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1915 - António Sardinha- O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (livro) |
Raça = Grei, sinónimo de povo, sociedade, nação; Grei é um conceito jurídico que define um todo uno, idêntico na composição e no destino.
"O Valor da Raça" = "O Valor da Grei"
"Pola Lei e pola Grei" - Divisa de D. João I
"O Valor da Raça" = "O Valor da Grei"
"Pola Lei e pola Grei" - Divisa de D. João I
Segundo António Sardinha,
1. Como é que se FORMOU a Nação Portuguesa?
Através de uma aliança entre o Rei e os Municípios: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês."
2. Quando é que está FORMADA a Nação Portuguesa?
No século XIV, ao iniciar-se a Dinastia de Avis: "nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular".
1. Como é que se FORMOU a Nação Portuguesa?
Através de uma aliança entre o Rei e os Municípios: "São as behetrias do norte e os «castelos-velhos» do sul que, reconhecendo-se na chefia suprema de Afonso Henriques, se atiram para a recuperação do território violado pelo moiro e pelo leonês."
2. Quando é que está FORMADA a Nação Portuguesa?
No século XIV, ao iniciar-se a Dinastia de Avis: "nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular".
Em 1894, o republicano Teófilo Braga, com quem o jovem António Sardinha trocou correspondência nos tempos de estudante em Coimbra, e de quem era admirador, apresentou uma tese "racial" ou "étnica" das origens de Portugal, na qual explicava a indissolúvel diferença entre os portugueses e os restantes povos da península ibérica (A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, Porto, 1894)
Na perspectiva de Teófilo Braga, o espírito de autonomia da Nacionalidade portuguesa assentava em condições naturais, que também designava por "factores estáticos": o Território e a Raça. Nessa obra, Teófilo concluiu que teria existido uma Nação moçárabe anterior ao estabelecimento do Estado português, mas que a mais remota origem dos portucalenses da Reconquista se encontrava nos lusitanos chefiados por Viriato. No ocidente da península ibérica, teria assim existido um "tipo nacional", o "Luso", que se distinguia dos restantes habitantes peninsulares pela sua vincada tendência para a associação local ou municipal - o "Lusismo".
Em 1912-13, António Sardinha converteu-se ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "mestre da contra-revolução". No ano seguinte, ao publicar O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que um jovem como António Sardinha iria usar ou adaptar ao seu novo ideário monárquico uma tese "territorial" e "racial" como a do lusismo de Teófilo?
Com hesitações, dúvidas, e insatisfações após a publicação do livro, sobretudo no que à pré-história dizia respeito, mas com firmes e claras conclusões quanto ao processo histórico da formação da nação portuguesa. Antes de publicar O Valor da Raça, Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro: O Sentido Nacional duma Existência (1913). Esse cadáver viria a ser desenterrado por Eurico Gama, em 1969, mas O Valor da Raça não chegou a ser inutilizado ou proscrito por Sardinha.
Na entrada da década de 1930, Luís Chaves testemunhou: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que O Valor da Raça "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Pelas suas anotações, percebe-se que a insatisfação de Sardinha estaria nos capítulos “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." (Idem, Ibidem).
O Valor da Raça sobreviveu às incertezas e hesitações de Sardinha. Mais tarde, referindo-se a Teófilo Braga, escreverá no entanto Sardinha em "O velho Teófilo": "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha."
António Sardinha, salientando o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo Braga, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, ao referir-se a Silius Italicus em O Valor da Raça:
"O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!"
Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte que citara. A adesão ao ideário monárquico não tinha levado António Sardinha a deixar de confiar ou apreciar a obra de Teófilo. Havia discordância política, mas mantendo respeito e até admiração por "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução". Sardinha estava em trânsito intelectual, moral, e espiritual, reflectindo ainda muitas das suas preocupações e valores da véspera. Dar-nos-á porém conta da sua abertura à sociologia tomista e que o levará a colocar a tónica no estudo das Instituições e do Espírito que as vivifica.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, no qual se ocultou a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte, um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, não perdoando a Sardinha a sua demarcação da "farmacopeia gaulesa" veio, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha, atribuir-lhe germanofília intelectual e política. Para Mariotte, em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico" na linha de Fichte. Mariotte ignorava o papel que Sardinha atribuía à instituição real nas origens da Nação portuguesa, mas também as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular." (António Sardinha, O Valor da Raça, 1915, p. I).
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza António Sardinha:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta de António Sardinha para Luís de Almeida Braga).
Onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça"; entendia António Sardinha o "localismo e o município". Em O Valor da Raça, Sardinha recuará até à pré-história identificando um “íntimo segredo da história portuguesa”: “o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”. Nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos Sardinha logo adiante, é o Concelho, o Município. É no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe portanto dos primitivos habitantes do território peninsular, que Sardinha vem a concluir a sua tese acerca do nascimento da nação portuguesa: durante a Reconquista cristã “as Beetrias mostram-se como o tecido estrutural da nacionalidade nascente”.
António Sardinha resumiu na Introdução os aspectos essenciais da sua tese e propósito. Eis algumas passagens significativas (negritos acrescentados):
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
(...)
É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
J.M.Q.
Texto completo de António Sardinha (em "ficheiro.pdf"): O Valor da Raça, 1915.
Na perspectiva de Teófilo Braga, o espírito de autonomia da Nacionalidade portuguesa assentava em condições naturais, que também designava por "factores estáticos": o Território e a Raça. Nessa obra, Teófilo concluiu que teria existido uma Nação moçárabe anterior ao estabelecimento do Estado português, mas que a mais remota origem dos portucalenses da Reconquista se encontrava nos lusitanos chefiados por Viriato. No ocidente da península ibérica, teria assim existido um "tipo nacional", o "Luso", que se distinguia dos restantes habitantes peninsulares pela sua vincada tendência para a associação local ou municipal - o "Lusismo".
Em 1912-13, António Sardinha converteu-se ao ideário monárquico, vindo a surgir, em Abril de 1914, no lançamento da revista Nação Portuguesa, entre os fundadores do Integralismo Lusitano. Nas páginas daquela revista, Sardinha começou por apresentar Teófilo Braga como "mestre da contra-revolução". No ano seguinte, ao publicar O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional, um leitor atento poderia interrogar-se: como é que um jovem como António Sardinha iria usar ou adaptar ao seu novo ideário monárquico uma tese "territorial" e "racial" como a do lusismo de Teófilo?
Com hesitações, dúvidas, e insatisfações após a publicação do livro, sobretudo no que à pré-história dizia respeito, mas com firmes e claras conclusões quanto ao processo histórico da formação da nação portuguesa. Antes de publicar O Valor da Raça, Sardinha inutilizou aquele que deveria ter sido o seu primeiro livro: O Sentido Nacional duma Existência (1913). Esse cadáver viria a ser desenterrado por Eurico Gama, em 1969, mas O Valor da Raça não chegou a ser inutilizado ou proscrito por Sardinha.
Na entrada da década de 1930, Luís Chaves testemunhou: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que O Valor da Raça "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38). Pelas suas anotações, percebe-se que a insatisfação de Sardinha estaria nos capítulos “O génio ocidental” e “O espírito da Atlântida”, que deveriam ter sido mais hipotéticos do que afirmativos, não indo além de uma exposição das "nebulosidades lendárias do ocidente”. O mesmo se diga a respeito da “teoria da nacionalidade”, nas passagens referentes às "ligações íntimas entre o português e o Homo Atlanticus que no baixo vale do Tejo constitui o “substractum” aborígene da população portuguesa." (Idem, Ibidem).
O Valor da Raça sobreviveu às incertezas e hesitações de Sardinha. Mais tarde, referindo-se a Teófilo Braga, escreverá no entanto Sardinha em "O velho Teófilo": "acreditei nas intenções lusitanistas que na sua obra existiam", acrescentando: "eu procurei com a minha pena apropriar a essência do seu pensamento em proveito da cruzada que empreendemos pelo Portugal-Maior, por esse Portugal de que Teófilo é por natureza o negador sistemático. Devagar, rectificando as minhas opiniões, confesso hoje humildemente a minha ingenuidade. Verifiquei o pouco escrúpulo de Teófilo na apreciação dos factos, verifiquei o seu nenhum cuidado no exame das fontes, que ele mutila e trunca, num desprezo absoluto pela verdade. Teófilo é um deformador consciente de quanto lhe não aproveita ao seu sectarismo, não hesitando na deturpação de um texto ou na sua falsa interpretação, quando assim convenha ao intuito disfarçado que o encaminha."
António Sardinha, salientando o "desprezo absoluto pela verdade" de Teófilo Braga, dá um exemplo, de que ele mesmo fora vítima, ao referir-se a Silius Italicus em O Valor da Raça:
"O que é Teófilo, fica dito num singelo detalhe. Teófilo afirma algures que a diferença entre portugueses e castelhanos vinha de tão remotas origens, que já no primeiro século da nossa era o poeta Silius Italicus alude às eterna divortia que dividiam Lusitanos e Celtiberos. Nada mais sorridente, com efeito! Mas se consultarmos o poema de Silius Italicus nós damos lá, realmente, com as eterna divortia, mas é com as eterna divortia que os Pirenéus estabelecem entre Iberos e Celtas, nunca com as eterna divortia que separavam Iberos e Lusitanos. É disto que é rica a obra de Teófilo!"
Sardinha confiara em Teófilo, não confirmando o conteúdo da fonte que citara. A adesão ao ideário monárquico não tinha levado António Sardinha a deixar de confiar ou apreciar a obra de Teófilo. Havia discordância política, mas mantendo respeito e até admiração por "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução". Sardinha estava em trânsito intelectual, moral, e espiritual, reflectindo ainda muitas das suas preocupações e valores da véspera. Dar-nos-á porém conta da sua abertura à sociologia tomista e que o levará a colocar a tónica no estudo das Instituições e do Espírito que as vivifica.
O primeiro ataque de vulto a O Valor da Raça, no qual se ocultou a matriz tomista do pensamento de António Sardinha, surgiu através de um monárquico maurrasiano, Padre Amadeu de Vasconcelos (Mariotte), em O Nacionalismo Rácico do Integralismo Lusitano, 1917. Mariotte, um destacado divulgador da ideias da Action française em Portugal, não perdoando a Sardinha a sua demarcação da "farmacopeia gaulesa" veio, quando Portugal estava já em guerra com a Alemanha, atribuir-lhe germanofília intelectual e política. Para Mariotte, em O Valor da Raça estaria um mal disfarçado "nacionalismo rácico" na linha de Fichte. Mariotte ignorava o papel que Sardinha atribuía à instituição real nas origens da Nação portuguesa, mas também as suas palavras de abertura: "A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular." (António Sardinha, O Valor da Raça, 1915, p. I).
Ao amigo Luís de Almeida Braga, explicou com a maior clareza António Sardinha:
"Na dissertação tu verás como eu utilizo os dados da pré-história e do eruditismo moderno na elaboração duma síntese que seja o nosso ponto de apoio. A VERDADE PORTUGUESA tem um factor estático, - o localismo, o município, - outro dinâmico, - a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade" (Carta de António Sardinha para Luís de Almeida Braga).
Onde Teófilo Braga entendia como "factores estáticos" o "território e a raça"; entendia António Sardinha o "localismo e o município". Em O Valor da Raça, Sardinha recuará até à pré-história identificando um “íntimo segredo da história portuguesa”: “o dolicoide meão, de cabelos escuros e preferências sedentárias”. Nas "simpatias sedentárias" do habitante de Muge estaria o “germe da pátria portuguesa”. A "célula mãe da Pátria", porém, diz-nos Sardinha logo adiante, é o Concelho, o Município. É no plano das instituições, e no espírito que as vivifica, bem longe portanto dos primitivos habitantes do território peninsular, que Sardinha vem a concluir a sua tese acerca do nascimento da nação portuguesa: durante a Reconquista cristã “as Beetrias mostram-se como o tecido estrutural da nacionalidade nascente”.
António Sardinha resumiu na Introdução os aspectos essenciais da sua tese e propósito. Eis algumas passagens significativas (negritos acrescentados):
"Logo que o Rei assoma nas perspectivas da vida nacional, Portugal adivinha-se formado. Conseguido o agente centrípeto, sem o qual tombaria depressa na mais deplorável das desagregações, o País decide-se com galhardia para a grande obra da sua coesão e do seu robustecimento.
(...)
A virtude primacial do Luso reside, pois, na sua predileção localista. O Concelho é assim a célula-mãe da Pátria.
(...)
o caracter paternal da nossa Monarquia acha-se definido no significativo apelo que é o «Aqui d’El-Rei!» da tradição. «Pastor não mercenário», — chamariam os lavradores em Cortes a Afonso V. Na frase acidental dum «capítulo» de Quatrocentos gravava-se para todo o sempre, não só a fisionomia própria das dinastias nacionais, mas discernia-se ainda o que sejam em verdade a amplitude e os recursos do princípio monárquico em si.
(...)
“Os regimes eletivos, — ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia, geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos duma oligarquia que promove a instabilidade nas direções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula."
(...)
... ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua atividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, S. Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade coletiva» ilumina a claríssima conceção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já́ a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores.
(...)
É a ideia confraternizadora da «Republica-Christiana» que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo de presa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos voos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.(...)
São da leitura corrente os formidáveis estudos filosóficos de Georges Sorel. Pois com Georges Valois e Edouard Berth a penetração sintética do ilustre doutrinário atinge as culminâncias do mais acabado espírito construtivo. A hipótese da Realeza-Operária, com o Príncipe mestre supremo do Trabalho, desceu já das controvérsias serenas dos intelectuais para os programas da ação imediata. Falido o equívoco liberalista em cem anos de prova abundante, é à ordem tradicional que se volta, não como uma devolução obscurantista em que prevaleçam misoneísmos inferiores de atrofia, mas como um ato de aceitação consciente para com a velha experiência das gerações extintas, que guarda com ela a chave misteriosa do nosso determinismo pessoal e coletivo.
Acerca da relação da sua tese com as teses de Oliveira Martins e Teófilo Braga, escreveu António Sardinha:
...reivindicando para a Realeza o papel decisivo que ela exerceu na formação da Nacionalidade, eu estou longe de me subordinar aos subjetivismos perniciosos de Oliveira Martins. O profundo iluminado da Vida de Nun’Álvares, através da sua tão querida teoria do Acaso, considerava-nos apenas como uma pátria inventada pela cobiça esperta de meia dúzia de aventureiros coroados. Bem opostamente, eu avanço nas passadas de Teófilo Braga, mas só naquela parte em que Teófilo defende as qualidades formosíssimas do Luso e inventaria as aptidões ancestrais que já do fundo dos séculos nos fadavam para povo livre e glorioso. Não somos um improviso das circunstâncias, desgarrados da incorporação no maciço castelhano por favor de ninguém. Dentro de nós, nas penumbras da nossa avoenga, reside com a própria razão de ser da nossa personalidade, a razão inviolável do separatismo que sempre nos individualizou. Já na Punica o poeta Silius Italicus assinala a eterna divortia que dividia Iberos e Lusitanos. É do sentimento constante de uma diferença que o Instinto de Pátria se origina. Pelos merecimentos inatos da Raça nós ganhámos a dignidade de país independente. Os nossos Reis, erguendo-se à testa dos nossos recursos nativos e coordenando-os por meio da sequência sucessória duma família, é que nos conferiram a duração e a continuidade, sem as quais é positivo que ficaríamos em metade do caminho.
(...)
Compreende-se assim o significado que eu atribuo à missão histórica da Monarquia. Em referência à aliança das beetrias e dos ópidos, da qual a Pátria resultou, o seu valor não é outro que o daquele poder centrípeto que numa maré longa de pragmatismos e verificações, como é a atual, os próprios sindicalistas lhe estão reconhecendo. A função específica da Realeza para com as primitivas mancomunidades agrárias, equacionando-as e fazendo-as convergir para um mesmo destino, corresponde, com efeito, à regra de equilíbrio e isocronia que a ofensiva económica hodierna acaba de descobrir nesse órgão insubstituível de ponderação social que é o Rei.
(...)
Se um dia Portugal tornar a ser Portugal, com os heróis afonsinos que libertaram o solo e estabeleceram a Grei, teremos de reverenciar não só os letrados e os demais burgueses de Quatrocentos que ultimaram a fábrica robusta da Nacionalidade. Ao lado deles, emparceirando com os nossos epónimos mais veneráveis, figurarão, por justiça dos vindoiros, os obreiros iluminados da Revista Lusitana e da Portugalia. Alcemos os corações ao alto! Não é um povo moribundo o povo que sente por si o testemunho de Estácio da Veiga, de Martins Sarmento, de Rocha Peixoto, de António Tomás Pires, de Santos Rocha, de Fonseca Cardoso, — para não falar senão naqueles que a morte nos arrepanhou. Os materiais encontram-se carreados com desvelo e com canseiras. Cabe agora à geração que sobe traçar o plano, meter o esforço à santa cruzada do resgate! Cumpre-nos, por um encargo indeclinável, congraçar numa síntese positivista os subsídios trazidos dos quatro cantos da esfera. A Verdade portuguesa aparecerá assim como um sistema prático de cura aos que já não creem no soerguimento da Pátria. É como que um breviário do que seja em esboço a doutrina nacionalista da hora futura que eu procuro realizar aqui, num exame rápido dos seus artigos fundamentais. Escolhendo este assunto para uma dissertação oficial, o meu desejo é ver discutidas no campo sereno da ciência as razões medulares do Integralismo Lusitano. Condensam-se num feixe minguado de páginas os resultados incontestáveis de tanto lustro de pesquizas e interrogações. O momento de afirmar chegou. Com a atenção poisada em monografias do mais variado eruditismo, eu pregunto se não soa o instante de se destrinçar o fio que entrelaça no pendor das mesmas conclusões a obra de um Teófilo Braga com a de um Adolfo Coelho, — por exemplo —, tão antagónicas que se nos manifestam as suas posturas de escola e de especialização? Leite de Vasconcelos, Henrique da Gama Barros, e Sousa Costa Lobo completam Herculano, retificam Oliveira Martins. Passou a fase negativa em que a corrosão liberalenga alastrava pavorosamente por cima dos nossos motivos de crer e de querer. Com o inventário efetuado com tanto amor por folcloristas e arqueólogos, a ninguém é já lícito desconfiar se somos um povo, se temos direito de sê-lo.
J.M.Q.
Texto completo de António Sardinha (em "ficheiro.pdf"): O Valor da Raça, 1915.