinton. Em vez de se interpretar como a suscitação incessante dos seres para um aperfeiçoamento que se mede pela distancia que vai da monera ao homem, a Evolução, perdido o seu conteúdo arbitrário e fantasioso, passa de ora avante a designar tão somente uma aturada manobra de permanência. Não mais o devenir interminável de que tanto se utilizaram os padroeiros da utopia libertaria, mas sim o respeito integral pelas condições, primitivas da génese. A Vida é. E como é, procura perdurar, conservando com afinco a sua constância original. Tão cedo esse equilíbrio se modifique, assim se provoca um desarranjo cujas consequências são de total aniquilamento. Evoluciona-se, é facto, mas em limites traçados, com órbita restrita e fins expressos. Coloque-se um embrião. Evolucionar é desenvolver à plenitude todas as possibilidades que dentro dele se contém. Não se alienam nem a precedências que o conformaram, nem as condições de espaço e de tempo que o determinam. Res eodem modo conservantur quo generantur. «As coisas conservam-se pelos mesmos motivos porque foram geradas», - já era a divisa profunda de Rivarol.
Considere se o relativismo como a norma que governa a pluralidade inapreciável dos sêres. Nunca se pretenda obter uma unidade quimérica, que teria como ponto de partida um ovo único, prolongando- se sempre em linha recta e instalando sempre no futuro o exercício das funções superiores da Vida que são imediatas e invariavelmente as mesmas. Eis os corolários que se desprendem da emenda apresentada por René Quinton aos monismos imaginosos do pobre doutor Hoeckel. A superstição racionalista enchia a boca com as escalas embriogénicas desfiadas pelo insigne mistificador de lena. E trasladando-as com um enfurecido exclusivismo para o campo dos fenómenos sociais, deitou-se a justificar assanhadamente quantas paranoias se têm concebido em glosa à Bondade-Natural do onanista idílico do Emílio.
O Progresso, que se inventara em religião omnipotente, descai nas proporções ridículas dum fetiche desengonçado. O Progresso não é outra coisa senão o triunfo da Inteligência que, exígua e rectilínea, apenas apreende o descontinuo na sua faina excessiva de análise. São os sólidos que melhor percebe. Por isso é na Mecânica que se revela com sucesso, porque é aí que se sente mais á vontade a sua qualidade específica. Quando se deseje transplantar para o que pertence à esfera do sub consciente e do complexo, aborta desde logo numa derrocada estrondosa. A base da razão, confinando-se apenas no que o cérebro apanha e concatena, é forçosamente deformadora e unilateralista, levando a essa impotência céptica do querer que hoje se intitula renanismo. Efectivamente, o sofista amavel de L' Abbesse de Jouarre declarava com frequência que se Napoleão fora tão crítico como ele não daria nunca o golpe do Brumário.
O prestígio trascendente da lei é nas sociedades contemporâneas o resultado duma tal hipertrofia de pensamento. Em vez de ser colectividade que inspira o direito, é o direito que a antecede e governa despoticamente. Inventa-se assim o apriorismo rígido de tantos insignes reformadores. «La stabilité sociale a disparue depuis que l'homme c'est proclamé législateur, escreve o publicista Coquille. Les anciens avaient remarqué que le grand nombre de lois est un signe de décadence. Plurimaeleges, pessima respublica. Les lois remplacent les moeurs; elles substituent an frein intérieur de la conscience une répression extérieur. Leur multiplicité est donc un signe de décadence.» (Georges Deherme, Le pouvoir sociale des femmes, Paris, Librairie Perrin, 1914., p. 2)
Com o disfarce do Estado as conveniências privadas dos bandos é que prevalecem por detrás do chavão da legalidade, visto que o agregado deixa de ser um organismo, dirigido por normas inalteráveis, para se tornar um autómato, de direção arbitrária. O sofisma constitucional importa deste modo a sobreposição duma política simplista de princípios a uma política positiva de factos. «La constitution d’un peuple est toujours coutumière, - oiçamos ainda Coquille - , et plus elle est coutumière, plus elle est naturelle. Quando les lois, au lien de s’attacher aux choses de police et de sécurité publique, prétendent régler la religion, la famille et la propriété, elles les ébranlent. Ces trois choses fleurissent surtout en l’absence des lois parce qu’elles vivent d’elles-mêmes et se défendent toutes seules. La nature, qui agit par le temps, les fortifie et les enracine. La coutume est une plante que croit lentement, disait lord Chatam.» (Georges Deherme, obr. cit., p. 50.) Já se entende porque é que D. Miguel valeu entre nós como a expressão do génio da Raça em guarda contra os abusos sem nome da ideologia gaulesa.
Houve durante a Convenção um matemático, não sei se Condorcet, que asseverava que uma lei, em sendo boa, é tão boa em toda a parte como em toda parte são certos os dados dum axioma de geometria. Na linguagem científica da época era o enunciado de tirania espantosa do Homem alegórico da Revolução. Desprezavam-se os particularismos de existência e de destino em que os grupos sociais se definem, para se lhes aplicar à força, senão a bem, a secura hirta duma regra uniforme e absoluta. «Não me obrigueis a empregar as armas para vos libertar!* —já lá dizia no Porto a proclamação célebre do Dador.
No cabo, não é a suposta excelência das ideias que torna os povos felizes. É antes o respeito dos hábitos em que a alma colectiva estratificou as suas seguranças ancestrais. Ensina-o hoje a demopsicologia pela pena incisiva de Gustave Le Bon. Já Taine e Fustel de Coulanges o tinham previsto. É que não se substitui ao passado de uma pátria o passado de outra pátria, tal como nos indivíduos se não pode volver em nada a soma das respectivas aquisições atávicas. O parlamentarismo doutrinário que, com a vista no figurino inglês, se revelou ao conflito romântico como único meio de se reconciliarem os decálogos do Noventa-e-Tres com as direcções do Antigo-Regime, se porventura desempenhara para com a Inglaterra um papel importante de coordenação social, é que nascera além da Mancha como uma criação própria do génio britânico. Transferido indistintamente para fronteiras alheias, seria, sem dúvida, um agente demorado de perturbação. Foram os resultados que colhemos dos entusiasmos diplomáticos de Palmela pela política um tanto escusa do gabinete Canning. Desorganizou-se o meio-vital da Nacionalidade, sujeita a uma maré cheia de inovações. E o pior é que se atribuíram à insuficiência colectiva, e não à qualidade do erro que se nos impunha, os desastres intermináveis da recentíssima ordem de coisas.
Eis o espírito de toda a nossa falida experiência liberalista. Não só se inutilizou o renascimento viçoso de 28, como se caiu depressa em opiniões suicidas, — no deixa-lá-andar tão característico das situações parlamentares. Portugal desaparecia como uma realidade autónoma, preparada do fundo das idades pela acção convergente do Meio e da Etnia. Passava a justificar-se apenas pela forma de governo que o distinguia no concerto vasto das Nações. Inaugura-se assim a nefasta teoria do Acaso, que em Oliveira Martins recebe a verdadeira consagração, apesar de Oliveira Martins ter palpitado no Portugal Contemporâneo a índole negativa do sistema que nos administrava como se administra uma roça de pretos. O País, atrás da ficção cartista, era apenas um pretexto de circunstancia, legitimando pela burla ignóbil do sufrágio a cupidez desaforada das clientelas.
«Governar é aguentar-se no poder», - ditára o cinismo estanhado de Guizot aos burguês da monarquia à bon marche, segundo o sarcasmo doloroso de Balzac. Não praticámos nós conselho diverso. Cada partido queria o Rei para seu uso, na frase definitiva de Wenceslau de Lima. Ilaqueado pelas imposições dos bandos, o Rei via se bem um «mestre-de cerimonias», como a si mesmo se chamara Casimire Périer ao demitir-se. No descrédito sucessivo de todas as mezinhices alvitradas, pediu-se aos homens a responsabilidade que só pertencia às ideias. Daí o resvalar-se no indiferentismo dogmático em formas políticas, quando não se abraçava a ínfima crendice que inculca os regimes electivos como superiores aos regimens hereditários. Enfiávamos por uma senda inclinada que daria connosco aonde agora estamos, — a um passo do abismo irreparável. E ao inventariarmos as perdas sem conto dos dias gordos da Liberdade, nós reconhecemos que a única palavra construtiva que se escuta ao longo da quermesse doidivanas em que Pacheco, de braço dado com Acacio, seguia agarrado à sobrecasaca de Fontes, não é da Carta que ela se solta, não é o Terreiro do Paço que a pronuncia, todo debruçado para a obra mais rendosa de burocratizar o País, de cima a baixo. Ergue-a Alexandre Herculano, clamando no deserto pelo municipalismo patrimonial da Grey. Com ambas as mãos no peito, Garrett já gemera um contrito «mea culpa» pelos calores reformistas da sua aventura de emigrado. Mas é mais forte o brado profético do ermita de Val-de-Lobos que se foi plantar oliveiras na esterilidade sáfara em que o meio o sufocava.
Solicitado por duas tendências contraditórias, a renuncia de Herculano é um exemplo para se guardar connosco demoradamente. Nos livros que nos legou, lê-se o ímpeto demolidor de M.me Staél e de Benjamin Constant, transportando para as categorias mentais da Nacionalidade o criticismo, pernicioso da inteligência protestante. Verte-se esse aspecto inferior do seu aturado esforço em polémicas avinagradas e em análises que crestam como um ácido. Tracemos uma nota explicativa à margem do Eurico e da História da Inquisição. Compreender-se-á melhor a divergência que irreconcilia o autor de paginas tão mesquinhas com a pena inolvidável que ressurge o viver afonsino dos Concelhos e se bate com galhardia ao longo dos Opúsculos «a prol do commum e aproveytança da Terra»,—nos dizeres da velha Ordenação. A falta duma síntese que lhe apaziguasse as brigas da consciência com a razão documenta-se à maravilha nos panfletos de "A Voz do Propheta". Suscitado duma banda pelos subjectivismos artificiais da moda literária, advinda das ribas de França na bagagem do exílio, cedendo por outro lado aos ditames da sua profunda visão de historiador, Alexandre Herculano divide-se, desencontra-se, não se estabiliza, já defendendo o frade de Santa Cruz e as monjas de Lorvão, já alinhando indignações em brasa contra o alastramento do espírito ultramontano. Aonde o pensador reformado se suicida, Alexandre Herculano retira-se, pela qualidade positiva do seu ser, que é o amor «ocidentalista à courela, o qual o não deixa soçobrar no desabamento da ilusão porque arriscara a vida e padecera as agruras do desterro. Era, cedo, muito cedo ainda, para vencer em si o prejuízo liberalista e julgar-se a ele mesmo com um regresso puro e simples às instituições tradicionais da Raça.
A apologia do nosso particularismo municipal fica, no entanto, como um testamento notável que o acredita para nós como um mestre a venerar-se. Lamenta-se como uma vítima da mentira sem honra que nos ganhara, envolta em grandes prometimentos de redenção. Tomaram-no como um visionário os profissionais do Mando, espécie de verborreicos encartados para quem a sonoridade das aparências bastava e de sobejo. O pedautocratismo arrematava-nos na feira pública da Regeneração para nos derrancar os restos da antiga energia. No pânico de naufragio em que tudo se afundava, são de Herculano as únicas agarras que se oferecem á desconjuntadissima caravela lusitana. O estudo do município, nas origens d'elle, nas suas modificações, na sua significação como elemento político, proclama aos vindoiros, deve ter para a geração actual subido valor historico, e muito mais o terá algum dia, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido mas indispensável elemento de toda a boa organisação social».
Criaram-se equívocos à roda de um sonho tão belo. E se o milenarismo dementado da República se gerou entre nós, foi porque intrusamente se apossou dos conselhos finais de Alexandre Herculano. Em nome da Raça e por via do seu característico municipalismo, os desastres consecutivos da Monarquia-Constitucional deram lugar à vitoria dos ideais democráticos. Com Henriques Nogueira se documenta o falso esforço tradicionalista que procurava aclimatar aos nossos limites a solução cosmopolita dos Imortais Princípios. Tempos felizes de apostolado, em que a psicologia das multidões se não conhecia, nem o estrangeiro do interior tomara conta de nós!
Entrementes, Oliveira Martins revelara-se. E nós não nos alargaremos sobre o nihilismo de contagio que lhe escapa de quanto escreve e evoca com o poder diabólico dum médium. Também ele quis achar por fim amarras que o sustivessem e nos sustivessem. Viu a doença, mas errou-lhe o tratamento. Apela para a monarquia de «poder pessoal» que é a Realeza pura de Quatrocentos devolvida ao que constitui o conteúdo próprio da função monárquica. Porém, em lugar de se socorrer do instinto foraleiro do Portugal autóctone, consagrando as miúdas iniciativas locais e técnicas, abandona-se, atacado de germanofilismo, à demencia fantasiosa do Imperio-Ibérico. Só pela reabilitação do elemento lusista nos salvaríamos, se nos viessem a horas os ímpetos salvadores! Aí de nós, Oliveira Martins não acreditava na Raça! Na sua descrença levou consigo uma oportunidade da fortuna para levantarmos cabeça, e com aprumo, desta feita. Meu Deus, se na literatura, se na governação, se no alto mundo, a fina flor do nosso País se arregimentara nos Vencidos da Vida, se o diletantismo reinava em árbitro supremo, como é que nós venceríamos a ladeira, se não tínhamos uma elite que nos suscitasse para o ressurgimento, se a geração em destaque se repartia entre as hipérboles trovejadas por Hugo na musa torpe de Junqueiro, e a ultima pochade naturalista, recomendada por Mariano Pina, alto-comissario das nossas letras em Paris ?!
Existia Teófilo, sim, trabalhando como um beneditino, fechado no seu casulo de iluminado, ardendo todo na missão sacerdotal de atrair a um batismo novo a esperança esquecida do Luso. Percebera-se da importância capital da factor-Raça. E com vislumbres de vidente o que Teofilo mais fervorosamente procurava era a nossa independência étnica, contra o Acaso teórico de Oliveira Martins, o qual contemplava em nós um produto apenas das ambições dos nossos Príncipes. Teófilo subia mais longe, profundando o negrume das Origens, para resuscitar na Lusitania dos Antigos, segundo o Strabão da referencia do estilo, a vasta actividade dum povo embrionário que ascendera devagar as jornadas custosas para a autonomia. Deixava de ser a Lusitania uma alusão pedantesca dos humanistas de Quinhentos, conforme pretendera Alexandre Herculano. Volvia-se numa realidade tão viva, tão plena, como a carne da nossa carne, como o sangue do nosso sangue.
Esta é a significação da obra de Teófilo, que fica, todavia, digo eu algures—, como uma enorme pirâmide sem vértice. Falta-lhe a síntese, o justo remate, de que Teófilo se incapacitara por causa do preconceito republicano que lhe obliquava a retina. Conhecem-se as divergências irreconciliaveis de Teófilo com Oliveira Martins. Contudo, sem que se pense que eu cultivo o paradoxo, Oliveira Martins e Teófilo completam-se. Pedimos ao critico das Modernas ideias na literatura portugueza o sentido afirmativo em que toma a Raça, e, indo solicitar ao místico da Vida de Nun' Alvares o dia de juízo a que convocou todo o período desorganizador da ideologia cartista, teremos a visão da Nacionalidade contornada sem reticências, como que a preludiar os propósitos sadios que animam hoje a geração que avança, d’olhos pregados na Portugalia.
Enquanto Teófilo se encerrava no remanso do gabinete e vinha por lampejos divinatórios ao encontro do Lusismo, desenrolara-se cá fora a cruzada amorável dos folcloristas e dos arqueólogos. Eu acabo de mencionar a Portugalia. Citarei a Revista Lusitana, sem esquecer a Tradição e o Archeologo Portugues. Como Rocha Peixoto, Ricardo Severo, António Tomás Pires, Santos Rocha e tantos outros cavaleiros de resgate, radicava-se o movimento iniciado por Estácio da Veiga ao sul e Martins Sarmento ao norte. No momento em que o urbanismo enrolava o País no abraço sufocante dos seus mil e um tentáculos, são essas criaturas de boa vontade que surgem, de enxada em punho, a arrecadar os despojos dispersos da nossa herança tradicional. Na sinagoga de S. Bento o pedantocrata traía-nos ignobilmente. Com o êxodo dos campos arrefeciam as lareiras da província. Perdera-se na nossa sociedade o sentimento unânime de um fim. Nas sessões de gala o chauvinismo oficial é que falava às vezes das chacinas com que andaramos ensanguentando o Malabar, como se a terra da Pátria não possuísse outro título de gloria fóra dos anais da conquista asiática, recortados em piratarias e vergonhas sem perdão. Ressuscitava-se também a pá de Aljubarrota mais a sanha exasperada do alferes da bandeira na desfeita de Toro. Quando chegava o Primeiro de Dezembro, além do Te-Deum na Sé com sermão repisado sobre as páginas sabida de Rebelo da Silva, — O dia primeiro de dezembro amanhecera puro e alegre»—, saía inevitavelmente, como guloseima para a patriotice, aquele dramalhão imenso em que D. Filipa de Vilhena arma os filhos pouco mais que infantes e os remete com bravura para a degola. Não tinha outro grau a consciência colectiva. Obliterara-se a grandeza do espírito concelhio, que os repetidos códigos administrativos empurravam para o estrebucho derradeiro. Favor nos fazia a Espanha em nos consentir ministério em Lisboa, comum simulacro de exército, bravateando os bigodes para as meninas cismadoras das cidadesinhas do interior.
Nós próprios atávamos a grilheta com as mãos vencidas. Esvaído o instinto de solidariedade em que os povos se apoiam, não havia ideia cívica nem comunhão afectiva por cujo meio se retemperasse o reservatório de energias que se chama a alma duma raça. São os Mortos que lhe alimentam a química incessante. Subtraídos pela adaptação desabusada duma quimera estrangeira à riqueza sem conto do nosso determinismo orgânico, aceitava-se que nos esfarelássemos aos poucos, como um punhado de átomos que se extraviaram de toda a força centrípeta.
Aqui está o ambiente em que os obreiros três vezes abençoados da nossa redenção moirejavam de noite e dia, sem um desalento nem um cansaço. A etnografia confirmava as inculcas da pre-historia. Juntavam-se os informes antropológicos à seara recolhida no adagiário e no cancioneiro. Os materiais acumulados subiam cada vez mais. A construção competia à camada que sucedesse a esses homens de boa vontade nos destinos obscurecidos da gleba. Jaziam alisadas as pedras, rasgados os cavoucos. Não se precisava senão de avivar os antigos alicerces, - de seguir o traçado do solar destruído da Grei. Haviam-no posto a descoberto folcloristas e arqueólogos. E com pujança vingadora o Luso surgia das lucubrações eruditas como um valor inassimilável e vivaz. Louvores a Deus que já vozes de eleição nos diziam povo desde o princípio! Não nos desgarrara o acaso da incorporação natural no planalto castelhano. Fora o Luso, - fora o pequeno dolicoide, de sempre inconfundível com o ibero, a ponto de Silius Italicus na Púnica lhe assinalar já a eterna divortia!
(António Sardinha denunciaria mais tarde haver aqui um de interpretação que ele tomara de Teófilo Braga).
A reabilitação da Raça obrigava à reabilitação das instituições em que o génio dela secularmente se exprimira. Curioso é mencionar agora um fenómeno interessante da psicologia do tempo. Os homens da Portugalia e da Revista Lusitana declaravam-se em maioria republicanos. Ia em semelhante atitude o protesto do seu nacionalismo contra os atropelos quotidianos em que o sofisma constitucional ludibriava as direções mais queridas do País. Regidos pelo tropeço intelectualista do Progresso-Indefinido, aclamavam a República como uma forma de governo superior e como a mais conforme à aptidão comunitária do nosso arreigado sentimento concelhio. Apaixonara-os o caso esporádico da Suíça, na qual, em lugar duma sobrevivência arcaica justificada pelo regime cantonalista que a montanha impõe, se apostavam em reverenciar, de coração entusiasmado, um tipo perfeito de governo, - o mais perfeito dos modelos sociais. Não podendo, por ser cedo ainda, sobreporem-se à época que lhes imprimira feição mental, explica-se bem que não se libertassem das prevenções revolucionarias, de modo a ganharem aquela plenitude de vistas que lhes ensinaria a encarar a Monarquia não só como um sistema político mais racional e mais lógico, mas ainda como o único agente possível do federalismo municipal que tanto lhes sabia merecer. É deles que deriva o equívoco nacionalista que em torno da República se teceu, preparando-lhe as caminhadas dificultosas. Não se carece de mais nada para se medir o vácuo em que Portugal se insensibilizava, transviado de toda a doutrina guiadora.
Quando os elementos positivos assim se dispersavam atrás de névoas sem valia, já se imagina como as camadas restantes, ou se degradavam no obscurecimento, ou seguiam direitas á desnacionalização, desajudadas duma regra que as mantivesse na posse inspiradora dum destino. Sofriam-se as consequências da péssima aventura liberal. Na ficção desmascarada da Carta o que existia em essencia não passava do disfarce de quantos teorismos Benjamin Constant e Jeremias Bentham tinham inventado para vulgarizarem mundo além os mandamentos da cartilha parlamentarista. A inteligência protestante, repito, assenhoreava-se de nós. Não se substitue ao determinismo duma raça a formação hereditária de outro povo. Essa imprudência experimentá-mo la nós, abrindo os braços á metafísica estouvada do Contracto. O «livre-exame» caía-nos em cima, - dentro de pouco oscilavam as certezas tradicionais de Nacionalidade. De onde a sensação de catástrofe em que Portugal se oprimia, porque, em desprezo pelo temperamento inviolável da Grey e sem respeito pelas aquisições da cultura autóctone, se escravizava a Pátria com a tutela duma utopia sem eira nem beira, vagabunda de todas as estradas, pior que o bafo da peste que anda de noite e caminha às cegas. Administrados como uma fazenda arrendada de que se extrai o proveito, sem se cuidar da conservação, não admira que rodássemos para a vala comum numa morte miserável, a que não se consagraria nem o luxo modesto dum epitáfio.
Pois o mal que nos roía, a hoste sincera da Portugalia, em que Rocha Peixoto assumira posições de arauto, o considerava, não como uma endemia própria de tal liberdade dos Imortais-Princípios, mas como o resultado dos raros resíduos autoritários que o Trono porventura entre nós representava. Entende-se já porque Ricardo Severo no opúsculo, As origens da nacionalidade portugueza, se enche de pasmo por Oliveira Martins reclamar uma monarquia de «poder-pessoal», para acudir á crise em que a Pátria parecia perder-se. É que o embuste democrático fizera escurecer o significado às coisas. Ignorava-se a função específica da Realeza, mostrando-se em toda a parte como um ponderador de classes, ao passo que as situações de sufrágio correspondem inalteravelmente ao predomínio cerrado duma casta. Porque é que as suseranias feudais se insurrecionavam a cada instante, procurando abater o prestígio monárquico, e as Comunas acudiam de pronto para o manterem com vigor
Em Roma a república é aristocrática, detendo- se o mando na esfera exclusiva do patriciado, que é quem monopoliza os cargos e usufrui o ager. O Príncipe assoma, trazido aos ombros da plebe. O cesarismo é, como primeiro passo para a chefia hereditária, de natureza meramente popular. O mesmo acontece na actualidade com as chamadas democracias políticas. Ontem seriam os barões mediévicos, utilizando sofregamente a gleba mais o suor do adscrito miserável. São hoje os barões da Finança com o plutocratismo comendo as pequenas iniciativas privadas e abandonando o artífice à dureza da Oferta-e-Procura, como um animal que se explora sem escrúpulos.
A Realeza se instituiu em tempos pela liga das vilas livres para que, soberana a todos os interesses e confundido o interesse do seu interesse com o interesse geral do grupo, se aplanassem as desproporções sociais pela redução ao âmbito próprio da actividade de cada um dos vários egoísmos colectivos, de que o agregado se compunha. Debilitadas pelo defeito de nascença que as coloca à mercê de quem dispuser de mais votos, podem as democracias hodiernas limitar os excessos do individualismo económico, constrangendo a um justo entendimento o Capital e a Produção?
Não, evidentemente.
São elucidativos os escândalos norte-americanos com os trustes dirigindo o parlamento por intermédio da camarilha secreta dos bosses, a ponto de o presidente Woodrow Wilson não achar resolução a um problema tão angustioso, senão apelando para o poder-pessoal pelo exercício forte da prerrogativa de veto que a Constituição reconhece ao chefe do Estado. Para se meditar é o caso sabido da França. O alcoolismo devasta as populações, fornecendo à delinquência e aos manicómios um número assustador de clientes. Solicitam se medidas repressivas, reclama-se a intervenção enérgica dos poderes públicos. Pois para não se desgostarem certas potências eleitorais, tudo continua na mesma, para maior gloria da Terceira-República, bem na agonia, coitada!
Já em 1891 o governo de Washington se conservava silencioso perante a verdadeira guerra privada que se desenvolvera entre os grevistas das fundições de Homestead e os detectives Pinkerton, às ordens do senhor Carnegie, patrão todo poderoso. O proletariado apercebe-se enfim do ilusionismo que o ludibria. A tendencia autoritária dos sindicalistas franceses é bastante conhecida através da hipótese da Monarchie-Ouvrière, servida com tanto brilho por Georges Valois. É um dos mais incisivos doutrinários da economia radical, Edouard Berth, que no livro recentíssimo, Les méfaits des intellectuels, aceita francamente a solução monárquica, como único meio de expulsar das órbitas do Trabalho a gestão importuna e opressiva do Estado democrático. Foi a Revolução que gerou a moderna questão operária por abolir as corporações de artes e ofícios, em que o artífice se resguardava dos caprichos ferozes da Concorrência. O liberalismo tornou-o simplesmente um «cidadão.» Por via da mentira declamatória do voto, derrancou-lhe as antigas molduras de defesa, insuflando-lhe o gosto desorganizador da paixão partidária. As consequencias viram-se no desaforo crescente do feudalismo industrial. Não podem os regimes, apoiados na urna, realizar a apetecida equação social. Enfraquecidos pela sua fisiologia inferior, estão sempre nas mãos das grandes oligarquias financeiras e políticas, como já se disse. Na definição célebre de outro doutrinário sindicalista, Georges Sorel, são governos de classe contra as classes.
Não acontece já assim aos sistemas fixos, com a hereditariedade por fulcro resistente. O Rei não necessita dos votos de ninguém. O egoísmo dele coincide naturalmente com a utilidade colectiva.
Por isso é que é soberano, visto representar em si a soberania dos diversos interesses em que o grupo se soma. A interpenetração pacífica e ordeira das classes atinge-se deste modo com normalidade, sem prevalências de castas, nem exclusivismos de classe. Mas será possível obter-se semelhante identificação nos governos parlamentares, — ou mistos, ou democráticos? Decerto que não. O parlamentarismo, alem de criar a instabilidade nas direções superiores do Estado, traduz sempre o predomínio das conveniências dum bando sobre as conveniências sagradas do todo.
Ora eram as conclusões vigorosas da revisão pragmatista, a que se sujeitou de entrada o século corrente, que as boas vontades da Portugalia e da Revista Lusitana, ignoravam. Não as esclareciam, nem os ensinos fortes dum Le Bon, estabelecendo a demopsicologia como uma ciência certa, nem a verificação triunfante dos enunciados e reflexões do grande Le Play. Filhos do doirado diletantismo da era que findava na mais abominável das impotências edificadoras, se não gritaram um acto de fé que enchesse céus e terra, foram no entanto os anúncios duma outra idade, em que a posse dum destino comum havia de restituir à dispersão das iniciativas o segredo obliterado da consciência da Pátria.
Na hora espessa da incerteza, é lá, - á matéria prima com tanto amor arrecadada, que nós, os rapazes desta geração, nos dirigimos, soltando um clamor unânime de esperança. Somos educados pelos mestres do pensamento culto no repúdio terminante das ideologias gregaristas. Toma-nos o respeito enlevado da Disciplina. E, encostados ao reconhecimento dos limites invencíveis que nos determinam, nós repelimos a Liberdade de maiúscula solene, para reabilitarmos as velhas liberdades de algum dia, em que a Região se bastava organicamente e a Profissão zelava com honra o seu proveito e a sua autonomia. Oh, as intituladas ideias-avançadas, com o serem um luxo ensebado de caixeiro-viajante, são, meu Deus, o pior e o mais nefasto dos arcaísmos! Denunciemo-las como um regresso à barbaria, mais ainda, - como a volta à noite ínfima das origens. Temos por nós o positivismo da época que, sem prevenções sectárias nem atitudes antecipadas de escola, orienta hoje as luzes da inteligência como uma regra segura de ação. Reacionários ? Riamos a risada franca dos heróis, levantando do erro das massas a significação elevada da palavra. Reacionários, - sim, e com desassombro!
Reacionários, interpretando o reacionismo biológico dum agregado que sofre a violação insensata das condições primordiais da sua existência. Esclarecem-nos contra os ataques pomposos da superstição racionalista, duma parte, a crítica imortal de Bergson ao mecanicismo filosófico da Vida, da outra parte, os postulados definidos por René Quinton à face da mais minuciosa observação experimental. É o facto que nos inspira, unicamente o facto. Conduz-nos não a suposta excelência dos Princípios. É o inventario das realidades ambientes o motivo que intimamente nos delibera. Somos tradicionalistas. Mas ser tradicionalista não é encerrar-nos na contemplação saudosa do Passado. É antes reconhecer a contínua sucessão dinâmica em que a historia se coordena entre si, efectuando a solidariedade dos Mortos com os Vivos, segundo a visão admirável dos melhores conceitos de Augusto Comte.
«Evolução» exprime «permanência». É a permanência que nós procuramos obter pela plenitude dada aos recursos contidos dentro do nosso determinismo. «Le devenir, avec son expression concréte dans le phénomène de 1’évolution, declara Jules de Gaultier, n'apparâit plus que comme un moyen pour un éternel presente.» ( La dépendance de la Morale et l'indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, p. 270) Entenda-se a diferença que vai do misoneismo que retarda e obscurece à nossa compreensão prática da sociedade. Não é a placidez da agua morta dum pântano que nós ambicionamos como mira final. As leis psicológicas do desenvolvimento dos povos assentam a variabilidade na estabilidade como senão primário de todo ò bem. E’ á variabilidade na estabilidade que nós tendemos.
Como o indivíduo adulto no pleno desabrocho dos seus préstimos não cresce para alem dos termos já traçados no embrião de que proveio, o mesmo ocorre com as nações, com as raças, com os povos. Zaratustra tirava a sua virtude da resignação heroica com que se submetia ás restrições indomináveis da Existência. Aquele que se falseia e improvisa na demanda de quiméricos humanitarismos tomba na fraqueza ou na morte. O super-homem é o que melhor se sujeita para melhor se possuir. As forças da natureza não se comandam senão obedecendo-lhes. Eis o segredo do olimpismo soberano dum Goethe. E’ a harmonia da precária trajectória pessoal com a marcha invariável das almas e das coisas. A própria manobra da Vida conservando-se nos leva consigo, nos facilita a jornada. Erguer- nos em contradição conosco é um conflito eterno que nada amacia. Porque é que os governos revolucio¬ nários se fartam de encher as cadeias, de povoar os presídios, sem nunca derrotarem a hostilidade incoercível em que terminam por ser suplantados?
E’ que a resistência passiva que os abafa como uma máquina pneumática operando o vazio, não parte do querer circunscrito a um grupo mais ou menos numeroso de indivíduos, - não é um plano de combate, delineado e assente em grémios oposicionistas. O espírito conservador não se nutre do descontentamento dos vivos. E’ o exército invencível dos Mortos que o perpetua e sustenta numa revivescência que nenhum despotismo da terra sufocará. São governos contra a natureza os governos revolucionários. Esbarram a cada hora no escolho em que hão-de naufragar mais hoje mais amanhã, porque se apostam em julgar num materialismo grosseiro que são os corpos, e não as almas, - a alma-mater duma Pátria, - que combatem contra eles o combate surdo que não conhece nem tréguas nem compaixão. Ah, o Príncipe Perfeito, esgrimindo com os espectros nos forros do seu palacio, é bem o símbolo dessa loucura sem nome!
Portadores que somos do futuro de Portugal, assim nós olhamos os complexos problemas que rodeiam a salvação comum duma série angustiosa de interrogações. Primeiro que o mais, é preciso que a Nacionalidade se sinta dona dos seus destinos com uma filosofia que a explique e a robusteça.
Exposto, o Integralismo Lusitano aparece como a escola da vindoira consciência colectiva. As instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue se lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência. Tão depressa se apaguem dos nossos olhos as duas verdades que estabelecemos, nem brio haverá para morrermos ao menos dignamente, cobrindo o rosto com a ponta da toga. Senhores duma síntese tranquilisadora a que concorreram com os subsídios dum honesto eruditismo, como é o dos nossos arqueólogos e folcloristas, as luzes mais insuspeitas da cultura hodierna, nós achamo-nos no nosso tempo, reconciliados com o que é natural e humano em sangue português. O mal descende do esquecimento a que nos votámos, desprezivelmente. Já Simão Machado dizia na Comediu Alfêa que, mandando um ricaço pintar os costumes de quantas nações havia, o artista encarregado da obra
«Pôs ao Portuguez despido nas mãos uma peça de pano».
Explicava de seguida o escritor num remate conceituoso:
«Em fim, que por natureza
E constelação do clima,
Esta nação portuguesa,
O nada estrangeiro estima,
O muito dos seus despreza.»
E’ um traço anedótico que se presta a profunda meditação. Não vale com um motivo de scepticismo para os que o professam em abundancia sobre a sorte e os merecimentos do País. Tome se antes como um indicio da larga desnacionalização provocada pela insânia das camadas dirigentes, em divorcio absoluto com a espontaneidade autóctone desde a hora nefasta da Renascença. Mas já não ha direito para se consentir o equívoco! Bem alto elevámos o nosso brado pela civilização. Humanistas démo-los doutíssimos ao intercâmbio intelectual de Quinhentos. Não nos ficáramos atrás dos outros povos europeus nos alvores do primeiro Renascimento. Santo Antonio e Pedro Juliano, mais tarde João XXI, são luminares do pensamento mediévico. Sempre a nossa contribuição mundial excedeu a pequenez do nosso cantinho. Caímos em desgraça. Foi a cedencia vergonhosa diante da invasão cosmopolita.
No entanto, não somos uma patria morta, arrastando pelo poder da inércia a subsistência precaríssima dos seres subalternos. O que dormimos é o sono secular do Encoberto. Mas quando ha lampejos de vida na nossa modorra, a Raça descobre-se magnífica, como que inspirada por um fim imortal. Falem as campanhas da Aclamação, fale a guerra santa contra os Francêses, - que fale o Portugal concelhio de 1828! A nossa homogeneidade étnica nos dá a virtude indebelavel da resistência. E’ o pequeno dolicoide, sobrevivo da Atlântida, criador da arte egeana, que nos reservatórios incansáveis da energia patria elabora sem cessar o grande espírito de que o Luso se mostra condutor á hora espessa da crise. Voltemos á continuidade tradicional interrompida. E de pronto, com a reconstituição do seu meio proprio, a alma suprema da comunidade ha-de ser conosco!
Não é um exagero literário a importância que eu confiro ao factor antropológico. Nem se suponha que uma raça homogenea significa para mim o rigor duma raça pura. Eu considero aqui a raça no sentido histórico, embora com uma renovação constante desse tipo formado pelas circunstancias do espaço e do tempo, que é o Lusitano, ou seja o dolicocéfalo meão. Com as imiscuencias posteriores os caracteres somáticos podiam sofrer, e sofreram alteração, efectivamente. Mas o que representava o conteúdo psíquico do nosso homem aborígene prevaleceu acima de tudo, imprimindo-nos a unidade moral e afectiva, sem a qual a Pátria nunca a veríamos possível.
Corra-se em escorço a jornada da Nacionalidade. Mais uma vez, num esquema breve, se demonstrará a natureza do nosso determinismo. E’ em Muge que o mais remontado avô dos portuguêsès se manifesta com evidencia, afiançando-nos um sedentarismo instintivo que já se praticava com aferro, ainda a agricultura se não sabia bem aonde vinha. Eu não aludo á hipótese tentadora que nos contorna o habitante arcaico dos vales do Tejo e Sado, surgindo do solo, como produto nato, mal teriam cessado as comoções geognósticas que estabilizaram aquela parte do nosso território. Assim quasi que nasceria o torrão amorável de Portugal de envolta com a criatura que o havia de povoar e de lhe ganhar um nome. É’ bela, sem dúvida, a teoria, toda cheia das melhores sugestões para o ocidentalismo apenas na infância. Não a utilizamos, contudo. Aceitem-se tão sómente as pesquisas do malogrado Paula e Oliveira quando nos informa da aptidão sedentária do íncola mesolítico de Mugem.
«No alvor do conhecimento e por essa sociabilidade pacífica que o sedentarismo facilmente engendrava — consinta-se que eu me transcreva (Teófilo, Mestre da Contra-Revolução, parte II. Estudo em publicação na revista de filosofia política, Nação Portuguesa), — depressão avô recuado enterrou os seus mortos. Enterrando-os, mais um vínculo o prendia e o fixava. E’ que a inhumação antecede entre nós os ritos incineratorios, de proveniência estranha, e toma-se como um dos sinais específicos das arredadas gentes que para estas partes se insulavam. Sobre o depósito mortuário assentaria a lareira dos vivos: — o fogo, que veio a consagrar-se como sinónimo de família, e se acendia em cima do «loguo», em que os antepassados repousavam. O encadeamento das gerações pela subordinação dos sobreviventes ao culto ancestral manifesta-se de entrada. A necrolatria, erigindo os dolmenes e tornando-se a regra espiritual duma colectividade em inicio, ao tempo em que promovia a coesão autoritária, dava simultaneamente o sentimento duma mesma promanação. Pelo oculto poder do sangue a unidade gentilícia se entrançava. O direito de cidade e o equilíbrio da comunidade vieram de seguida, por via do contacto quotidiano em que o elementar instinto de vizinhança se fôra acordando.«Aferrada ao chão que lhe engulia os filhos de¬ pois de os haver gerado, a raça de Mugem, — as¬ sim etiquetada hoje nos recintos scientíficos — , com o desenrolar das solicitações vitaes, não se entre¬ gou á pastorícia. própria tão sómente dos grupos turbulentos e erráticos. O atavismo, que a acolche- tava ao solo fecundo donde brotara, a aquecia na religiosidade branda das coisas naturaes, — bem cedo lhe conferiu a pendencia para o ruralismo pro¬ dutivo e amoravel da gleba. Como derivante, as comunidades agrarias se entreteceram, originando o nódulo populacional que o romano nomeará vi- cas e que era um modo de ser inherente ao H.-Atlan- ticus, como se comprova, por exemplo, pela djemâa berbere, de aproximada organização igualitaria,
mas centralizada sob uma forte chefia religiosa. A nossa aldeia paleo-historica, deduzida da longínqua faculdade sedentária que os córtes da bacia do Tejo e Sado nos participaram, apoiando se na colectivi- zação da terra para os efeitos da cultura, possuia idêntico hifen hierárquico em virtude da norma teo- crática que a necrolatria necessariamente lhe im¬ punha.
aO regulamento interno do grupo pode abonar- se, em referência á azáfama e á colheita, com a notação conservada nos viajantes clássicos ácerca dos vaccei que habitavam a concha do Douro. Todos os anos se partilhava o solo arável, sendo