Antes de 1913, o jovem republicano António Sardinha (1887-1925) entendia decerto a nação portuguesa fundada num critério étnico, moral e social, em linha com Teófilo Braga e com os homens da revista Portugalia (1899-1908) onde, sob o moto "pola Grey", se tinham proposto estudar a nação portuguesa como um organismo étnico com vida própria independente.
Em O Valor da Raça (1915), Sardinha continua a identificar a Grey (= Raça) como sinónimo de "povo" ou "nação", mas passando a considerá-la, por via da sociologia tomista, como um "conceito jurídico que define um todo uno, idêntico na composição e no destino"; vindo o seu Valor a revelar-se-lhe, mais do que pela etnia, pelas instituições e pelo espírito que as vivifica - no municipalismo e no localismo.
Ao converter-se ao ideário monárquico, Sardinha mantinha-se fiel ao moto "pola Grey" - ao tradicional carácter democrático da nação portuguesa - mas despromovendo os seus fundamentos ou razões de ordem étnica. Em 2004, no livro Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano, resumi os elementos essenciais da sua nova tese acerca das origens da nação portuguesa, superando tanto a teoria do acaso de Oliveira Martins como a teoria étnica de Teófilo Braga. Em 1922, no relançamento da revista Nação Portuguesa, o nacionalismo de Sardinha surgiu já liberto de quaisquer resquícios de base naturalista ou étnica, escrevendo: "uma nacionalidade é sobretudo uma alma, um valor espiritual, um génio" ["Porque voltámos"] - J. M. Q.
Em O Valor da Raça (1915), Sardinha continua a identificar a Grey (= Raça) como sinónimo de "povo" ou "nação", mas passando a considerá-la, por via da sociologia tomista, como um "conceito jurídico que define um todo uno, idêntico na composição e no destino"; vindo o seu Valor a revelar-se-lhe, mais do que pela etnia, pelas instituições e pelo espírito que as vivifica - no municipalismo e no localismo.
Ao converter-se ao ideário monárquico, Sardinha mantinha-se fiel ao moto "pola Grey" - ao tradicional carácter democrático da nação portuguesa - mas despromovendo os seus fundamentos ou razões de ordem étnica. Em 2004, no livro Filhos de Ramires - As origens do Integralismo Lusitano, resumi os elementos essenciais da sua nova tese acerca das origens da nação portuguesa, superando tanto a teoria do acaso de Oliveira Martins como a teoria étnica de Teófilo Braga. Em 1922, no relançamento da revista Nação Portuguesa, o nacionalismo de Sardinha surgiu já liberto de quaisquer resquícios de base naturalista ou étnica, escrevendo: "uma nacionalidade é sobretudo uma alma, um valor espiritual, um génio" ["Porque voltámos"] - J. M. Q.
"Pola Lei e pola Grei" - Divisa de D. João I adoptada pelo Integralismo Lusitano.
Raça = Grei, sinónimo de povo, sociedade, nação; Grei é um conceito jurídico que define um todo uno, idêntico na composição e no destino.
"O Valor da Raça" = "O Valor da Grei"
Em 1894, o republicano Teófilo Braga, com quem o jovem António Sardinha trocou correspondência nos tempos de estudante em Coimbra, e de quem era admirador, apresentou uma tese em que explicava a indissolúvel diferença entre os portugueses e os restantes povos da península ibérica (A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, Porto, 1894). Segundo Teófilo, a autonomia da nacionalidade portuguesa assentava em condições naturais, que designava por factores estáticos: o território e a raça. Teófilo concluiu que teria existido uma nação moçárabe anterior ao estabelecimento do Estado português, mas que a mais remota origem dos portucalenses da Reconquista cristã se encontrava nos lusitanos chefiados por Viriato. No ocidente da península ibérica, teria existido um "tipo nacional" - o "luso" - que se distinguia dos restantes povos peninsulares por uma vincada tendência para a associação local ou municipal.
Em 1913, António Sardinha anunciou aos amigos de Coimbra a sua conversão ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "Mestre da Contra-Revolução". Enquanto se identificara como "republicano", Sardinha partilhara o nacionalismo étnico de Teófilo Braga e da revista Portugalia (1899-1908) onde, sob o moto "pola Grey", Ricardo Severo, Rocha Peixoto e Fonseca Cardoso, se tinham proposto estudar a nação portuguesa como um organismo étnico - com razões de ser de ordem etnológica e histórica. Aos homens da Portugália não interessavam "as manifestações erudições das ciências, artes, letras e industrias, embora nelas se pressintam tonalidades da alma popular", antes interessava o que designavam por "substractum da nacionalidade", o que nela havia de "primitivo e original, desde remotas origens". Seriam esses os verdadeiros elementos da vida e do carácter nacional, a sua razão de ser e da sua história.
Em 1915, ao ver nos escaparates o livro O Valor da Raça, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que o jovem António Sardinha iria abordar as origens da nação portuguesa, conciliando a sua recente adesão a um ideário político de cariz essencialmente institucional - o ideário monárquico -, com os “elementos de diferenciação étnica” sobre os quais se fundasse o critério político de “um pacto comum consciente”? - Desde o primeiro parágrafo, Sardinha abandona ali o sentido hierárquico e usual do termo Grey, utilizado por Ricardo Severo no prospecto da Portugalia. Eis as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular."
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza o propósito e o enunciado da sua tese:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração de uma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta para Luís de Almeida Braga).
António Sardinha recua ali na verdade até à pré-história identificando o “íntimo segredo da história portuguesa” no “dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”; nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos também logo adiante, é o Concelho, o Município.
A Teófilo Braga importara encontrar os “elementos de diferenciação étnica” sobre os quais se fundasse o critério político de “um pacto comum consciente”; e foi no Luso que ele encontrou “as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso”. Uma autentica e profunda conversão a um novo ideário político não se faz da noite para o dia. Em O Valor da Raça, António Sardinha não abandona ainda por completo a noção de que teria havido um substractum, tanto étnico como institucional, preparando durante séculos a federação dos núcleos autonómicos que vieram a constituir a unidade portuguesa. Todavia, onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça", o renascido Sardinha vai passar a entender o "localismo, o município". Para esse novo Sardinha, foi já sobretudo no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe dos primitivos habitantes do território peninsular, que a nação portuguesa se vem a constituir: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês." (...) "Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento."
Ao converter-se ao ideário monárquico, o conceito de um pacto comum consciente adquiriu novo significado e alcance histórico, iluminando o seu diálogo com as teses de Oliveira Martins e de Teófilo Braga:
"reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei."
Ao converter-se ao ideário monárquico, Sardinha mantinha-se fiel ao tradicional carácter democrático da nação portuguesa, tal como fora defendido por Teófilo Braga e pelos homens da Portugalia, mas despromovendo os seus fundamentos ou razões de ordem étnica.
Ao relançar a revista Nação Portuguesa, após o exílio em Espanha, o seu nacionalismo surgiu plenamente depurado de qualquer base naturalista: "uma nacionalidade é sobretudo uma alma, um valor espiritual, um génio." ["Porque voltámos", Julho de 1922].
Nos seus últimos ensaios da Nação Portuguesa (1922-25), bem como nas conclusões últimas em A Aliança Peninsular (Porto, 1924), Sardinha dá conta do seu desejo em refundir O Valor da Raça. À entrada da década de 1930, Luís Chaves testemunhou: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que esse seu livro "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Pelas anotações de Chaves, percebe-se que a insatisfação de Sardinha estaria sobretudo nos capítulos que dedicara à pré-história - “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." Invocar as "simpatias sedentárias" do “dolicoide meão" para firmar as bases do municipalismo era levar longe demais o nacionalismo étnico de Teófilo Braga.
A substituição das razões de ordem étnica pelas razões de ordem jurídica, institucional, e sobretudo de ordem espiritual, nos fundamentos da nacionalidade portuguesa, não foi realizada sem incertezas, hesitações e insatisfações. Antes de publicar O Valor da Raça, sabemos que Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro - O Sentido Nacional duma Existência (1913), desenterrado em 1969 por Eurico Gama.
Antes de embarcar profundamente na síntese neotomista, Sardinha foi seduzido pelo Positivismo de Comte e de Spencer, pelas ideias de Léon Duguit, pelas filosofias da Intuição e do Pragmatismo. Em 1914-15, Sardinha era ainda um recém convertido religioso e político que mantinha respeito e admiração por Teófilo Braga, pagando-lhe inclusive tributo em "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução" (1914). Mais tarde, referindo-se-lhe, escreverá no entanto: "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha." Ao salientar o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, referindo-se a Silius Italicus em O Valor da Raça: "O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!" ["O velho Teófilo"]. O jovem Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte citada. A adesão ao ideário monárquico não o tinha levado imediatamente a deixar de confiar ou apreciar a obra do mestre. Havia discordância política, sim, mas mantendo respeito e até admiração.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, ocultando-se a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, o Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte era um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, que fora convidado a colaborar na primeira série da revista Nação Portuguesa. Virá a incompatibilizar-se pouco depois com os integralistas, não prestando qualquer colaboração. Sardinha demarcou-se bem cedo da "farmacopeia gaulesa" vindo Mariotte a atribuir-lhe germanofilia intelectual e política, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha: em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico", na linha de Fichte. Além de omitir o papel crucial que Sardinha atribuía à Instituição Real nas origens da nação portuguesa - "Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado..." - Mariotte omitia também o conteúdo e o significado do conceito de "Raça", sinónimo de Grei, conceito nascido da sociologia tomista por derivação da obra De regimine principum.
3 de Novembro de 2024
J. M. Q.
Em 1913, António Sardinha anunciou aos amigos de Coimbra a sua conversão ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "Mestre da Contra-Revolução". Enquanto se identificara como "republicano", Sardinha partilhara o nacionalismo étnico de Teófilo Braga e da revista Portugalia (1899-1908) onde, sob o moto "pola Grey", Ricardo Severo, Rocha Peixoto e Fonseca Cardoso, se tinham proposto estudar a nação portuguesa como um organismo étnico - com razões de ser de ordem etnológica e histórica. Aos homens da Portugália não interessavam "as manifestações erudições das ciências, artes, letras e industrias, embora nelas se pressintam tonalidades da alma popular", antes interessava o que designavam por "substractum da nacionalidade", o que nela havia de "primitivo e original, desde remotas origens". Seriam esses os verdadeiros elementos da vida e do carácter nacional, a sua razão de ser e da sua história.
Em 1915, ao ver nos escaparates o livro O Valor da Raça, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que o jovem António Sardinha iria abordar as origens da nação portuguesa, conciliando a sua recente adesão a um ideário político de cariz essencialmente institucional - o ideário monárquico -, com os “elementos de diferenciação étnica” sobre os quais se fundasse o critério político de “um pacto comum consciente”? - Desde o primeiro parágrafo, Sardinha abandona ali o sentido hierárquico e usual do termo Grey, utilizado por Ricardo Severo no prospecto da Portugalia. Eis as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular."
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza o propósito e o enunciado da sua tese:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração de uma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta para Luís de Almeida Braga).
António Sardinha recua ali na verdade até à pré-história identificando o “íntimo segredo da história portuguesa” no “dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”; nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos também logo adiante, é o Concelho, o Município.
A Teófilo Braga importara encontrar os “elementos de diferenciação étnica” sobre os quais se fundasse o critério político de “um pacto comum consciente”; e foi no Luso que ele encontrou “as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso”. Uma autentica e profunda conversão a um novo ideário político não se faz da noite para o dia. Em O Valor da Raça, António Sardinha não abandona ainda por completo a noção de que teria havido um substractum, tanto étnico como institucional, preparando durante séculos a federação dos núcleos autonómicos que vieram a constituir a unidade portuguesa. Todavia, onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça", o renascido Sardinha vai passar a entender o "localismo, o município". Para esse novo Sardinha, foi já sobretudo no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe dos primitivos habitantes do território peninsular, que a nação portuguesa se vem a constituir: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês." (...) "Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento."
Ao converter-se ao ideário monárquico, o conceito de um pacto comum consciente adquiriu novo significado e alcance histórico, iluminando o seu diálogo com as teses de Oliveira Martins e de Teófilo Braga:
"reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei."
Ao converter-se ao ideário monárquico, Sardinha mantinha-se fiel ao tradicional carácter democrático da nação portuguesa, tal como fora defendido por Teófilo Braga e pelos homens da Portugalia, mas despromovendo os seus fundamentos ou razões de ordem étnica.
Ao relançar a revista Nação Portuguesa, após o exílio em Espanha, o seu nacionalismo surgiu plenamente depurado de qualquer base naturalista: "uma nacionalidade é sobretudo uma alma, um valor espiritual, um génio." ["Porque voltámos", Julho de 1922].
Nos seus últimos ensaios da Nação Portuguesa (1922-25), bem como nas conclusões últimas em A Aliança Peninsular (Porto, 1924), Sardinha dá conta do seu desejo em refundir O Valor da Raça. À entrada da década de 1930, Luís Chaves testemunhou: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que esse seu livro "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Pelas anotações de Chaves, percebe-se que a insatisfação de Sardinha estaria sobretudo nos capítulos que dedicara à pré-história - “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." Invocar as "simpatias sedentárias" do “dolicoide meão" para firmar as bases do municipalismo era levar longe demais o nacionalismo étnico de Teófilo Braga.
A substituição das razões de ordem étnica pelas razões de ordem jurídica, institucional, e sobretudo de ordem espiritual, nos fundamentos da nacionalidade portuguesa, não foi realizada sem incertezas, hesitações e insatisfações. Antes de publicar O Valor da Raça, sabemos que Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro - O Sentido Nacional duma Existência (1913), desenterrado em 1969 por Eurico Gama.
Antes de embarcar profundamente na síntese neotomista, Sardinha foi seduzido pelo Positivismo de Comte e de Spencer, pelas ideias de Léon Duguit, pelas filosofias da Intuição e do Pragmatismo. Em 1914-15, Sardinha era ainda um recém convertido religioso e político que mantinha respeito e admiração por Teófilo Braga, pagando-lhe inclusive tributo em "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução" (1914). Mais tarde, referindo-se-lhe, escreverá no entanto: "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha." Ao salientar o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, referindo-se a Silius Italicus em O Valor da Raça: "O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!" ["O velho Teófilo"]. O jovem Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte citada. A adesão ao ideário monárquico não o tinha levado imediatamente a deixar de confiar ou apreciar a obra do mestre. Havia discordância política, sim, mas mantendo respeito e até admiração.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, ocultando-se a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, o Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte era um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, que fora convidado a colaborar na primeira série da revista Nação Portuguesa. Virá a incompatibilizar-se pouco depois com os integralistas, não prestando qualquer colaboração. Sardinha demarcou-se bem cedo da "farmacopeia gaulesa" vindo Mariotte a atribuir-lhe germanofilia intelectual e política, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha: em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico", na linha de Fichte. Além de omitir o papel crucial que Sardinha atribuía à Instituição Real nas origens da nação portuguesa - "Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado..." - Mariotte omitia também o conteúdo e o significado do conceito de "Raça", sinónimo de Grei, conceito nascido da sociologia tomista por derivação da obra De regimine principum.
3 de Novembro de 2024
J. M. Q.
Segundo António Sardinha,
1. Como é que se FORMOU a Nação Portuguesa?
Através de uma aliança entre o Rei e os Municípios: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês."
2. Quando é que está FORMADA a Nação Portuguesa?
No século XIV, ao iniciar-se a Dinastia de Avis: "nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular".
Na Introdução a O Valor da Raça, Sardinha resumiu os aspectos essenciais da sua tese e propósito. Eis algumas passagens significativas (negritos acrescentados):
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
(...)
É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
Texto completo de António Sardinha (em "ficheiro.pdf"): O Valor da Raça, 1915.
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
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É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
Texto completo de António Sardinha (em "ficheiro.pdf"): O Valor da Raça, 1915.
Entraram no eclipse mortal as ideologias anacrónicas da Revolução, herdeiras desse nefasto «livre-exame» que, introduzido no Ocidente pelos doutores da Enciclopédia, se traduz na ruptura de todos os laços morais e sociais em que a colectividade se repousa. A que assistimos nós no espectáculo imprevisto que a Europa nos oferece, convertida quase de banda a banda num vasto campo de batalha? É à apologia da utópica ordem internacionalista dos pregadores da Nação-Humanidade? É à apoteose final da emancipação humana, abrindo os braços por cima da Cidade-Futura, em que não se apontaria nem deuses nem senhores? Oh, como que por encanto, o filantropismo romântico pulveriza-se por entre a poeira das mil e uma ficções com que o século se apostou em confessar a impotência do seu cerrado orgulho materialista!
(O Valor da Raça - Introdução a uma campanha nacional. Lisboa, 1915, págs. 119-120).

1915 - António Sardinha- O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (livro) |
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1914 - António Sardinha - Teófilo, Mestre da Contra-Revolução
1917 - António Sardinha - Do valor da Tradição.
1922 - "Porque Voltámos", Nação Portuguesa, 2ª Série, nº 1, Julho de 1922, pp. 1-5.
1923 - Olhando o Caminho, Janeiro de 1923 (Prefácio a Ao ritmo da ampulheta, 1925, pp. XI-XXVII).
1924 - Ao princípio era o Verbo.
1914 - António Sardinha - Teófilo, Mestre da Contra-Revolução
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